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domingo, 20 de abril de 2014

Galeano fala sobre Literatura e Política (Cynara Menezes)

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Em entrevista na Bienal do Livro de Brasília, ele debate esquerda (no poder e nas letras…), futebol, idade, câncer e… Mujica!

Por Cynara Menezes, em Socialista Morena

Em 1998, entrevistei a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) e ela me confessou sentir “antipatia mortal” por O Quinze, o clássico da literatura brasileira que publicou aos 20 anos, em 1930, e que, desde então, seria sua “obra mais importante e mais popular” (tudo quanto é enciclopédia se refere assim ao livro). O mesmo acontece com As Veias Abertas da América Latina e o escritor uruguaio Eduardo Galeano.  Publicado em 1971, quando Galeano tinha 30 anos, a obra até hoje o persegue. É sempre nomeado como “o autor de As Veias Abertas…“, o que, pelo visto, o incomoda –mesmo porque tem mais de 30 livros além dele.

Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira 11 em Brasília, onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal do Livro e da Leitura, Galeano ouviu provavelmente a milionésima pergunta sobre Veias Abertas. “Faz 40 anos que você escreveu As Veias Abertas da América Latina. Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um português bastante razoável: “Seria para mim impossível responder a uma pergunta assim, especialmente porque, depois de tantos anos, não me sinto tão ligado a esse livro como quando o escrevi. O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a me aproximar mais à realidade humana em geral e em especial à economia política – porque As Veias Abertas tentou ser um livro de economia política, só que eu ainda não tinha a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz de ler de novo esse livro, cairia desmaiado. Para mim essa prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem alguma cama livre?’, perguntaria.” Risadas.

Aproveito e emendo: mas o que você achou de Chávez dar o livro para o Obama? Obama entenderia As Veias Abertas…? “Nem Obama nem Chávez”, responde Galeano para gargalhada geral. “Claro, porque ele entregou a Obama com a melhor intenção do mundo – Chávez era um santo, cara mais bondoso que esse eu não conheci –, mas deu de presente a Obama um livro em uma língua que ele não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco cruel.”

Eu nunca tinha visto o grande escritor uruguaio de perto. É mais baixo do que imaginava, cerca de 1m70. Bastante frágil, aparenta ter mais do que seus 73 anos. Ele mesmo comenta que a maioria dos escritores é de esquerda e, como tal, chegados a uma boemia e isso não faz bem à saúde… Uma menina pergunta: “A idade não é boa para os jogadores de futebol. E para os escritores?” Galeano discorda. “Depende. Tem velhos muito mais jovens que os velhos velhíssimos e tem velhos que você acha que estão esperando a morte e surpreendentemente acabam ganhando uma partida por 8 a zero. Não depende da biologia nem do prognóstico dos profetas. Não depende de ninguém. O melhor que o futebol tem como esporte – a festa que o futebol é, a festa das pernas que jogam, a festa dos olhos – é a capacidade de surpresa, de assombro. Na verdade ninguém sabe o que vai acontecer. E menos ainda os especialistas. Aqueles doutores do futebol são seres temíveis, perigosíssimos para a sociedade e o mundo em geral.”

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Outro jornalista espeta: “Por que a esquerda não deu certo na América Latina?” Galeano não se faz de rogado: “Algumas vezes deu certo, algumas vezes, não. A realidade é mutável, a realidade política e todas as outras –por sorte. Senão seríamos estátuas, estaríamos congelados no tempo. Não é verdade que a esquerda não deu certo. Deu certo e muitas vezes foi demolida por ter dado certo, por ter tido razão, porque o que a esquerda predicou, em certo momento na América Latina, resultou ser a verdade, então foi punida. Punida pelos golpes de Estado, ditaduras militares, períodos prolongadíssimos de terror de Estado, crimes horrorosos cometidos em nome da paz social, do progresso. Da convivência democrática, imaginem! Que democracia e que convivência são essas? Tinham que perguntar: ‘do que está falando, senhor?’ As coisas são muito mais complexas do que parecem. Em alguns períodos, também, a esquerda comete erros gravíssimos e em outros, não, faz o que deve ser feito da melhor maneira, até além do que o próprio movimento de massas estava esperando. A realidade sempre tem esse poder de surpresa. Te surpreende com a resposta que dá a perguntas nunca formuladas. E que são as mais tentadoras. O grande estímulo para a vida está aí, na capacidade de adivinhar possíveis perguntas não formuladas.”

