sábado, 6 de fevereiro de 2016

Por que escolhi não ser médico?

Há pouco mais de um ano, tomei a decisão que influenciará fortemente todo o resto de minha vida: decidi não ser médico.

Em 2010, ingressei no curso de Medicina na Universidade Federal de Santa Catarina após duas tentativas pelo concurso vestibular. Anos se passaram, fui a um intercâmbio nos Estados Unidos que abriu minha mente às possibilidades e me deu força e coragem para agir e mudar meu rumo. Optei por não ser médico, por trocar de curso e dar uma nova direção à minha vida profissional. Há algumas semanas, já em 2016 - ironicamente seria o ano em que me formaria, caso não tivesse atrasado o curso -, concretizei os planos: solicitei cancelamento de matrícula na UFSC e fui aprovado em primeiro lugar no concurso vestibular Fuvest para Saúde Pública na USP e em primeiro lugar no concurso SISU/ENEM para Saúde Coletiva na UFRGS.

E aqui estou, parando brevemente antes de prosseguir para refletir e compartilhar as experiências e aprendizados acumulados. Pelos próximos dias, farei uma série de postagens no meu blog elencando o porquê de eu ter escolhido não ser médico e, consequentemente, de ter mudado completamente meu rumo profissional.

Para mim, servirá de registro para sempre me lembrar das motivações, das experiências e dos sentimentos que permearam e que me conduziram a este novo caminho. Para outrem,, acredito que pode ter inúmeras funções. Caberá ao leitor definir qual mais lhe cabe: se é motivar para também trocar de curso, se é para motivar a perseguir os próprios sonhos, se é para questionar a Medicina ocidental atual, enfim, várias possibilidades se abrirão neste percurso. Fica o convite para refletir comigo. E ficam abertas as portas para as trocas.


domingo, 25 de maio de 2014

Em Busca do Orgasmo Perdido (Carla Rodrigues)

Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire
Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire

O orgasmo libertário de Wilhem Reich volta a ganhar força numa era de banalização do sexo

Por Carla Rodrigues


Wilhelm Reich causou escândalo ao defender a função libertária do orgasmo, inspirou a contracultura e gerou discípulos como Roberto Freire e Gaiarsa - antes de sair de moda. Na era da banalização do sexo, suas ideias voltam a ganhar sentido e seguidores
“Relaxa e goza!”, prega o ditado popular como saída para enfrentar situações de estresse e tensão. A máxima pode ser lida como uma tradução para lá de simplificada de uma teoria psicanalítica séria que desde o início do século passado vem associando orgasmo com libertação. Para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, além de proporcionar prazer, a função do orgasmo é produzir uma carga energética poderosa capaz de dissolver a “couraça neuromuscular do caráter” de indivíduos bloqueados pelas exigências de uma sociedade hierarquizada em que a sexualidade é oprimida. Reich trabalhou com Freud nas primeiras décadas do século 20 e trocou a Europa pelos EUA em 1939, onde depois seria perseguido e preso, sobretudo por seu passado comunista.

A partir do fim dos anos 60, tornou-se uma das referências teóricas para o movimento da contracultura. Suas propostas para pensar a sexualidade como ponto central da existência humana deram origem a quatro tipos de terapias cujo denominador comum é o prefixo bio: bioenergética, a mais famosa delas, biodinâmica, biossistêmica e biossíntese. No Brasil, dois importantes autores construíram suas obras inspirados em Reich: o médico e psicanalista Roberto Freire, autor de best-sellers como Ame e dê vexame e Sem tesão não há solução, que ajudaram a popularizar o pensamento reichiano, e o psiquiatra José Angelo Gaiarsa, falecido este ano.

