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domingo, 25 de maio de 2014

Em Busca do Orgasmo Perdido (Carla Rodrigues)

Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire
Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire

O orgasmo libertário de Wilhem Reich volta a ganhar força numa era de banalização do sexo

Por Carla Rodrigues


Wilhelm Reich causou escândalo ao defender a função libertária do orgasmo, inspirou a contracultura e gerou discípulos como Roberto Freire e Gaiarsa - antes de sair de moda. Na era da banalização do sexo, suas ideias voltam a ganhar sentido e seguidores
“Relaxa e goza!”, prega o ditado popular como saída para enfrentar situações de estresse e tensão. A máxima pode ser lida como uma tradução para lá de simplificada de uma teoria psicanalítica séria que desde o início do século passado vem associando orgasmo com libertação. Para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, além de proporcionar prazer, a função do orgasmo é produzir uma carga energética poderosa capaz de dissolver a “couraça neuromuscular do caráter” de indivíduos bloqueados pelas exigências de uma sociedade hierarquizada em que a sexualidade é oprimida. Reich trabalhou com Freud nas primeiras décadas do século 20 e trocou a Europa pelos EUA em 1939, onde depois seria perseguido e preso, sobretudo por seu passado comunista.

A partir do fim dos anos 60, tornou-se uma das referências teóricas para o movimento da contracultura. Suas propostas para pensar a sexualidade como ponto central da existência humana deram origem a quatro tipos de terapias cujo denominador comum é o prefixo bio: bioenergética, a mais famosa delas, biodinâmica, biossistêmica e biossíntese. No Brasil, dois importantes autores construíram suas obras inspirados em Reich: o médico e psicanalista Roberto Freire, autor de best-sellers como Ame e dê vexame e Sem tesão não há solução, que ajudaram a popularizar o pensamento reichiano, e o psiquiatra José Angelo Gaiarsa, falecido este ano.

Satisfação genital

Em 1927, Reich publicou a primeira edição de A função do orgasmo, um dos seus títulos até hoje mais conhecidos. Reescrito e ampliado até 1942, essa última versão foi editada pela Brasiliense e lançada aqui em 1975, no auge da emergência dos movimentos alternativos, e ainda está nas livrarias, agora na sua 19ª edição. O primeiro texto de A função do orgasmo foi escrito quando Reich tinha 30 anos e havia sete militava na Sociedade de Psicanálise de Viena ao lado de Freud, de onde seria expulso pelas articulações que fazia entre psicanálise e as ideias comunistas que abraçou e pelo combate ao nazismo nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Reich fazia parte do pequeno grupo de psicanalistas que dava ouvidos aos sintomas neuróticos dos primeiros pacientes a se deitar em divãs para falar de seus problemas sexuais. Naquele momento, a libertação em relação às repressões era o principal objetivo da psicanálise. Os reflexos dessa preocupação estão na frase “problemas econômicos sexuais na energia biológica”, subtítulo de A função do orgasmo, e em toda a estrutura do livro, cujas afirmações provocaram profundas transformações na cultura sexual. Logo nas primeiras páginas do capítulo dedicado ao desenvolvimento da teoria do orgasmo, Reich escreve: “É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que estão psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa – completa e repetida satisfação genital”.

Essas e outras orientações soaram escandalosas em um ambiente sexual repressor e reprimido, fortemente influenciado pela moral rígida do período vitoriano e diametralmente oposto à cena sexual contemporânea. “Não se poderia estar vivendo uma situação mais oposta àquela. O sexo hoje é tão escancarado que muitas vezes perde o valor. São duas épocas extremas e o século passado experimentou esses dois extremos fortes: da máxima repressão à liberalização total”, diz o psicoterapeuta corporal Rubens Kignel, diretor do Instituto Brasileiro de Biossíntese, estudioso de Reich e um dos que seguiram os caminhos da bioenergética pela orientação de Roberto Freire, de quem foi paciente nos anos 70.

“A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, diz o somaterapeuta João da Mata

A liberalização total banalizou o sexo na vida cotidiana. O excesso de oferta de pornografia, ao alcance de um clique do mouse, as relações sexuais descartáveis, as imagens sexualizadas onipresentes nas campanhas publicitárias e na programação de TV, no entanto, não garantem que as repressões que motivaram a obra de Reich tenham sido superadas. Apesar de a expressão “revolução sexual” (que deu título a um dos livros de Reich, escrito em 1936) ter se popularizado como sinônimo de uma mudança de valores que abriu espaço às novas formas de experimentar a sexualidade – fora da estrutura familiar, antes do casamento, em arranjos homossexuais –, a ideia de liberdade sexual é contestada por muitos autores. O sociólogo francês Michel Bozon, por exemplo, não acredita que “revolução sexual” seja um termo adequado para definir as mudanças de comportamento que começaram nos anos 60. Para ele, o que aconteceu foi a criação de um novo conjunto de normas, que podem ser tão repressoras quanto as antigas.

Essa percepção se expressa nos consultórios dos terapeutas que trabalham com bioenergética e confirmam a atualidade da obra de Reich. “Ainda há muitas dificuldades de viver a sexualidade de maneira plena. Mesmo com toda a liberdade de escolha, as repressões ainda existem e ainda há um aspecto moral que impõe à vida sexual uma série de dificuldades. Trabalhar com Reich continua muito válido”, diz Rubens Kignel. “A revolução sexual que Reich pregava ainda não houve”, defende o somaterapeuta João da Mata. Ele afirma que a banalização do sexo nada tem a ver com o pensamento de Reich, que pregava uma sexualidade plena com afetividade e amor. Embora reconheça que se vive hoje dentro de uma moldura de experiência sexual mais ampla – com arranjos afetivos mais livres que no passado –, ele acredita que a força do capitalismo em todas as formas de sociabilidade faz do sexo mais um objeto de consumo. “O corpo é cultivado para mostrar, não para gozar.”

João da Mata é discípulo de Roberto Freire, cuja produção teve Reich como influência e referência. “Freire tropicalizou a teoria de Reich”, explica Mata. Coube ao terapeuta brasileiro acrescentar ao pensamento do psicanalista austríaco uma metodologia que incorpora práticas corporais como o teatro, a capoeira e um componente libertário que define a somaterapia, a terapia anarquista criada por Freire. Com grupos em atividade permanente, a somaterapia propõe movimentos corporais que simulam os efeitos da energia sexual no corpo a partir de exercícios com o objetivo de libertar o paciente da tal “couraça neuromuscular do caráter” pensada por Reich.

O médico e o poeta

Granger Collection / Other images
Reich em seu laboratório em 1944
Reich em seu laboratório em 1944
No Brasil, o pioneiro no trabalho com essa couraça, pedra de toque da terapêutica reichiana, foi José Angelo Gaiarsa. Morto em outubro, aos 90 anos, ele deixou como legado uma ampla obra sobre libertação sexual, tema que perpassa seus cerca de 25 títulos publicados. “Seus livros foram muito importantes e se tivessem sido escritos em inglês teriam sido referência no mundo inteiro”, diz Rubens Kignel, que atribui as diferenças entre Gaiarsa e Freire ao estilo: enquanto o primeiro era mais médico e analítico, o segundo era mais poeta e romântico.

Esse romantismo fez com que Freire se autodefinisse como “filósofo do tesão”. A somaterapia, prática criada por ele há 40 anos, tem como sustentação a defesa do prazer como arma revolucionária de combate ao autoritarismo. Por tudo isso, ainda é vista como marginal pelo acento que dá ao pensamento anarquista e libertário e pelas críticas que faz às relações de poder. “A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, defende Mata. Esse tipo de pensamento casava com os objetivos da contracultura e com as reivindicações de liberdade, que passavam por um corpo livre para uma vida sexual plena e satisfatória.

A expectativa de liberdade levou, reconhece Rubens, a alguns exageros. Grupos terapêuticos de fim de semana com “todo mundo nu e gritando” se multiplicavam no rastro do amor livre dos hippies dos anos 70. No auge da prática, os encontros eram quinzenais e a proposta era passar por experiências radicais de liberação. “Podiam ser boas, mas também podiam ser complicadas. Porém muitas coisas eram sérias. Mesmo que fosse ficar nu, era sério, tinha um conceito em cima disso. Depois acabou virando festa”, lembra Rubens.

A porra-louquice dos anos 70 foi-se e levou consigo alguns traços do pensamento de Reich que hoje se mostram ultrapassados. A ênfase nos aspectos biológicos do orgasmo, tônica dos textos de Reich a partir da sua mudança para os EUA; um detalhado manual do “orgasmo correto” em todas suas fases; e um ideal romântico do “gozo cósmico”, de entrega infinita, ou de uma “vida orgástica” são alguns dos pontos que mesmo os seguidores de Reich descartam hoje.

Existem outros aspectos do pensamento reichiano, no entanto, que foram revitalizados pelas neurociências. Uma de suas teses básicas é que a consciência vem da percepção do corpo. “Reich já falava disso e os exercícios de percepção do corpo que ele propõe já eram formas de chegar à consciência”, explica o psicoterapeuta Ricardo Rego, do Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica. Doutor em psicologia pela USP, Ricardo integra um grupo de dez pesquisadores que retomou a leitura de Reich, não mais à luz da contracultura, mas no ambiente acadêmico. “A contracultura produziu uma certa visão sobre Reich e até hoje os reichianos pagam um preço por isso”, diz ele.

Ricardo foi um dos alunos de Paulo Albertini, precursor nos estudos de Reich na USP. Professor do Instituto de Psicologia da universidade desde 1978, Albertini propôs em 1986 a criação de uma disciplina sobre o autor de A função do orgasmo. Seis anos depois, defendeu a primeira tese inteiramente dedicada à investigação das ideias de Reich no Brasil, e desde então, tem se dedicado a orientar pesquisas de pós-graduação sobre o psicanalista austríaco. Entre mestrados e doutorados, já são dez trabalhos voltados ao estudo do pensamento de Reich.