Galeano está cansado, foram muitas horas de viagem para chegar à capital federal, e quer encerrar a entrevista. Eu protesto: “Mas e Mujica? Você não vai falar de Mujica?” Ele não resiste e se senta de novo. “Estou meio cansado, estou fatigado de falar de Mujica, porque todo mundo fala dele! Até em outros planetas se fala de Mujica. Em Marte, Júpiter… É incrível a capacidade de ressonância que Mujica tem. E ele é muito meu amigo, já faz muitos anos. A única coisa que posso fazer para incorporar um grão de areia a esta praia imensa de Mujica caminhando pelo mundo seria contar uma piccola história que dá ideia da qualidade humana do personagem.”

E começou a narrar, saborosamente, como é de seu feitio:

“Faz uns quatro anos –não tenho interesse em lembrar direito a data– fui operado de câncer. Foi um câncer sério, agudo. Tomei uma anestesia muito forte, dessas que não desaparecem rápido. E estava sozinho na cama do hospital, esperando que passasse o efeito da anestesia. Ou seja, mais dormido do que acordado. Sem saber muito o que acontecia, onde estava, delirando. E neste período, estando sozinho em uma cama –sozinho, não, acompanhado pelo câncer, mas o câncer não é um amigo confiável. Não te recomendo. Bem, estava eu ali e volta e meia delirava. Como sou muito futeboleiro, um religioso da bola, tinha delírios futebolistas que me levaram aos anos de infância, quando jogava na rua, com bolas improvisadas, feitas com trapos velhos. E em uma dessas fugas, comecei a bater bola. Como se fosse uma múmia egípcia que tinha errado de domicílio, jogando futebol contra ninguém e sem bola nenhuma, só na imaginação. Chutava a bola e ela voltava, chutava e ela voltava. Tudo debaixo do lençol. E nada, a bola continuava, como se estivesse morta de riso da minha estupidez de achar que podia com ela. ‘Não, você não pode comigo’. Numa dessas, senti um peso em cima dos meus joelhos. Aí começo a recobrar a realidade e vejo alguém que conheço, uma voz que reconheço, de um amigo. E pergunto:

–O que você está fazendo aqui?

E ele:

–Isso é maneira de receber um amigo?

–Não importa, quero saber o que você faz aqui. Está doente também?

–Que é isso, estou saudabilíssimo. O enfermo é você.

–Estou sabendo. Obrigado pela notícia, mas já estou sabendo.

–O doente é você, está fodido, irmão. Eu vim te visitar. Agora, não sabia que se recebia um amigo assim, chutando-o, chutando-o e chutando-o. Não é muito educado.

Continuamos nessa até que eu falei:

–Olhe, chega. Sua função não é estar aqui brincando comigo. Você é o presidente da Repoública e sua função é governar. Mujica, você é o presidente! Vai governar este país já! Estamos precisando de sua participação ativa, desinteressada, importantíssima para o nosso povo. Não perca mais tempo comigo.

–Ah, bela maneira de ser amigo, hein?

–Será bela ou será feia, mas é a única maneira para você. Você é o presidente! Além disso, para piorar, todo mundo gosta de você e quer que continue sendo presidente por uns 300 anos mais. Se você não gosta, foda-se.

E aí acabou.”

Na saída, consigo falar a Eduardo Galeano do enorme prazer que sinto em conhecê-lo pessoalmente e lhe conto que adoro O Livro dos Abraços. Ele olha para mim e diz: “Eu também”.

Ufa.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17176)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Venezuela: a verdade sobre o “desabastecimento” (Pedro Silva Barros)

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Políticas públicas duplicaram acesso da população a alimentos básicos e carne. Produção agrícola ainda não acompanhou tendência. Governo amplia importações

Por Pedro Silva Barros, em Carta Maior

Na última sexta-feira (23), o ministro da Alimentação da Venezuela, Félix Osorio, anunciou medidas importantes que estimulam uma discussão mais geral sobre a segurança alimentar, as distorções de uma economia em transição e as relações comerciais da Venezuela, particularmente com o Brasil.