Satisfação genital

Em 1927, Reich publicou a primeira edição de A função do orgasmo, um dos seus títulos até hoje mais conhecidos. Reescrito e ampliado até 1942, essa última versão foi editada pela Brasiliense e lançada aqui em 1975, no auge da emergência dos movimentos alternativos, e ainda está nas livrarias, agora na sua 19ª edição. O primeiro texto de A função do orgasmo foi escrito quando Reich tinha 30 anos e havia sete militava na Sociedade de Psicanálise de Viena ao lado de Freud, de onde seria expulso pelas articulações que fazia entre psicanálise e as ideias comunistas que abraçou e pelo combate ao nazismo nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Reich fazia parte do pequeno grupo de psicanalistas que dava ouvidos aos sintomas neuróticos dos primeiros pacientes a se deitar em divãs para falar de seus problemas sexuais. Naquele momento, a libertação em relação às repressões era o principal objetivo da psicanálise. Os reflexos dessa preocupação estão na frase “problemas econômicos sexuais na energia biológica”, subtítulo de A função do orgasmo, e em toda a estrutura do livro, cujas afirmações provocaram profundas transformações na cultura sexual. Logo nas primeiras páginas do capítulo dedicado ao desenvolvimento da teoria do orgasmo, Reich escreve: “É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que estão psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa – completa e repetida satisfação genital”.

Essas e outras orientações soaram escandalosas em um ambiente sexual repressor e reprimido, fortemente influenciado pela moral rígida do período vitoriano e diametralmente oposto à cena sexual contemporânea. “Não se poderia estar vivendo uma situação mais oposta àquela. O sexo hoje é tão escancarado que muitas vezes perde o valor. São duas épocas extremas e o século passado experimentou esses dois extremos fortes: da máxima repressão à liberalização total”, diz o psicoterapeuta corporal Rubens Kignel, diretor do Instituto Brasileiro de Biossíntese, estudioso de Reich e um dos que seguiram os caminhos da bioenergética pela orientação de Roberto Freire, de quem foi paciente nos anos 70.

“A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, diz o somaterapeuta João da Mata

A liberalização total banalizou o sexo na vida cotidiana. O excesso de oferta de pornografia, ao alcance de um clique do mouse, as relações sexuais descartáveis, as imagens sexualizadas onipresentes nas campanhas publicitárias e na programação de TV, no entanto, não garantem que as repressões que motivaram a obra de Reich tenham sido superadas. Apesar de a expressão “revolução sexual” (que deu título a um dos livros de Reich, escrito em 1936) ter se popularizado como sinônimo de uma mudança de valores que abriu espaço às novas formas de experimentar a sexualidade – fora da estrutura familiar, antes do casamento, em arranjos homossexuais –, a ideia de liberdade sexual é contestada por muitos autores. O sociólogo francês Michel Bozon, por exemplo, não acredita que “revolução sexual” seja um termo adequado para definir as mudanças de comportamento que começaram nos anos 60. Para ele, o que aconteceu foi a criação de um novo conjunto de normas, que podem ser tão repressoras quanto as antigas.

Essa percepção se expressa nos consultórios dos terapeutas que trabalham com bioenergética e confirmam a atualidade da obra de Reich. “Ainda há muitas dificuldades de viver a sexualidade de maneira plena. Mesmo com toda a liberdade de escolha, as repressões ainda existem e ainda há um aspecto moral que impõe à vida sexual uma série de dificuldades. Trabalhar com Reich continua muito válido”, diz Rubens Kignel. “A revolução sexual que Reich pregava ainda não houve”, defende o somaterapeuta João da Mata. Ele afirma que a banalização do sexo nada tem a ver com o pensamento de Reich, que pregava uma sexualidade plena com afetividade e amor. Embora reconheça que se vive hoje dentro de uma moldura de experiência sexual mais ampla – com arranjos afetivos mais livres que no passado –, ele acredita que a força do capitalismo em todas as formas de sociabilidade faz do sexo mais um objeto de consumo. “O corpo é cultivado para mostrar, não para gozar.”