Almoço de domingo

Albertini acredita que ainda há muito a ser lido e pesquisado, num movimento que pode trazer à tona mais do que as ideias de Reich, tão em voga nos anos 70. Com Albertini, novos reichianos foram, a partir dos anos 90, conquistando espaço na academia, movimento que João da Mata também percebe em relação ao trabalho de Freire. “Estão surgindo alguns cursos e grupos de pesquisa”, constata Mata, ele mesmo hoje professor na Universidade Federal Fluminense.

Na USP, Albertini garante não ter passado por adversidades, mas lembra quando preencheu um formulário sobre seus temas de pesquisa e escreveu “teoria do orgasmo”. O documento voltou devidamente revisado para “teoria bioenergética”. Hoje, no ambiente universitário, a barreira a enfrentar é outra. Reich é apontado como um pensador que contribuiu para relações contemporâneas marcadas pela ausência de vínculos afetivos sólidos e para experiências de sexualidade narcísicas. “Não era nisso que ele apostava”, diz Albertini, lembrando que o espírito reichiano não era o da quantidade, mas da qualidade das relações sexuais. Ele defende que a crítica de Reich ao patriarcado foi um ponto fundamental para desmontar as estruturas hierárquicas da sociedade que sustentam a opressão sexual. Albertini recorda a afirmação de uma aluna que, nos anos 80, expressou a visão de Reich sobre as relações autoritárias: “Violento é o almoço de domingo em família”.

(Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/195/reportagens/em-busca-do-orgasmo-perdido.html)

O aborto na fogueira eleitoral (Eliane Brum)

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha

Por Eliane Brum

Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum

(Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/28/opinion/1398692471_063651.html)

A farsa do racismo “suave” (Douglas Belchior)

À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.
À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.

Muito mais que vulgaridade publicitária, difusão do “todos somos macacos”  revela tentativa de minimizar peso da discriminação racial

Por Douglas Belchior, em seu blog

A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.

Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.

A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.

Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”

Não, querido Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.

Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.

No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.

E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:

“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”

É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!

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Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!

O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!

Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.

O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.

Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.

Sou negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.

Eu como negro, não admito. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.

O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.

Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?

Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.

Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17281)

Esquerda e Direita diante da Ética contemporânea (Ladislau Dowbor)

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Livro recente sugere: mesmo torturadores, ou especuladores financeiros, precisam amparar-se em valores considerados legítimos. Alguns destes ainda reforçam obediência, autoridade e religião

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Herakut


Mentimos, trapaceamos e justificamos tão bem que
passamos a acreditar honestamente que somos honestos
Jonathan Haidt

É difícil traduzir a expressão inglesa self-righteousness. Expressa a profunda convicção de uma pessoa de que domina os outros da altura da sua elevada postura ética. Em geral leva a comportamentos estreitamente moralistas e intolerantes. E frequentemente vemos atos violentos justificados com fins altamente morais. Não há barbárie que não se proteja com argumentos de elevada nobreza. Sentimento que  permite soltar as rédeas do ódio, aquele sentimento agradável de odiar com boas razões. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade representou um marco histórico da hipocrisia na defesa de privilégios. Vêm mais marchas por aí, a hipocrisia tem pernas longas. As invasões de países se dão em geral para proteger as populações indefesas, as ditaduras para salvar a democracia, os ataques sexuais são feitos da altura moral de quem usa os buraquinhos como se deve.

Jonathan Haidt, no seu livro The Righteous Mind, que traduziremos aqui por “a mente moralizante”, para distinguir da pessoa meramente “moral”, parte de um problema relativamente simples: como a sociedade americana se divide, de maneira razoavelmente equilibrada, em democratas e republicanos, cada um acreditando piamente ocupar a esfera superior na batalha ética, e considerando o adversário como hipócrita, mentiroso — enfim, desprovido de qualquer sentimento de moralidade? O imoral é o outro. E no entanto, de cada lado há pessoas inteligentes, sensíveis, por vezes brilhantes – mas profundamente divididas. Em nome da ética, o ódio impera.

O tema, evidentemente, não é novo. Um dos livros de maior influência, até hoje, nos Estados Unidos, é O Dilema Americano, de Gunnar Myrdal, dos anos1940, que lhe valeu o prêmio Nobel. É uma das análises mais finas não dos Estados Unidos, mas do bom americano médio, e de como cabem na mesma cabeça a atitude compenetrada no serviço religioso da sua cidade, a profunda convicção da importância da liberdade e dos direitos humanos, e práticas como a perseguição dos negros? O livro é muito inteligente, e correto. Myrdal adverte que desautoriza qualquer uso da sua análise para um antiamericanismo barato. O objetivo dele não é defender ou atacar, é entender. Mas conclui que “o problema negro”, nos Estados Unidos, “é um problema dos brancos”. A análise, naturalmente, poderia ser estendida para muito além da mente americana.

O campo de trabalho de Haidt é a disciplina chamada psicologia moral, moral psychology. Estuda justamente como se articulam, em termos psicológicos, as construções dos nossos valores, e em particular os valores que podemos qualificar de políticos. Com que base real passamos a achar que o que fazemos é moralmente certo, ou correto? Através de quê mecanismos o que era razão se transforma em mera racionalização de emoções subjacentes?

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Há as leis, naturalmente, mas estas definem o que é legal, e frequentemente as leis foram elaboradas por quem as manipula, tornando legal o que é moralmente indefensável. Os paraísos fiscais permitem às corporações pagar poucos impostos, o que não é viável para a pequena empresa. Não é ilegal declarar a sua sede no paraíso fiscal, e evitar assim de pagar impostos no país onde a empresa funciona, enquanto os seus empregados naturalmente pagam os impostos normalmente, inclusive porque são deduzidos na folha de pagamento. Mas basta ser legal para ser ético?

Edward Snowden, aos revelar a amplitude da invasão da privacidade e do uso invasivo das tecnologias de rastreamento da NSA, cometeu um ato ilegal, do ponto de vista da justiça americana (ainda que com controvérsias), mas o fez, com risco próprio, por razões éticas. Os que lutavam contra a escravidão eram presos e condenados. Mandela pagou 30 anos da sua vida por combater um regime legal, mas medieval. Os republicanos qualificam Snowden de traidor, como a Máfia considera traidor quem não se solidariza com o grupo, ainda que seja para cometer crimes. A ética pode ser muito elástica.

Há um referencial confiável, um valor absoluto? Durkheim escreveu que “é moral tudo que é fonte de solidariedade, tudo que leva o homem a regular as suas ações por algo mais do que o seu próprio egoísmo”. Haidt busca “os mecanismos que contribuem para suprimir ou regular o auto-interesse e tornam as sociedades cooperativas.” (270) Paulo Freire, que era um homem simples, mas não simplório, resumia a questão, dizendo que queria “uma sociedade menos malvada”. Com que mecanismos psicológicos grupos sociais conseguem justificar em termos éticos o que claramente traz danos aos outros, e vantagens para elas? Chamemos isto de racionalizações, coisa que Haidt chama de raciocínio motivado (motivated reasoning).(159)

Haidt entra no coração das racionalizações. A visão é de que buscamos mais parecer bons do que ser bons. “Mentimos, trapaceamos e dobramos regras éticas frequentemente, quando achamos que podemos sair impunes; e então usamos o nosso raciocínio moral para gerir as nossas reputações e justificar-nos junto aos outros. Acreditamos no nosso raciocínio a posteriori tão profundamente que terminamos moralisticamente (self-righteously)  convencidos da nossa própria virtude”. Somos tão bons nisto, que conseguimos enganar até a nós mesmos. (190, xv)

A visão geral de Haidt é que o raciocínio serve essencialmente para justificar o que já foi decidido por outros mecanismos, intuitivos: “É o primeiro princípio: as intuições chegam em primeiro lugar, o raciocínio estratégico em segundo” (xiv). O que resulta é um raciocínio de confirmação, não de análise e compreensão: “Que chance existe que as pessoas pensem de mente aberta, de forma exploratória, quando o auto-interesse, a identidade social e fortes emoções as fazem querer ou até necessitar chegar a uma conclusão preordenada?” (81)

Provavelmente o maior interesse do livro de Haidt, é que nos permite entender um pouco melhor este nosso poço escuro de ódios e identificações políticas, ao detalhar, baseado em pesquisas, a diversidade das motivações. Ele trabalha com uma “matriz moral” de seis eixos, que estão por trás das nossas atitudes de solidariedade ou de indignação, de aprovação ou de ódio.

O primeiro é o “cuidar” (care), que nos faz evitar causar danos aos outros, querer reduzir sofrimentos. Está dentro de todos nós. Ao ver um cachorrinho ser maltratado, ficamos indignados, ainda que não gostemos de cachorro. É um motor poderoso, que exige, inclusive, que as pessoas que massacram ou torturam outras precisem “desumanizar” a sua vítima, transformá-la em objeto fictício: É um terrorista, um comunista, um marginal, um gay, uma puta, qualquer coisa que a rebaixe do  status de pessoa, permitindo o tratamento desumano. O garotão de classe média que ateia fogo ao mendigo se sente, inclusive, mais “pessoa”. Está “acima”. O mendigo não é pessoa, é mendigo. Vai trabalhar, vagabundo.

A liberdade (liberty) constitui outro vetor de valores, com o correspondente repúdio à opressão. Naturalmente, para muitos, a liberdade significa também a liberdade de oprimir, mas para isto precisam aqui também reduzir a dimensão humana de quem oprimem. Os doutores do direito canônico resolveram assim o dilema de se defender a liberdade de ter e de caçar escravos: o negro não teria alma. Os vietnamitas foram massacrados para proteger o seu direito à liberdade. Assim, todo valor precisa criar as suas hipocrisias para ser violentado. Foi em nome da liberdade que nos Estados Unidos e aqui no Brasil repelimos a limitação das armas de fogo pessoais, ainda que se saiba que os donos são as primeiras vítimas. E no entanto, reconhecemos sim a aspiração à liberdade como um valor fundamental, que orienta as nossas opções éticas.