O governo venezuelano comprará, utilizando acordos de cooperação internacional, US$ 4,3 bilhões em alimentos em 2014, privilegiando os países do Mercosul e do Caribe. Do Brasil serão compradas 429 mil toneladas ao custo de quase US$ 1,8 bilhão; da Argentina, outros US$ 715 milhões. O Plano 2014-2016 para alimentação prevê mais de 1.000 novos pontos de distribuição de alimentos do governo, incluindo 22 hipermercados. As medidas consolidam o Estado como principal importador da Venezuela, responsável pelas compras de 55% de tudo que vem do exterior. Na semana anterior, havia sido anunciado um sistema biométrico para registrar os compradores desses mercados e evitar a revenda e o contrabando, principalmente para a Colômbia.

A política de garantia de alimentos é um dos maiores êxitos do chavismo e contrasta com a escassez e  as filas para buscar determinados produtos.

O programas de alimentação criados como resposta ao locaute que tentou derrubar o governo Chávez entre 2002 e 2003 distribuiu, na última década, mais de 15 milhões de toneladas de produtos alimentícios, diretamente pela rede pública ou repassados à rede privada para serem vendidos a preços tabelados.

Eram apenas 45 mil toneladas em 2003 e passaram a 4 milhões de toneladas em 2013. Uma média superior a meia tonelada por habitante considerando toda a década. Ou a mais de um quilo diário por família, de alimentos fortemente subsidiados, se consideramos apenas o ano passado.

O consumo per capita de arroz passou de 13,4 Kg por pessoa por ano em 1998 para 25,1 Kg em 2012, o de carne bovina de 16,0 Kg para 25,1 Kg, o de frango de 20,9 Kg para 42,5. A disponibilidade energética, que havia caído na década anterior a Chávez, passou de 2.127 para 3.182 calorias por dia por habitante.

Hoje 96,2% dos venezuelanos comem ao menos 3 vezes por dia, 97,3% dos venezuelanos consomem proteína animal e 98% das crianças tomam leite diariamente.

A produção venezuelana não acompanhou o ritmo da expansão da demanda. O consumo cresceu enormemente devido aos subsídios (que chegam a 80% dos produtos básicos nos aproximadamente 15 mil pontos de venda da rede Mercal) e a outras políticas distributivas e de emprego (a formalização do trabalho na Venezuela superou pela primeira vez em janeiro de 2014 a barreira dos 13 milhões, equivalente a 61% dos postos de trabalho do país; durante a década de 1990 o índice de formalização havia caído de cerca de 50% para cerca de 40%). A conta do acesso aos alimentos fecha pelo aumento das importações, amparadas tanto pelo aumento do preço do petróleo como pela maior apropriação por parte do governo dos excedentes deste setor. Em outras palavras, houve uma democratização do renda petroleira.

Dizem nas ruas que antes de Chávez havia muitos produtos nas prateleiras, mas poucos tinham dinheiro para compra-los; agora todos tem meios para consumir, mas não é raro haver dificuldades para encontrar alguns produtos nas prateleiras.

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Como a oscilação no abastecimento tem ocorrido há dez anos, é comum que as pessoas estoquem grandes quantidades de produtos básicos, como leite em pó e frango congelado, o que gera uma grande ineficiência. Recordo de novembro do ano passado: quando articulistas de todo o mundo se deleitavam com a escassez de papel higiênico na Venezuela, a farmácia mais próxima ao meu escritório recebia 40 pessoas em fila, todas elas com o limite de 24 rolos em seus carrinhos de compras.

A forte e crescente política de subsídios gera distorções e necessita ajustes. A gasolina, cujo preço, simbólico, é de US$ 0,01 o litro, consome 8% do PIB, segundo o FMI. A carne brasileira em Santa Elena de Uairén chega a custar 10 vezes menos do que em Pacaraima (as duas cidades formam fronteira entre Venezuela e Brasil), considerando o mercado cambial informal da região. Pacaraima tem apenas 6 mil habitantes e o estado de Roraima tem 480 mil residentes e é bastante distante de outros centro consumidores do Brasil, cujo controle pode ser feito em uma única estrada, a BR 174. O impacto desse comércio informal é pequeno nas contas venezuelanas. O mesmo não se pode dizer da fronteira com Cúcuta, cuja população, considerando seu entorno, chega a quase um milhão de habitantes. Isso sem contar as outras cidades fronteiriças e os múltiplos caminhos para atingir os mais de 45 milhões de colombianos (ver “Contrabando agrava crise de alimentos na Venezuela”).