João da Mata é discípulo de Roberto Freire, cuja produção teve Reich como influência e referência. “Freire tropicalizou a teoria de Reich”, explica Mata. Coube ao terapeuta brasileiro acrescentar ao pensamento do psicanalista austríaco uma metodologia que incorpora práticas corporais como o teatro, a capoeira e um componente libertário que define a somaterapia, a terapia anarquista criada por Freire. Com grupos em atividade permanente, a somaterapia propõe movimentos corporais que simulam os efeitos da energia sexual no corpo a partir de exercícios com o objetivo de libertar o paciente da tal “couraça neuromuscular do caráter” pensada por Reich.

O médico e o poeta

Granger Collection / Other images
Reich em seu laboratório em 1944
Reich em seu laboratório em 1944
No Brasil, o pioneiro no trabalho com essa couraça, pedra de toque da terapêutica reichiana, foi José Angelo Gaiarsa. Morto em outubro, aos 90 anos, ele deixou como legado uma ampla obra sobre libertação sexual, tema que perpassa seus cerca de 25 títulos publicados. “Seus livros foram muito importantes e se tivessem sido escritos em inglês teriam sido referência no mundo inteiro”, diz Rubens Kignel, que atribui as diferenças entre Gaiarsa e Freire ao estilo: enquanto o primeiro era mais médico e analítico, o segundo era mais poeta e romântico.

Esse romantismo fez com que Freire se autodefinisse como “filósofo do tesão”. A somaterapia, prática criada por ele há 40 anos, tem como sustentação a defesa do prazer como arma revolucionária de combate ao autoritarismo. Por tudo isso, ainda é vista como marginal pelo acento que dá ao pensamento anarquista e libertário e pelas críticas que faz às relações de poder. “A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, defende Mata. Esse tipo de pensamento casava com os objetivos da contracultura e com as reivindicações de liberdade, que passavam por um corpo livre para uma vida sexual plena e satisfatória.

A expectativa de liberdade levou, reconhece Rubens, a alguns exageros. Grupos terapêuticos de fim de semana com “todo mundo nu e gritando” se multiplicavam no rastro do amor livre dos hippies dos anos 70. No auge da prática, os encontros eram quinzenais e a proposta era passar por experiências radicais de liberação. “Podiam ser boas, mas também podiam ser complicadas. Porém muitas coisas eram sérias. Mesmo que fosse ficar nu, era sério, tinha um conceito em cima disso. Depois acabou virando festa”, lembra Rubens.

A porra-louquice dos anos 70 foi-se e levou consigo alguns traços do pensamento de Reich que hoje se mostram ultrapassados. A ênfase nos aspectos biológicos do orgasmo, tônica dos textos de Reich a partir da sua mudança para os EUA; um detalhado manual do “orgasmo correto” em todas suas fases; e um ideal romântico do “gozo cósmico”, de entrega infinita, ou de uma “vida orgástica” são alguns dos pontos que mesmo os seguidores de Reich descartam hoje.

Existem outros aspectos do pensamento reichiano, no entanto, que foram revitalizados pelas neurociências. Uma de suas teses básicas é que a consciência vem da percepção do corpo. “Reich já falava disso e os exercícios de percepção do corpo que ele propõe já eram formas de chegar à consciência”, explica o psicoterapeuta Ricardo Rego, do Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica. Doutor em psicologia pela USP, Ricardo integra um grupo de dez pesquisadores que retomou a leitura de Reich, não mais à luz da contracultura, mas no ambiente acadêmico. “A contracultura produziu uma certa visão sobre Reich e até hoje os reichianos pagam um preço por isso”, diz ele.

Ricardo foi um dos alunos de Paulo Albertini, precursor nos estudos de Reich na USP. Professor do Instituto de Psicologia da universidade desde 1978, Albertini propôs em 1986 a criação de uma disciplina sobre o autor de A função do orgasmo. Seis anos depois, defendeu a primeira tese inteiramente dedicada à investigação das ideias de Reich no Brasil, e desde então, tem se dedicado a orientar pesquisas de pós-graduação sobre o psicanalista austríaco. Entre mestrados e doutorados, já são dez trabalhos voltados ao estudo do pensamento de Reich.