Um terceiro vetor de valores está no que consideramos de tratamento justo, ou não desigual. Em inglês, o conceito utilizado, fairness, fica mais claro. Milhões de brasileiros ficam indignados em cada fim de semana, quando o árbitro dá um cartão amarelo por uma falta, e não dá o mesmo cartão em falta semelhante do outro time. Se o cartão foi merecido ou não, é até secundário, gera indignação o tratamento desigual. Critério ético perfeitamente válido, e têm razão milhões que veem como escandaloso o tratamento desigual na justiça, que ostenta no seu símbolo a balança, a imparcialidade. O sentimento é muito enraizado. Pesquisa com macacos mostram que se um macaco recebe uma comida mais gostosa, os outros que receberam a mesma comida de que sempre gostaram recusam-se a comer.

Um quarto vetor é o da lealdade (loyalty) que nos faz buscar adotar os valores do nosso grupo, considerando traidor quem não os adota. Muito utilizado nas forças armadas, o esprit de corps, faz com que por exemplo militares jurem com toda tranquilidade que os seus colegas não torturaram, ou não estupraram, porque se sentem leais aos seus companheiros, esta lealdade superando inclusive a consideração ética sobre o crime cometido. Gera inclusive um agradável sentimento de pertencimento heroico ao grupo. Um filme famoso, com Al Pacino, Perfume de Mulher, é centrado neste tema: um jovem universitário que constatou uma pequena bandidagem dos seus colegas, recusa-se a denunciá-los, ainda que o ameacem de prejudicar o seu futuro universitário. O sofrimento dele permeia todo o filme, justamente porque é um rapaz profundamente ético.

Um quinto conjunto de valores está centrado na autoridade (authority) que nos faz considerar ético o que os líderes decidem, e chamar de subversivos os que se rebelam. Esta identificação a priori com a autoridade é profundamente escorregadia, em particular porque nos permite fazer qualquer coisa com a justificativa que estávamos cumprindo ordens. Aqui, o maravilhoso texto de Hannah Arendt nos ajuda muito, pois nos permite entender que não se trata apenas de criminalizar quem se esconde atrás do argumento de autoridade, trata-se de aprofundar como funciona a banalização do mal, e o tipo de ódio que muita gente tem contra quem os priva do que consideram ódio legítimo.[2] Vá dizer a pessoas de direita que o julgamento do STF foi preconceituoso: ficam apopléticos, estamos privando-os do gosto do seu ódio, ainda que só cego não veja as distorções — mas enxergá-las exige o uso da razão, a capacidade de contestação objetiva. Há uma experiência muito conhecida, com estudantes universitários, chamados a dar choques elétricos a pessoas desconhecidas, a pedido de funcionários com batas de médico, que justificavam que se trata de uma experiência científica. A maioria dos estudantes não se fez de rogada.

O último vetor de justificativas éticas levantado por Haidt é o da santidade, (sanctity) ligada a valores sagrados como tradições ou razões religiosas, que nos fazem condenar ao fogo do inferno quem não acredita em outras visões de mundo (297). Aqui temos um prato cheio. Uma leitura básica é o famoso manual de instruções da inquisição, que ensinava, por exemplo, que as mulheres suspeitas de bruxaria ou de serem possuídas deviam ser torturadas nuas, pois as fragiliza, e de costas, pois as expressões de dor e de desespero causados pela tortura — obra naturalmente do próprio demônio — podiam ser tão fortes a ponto amolecer o inquisidor. Tudo em nome de Jesus, da caridade, do amor ao próximo. As mutilações de meninas, a quem se corta (sem anestesia) os lábios externos da vagina (clisteroctomia), atingem  milhões de crianças. Estamos no século 21.

Ao comparar as visões em inúmeras entrevistas de pessoas no espectro político completo, da esquerda até os mais conservadores, Haidt constata que há uma graduação muito clara relativamente a quais elementos da matriz se dá mais importância. Assim, a esquerda dá muito mais importância aos três primeiros eixos, ligados a não fazer dano, não machucar, a reduzir o sofrimento e assegurar o cuidado; à luta contra a opressão e pela liberdade; e às regras limpas do jogo, com igualdade de tratamento, a chamada justiça social. Inversamente, a direita dá menos valor aos primeiro, e concentra as suas visões na lealdade de grupo (veja-se a Ku Klux Klan por exemplo), à autoridade e a correspondente obediência, e ao respeito de valores considerados sagrados no sentido em boa parte religioso, onde muitas vezes o sagrado mistura o político e o religioso, como no Gott mit Uns dos nazistas, acompanhado do símbolo da swastika. O fato de milhões ficarem fanatizados, num país que não poderia ser considerado de baixo nível educacional, é significativo. Não se trata de educação, e sim de instituições, de cultura política.

A conclusão interessante de Haidt, que é um confesso liberal, no sentido americano, portanto correspondente ao que seria um progressista entre nós, é que a direita usa argumentos e sentimentos que calam fundo nas pessoas, pois mais fortemente ancoradas nas emoções, nos sentimentos de grupo, coesão, bandeira, religiosidade, autoridade e obediência. São mensagens que ecoam mais fortemente no emocional do que no raciocínio, e que em particular permitem dar uma aparência de legitimidade ética ao ódio. A direita americana, por exemplo, sempre agitou um demônio – externo naturalmente – para justificar tudo e qualquer coisa: Foram utilizados Khadafi, Saddam Hussein, Osama Bin Laden, até Fidel Castro, e hoje o terrorismo em geral. No Brasil temos o ótimo exemplo da revista Veja, que vive de agitar ódio contra demônios que explicariam todos os males. Funciona. Mas não resolve nada.

Explicar o drama de pessoas que passam fome (harm) e as estatísticas de mortalidade infantil apela muito mais para o raciocínio, que não tem o mesmo efeito mobilizador do que os argumentos que atingem o fundo emocional. Apelar para o emocional, inclusive quando se utiliza os primeiros eixos que são mais característicos da esquerda – por exemplo nos movimentos anti-aborto – dá à direita vantagens de um discurso simplificado e que pega mais no fígado do que na razão, como por exemplo a bandeira dos marajás do Collor, ou da vassourinha de Jânio Quadros.

Haidt busca um mundo mais equilibrado. Não desaparecerão as motivações mais valorizadas na direita. Mas o essencial do livro é que nos faz entender melhor as raízes emocionais da razão, a facilidade com a qual se constroem pseudo-razões e fanatismos. Ajuda-nos, por exemplo, a entender como se constrói uma campanha contra a presença de médicos cubanos em regiões onde médicos nossos não querem ir, projeto inatacável do ponto de vista humanista. Inúmeras razões são apresentadas, mal encobrindo um ódio ideológico que é a verdadeira razão. O ódio, como fenômeno de massas, é contagioso. Explicar racionalmente um projeto é muito menos contagiante.

Haidt se preocupa em particular com o poder que simplesmente não tem contas morais a prestar, o universo das grandes corporações. “Se o passado serve para nos iluminar, as corporações crescerão para se tornarem cada vez mais poderosas com a sua evolução, e elas mudam os sistemas legais e políticos nos países onde se instalam para gerar um ambiente mais favorável. A única força que resta na Terra para enfrentar as maiores corporações são os governos nacionais, alguns dos quais ainda mantêm o poder de cobrar impostos, regular, e dividir as corporações em segmentos menores quando se tornam demasiado poderosas”. (297) Vem-nos à lembrança a frase de Milton Friedman, da escola de Chicago, de que as empresas, como as paredes, não têm sentimentos morais. Ou a visão proclamada em Wall Street: Greed is Good, a ganância é boa. Parece que uma parte do universo escapa a qualquer ética. O filme O Lobo de Wall Street vem naturalmente à memória. O personagem real da história deu entrevistas dizendo que o filme não exagerou nada. Chega o denominador comum que assegura a absolvição por atacado: todos fazem, não fizemos nada que toda Wall Street não faça.

Aqui a dimensão é outra, pois se trata da diluição das responsabilidades nas instituições. Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco Mundial, “Nobel” de Economia, e insuspeito de esquerdismo,  resumia a questão em pronunciamento na ONU sobre direitos humanos e corporações: “Mas infelizmente, a ação coletiva que é central nas corporações mina (undermines) a responsabilidade individual. Tem sido repetidamente notado como nenhum dos que estavam encarregados dos grandes bancos que empurraram a economia mundial à borda da ruína foi responsabilizado (held accountable) pelos seus malfeitos. Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve malfeitos (misdeeds) da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?”  Quando somos uma massa, em que todos fazem mais o menos o mesmo, o que pode ser linchamento de um rapaz na favela, ou massacres numa guerra, mas muito mais prosaicamente numa gigantesca corporação onde tudo se dilui, a ética se torna tão diluída que desaparece.

Ninguém gosta de se achar pouco ético. E nossas defesas são fortes. Não posso deixar de citar aqui o texto genial de John Stuart Mill, de 1861, escrevendo sobre a sujeição das mulheres na Grâ Bretanha da época, quando eram reduzidas a palhacinhas decorativas e proibidas de qualquer participação adulta na sociedade e na construção dos seus destinos. Ao ver a dificuldade de penetrar na mente preconceituosa, Mill escreve: “”Enquanto uma opinião estiver solidamente enraizada nos sentimentos (feelings), ela ganha mais do que perde estabilidade quando encontra um peso preponderante de argumentos contra ela. Pois se ela tivesse sido construída como resultado de uma argumentação, a refutação do argumento poderia abalar a solidez da convicção; mas quando repousa apenas em sentimentos, quanto pior ela se encontra em termos de argumentos, mais persuadidos ficam os seus defensores de que o que sentem deve ter uma fundamentação mais profunda, que os argumentos não atingem; e enquanto o sentimento persiste, estará sempre trazendo novas barreiras de argumentação para consertar qualquer brecha feita ao velho.”

A mensagem de Haidt não é de passar a mão na cabeça da esquerda ou da direita, e sim de sugerir que tentemos entender melhor como se geram os agrupamentos políticos, as identificações com determinadas bandeiras. os eventuais fanatismos, e as formas primárias como dividimos a sociedade em bons e maus. O maniqueísmo é perigoso. Quando vemos que os mesmos homens podem ser autores de atos abomináveis e heroicos, o que interessa mesmo é construir instituições que permitam que se valorize as nossas dimensões mais positivas. Nas palavras de Haidt, criar “os contextos e sistemas sociais que permitam às pessoas pensar e agir bem.”(92)


Jonathan Haidt – The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion – (A mente moralista: por que boas pessoas são divididas pela política e pela religião) – Pantheon Books, New York, 2012, 420 p. – ISBN 978-0-307-37790-6

Joseph Stiglitz - 2013 UN Forum on Business and Human Rights  http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc

John Stuart Mill – The Subjection of Women – [1861] – Dover Publications, New York, 1997

Ladislau Dowbor – Hannah Arendt: além do filme – 2013, http://dowbor.org/2013/08/hannah-arendt-alem-do-filme-agosto-2013-3p.html/

Gunnar Myrdal – An American Dilemma: the negro problem and modern democracy -  1944 – inúmeras edições, inclusive em português.



[1] Ladislau Dowbor, economista, é professor da PUC-SP e consultor de várias agências das Nações Unidas. Os seus trabalhos estão disponíveis online (Creative Commons), na página http://dowbor.org . Contato Ladislau@dowbor.org

[2] Veja a respeito o meu texto sobre o filme Hannah Arendt, sobre a banalização do mal, em http://dowbor.org/2013/08/hannah-arendt-alem-do-filme-agosto-2013-3p.html/

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/esquerda-e-direita-frente-a-etica-contemporanea/)

O desabafo da cocaína (Bruno Lorenzatto)





Vídeo de Rafucko coloca o dedo na ferida: carreiras que atormentam Brasil são as dos políticos que entregam Estado aos interesses privados



Por Bruno Lorenzatto



Em um vídeo de menos de 2 minutos, publicado recentemente no youtube – O desabafo da cocaína –, o videomaker Rafucko consegue dar visibilidade a preconceitos e problemas estruturais que atravessam a sociedade brasileira: o sistema político, a imagem das drogas e a questão das classes sociais.



Rafucko assim apresenta seu vídeo: “Aécio Neves tentou bloquear na justiça todos os links que relacionavam ele à droga. Mas você já se perguntou o que a própria cocaína pensa sobre isso? Ela criou um vlog pra desabafar”. O videomaker ainda acrescenta uma nota, na qual afirma que seu vídeo foi inspirado no tweet do cartunista André Dhamer: “Acho que ligar cocaína ao Aécio Neves faz mal para a imagem da cocaína.”



O que ela (a droga) tem a dizer sobre o pré-candidato à presidência da República? Está cansada de ver seu nome associado ao político do PSDB – “o partido mais sujo do Brasil”, como afirma.



Inversão insólita, cômica, mas também altamente crítica, da abordagem, largamente difundida, de difamação do senador pelo uso da droga.



O que Dhamer e Rafucko estão questionando?



Numa sociedade como a nossa, o que deveria ter imagem pior do que a da cocaína, é a política, tal como é praticada – ou melhor, não praticada, pois o que vemos no Brasil é o domínio dos interesses privados sobre as esferas públicas.



Não é preciso fazer menção ao uso da droga para expor o tucano ao ridículo. Seu trato com a coisa pública é mais do que suficiente para isso – o que deveria ser o foco da crítica ao senador do PSDB. Como indica Rafucko, a imprensa mineira foi censurada diversas vezes, ao se posicionar contra o ex-governador de Minas Gerais (ver em: https://www.youtube.com/watch?v=HXT4eOf-2w8 e http://www.viomundo.com.br/denuncias/sindifisco.html).



A forma segundo a qual a cocaína geralmente é mencionada nesse contexto, é um sintoma de como a perspectiva dominante e conservadora entende a questão das drogas no Brasil – de uma maneira hipócrita.



O problema do país não é o uso de quaisquer drogas ilícitas, mas, sim, a hipocrisia que coloca, nesse caso, em primeiro plano, o uso dos psicotrópicos (como se a burguesia não fizesse uso generalizado de drogas legais e ilegais) como algo inaceitável, negligenciando o fracasso da estrutura política, (o fracasso da política anti-drogas, inclusive), muito bem representada por políticos como Aécio Neves.



E neste ponto – o da configuração politica da democracia representativa, tal como a vivenciamos hoje –, seria preciso ir muito além do caso específico do senador mineiro. Deveríamos considerar que é o próprio funcionamento do sistema político (assim como em outros países) que dá claros sinais de crise. Esgotamento de um modelo, segundo o qual as decisões do Estado se encontram submetidas às exigências do mercado capitalista.



As manifestações que irromperam em junho do ano passado demonstram a demanda por uma democracia efetiva – um milhão de pessoas protestando nas ruas não é um fato que se pode ignorar. Na verdade, esse fato singular aponta para uma reordenação dos lugares, das formas do proceder e dos sujeitos políticos. O professor de filosofia da USP Vladimir Safatle (e pré-candidato do PSOL a governador do Estado de São Paulo) tem interpretado a atual conjuntura nesse sentido: “talvez seja o caso de nos perguntarmos pelo modo como agem os novos atores da política. Quem são eles? Talvez eles não estejam nas instituições tradicionais de representação política, nem mesmo eles se sentem representados por aqueles que ocupam esses lugares.” (ver mais em: http://www.cpflcultura.com.br/wp/2012/10/26/vladimir-safatle-quando-novos-sujeitos-politicos-sobem-a-cena/)



No ano passado, a exemplar insatisfação da sociedade em relação à posse do militar Jair Bolsonaro para a presidência da Comissão de Direitos Humanos, expressa na síntese (amplamente compartilhada nas redes sociais): “Bolsonaro não me (nos) representa”, implica sintomaticamente um deslocamento mais radical – como se dissesse: “esta democracia, tal como a experienciamos, não nos representa”. Safatle defende a implementação de mecanismos de democracia direta na estrutura política, os quais possibilitariam uma participação real dos cidadãos nas deliberações públicas (ver mais em: http://www.cartacapital.com.br/politica/as-neodemocracias).



***



A autoridade médica que viabiliza a distribuição, a circulação e o uso em ampla escala de medicamentos é o limite moral e político que separa a “boa” droga da “má” droga, isto é, o limite entre as drogas legalizadas e as criminalizadas. “Sem essa de só uso ‘rivotrilzinho’ para acalmar, porque rivotril também é droga!”, afirma enfaticamente a cocaína no vídeo de Rafucko.



Certas classes sociais que consomem anti-depressivos, calmantes etc, sem dúvida em um nível de dependência química, são as mesmas que apoiam acriticamente a criminalização de drogas como a maconha ou a cocaína. Não se trata aqui de defender uma droga e condenar outra, e sim de problematizar como as convicções dos sujeitos são guiadas por determinações ideológicas que escondem os problemas efetivos que nos constituem. Afinal, não é a primeira vez que uma questão como essa, que deveria ser pensada politicamente – em termos de saúde pública –, é tratada simplesmente com repressão policial e discursos morais vazios.



Raramente se questiona no debate público a contradição evidente no fato de: quem consome drogas ilícitas (todas as classes sociais) e quem vai preso, reprimido e morto (os pobres). A estatística prova que não são pessoas como Aécio Neves que são encarceradas e reprimidas – mesmo quando um helicóptero é interceptado com quase meia tonelada de cocaína. Logo, questão de classe, vê-se claramente – Rafucko, como sempre, diz o que a elite não quer escutar: “Caveirão só mata na favela, você não vê caveirão invadindo mansão nos Jardins, mansão em São Conrado. Aí vocês vêm com aquele papinho de que bandido bom é bandido morto, mentira. Bandido pobre é bandido morto, bandido bom é bandido rico, engravatado, é bandido que fica no Senado (…) e bandido bom não vai preso não, não morre não”.





*Bruno Lorenzatto, licenciado em história e mestre em filosofia pela PUC-Rio



(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/28/melhor-seria-se-aecio-cheirasse-cocaina/)

Educação: o desafio da transexualidade (Márcia Acioli)

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Escolas e professores seguem pouco preparados para lidar com sexo. Incompreensão e preconceitos religiosos ampliam violência e sofrimentos. Programa pioneiro enfrenta problema

Por Márcia Acioli

A escola brasileira tem sido convocada a contribuir para o enfrentamento a diversas formas de violação de direitos. Organizações da sociedade civil cobram da escola educação em direitos humanos, acreditando, com isso, fortalecer a capacidade de fala e de participação de estudantes na conquista de direitos, e por consequência, a criação de clima favorável ao acolhimento de todos os perfis de estudantes que nela ingressam. O propósito é assegurar educação de qualidade mudando o panorama de violência, seja pelo fortalecimento dos sujeitos, seja pelo diálogo que a escola faz com a sua comunidade. Temas como trabalho infantil, exploração sexual, Estatuto da Criança e do Adolescente e diversidade entram na pauta das escolas como proposta das políticas de educação federal, estaduais, municipais e distrital.

Quando o assunto é sexo e sexualidade os desafios são maiores e os/as profissionais da educação nem sempre estão preparados/as. Raras vezes as escolas incorporam no seu dia a dia o trato com questões referentes à sexualidade ou identidade de gênero.

Mesmo na universidade a situação é difícil. Segundo Marcelo Caetano “o semestre passado (2012) foi o semestre que eu tive mais problemas com os professores em relação a isso, eu fiz sete matérias, eu tive que trancar seis, porque os professores não aceitavam [o nome social].” Revista Descolad@s, Inesc 2013.

Francisco (nome fictício), adolescente de 16 anos estuda no Distrito Federal. Seus amigos não sabem que ele nasceu com sexo feminino. Com muito respeito, seus professores o tratam pelo nome masculino. Assim mesmo ele tem muito medo de ser descoberto pelos colegas.

Já a adolescente Ana Luiza (estudante de escola particular em Fortaleza), sofreu constrangimentos por ocasião de sua identificação na prova do ENEM. Ao receber total apoio da família se fortalece para seguir seus estudos. Diferente de uma amiga que, expulsa de casa, encontrou na prostituição a única oportunidade para a sua sobrevivência.

Portanto, é impensável a escola se esquivar da responsabilidade perante temas de tamanha importância que tanto afetam estudantes quanto profissionais e familiares. A transexualidade (falta de sintonia entre o corpo biológico e a identidade de gênero) ficou abafada por muito tempo e muitas pessoas permanecem sofrendo em suas respectivas solidões. A transexualidade ainda é percebida como aberração; no mínimo, uma patologia. São ideias equivocadas, vastamente desmentidas pela comunidade acadêmica tanto das áreas de saúde, quanto humanidades.