Almoço de domingo

Albertini acredita que ainda há muito a ser lido e pesquisado, num movimento que pode trazer à tona mais do que as ideias de Reich, tão em voga nos anos 70. Com Albertini, novos reichianos foram, a partir dos anos 90, conquistando espaço na academia, movimento que João da Mata também percebe em relação ao trabalho de Freire. “Estão surgindo alguns cursos e grupos de pesquisa”, constata Mata, ele mesmo hoje professor na Universidade Federal Fluminense.

Na USP, Albertini garante não ter passado por adversidades, mas lembra quando preencheu um formulário sobre seus temas de pesquisa e escreveu “teoria do orgasmo”. O documento voltou devidamente revisado para “teoria bioenergética”. Hoje, no ambiente universitário, a barreira a enfrentar é outra. Reich é apontado como um pensador que contribuiu para relações contemporâneas marcadas pela ausência de vínculos afetivos sólidos e para experiências de sexualidade narcísicas. “Não era nisso que ele apostava”, diz Albertini, lembrando que o espírito reichiano não era o da quantidade, mas da qualidade das relações sexuais. Ele defende que a crítica de Reich ao patriarcado foi um ponto fundamental para desmontar as estruturas hierárquicas da sociedade que sustentam a opressão sexual. Albertini recorda a afirmação de uma aluna que, nos anos 80, expressou a visão de Reich sobre as relações autoritárias: “Violento é o almoço de domingo em família”.

(Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/195/reportagens/em-busca-do-orgasmo-perdido.html)

O aborto na fogueira eleitoral (Eliane Brum)

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha

Por Eliane Brum

Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum

(Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/28/opinion/1398692471_063651.html)

Saúde: ainda há muito o que fazer (Walter Feldman)

Saúde é um tema recorrente, conhecido, parametrizado e acumulado nas experiências positivas e negativas. Nesta área, muito se sabe e muito se fez.
O SUS é um modelo próximo do perfeito, do ponto de vista conceitual e legal. É sustentável, hierarquizado, gratuito, universal e com garantida participação popular. Com o público e o privado supervisionado e regulado, além do inegável papel das filantrópicas, particularmente das Santas Casas, temos um arcabouço próprio de um país disposto a se consolidar como referência internacional.
Avançamos muito. Porém, insuficiente no financiamento do modelo, com percentuais determinados nos orçamentos estaduais e municipais e ainda não definida, com demora inexplicável da União, no sentido de encerrar a votação da emenda 29.
Por que então ainda somos um barco à deriva, com furos no casco, remendos frágeis e casuísticos, movidos por interesses conjunturais com foco na tática eleitoral?
Teríamos, teórica e praticamente, condições para nos transformarmos em paradigma internacional. Não aconteceu! Pelo contrário: população insatisfeita, muitas vezes indignada, a ponto de colocar a saúde reiteradamente como tema prioritário nas suas queixas e demandas.
Nosso corpo de profissionais, insatisfeito, luta por dignidade profissional e reconhecimento salarial para cumprir sua insubstituível tarefa.
Há solução?
Uma Política Pública que priorizasse inicialmente a promoção e a prevenção, com programas nacionais integrados com estados e municípios, poderia, por si só, já dar um salto qualitativo e quantitativo nos resultados de morbidade e mortalidade. Uma população sedentária e com sobrepeso não condiz com um país tropical, ensolarado e “abençoado por Deus”, como diria Jorge Bem Jor.
Superada a endêmica desnutrição relatada por Josué de Castro, estamos prontos para buscar, nesta curva social, a qualidade de vida possível, se assim fosse fundamental para nossos governantes que se revezam, nos últimos anos, na repetição de erros, mergulhados nos seus interesses políticos e eleitorais.
Isto gera baixa qualidade na gestão do sistema e ralos nos controles de gastos, desidratando nosso ainda precário investimento no setor.
A hierarquização da pirâmide que deveria priorizar a atenção primária se desvirtuou em programas que não se falam, não se ampliam e estimulam ainda mais uma visão “hospitalocêntrica”, concentradora de filas de espera e macas em corredores num círculo vicioso  de logística mal produzida.
Interesses maiores de fabricantes ou fornecedores muitas vezes dão o tom de uma medicina desproporcionalmente instalada no território nacional, com ilhas de excelência e extensas áreas de carências…  superáveis, se planejamento estratégico, seriedade, gestão, integração, reconhecimento profissional e ética fossem os valores inspiradores de um sistema de saúde, no qual o ser humano estivesse no palco central.
Tudo isto o Povo Brasileiro merece e pode conquistar!