O 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica elaborado pela coordenação de Promoção dos Direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República revela que de 2011 para 2012 há um aumento significativo de violência contra a população LGBT, sendo que o Distrito Federal lidera o ranking. Os jovens de 15 a 29 anos representam 61% das pessoas afetadas pela violência homofóbica, de onde se conclui que a maior parte ainda está na escola; provavelmente no Ensino Médio.

Diante deste cenário, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco — e o ministério da Educação incorporaram a preocupação com as diversidades na escola. No entanto, é muito difícil emplacar o tema da transexualidade numa realidade repleta de pessoas conservadoras. Um dos maiores problemas é a relação promíscua entre religião e escola, a despeito o fato de o Brasil ser um estado laico. Os materiais produzidos pelo projeto Escola sem Homofobia, por exemplo, foram condenados à fogueira pelos fundamentalistas de plantão.

O grau de preconceito e de discriminação que vivem as pessoas transgênero, transexuais e travestis as leva a esconder seus sentimentos, suas identidades ou a evadir da escola. Como aponta Berenice Bento, as pessoas trans “sofrem evasão escolar” por meio de tecnologias cotidianas de exclusão. Seja pela violência transfóbica ou homofóbica, seja pela inadequação do trato pedagógico estudantes experimentam um massacre diário para sobreviverem à escola.

Propostas da Conferência Nacional de Educação Básica em relação à diversidade sexual são simples e viáveis como: evitar discriminações de gênero e diversidade sexual em livros didáticos; ter programas de formação em sexualidade e diversidade; promover a cultura do reconhecimento da diversidade de gênero, identidade de gênero e orientação sexual no cotidiano escolar; evitar o uso de linguagem sexista, homofóbica e discriminatória em material didático-pedagógico; inserir os estudos de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.

O projeto Eu te desafio a me amar é um convite amoroso para o aprofundamento no tema com uma abordagem delicada e séria. O projeto, que consta de uma extensa programação, propõe pautar o tema pelo olhar sensível e estético da fotógrafa Diana Blok e convida adolescentes do Ensino Médio de Brasília e professores de todas as modalidades de ensino a debaterem sexualidade e identidade de gênero a partir do vídeo da mesma autora.

Enfim, a vida escolar é decisiva para a formação e o desenvolvimento da criança e pode se dar em ambiente estimulante, tedioso ou excludente. Portanto, se a escola deseja ocupar seu lugar privilegiado na promoção de cidadania de crianças e adolescentes, não pode ignorar nenhum público. Precisa acolher, incluir e garantir o desenvolvimento pleno de todos os meninos e de todas as meninas, inclusive de todos os meninos que nasceram meninas e de todas as meninas que nasceram meninos e de todos os meninos e meninas que flutuam em busca de suas identidades e jeitos de caminhar na vida.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-desafio-da-transexualidade/)

Eleições-2014: é possível uma pauta feminista? (Marilia Moschkovich)

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Dez questões incômodas, que você pode dirigir a candidatos e candidatas, em busca de uma disputa menos conservadora

Por Marília Moschkovich, na coluna Mulher Alternativa

Então, parece que está dada a largada: a declaração do presidenciável Eduardo Campos sobre o aborto inaugura o show de horrores que assistiremos (de camarote, com bebida que pisca) durante as eleições de 2014. Se as questões de direitos humanos, em geral, costumam ser rifadas na lógica insana da disputa eleitoral, os assuntos especificamente ligados aos direitos das mulheres parecem ter cacife zero. Desde que temos figuras femininas com força na corrida, em 2010, então, isso tem sido uma constante. O fato de termos uma presidenta mulher, pelo jeito, tampouco ameniza esses ataques.

Do ponto de vista da militância feminista, o governo Dilma tem sido uma grande decepção no que tange os direitos sexuais e reprodutivos mas também em relação às políticas para mulheres. A decepção vem por uma série de pressões feitas pelo gabinete da Presidência respectiva secretaria de Politicas para as Mulheres (SPM), por alguns programas que contradizem princípios básicos do feminismo (como o tal Cegonha-qualquer-coisa) mas também pela absoluta falta de diálogo com a militância que desempenhou um papel importante na eleição da presidenta. Ao mesmo tempo em que, durante a campanha de 2010, percebemos que enfrentaríamos uma batalha após as eleições (sobretudo quando a fatídica questão sobre o aborto foi pautada), imaginamos que haveria pelo menos condições de disputar esses pontos. Na maior parte das vezes, nos últimos quatro anos, não houve. O fechamento do debate é grave e decepciona profundamente.

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Isso não impede, porém, que um segundo mandato de Dilma seja diferente e atenda a esse tipo de expectativa de maneira mais satisfatória. Vai de cada um e de cada uma de nós decidir o quanto acredita nessa possibilidade. As demais candidaturas também mostram, no discurso e nas práticas de seus partidos, a maneira como provavelmente abordam esses temas. Cabe a nós saber olhar bem para esse ponto específico das plataformas e debates, e conseguirmos avaliar o quanto as respostas dos candidatos e candidatas a nossas reivindicações nos satisfazem. Pensando nisso, elaborei uma listinha de dez perguntas-armadilha que podem ajudar a construir um pequeno mapa de como cada presidenciável ou candidato ao legislativo de seu interesse trata as principais pautas feministas na política.

1) Seu partido já foi presidido por uma mulher? Quantas vezes?

2) Você defende a aprovação da lei Gabriela Leite, que regulamenta o trabalho sexual, mesmo que seus termos possam ser revistos depois?

3) No caso de uma reforma política que use o sistema de listas fechadas para nossas eleições, você é a favor da alternância de gênero sistemática na lista de seu partido? E dos outros?

4) No contexto das políticas ligadas à saúde pública, o aborto deve ser legalizado, seguro e acessível para mulheres que não correm risco de morte na gravidez/parto nem foram estupradas, ainda que haja algum tipo de prazo-limite para que seja realizado?

5) É possível combater as diferenças salariais entre homens e mulheres que ocupam um mesmo cargo profissional, com exigências e horas de trabalho iguais?

6) Você é a favor de igualar os tempos de licença-maternidade e licença-paternidade?

7) Na sua opinião, é correto o Estado decidir como, quando e onde uma mulher grávida vai parir (como no caso Adelir, por exemplo), em alguma circunstância?

8) Você acha que os assédios no transporte público acontecem por que algumas mulheres se vestem de maneira inapropriada ao frequentarem esses espaços?

9) Nos trotes de faculdade e nas festas universitárias, quando as jovens denunciam abusos, seria uma boa solução que elas simplesmente não se envolvessem nesse tipo de atividade, no seu ponto de vista?

10) Para você, deveria haver uma ação do Estado regulamentando e punindo campanhas publicitárias e outros materiais de mídia que ferem princípios de direitos humanos assegurados na nossa Constituição?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/eleicoes-2014-e-possivel-uma-pauta-feminista/)

Drogas: todo usuário seria um dependente? (Gabriela Leite)

Grande parte dos consumidores usa psicoativos apenas em festas ou finais de semana. Exatamente como no caso do álcool

Revisão de pesquisas contesta mais um tabu proibicionista, ao revelar que, assim como no caso do álcool, pode haver consumo moderado de cocaína e ecstasy

Por Gabriela Leite

Uma das bases do proibicionismo — a crença segundo a qual não há o que fazer, em relação às drogas, exceto bani-las — é o suposto mal intrínseco das substâncias psicoativas. Seu uso resultaria inevitavelmente em vício e dependência, provocando danos severos à saúde física e mental. Não haveria hipótese de consumo controlado ou responsável. No entanto, uma revisão criteriosa das pesquisas mais recentes feitas com usuários de drogas está revelando o contrário. Sua autora é a psicóloga italiana Grazia Zuffa, da ONG Forum Droghe [Fórum Drogas].

Contando com recursos da União Europeia, ela reexaminou estudos epidemiológicos e qualitativos que abordavam, em especial, o uso da cocaína. Os resultados, surpreendentes, foram expostos num Seminário de Especialistas, em Florença (20 a 22/6/2013) e estão sintetizados num sumário produzido pelo Transnational Institute, instituto de acadêmicos ativistas que pesquisam diversas áreas do conhecimento. A ideia essencial proposta pelo texto é superar a visão do uso de drogas como doença e tratar os usuários — ao menos, a grande maioria deles — como pessoas conscientes, ativas e capazes de cuidar de sua saúde.

Ao questionar as pesquisas anteriores sobre o uso da cocaína, Grazia detaca que parte delas é meramente quantitativa. Registram a quantidade de pessoas que fizeram uso dentro de algum período. A cocaína, por exemplo, foi consumida por 2,5 milhões de jovens europeus em 2013; e ecstasy por 1,8 milhão. Houve algum aumento e baixa no uso de drogas, com o passar dos anos. Mas estes números deixam de revelar um aspecto essencial da realidade: quais destas pessoas usaram apenas uma vez; quais continuaram a consumir por algum período e pararam; quantas fizeram uso contínuo; e quantas, por final, tornaram-se dependentes?

A análise de Grazia, que leva em conta o consumo na vida, no último ano e no último mês, mostra que apenas uma pequena parcela dos jovens torna o uso das drogas regular. E, entre os que o fazem, muitos deles só mantêm por algum período da vida — durante a universidade ou na idade em que vão frequentemente a festas, por exemplo.

Conversando com os usuários de drogas estimulantes, como a cocaína e o ecstasy, percebeu-se que eles próprios têm seu sistema de autorregulação, principalmente por terem consciência dos malefícios que a droga pode causar a sua saúde. Adotam regras auto-impostas — por exemplo, usar apenas nos finais de semana, ou não usar em momentos em que não se sentem bem. Outra atitude importante é perceber quando se está abusando e dar um passo para trás, interrompendo o consumo por algum momento. Como se percebeu, drogas deste tipo estão muito mais relacionadas com fases da vida e questões individuais.

Ninguém questiona todos estes pontos ao pensar no uso do álcool, droga legalizada e fortemente encorajada pela sociedade. Grande parte dos usuários, diferente do que acontece com a cocaína, tende a fazer um uso contínuo de bebidas alcoólicas durante toda a vida, mas costumam também se autorregular, ter períodos de uso mais e menos intenso, ou mesmo abstinência. É fácil reconhecer a diferença entre alguém que bebe socialmente e um alcoólatra; mas o uso de drogas ilegais é quase sempre visto como patológico. Uma mudança nessa visão seria, para os pesquisadores, muito necessária no combate aos riscos das drogas sem moralismo e distante da crença absurda de que a proibição irá acabar com seu uso.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/23/drogas-todo-usuario-seria-um-dependente/)

sábado, 3 de maio de 2014

ENTRE A REPÚBLICA E A CORPORAÇÃO DO MÉRITO E DA HIERARQUIA? - REFLETINDO SOBRE O MANIFESTO CONTRA A “PARIDADE” NA UFSC (João José Veras de Souza)

Por João José Veras de Souza (doutorando do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC)



Li o Manifesto (que adiante passo a identificar com o número 1) e o texto que lhe segue como explicativo “Manifesto à Comunidade Universitária. Eleição para Reitor.” Assinado por vários professores da UFSC(2). Li também o artigo do professor  Paulo C. Philippi – A crise da UFSC não está nas drogas(3) – que puxa o assunto (todos publicados na internet no blog do jornalista Moacir Pereira, do Grupo RBS), e li também um outro artigo de autoria do mesmo professor publicado na página da APUFSC, sob o titulo Democracia na UFSC (4). Entendo que o Manifesto para ser melhor compreendido deve ser lido considerando o conjunto do referidos escritos. Há laços que lhes dão unidade – nestes, os fundamentos avançam para além do jurídico – e possibilitam a sua melhor compreensão, alimento essencial para o debate.

A questão levantada é diversa  e riquíssima para análise. No entanto, vou me ater a alguns dos aspectos nela contidos que no momento me chamam mais atenção. Em síntese, as manifestações estão centradas na defesa do seguinte argumento: o processo informal de escolha da lista triplice para o cargo de reitor da UFSC não está atendendo a previsão da lei 9.192/95, no seu inciso III, que estabelece  peso de 70% para o voto dos docentes em relação aos discentes e servidores. Mesmo apesar de que na UFSC, desde a década de 80 e, inclusive, sob a égide da referida Lei, o voto é paritário, o Manifesto pugna pelo fim desta prática ante a sua patente ilegalidade. (cfe 1, 2, 3 e 4)

O fundamento básico contido especialmente no Manifesto é, como demonstrado, o juridico. Mas não se resume/limita a ele (cfe 2). As referidas manifestaçõs fazem um esforço argumentativo para justificar a razão de existir daquela previsão legal. Usam como principio fundamental  a importância da centralidade (de poder e de saber) sob o corpo docente na Universidade. Nesse sentido, aduzem ser o professor a sua base intelectual, portanto aquele que a pensa, razão pela qual defendem caber a ele o comando/liderança maior da instituição de ensino superior e, por tais razões, o direito de definir os seus destinos. (cfe 1, 2 e 3)

No artigo Democracia na UFSC, o professor Paulo C. Philippi, nesse sentido, é claro:

“A Universidade não é uma república. No processo de escolha do Reitor em uma autarquia pública o mestre possui o mérito de ser a base intelectual da universidade (o seu ‘corpo de governo’ nas palavras de Darcy Ribeiro), no sentido que ele é quem decide para aonde deve ir a universidade em suas metas de proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, produzir e difundir conhecimento. E esta é a grande razão para que sua opinião seja privilegiada neste processo em relação à dos demais segmentos. E não só pela Lei.”(cfe 4)

Mas existem outros argumentos que, embora não estejam explicitamente expressos no corpo do Manifesto, estão bastante presentes nos outros textos especialmente naquele – A Crise da UFSC Não Está nas Drogas – que pega a carona/mote do recente evento politico-policial chamado, por uns, de “O Levante do Bosque”, e, por outros, de “A Revolução dos Maconheiros”. De fato, o conjunto de textos referidos se insurgem contra a paridade na escolha do Reitor baseado em, pelo menos, três argumentos: i) o a favor da legalidade;ii) o a favor da manutenção do poder docente e sua autoridade meritocrática-institucional, e iii) o contra um suposto poder discente – ou “cidadania universitária”  – que supostamente quer transformar a UFSC numa “universidade popular”. (cfe 1, 2, 3 e 4)

Tenho para mim que todos os argumentos merecem ser problematizados tendo em conta  as idéias que se possa ter de poder, de saber e de ser numa sociedade democrática.

É fato inquestionável  a existência de uma Lei que, aos olhos de todos e por vontade popular (de toda a comunidade acadêmica) e também institucional, está sendo, em parte, desconsiderada – pontualmente no processo de escolha informal da lista tríplice. Na UFSC, há quase 20 anos que a paridade é a norma. Aliás, antes da lei – desde a década de 80 – que a paridade já era regra. Não se tem noticia que alguém tenha questionado judicialmente este fato. Nem as autoridades internas, nem externas, nem seus controles, nem a comunidade universitária. Aliás, este é um fato que se repete tal qual em 39 das 54 universidade púbicas brasileiras, portanto em quase 70%, delas, conforme dados levantados pela UNB em 2012 .

Este fenômeno coloca em xeque o poder da lei em relação à vontade popular e com a “conivência” das instituições.  Isto é juridica e socialmente significativo. Não pode ser desprezado. Talvez esteja aqui a realização concreta da vontade – efetivamente – autônoma da comunidade universitária. Devemos pensar mais a respeito para além daquilo que possa siginificar uma conveniência pontual de grupos de poder. De um modo importante, isto coloca  em questão a ideia de autonomia universitária na prática. O que, aliás, no sentido mais profundo, não revela autonomia nenhuma tendo em vista que, ao final e definitivamente, quem escolhe o reitor das universidades é o Chefe do Executivo Federal e não as suas comunidades.

Mas este não é o fundamento fonte/forte do manifesto. Como fazem questão de afirmar seus autores, não se trata especificamente de se questionar o cumprimento ou não da lei (cfe 2). O mais importante é o que a motiva e a justifica – o que a faz necessária no contexto universitário. Pelo que se pode observar, existem outras motivações que se substanciam na exata compreensão que os propositores do Manifesto – em relevo o professor Paulo C. Philippi – têm de poder, de saber e de ser no campo acadêmico institucional das universidades brasileiras. Vejamos.

O referido professor (cfe 3), aponta que há, embora minoritário, um poder estudantil em marcha dentro da UFSC – poder este voltado para a consecução de uma “universidade popular” – que está dando o ritmo à UFSC, causando, com isso, uma crise de autoridade na instituição. Para Paulo C. Philippi, o foco desse “levante” é o Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFH  aonde se pratica o voto universal, regime pelo qual a vontade do discente tem o mesmo peso que a do docente. Acusa o professor que se está criando na UFSC “Uma forma de populismo que, ainda que possível de ser admitido em uma república, é extremamente nocivo em uma casa hierárquica baseada na meritocracia como é o ambiente universitário” (cfe 3).Assim, para ele, o que está em curso é “um projeto para transformar a UFSC numa ‘universidade popular’” (cfe 3). Segundo entende, não é isso que a sociedade catarinense quer. Para ele, o Estado de Santa Catarina deve à meritocracia implantada na UFSC o seu alto nível de desenvolvimento. Noutras palavras, o professor está dizendo que uma ‘universidade popular” se destata por se revelar o inverso do que a UFSC tem sido até agora. (cfe 3)

Como é posta tal ordem de entendimento, a premissa básica lançada é a de que uma “universidade popular” (o professor Paulo C. Phillip chega a afirmar que não sabe exatamente o que seja isto – cfe 3) ou pelo menos aquela que seja pautada num poder estudantil ou numa “cidadania universitária”, é contrária às ideias de competência acadêmica (mérito), de autoridade (como exercício da transmissão do “respeito ao conhecimento, à ética, aos valores humanos…” – cfe 3), e de legalidade. Segundo entende o professor, “a universidade não é uma república” (cfe 3 e 4). Aqui o argumento é claro no sentido de que há incompatibilidade frontal entre a idéia de democracia, portanto de participação na ordem do poder, com a de transmissão de saber. A universidade não seria uma coisa pública mas uma coisa do professor, aquele que detém o saber. A universidade, por essa linha de entendimento, seria um centro de saber e não de poder. Como se fosse possível tal separação e como se não houvesse poder nos sistemas de saberes e de sua produção e reprodução.

Esta questão coloca a existência de uma divergência de fundo entre aquilo que seria uma universidade baseada na meritocracia e na hierárquia em relação aquilo que seria uma universidade popular e democrática. Essa distinção traz, em si, a impossibilidade de convivência das oposições apontadas. Por este entendimento, a dupla popular/democracia é diametricamente incompatível com o par mérito/autoridade. Aqui parece residir uma espécie de preconceito diante do que seja considerado popular.O que é compreesível para quem  nutre uma visão hierárquica entre saberes. Nesse sentido, a idéia de popular/democrático remete oposição ao conhecimento e à falta de hierarquia. Com isso, um poder popular – que para o professor significa uma forma de populismo (cfe 3) – na universidade representaria o fim do conhecimento, como mérito, bem como da hierarquia como método do exercício do poder. Insisto: por essa forma de compreensão, com uma universidade popular, o saber seria substituido pelo poder. Seria assim mesmo? Estaria confundindo porque é confuso ou é confuso porque se está confundindo?

Como se apresenta, o conjunto dos escritos também levam a crer que há uma politização negativa na universidade que é perniciosa ao poder (pois refuta a idéia de autoridade), ao saber (desconsidera a idéia de meritocracia)  e ao ser (no que resulta a formação de indivíduos incompetentes e assim improdutivos). E essa politização negativa tem como foco de reprodução os alunos (alguns, a minoria – cfe 3) – limitados à condição de meros receptores dos conhecimentos acadêmicos – e a idéia que pregam de “universidade popular” em que seria exercida uma certa “cidadania universitária” (cfe 4).Sob tal  prisma, a politização negativa – que se expressa como uma forma de “populismo” (cfe 3)-  seria  nociva à universidade representando, assim, o seu fim “…como centro de dominio, produção e difusão do conhecimento”. (cfe 3) Não existe saber na discência.