(Disponível em: http://redesustentabilidade.org.br/saude-ainda-ha-muito-o-que-fazer-por-walter-feldman/)

E se reduzirmos a jornada de trabalho para 6 horas? (Carmém Lopez)

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Cidade sueca começa a testar ideia óbvia: e se o desenvolvimento tecnológico, esta criação humana, beneficiar a todos — e não apenas ao capital?

Por Carmém Lopez, no El Pais

O debate não é novo, mas foram os suecos que se decidiram a provar sua eficácia: Gotemburgo (a segunda cidade em importância da Suécia) fará um experimento para constatar o sucesso ou o fracasso da redução da jornada trabalhista para 6 horas diárias, segundo declarou Mats Pilhem, conselheiro da prefeitura e pertencente ao Partido da Esquerda, ao jornal sueco The Local.

A proposta do ensaio é simples: a metade dos funcionários da prefeitura manterão sua jornada habitual de quarenta horas semanais enquanto a outra metade desenvolverão uma jornada diária de 6 horas. Todos os trabalhadores ganharão o mesmo salário (é provável que os do segundo grupo estejam esfregando as mãos neste momento pensando no tamanho de sua sorte). Dentro de um ano serão avaliados os resultados do estudo para decidir que tipo de horário é mais benéfico para a sociedade de modo geral. “Esperamos que os trabalhadores de nosso modelo tenham menos dias de baixa por doença e se sintam melhor física e mentalmente após ter jornadas trabalhistas mais curtas”, explicou Pilhem.

A prova da redução da carga horária da jornada trabalhista obteve mais vezes resultados irregulares. Pilhem em suas declarações faz alusão a uma fábrica automobilística da própria cidade que obteve conclusões positivas. Seus opositores, no entanto, lembram o caso da cidade de Kiruna, que depois de dezesseis anos com a jornada reduzida decidiu voltar à jornada original por motivos econômicos e de saúde.

Seja como for, o que evidencia a decisão das autoridades suecas é a preocupação europeia com a duração das jornadas trabalhistas, que causam problemas que vão desde a conciliação trabalhista e familiar até à produtividade e eficiência das empresas. Há apenas algumas semanas, a França anunciou que engenheiros e consultores eram obrigados a desligar seus celulares e dispositivos eletrônicos corporativos durante 11 horas por dia para tentar acabar assim com as jornadas trabalhistas intermináveis. Isto é, desligar o computador e o celular do trabalho e esquecer deles até a manhã seguinte, uma ação que para muitos e muitas é inimaginável nos dias de hoje.

Na Espanha, o problema é quase maior devido aos horários que, por si só, já são estendidos, e à cultura do “presentismo” trabalhista que impera na sociedade há alguns anos e é agravada por fatores como a crise. No entanto, alguns setores começaram a criar iniciativas para que os horários de trabalho sejam moldados de modo que haja uma melhoria na vida social e familiar das pessoas. É o caso, por exemplo, da Associação para a Racionalização dos Horários Espanhóis (ARHOE) cujo manifesto defende por “uma profunda modificação dos horários na Espanha, que nos ajude a ser mais felizes, a ter mais qualidade de vida e a ser mais produtivos e competitivos.”

Um dos objetivos do manifesto é favorecer a igualdade entre o homem e a mulher, já que as jornadas trabalhistas que são maratonas afetam especialmente às mulheres. De fato, o partido político sueco Iniciativa Feminista, é um dos principais defensores do experimento da redução das horas de trabalho já que fará a vida trabalhista bem mais acessível às mulheres com filhos. Até o momento, as medidas que estavam sendo tomadas pareciam encaminhadas a adaptar a vida pessoal e familiar com o trabalho (com a extensão dos horários dos colégios, por exemplo) mas parece que as coisas começam a mudar, ao menos no resto de Europa. Do resultado do experimento de Gotemburgo pode ser que possam extrair os roteiros para avançar na direção adequada para a verdadeira conciliação.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17296)

A indústria farmacêutica e as drogas “para ocidentais que pagam” (Júlio Reis)

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Fala do executivo-chefe da Bayer permite decifrar lógica fria da propriedade intelectual e das patentes — e a razão de persistirem incuradas certas doenças…

Por Júlio Reis | Imagem: Satoshi Kambayashi

Prolongar em alguma medida a vida e mitigar a dor e o sofrimento das pessoas foram e devem continuar sendo os autênticos propósitos do desenvolvimento de atividades medicinais e farmacêuticas. No entanto, diferente de outros momentos históricos e configurações sociais, para o atual momento do modo de produção capitalista isto deve estar rigorosamente subordinado ao lucro.

É desta maneira que, abandonando qualquer pudor e se afastando da miserabilidade das motivações humanistas como intuito da pesquisa bioquímica, uma fala recente se coloca como emblemática da lógica em vigor.

Durante um debate promovido pelo diário londrino Financial Times, o executivo chefe da Bayer, Marijn Dekkers (que também é um dos membros diretores da General Eletric), assim respondeu sobre como a possível quebra de patente por parte da Índia poderia afetar o modelo de negócios do grupo¹:

“Nós não desenvolvemos este produto para o mercado indiano, sejamos honestos. Nós desenvolvemos este produto para os pacientes do ocidente que podem pagar por ele”. O “produto” em questão é o Nexavar, conhecido também como Soferanib e utilizado no tratamento de câncer avançado do rim e do fígado. Dekkers aproveitou ainda a ocasião para classificar o sistema indiano de quebra de patentes de medicamentos como “essencialmente roubo”.

Mesmo deixando de lado o importante vetor dos descompassos de uma “cultura” que –prometendo a absoluta satisfação destas necessidades imemoriais e, ao mesmo tempo, promovendo sua insatisfação constante — tenta convencer que a morte e todo sentimento de dor podem ser extinguidos, são gritantes as contradições de um “oba-oba” que pretende fazer esquecer as limitações do acesso e da arquitetura de seu “progresso”.

Longe de buscar satisfazer as necessidades humanas de forma mais abrangente, os avanços da indústria farmacêutica orientam-se aferradamente de acordo com a lógica da multiplicação do capital. Assim, necessidades da mais elevada ordem sensível são tratadas no mesmo lugar que a compra de vestuário de grife, nada mais “natural”! O próprio desenvolvimento “cultuado” está desenhado por uma acessibilidade restrita e muito pouco pela vontade de saciar a “humanidade” que dele poderia usufruir.

Portanto, voltando a Dekkers, vale perguntar por que é um roubo a quebra de patentes se não havia interesse no “mercado” indiano? Ele não teria ainda, mesmo que inusitadamente, dado uma excelente resposta para o problema do preço de certas drogas (que, vamos combinar, não são modelo de automóvel): paga caro quem pode pagar caro e barato quem só pode pagar barato?