A contrario sensu, no outro polo, teríamos a não-politização – ou a politização positiva – que na universidade faz bem ao poder (reafirma a autoridade institucional sobretudo na figura do professor), ao saber (coloca o mérito como o meio para se alcançar o conhecimento significativo) e ao ser (forma indivíduos competentes e produtivos ). E essa não-politização tem como foco de reprodução os professores, aqueles a quem cabe pensar e fazer a universidade.

Quanto ao suposto avanço do poder estudantil em relação ao poder docente (causando uma crise de autoridade na instituição), tenho para mim que há um latente equívoco por aqui. Em última análise, a paridade não retira o poder que o corpo docente tem nas universidades federais brasileiras. Ela apenas esgarça a possibilidade da comunidade universitária – em suas categorias discente e de servidores – de participar dos processos eleitorais nos quais só – e somente só – o professor poder ser o eleito. Salvo raríssima exceção, o professor continua sendo, de fato e de direito, o único integrante da comunidade universitária a ter o direito de ocupar cargos de direção nas instituições federais de ensino, como reitorias, centros de ensino e órgãos colegidos deliberativos e executivos (nestes, integrando sempre como maioria). O que resta de alternativa para os alunos e servidores é apenas a opção de escolher entre este ou aquele professor. Muito embora se propala que a universidade se baseia numa gestão em que a sua comunidade – e não um de seus segmentos – é o ator principal. É fato que o poder hierárquico – acadêmico e administrativo – ainda se encontra nas mãos dos professores, apesar da paridade informal. É possível, diante deste contexto, pensar que tal fato venha a ofender princípios democráticos relacionados à participação na condução dos destinos da instituição em todos os sentidos.

Ademais, convenhamos, essa paridade informal é precária não só sob o ponto de vista jurídico. No pólo em que realmente interessa, posto que decisivo, ela está adstrita ao crivo formal dos 70% da representação docente do Conselho Universitário – quem dá a última palavra no sistema decisório da IFES. Em verdade, afora a força simbólica desta paridade, o seu poder político se sustenta por um triz no despenhadeiro dos interesses.

É bom lembrar, ainda, que, para aquém da condição de eleitores/votantes, os discentes e os servidores não detém qualquer poder decisório importante na estrutura institucional da universidade. As associações de servidores, centros acadêmicos e diretório central dos estudantes existem como meio-instrumento coletivo de condução de pautas, manifestação e luta por seus interesses e direitos. Suas participações nos colegiados da instituição – estes que decidem – é extremamente minoritária não oferencendo, com isso, nenhum risco de, pelo número, fazer qualquer alteração institucional.  Mesmo no sistema paritário, sua força se limita a 1/3 dos votos, portanto ainda são, separadamente,a minoria no sistema eleitoral. O império dos professores continua intacto. Porque tamanho medo?

Por fim, no arcabouço das argumentaçõe dos escritos em questão, é, salvo melhor interpretação, possível se extrair – o que me parece igualmente expressivo – uma manifesta falta de consideração quanto ao papel do aluno como aquele que também pensa a universidade e contribui para o processo de construção – não só reprodução – de conhecimentos (se isto é certo nas graduações o é sobretudo nas pós-graduações). Os alunos vezes são tidos como se fossem  páginas brancas disponíveis a quaisquer anotações dos seus mestres. A sua condição cidadã – que se opera fortemente quando resolve escrever e interpretar por conta própria suas páginas – é colocada como um comportamento a ser reprimido posto que subversivo às ordens professorais próprias dos sistemas hierarquicos irreflexivos e por isto autoritários. É este ser-sujeito que esta universidade pretende “formar”? Da mesma maneira, os servidores são postos à completa invisibilidade, no  sistema de poder e saber, como se suas participações não fossem relevantes dentro do contexto da gestão acadêmica. A universidade não é só o professor, ela não é apenas de seu interesse – isto é o óbvio anotado sob as nossas cabeças – mas se todo o poder lhe for destinado – no caso específico de que estamos a pensar – de ser eleitor majoritário e único eleito – então é fácil concluir que o princípio da gestão democrática não passará de uma mera frase inócua. Aliás…

Pela democracia na UFSC: Resposta ao Manifesto que exige 70% de peso dos votos à categoria docente (Gabriel Martins)

Por Gabriel Martins*

Nas últimas semanas foi divulgado manifesto de servidores públicos da carreira de magistério superior da UFSC em que se exige que as eleições para reitor dessa universidade, a ocorrer em 2015, tenham os votos dos professores equivalentes a 70% dos votos totais, mesmo sendo os professores apenas 5% do total da comunidade universitária, composta também por estudantes e Técnicos-administrativos em Educação (TAEs). O documento foi divulgado na UFSC e na imprensa catarinense e responde pelos motivos dos pouco menos de 20% dos professores da UFSC terem encaminhado abaixo-assinado à Administração Central da universidade com a exigência do que interpretam ser o cumprimento das leis em torno das “eleições” para reitor na maior universidade de Santa Catarina.

No documento, assinado por 12 servidores, são expostos dois motivos centrais à exigência: (a) a legalidade e (b) o “mérito docente”. Carece o manifesto, portanto, de contextualização e, com base nessa mesma contextualização, falta ao manifesto elementos essenciais para a análise tanto da legalidade quanto do mérito, ao que me proponho aqui a examinar.

O contexto do manifesto

O abaixo-assinado foi elaborado no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos de um Grupo de Trabalho (GT) designado pelo Conselho Universitário da UFSC (CUn) para revisar as regras para a consulta informal à comunidade universitária à escolha dos próximos reitor(a) e vice-reitor(a) da Instituição.

No decorrer dos trabalhos do GT foi divulgado um texto chamando a comunidade universitária para debater as formas legais possíveis de consulta, sendo apontada a discrepância dos regramentos formais, que não atendem a critérios democráticos por considerarem que cidadãos brasileiros se distinguem quando estão na Universidade. Para esclarecer os aspectos centrais dessa questão, abordarei aqui tanto a legalidade quanto o “mérito docente”, de modo a deixar claro que não há qualquer ilegalidade em os professores não terem peso 70% nas “eleições” para reitor. Viso também deixar claro que o alegado “mérito docente”, que justificaria o fato de os professores serem os únicos capazes de escolher o reitor das universidades, não tem consistência dentro das universidades brasileiras, conforme estão regradas pela Constituição de 1988. Ou seja, ou os autores do manifesto exigem o cumprimento integral das leis e aceitam que o “mérito docente” não é condizente com os argumentos apontados, ou defendem o “mérito docente” e contrariam a lei. Mas analisemos primeiro a legislação para as “eleições” de reitor nas Instituições Federais de Ensino Superior.

A legislação para as “eleições” para reitor

Em primeiro momento é relevante esclarecer: não existem, legalmente, eleições para reitor nas universidades brasileiras. A lei 5.540 de 1968 – período de exceção do Estado Brasileiro, que vivenciava naquele momento um processo ditatorial que perduraria por cerca de 21 anos – aponta que o cargo de reitor é exclusivamente nomeado pela presidência da República. Com o passar dos anos os decretos que melhor instruíam essa nomeação se alteraram e hoje o que perdura afirma que a presidência nomeia a reitoria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir do quadro de professores da própria instituição e que tenham título de doutorado. Para a escolha desse nome, a universidade elabora uma lista com três nomes de sua preferência, e em ordem de preferência, no que se chama lista tríplice.

Quem elabora a lista tríplice é o órgão deliberativo máximo da universidade no caso da UFSC é o CUn. O CUn tem de encaminhar a lista tríplice a partir de determinados regramentos. Os nomes são auto-indicados, ou seja, tem de haver o compromisso do professor doutor de querer ser reitor. Os nomes auto-indicados (candidatos) são votados pelo CUn, em um processo em que cada conselheiro universitário vota em somente um nome e os três mais votados compõem, em ordem de votação, a lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação (MEC). O CUn é, por força de lei, formado pelo mínimo de 70% de professores.

Mas é possível também, por questões tanto de legalidade quanto de legitimidade, que o CUn faça uma consulta pública aos demais membros da comunidade universitária. Sem esse procedimento, seria possível o mais corrosivo mal a uma democracia: a perpetuação do poder, pois todos os professores do CUn são, por força de lei federal, indicados pelo reitor. Isso ocorre porque da mesma forma como é a presidência da República quem de fato escolhe a reitoria da universidade, é atribuição da reitoria a escolha dos diretores de centros de ensino e pró-reitores. E é atribuição dos diretores dos Centros de Ensino a escolha dos representantes docentes no Conselho Universitário. Ou seja, o reitor, por força de lei, nomeia 70% do Conselho Universitário.

Desse modo, se competir tão somente ao CUn a indicação da lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, pode facilmente ocorrer a perpetuação de poder, pois 70% do CUn é, por lei, nomeado pelo reitor e esses mesmos 70% indicam o reitor.

As consultas são, desse modo, adotadas tanto para a escolha dos nomes da lista tríplice, quanto para a designação de Diretores dos Centros de Ensino, Coordenadorias de Curso etc.

As consultas, a legalidade e a legitimidade

Com a lógica de o CUn indicar os nomes para reitor e o reitor indicar os nomes para o CUn, que é o que obriga a legislação brasileira, as chances de constituição de uma oligarquia na gestão de todas as instâncias da universidade são imensas. Apesar de legal, tal medida não é, contudo, legítima. Imaginemos o que ocorreria se atual administração da UFSC passasse a exigir a lei e nomeasse novos diretores dos Centros de Ensino e representantes docentes para o CUn. A atual reitoria teria, portanto, automaticamente 70% de todas as cadeiras do CUn, que indicaria os novos nomes, em ordem de preferência, para a reitoria a partir de 2016. E ninguém se surpreenderia com uma reeleição ou com a condução de um de seus aliados políticos para a nova gestão, que então indicaria 70% do CUn, que indicaria o novo reitor, e assim, ad eternum, até a completa degeneração das instâncias democráticas e acadêmicas. Ou até o levante da universidade.