Não. Cada um deve arcar solitariamente com o preço proposto pela corporação. É que só assim ela terá não apenas o retorno de seus investimentos como felpudos lucros, que foram aliás o grande ensejo do que um dia ainda fazia questão de exibir um verniz filantrópico.

A indignação de Dekkers, no entanto faz sentido. Ele é pago para defender a possibilidade do aumento dos lucros acima de tudo. Vai que a moda pega e outros países, eventualmente inclusive os ocidentais, começam a derrubar as patentes: como é que fica o modelo de bussiness da Bayer?

Aliás, não será o modelo de negócios uma das causas (deixando de lado os desafios propriamente farmacoquímicos) de uma doença como a Aids, não ter encontrado a cura ou vacina até o momento?

Sejamos honestos como Dekkers. A menos para as grandes corporações, que interesse há em superar enfermidades que, crônicas, podem continuar rendendo vantagens econômicas? E, mais importante: como se justificaria para a humanidade que o acesso a uma vacina como esta ficasse restrito àqueles que pudessem pagar o valor arbitrado pela empresa que a desenvolveu? Ou todas os Estados-nações arcariam com os custos em seus orçamentos fiscais, ou esta alegada “propriedade intelectual”, com tal calibre de impacto, não seria tolerada enquanto monopólio de mercado de quem dele dispõe.

Fico imaginando ainda o que os cientistas que desenvolvessem um antídoto assim considerariam disto: “Celebremos, celebremos. Depois de longo esforço, alcançamos este estupendo resultado. Sabemos, fomos motivados pelo lucro, agora é esperar que os consumidores comprem a vacina pelo preço estabelecido por nossos acionistas e de nenhuma forma vamos revelar este segredo para o público, mesmo que as pessoas continuem morrendo do mal”.

Contudo não podemos esquecer aqui do cerne do argumento habitual: “Mas essas empresas investem, fazem muitas pesquisas, gastam muito dinheiro em projetos que às vezes não levam a nada até inventarem uma droga como essa, é justo que recebam dividendos por tudo isso”.
Nunca questionam o quanto as empresas devem lucrar e quem deve pagar a conta. Sujeitos atomizados, necessariamente? Não se pode criar um outro sistema para premiar a empresa — que não o lucro, base de patentes que encarece tantos medicamentos?

Uma vez mais o exemplo do Nexavar é precioso: o preço do medicamento reclamado pela Bayer é de 65 mil dólares por ano para o tratamento de um paciente. Com a quebra de patente pela Justiça indiana, ele passou a custar 97% menos, algo em torno de 2 mil dólares ao ano. A Índia exige das empresas farmacêuticas que querem operar no país a fórmula dos remédios para certas doenças, como Aids e câncer — a fim de que sejam produzidos livremente por outras companhias, como a indiana Natco. As desenvolvedoras da fórmula continuam recebendo um valor pelo uso da mesma, mas não estabelecem o preço que intentam e se cria um mercado de genéricos.

Para os neoliberais, alternativas como essa abalam a “fé” no livre mercado e ao mesmo tempo o Estado não tem nada que se envolver com o tema, ou com o que quer que seja considerado rentável. Claro que eles sofrem de amnésia: antes de muitos negócios demonstrarem-se rentáveis, o Estado desenvolveu “a necessidade” e os meios de satisfação, retirando-se depois do jogo. Isso porque o Estado, outra vez eles esquecem, é dirigido predominantemente conforme os interesses dos grandes grupos de influência econômica e “socializa” os custos de arriscadas empreitadas e dos imensos prejuízos daqueles que são “grande demais para cair”. Como de praxe, o Estado é mínimo para os pobres; para os ricos é garantidor.

Já é conhecido que as grandes farmacêuticas não dão a mínima para o tratamento das designadas “doenças negligenciadas”, aquelas que atingem populações de rincões subdesenvolvidos e para as quais não se deve esperar nunca uma cura advinda da livre iniciativa de mercado. Para sorte destes desvalidos, o mínimo Estado ainda não está completamente zerado e aporta recursos para instituições de pesquisa públicas como a Fiocruz no Brasil.

Esta instituição, com os parcos recursos que recebe, procura contornar o problema de populações carentes e recentemente anunciou que está próxima de alcançar a vacina para a esquistossomose, doença que atinge 200 milhões de pessoas no globo².
Como se não bastasse e com impactos bastante nefastos, convertida em ramo empresarial no mundo da vertiginosa espiral competitiva, a indústria farmacêutica exibe também os sintomas da ganância fraudulenta. Uma notícia recente demonstra mais um entre tantos casos dessa febre.

Segundo relata a Cochrane Collaboration, uma organização não lucrativa que reúne 14 mil acadêmicos, o Tamiflu (droga criada pela Roche a propósito do surto da alcunhada gripe aviária) tem pequeno ou nenhum impacto no tratamento de complicações advindas de gripe ou pneumonia. Além disso, os métodos e resultados dos tratamentos clínicos à base de muitos remédios estão eivados de pouca transparência³. Em suma, é preciso mais fé do que ciência para que tudo funcione como se pretende.

Pesquisadores ao longo da história estiveram interessados em desenvolver curas, substâncias e métodos de tratamento. Perseguiam o conhecimento e buscavam satisfazer necessidades humanas. Alguns, por vaidade intelectual certamente perseguiam também o reconhecimento público, mas isto estava muito longe de se confundir com o esforço para multiplicar dinheiro.

Como bravo exemplo pode se tomar Edward Jenner. Hoje ninguém duvida da eficácia do método de vacinação defendido por ele em combate contra a varíola, uma das doenças mais nefastas de que já se teve notícia. Porém, poucos sabem da dedicação deste homem para que isso sucedesse. Enquanto seu método ainda sofresse ataques, Jenner vacinava pobres gratuitamente e se empenhava em provar o benefício de sua descoberta. Passou boa parte da vida endividado, numa Inglaterra que punia com cadeia este “crime”. Não contou com o apoio de nenhuma grande empresa e do Estado britânico. Ganhou, após muita comoção, dois prêmios pecuniários em reconhecimento aos seus esforços e como forma de livrá-lo das dívidas. Sem grandes apoios financeiros, Jenner lutou para nos deixar uma grande descoberta com todo o poder de sua genuína livre inciativa, não fez o que fez guiado pelo lucro.

Se todas as doenças causassem seus danos de acordo com o saldo bancário do atingido é possível que estes questionamentos não se fizessem necessários. Mas, ao que tudo indica, a maior parte dos vírus, bactérias, degenerações e infecções ainda não apreenderam a discernir muito bem a lógica do dinheiro antes dos seus ataques, embora a lógica do dinheiro tenha apreendido muito bem a discernir os doentes afetados.

¹-http://keionline.org/node/1910
²-http://www.dw.de/brasil-est%C3%A1-perto-de-lan%C3%A7ar-vacina-pioneira-contra-esquistossomose/a-17513604
³-http://www.theguardian.com/business/2014/apr/10/tamiflu-saga-drug-trials-big-pharma

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/05/05/a-industria-farmaceutica-e-as-drogas-para-ocidentais-que-pagam/)

A farsa do racismo “suave” (Douglas Belchior)

À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.
À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.

Muito mais que vulgaridade publicitária, difusão do “todos somos macacos”  revela tentativa de minimizar peso da discriminação racial

Por Douglas Belchior, em seu blog

A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.

Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.

A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.

Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”

Não, querido Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.

Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.

No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.

E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:

“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”

É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!

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Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!

O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!

Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.

O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.

Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.

Sou negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.

Eu como negro, não admito. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.

O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.

Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?

Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.

Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17281)
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