A fim de evitar comoções ou degenerações deletérias, as universidades adotam, desde os anos 60, o processo de consulta, que se assemelha a uma eleição. As consultas, contudo, não necessariamente substituem a indicação do CUn, mas indicam o que pensa a comunidade universitária, orientando e legitimando a escolha do Conselho. Na UFSC, as consultas datam de 1991. Nos anos 70, houve colégios eleitorais, sendo o de 1976 emblematicamente composto por 21 professores, 3 estudantes e 1 representante da FIESC. Os estudantes se recusaram a votar.

Atualmente todas as IFES brasileiras realizam consulta à sua comunidade, antes da elaboração da lista tríplice, e, em curiosa proporção, 70% das IFES realiza consulta com peso de votos paritários, ou seja, 33% dos votos da consulta é relativo a cada categoria (professores, TAEs e estudantes).

As consultas formais e informais

Há, conforme orientação do MEC, duas formas de consulta: as consultas formais e as consultas informais. A palavra formal diz respeito, é importante ressaltar, ao termo forma não ao termo legítimo, como pode, por vezes, parecer. O que diferencia, portanto, as consultas formais das consultas informais não é a formalidade do ato de consultar, ou quem realiza a consulta, mas o fato de que as consultas formais têm a forma pré-estabelecida de 70% dos votos válidos serem de servidores docentes (professores) e os outros 30% entre as restantes categorias. As consultas formais podem ter como consequência a possibilidade do colegiado eleitoral responsável por elaborar os documentos de encaminhamento da lista tríplice, havendo, portanto, a delegação de uma atividade do CUn para outro fórum.

A consulta informal, por seu turno, é um processo de consulta sem forma definida (por isso, reitero, o termo informal, que quer dizer aqui, sem forma) e que, desse modo, pode ter qualquer forma, sem haver desrespeito às normas postas. A maioria das consultas informais é paritária, mas nada impossibilita ou impede a consulta universal, ou seja, a instituição de uma forma de consulta que considera que o voto de qualquer indivíduo da comunidade universitária valha o mesmo que o de outro indivíduo, independente do vínculo estabelecido.

A consulta informal pode ser organizada por qualquer órgão ou entidade, e não há restrição legal para ser organizada por colegiado por delegação do CUn, desde que, após a consulta, os resultados sejam meramente norteadores. Ou seja, após a consulta, o CUn realiza uma eleição e elabora a lista tríplice, sem delegar qualquer atividade a outro grupo, colegiado ou órgão. Dessa forma, a despeito do afirmado de que esta consulta seria obrigação do CUn e que a consulta informal seria “terceirização” das atividades daquele Conselho, o que ocorre é justamente o contrário: com a consulta formal o CUn abdica de formular a lista tríplice, e com a consulta informal, o resultado da consulta volta ao CUn, que procede a formação da lista tríplice sem estar obrigado a consentir com os resultados da consulta.

O GT Democracia UFSC e a proposta polêmica

A crítica recebida de “terceirização das atividades do CUn” ao haver a sugestão de revisão das normas da consulta informal à comunidade é infundada, pois conforme ressaltei acima, o GT instituído pelo próprio CUn em análise à legislação vigente apontou para a necessidade de o CUn, diante de sua responsabilidade de envio da lista tríplice ao MEC, realizar anterior consulta à comunidade universitária, a fim de atender aos anseios dessa mesma comunidade, em acordo com os princípios democráticos e considerando que todos os membros da comunidade universitária possuem igualdade de condições de discernir, dentre os candidatos possíveis, quais os que possuem o mais relevante mérito de formular um programa legítimo perante a comunidade que representará por quatro anos.

Há quase 221 anos atrás a França escandalizava o mundo com a regulamentação do voto universal (para homens, diga-se de passagem). No mundo todo houve inúmeras teorizações sobre o valor dos homens ricos em detrimento dos homens pobres. Julgava-se que alguém sem posses era alguém incapaz de decidir por seu próprio futuro. Em verdade o que estava em jogo era a possibilidade de tributação da riqueza, que somente seria proposta por quem não fosse parte dos mais ricos. Hoje ninguém contesta o voto universal, extensivo agora (nada mais justo) às mulheres e a todos aqueles que são considerados passiveis de responderem por seus próprios atos. Ou seja, se um indivíduo é passível de responder por seus atos, ele é também passível de responder e opinar sobre o futuro de sua comunidade. Isso só não ocorre nas ditaduras.

Na Revolução Francesa, considerou-se que o voto era um direito inalienável de todo o ser humano, sendo equiparado ao direito à vida, por ser considerado o direito de decidir livremente por sua própria vida em sociedade.

Considerando todos esses aspectos, além dos conceitos de cidadania, o GT denominado “Democracia” propôs o voto universal, pois se para escolher o Presidente da República que é quem de fato nomeia os reitores, todos os membros da comunidade universitária com mais 16 anos têm o voto de mesmo peso, porque então para escolher quem integrará a lista tríplice a ser enviada para esse mesmo presidente seria diferente?

O voto universal não coloca em xeque que quem será o reitor ou reitora será um professor de magistério superior com título de doutorado, o que quer dizer que toda a apelação para que os professores decidam (sozinhos, ou praticamente sozinhos) o futuro da universidade não tem cabimento, pois só essa categoria pode ser dirigente máximo das universidades brasileiras, conforme largamente argumentado no Relatório Final do GT Democracia UFSC, disponível na página www.gtdemocracianaufsc.wordpress.com

A argumentação em torno do que aqui chamo de “mérito docente” do manifesto redigido pelos 12 professores da UFSC utiliza-se de vasto arsenal para apontar como somente os docentes podem direcionar as universidades em um protesto que não levava em consideração que a proposição de voto universal é, infelizmente, limitada ao voto, não a quem pode se eleger. Ou seja, independente da forma de consulta, somente professores do magistério com título de doutor podem assumir o cargo de reitor.

O vasto arsenal argumentativo em defesa do “mérito docente” era, portanto, irrelevante, a não ser que se considerasse que nem mesmo votar as demais categorias seriam capazes. Apesar de desnecessário, seu uso foi além de exagerada, carregado de sérios problemas, os quais não posso me furtar de comentar.

Quem é a base intelectual da universidade

No manifesto que circulou um pouco na universidade e um pouco mais na mídia se afirma que “O professor é a base intelectual da universidade. É ele quem cria as disciplinas e os programas de graduação e pós-graduação e quem estabelece e coordena os projetos de pesquisa e extensão. É o professor o responsável pelo domínio, produção e difusão do saber e pela formação dos nossos quadros, necessários ao desenvolvimento do país”. Há aqui, no entanto, afirmações bastante imprecisas.

(I)Em primeiro momento a produção do saber humano não é responsabilidade, nem, muito menos, exclusividade da docência. O professor não fundou o saber e a humanidade produz conhecimento em muitas outras áreas que não são abrangidas pela universidade.

(II)Se a produção do conhecimento não é exclusividade dos professores universitários, o ensino também não é atividade de um único sujeito. Não existe ensino sem aprendizagem, e esse processo de ensinar em nada se assemelha a uma transmissão de conhecimentos a um sujeito desprovido de saberes. O ensino-aprendizagem é um processo mais amplo em que os estudantes são tão sujeitos quanto os docentes, ainda que com momentos predominantes distintos.

(III) Se não é exclusividade docente a produção do conhecimento e o domínio do processo de ensino-aprendizagem, tampouco lhe são exclusivas as atividades de pesquisa e extensão. Conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as atividades de ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. Ou seja, não podem as universidades desenvolver atividades exclusivamente de ensino, ou de pesquisa ou de extensão. Além disso, os projetos de pesquisa têm de visar ao desenvolvimento do conhecimento e dos saberes humanos, que retornarão ao processo de ensino-aprendizagem, e os projetos de extensão apontam para outras formas de disseminação e desenvolvimento do conhecimento, que igualmente refluem ao processo de ensino-aprendizagem.

Se são indissociáveis, todas essas atividades fazem parte de um grande processo que é a produção, sistematização e socialização dos conhecimentos humanos em quaisquer áreas, e esse grande processo tem, em seus momentos constitutivos outros sujeitos que não professores, isso significa que o professor não é a base intelectual da universidade, mas uma dessas bases. Ora, se são indissociáveis as atividades de ensino, pesquisa e extensão e existem projetos de pesquisa e projetos de extensão que são coordenados e desenvolvidos por técnicos-administrativos em Educação (TAEs), isso quer dizer que essa categoria é muito mais que um mero suporte técnico e administrativo, mas é também parte constitutiva da produção, sistematização e socialização de conhecimentos.

São inúmeros os projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos pelos TAEs da UFSC hoje, e variam de áreas técnicas, às ciências humanas, além de muitos projetos de pesquisa e extensão na área artística. Disso devem saber todos na universidade, ou ao menos todos aqueles que veem a universidade como algo mais que um grande colégio de estudantes letárgicos a receberem conhecimentos transmitidos por seres iluminados. A universidade, não somente as “boas universidade do mundo”, é um local de universalização do conhecimento, não somente no que diz respeito a quem “recebe” este conhecimento, mas em relação também a quem produz e sistematiza muito mais que disciplinas, mas saberes humanos.

* Gabriel Martins trabalha como Administrador no Centro de Ciências da Educação da UFSC, onde atua como Coordenador Administrativo desde que deixou o cargo de Coordenador de Apoio Pedagógico junto à Pró-reitoria de Graduação. Graduado e mestre em Administração pela UFSC, está no último ano do doutorado na UFRJ. É atualmente também coordenador de pesquisas aprovadas pela UFSC nas áreas de Políticas Públicas e coordena atualmente projetos de extensão nas áreas de literatura e teatro. Desde abril 2013 é conselheiro universitário e foi designado presidente do GT Democracia UFSC, cujo Relatório Final propondo o voto universal para a próxima consulta para reitor da UFSC foi entregue no dia 10 de abril de 2014.
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