O governo tem realizado mudanças para centralizar e hierarquizar as importações de produtos básicos e ao mesmo tempo regulamentar e oficializar mecanismos complementares de acesso à divisas para produtos não essenciais ao setor privado. Não é à toa que os protestos que se desencadearam em 2014 começaram na região de fronteira. Não é à toa que no período que coincidiu com o anúncio e o início das operações do Sicad 2 (sistema complementar livre de acesso a divisas) o preço do dólar paralelo caiu 35%.

Os dados do comércio indicam que na última década o Brasil ganhou espaço na Venezuela. Se no biênio 2002-2003 as exportações brasileiras para a Venezuela foram de US$ 1,4 bilhão, no último biênio, 2012-2013, atingiram US$ 10 bilhões. O Brasil aumentou seu peso relativo particularmente no fornecimento de alimentos. As exportações de manufaturados, que haviam crescido muito entre 2003 e o início da crise internacional de 2008, tem enfrentado forte concorrência de produtos chineses. Independente das diferenças setoriais, a Venezuela tem se mantido entre os três principais superávits comerciais do Brasil desde 2007, esse não é um dado qualquer no momento em que a situação de nossa balança comercial já não é tão confortável.

O desafio colocado para a Venezuela é aumentar a produção interna de alimentos, aprimorar seu sistema de distribuição e diminuir a dependência petroleira. Para o Brasil, o aumento das exportações de manufaturados, que tem na América Latina seu principal mercado consumidor, só é sustentável se houver integração produtiva e desenvolvimento articulado com os países vizinhos.

Um passo seria a organização de projetos conjuntos na região de fronteira, entre os estados de Bolívar e de Roraima. A Venezuela poderia fornecer insumos importantes, como ureia e cal dolomítica, cujos altos preços no cerrado roraimense inviabilizam a competitividade da agricultura local. Assim como houve disposição do governo venezuelano para privilegiar o Brasil como fornecedor de alimentos, poderá haver do Brasil para privilegiar a Venezuela no fornecimento de tecnologia e formação técnica para a produção agrícola. Isso garantirá não só mais estabilidade e segurança alimentar no país vizinho e no extremo norte do Brasil como também mercado para a exportação de tecnologia e equipamentos agrícolas brasileiros.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17043)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Para romper a masmorra do individualismo (Katia Marko)

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell

O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.

Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.

Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”

Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”

A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.

Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.

Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.

No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”

Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”

No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”

O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.

Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”

Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/para-romper-a-masmorra-do-individualismo/)

terça-feira, 25 de março de 2014

Comuna de Paris: outra democracia é possível? (Antoni Aguiló)

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Há 143 anos, começava insurreição que estabeleceu formas inéditas de autonomia popular. Quais foram e como podem inspirar movimentos contemporâneos

Por Antoni Aguiló | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Jacques Tardi, Le cri du peuple

Acaba de completar 143 anos (em 26 de março) a proclamação da Comuna de Paris, uma das experiências de democracia popular participativa mais iluminadoras da história contemporânea do Ocidente, mas também, e ao mesmo tempo, uma das mais trágicas que já se conheceu.

Ao final da guerra franco-prussiana, com a França derrotada, seu primeiro ministro, Adolphe Thiers, destacou a importância de desarmar imediatamente Paris para impor o armistício humilhante assinado com a Prússia. Em 18 de março de 1871, sob o pretexto de que as armas eram propriedade do Estado, Thiers ordenou ao exército a retirada dos canhões que a Guarda Nacional tinha nas colinas Montmartre. Então, uma multidão indignada de mulheres e homens da classe operária se opôs ao desarmamento, que deixaria a cidade indefesa. Uma parte das tropas enviadas pelo governo negou-se a disparar contra o povo e muitos dos soldados acabaram confraternizando com o movimento de resistência. Este levantou-se em armas contra a Assembleia Nacional, desencadeando um processo revolucionário que colocava o proletariado parisiense em choque com a grande classe dos proprietários de terras, rentistas e camponeses ricos que dominava a Assembleia francesa.

Após a tentativa fracassada de desarmamento, o gabinete de Thiers fugiu para Versalhes. Os rebeldes instituíram um governo municipal provisório que, depois das eleições de 26 de março, transformou-se na Comuna de Paris. Constituía-se, assim, uma prefeitura rebelde de forte base entre os trabalhadores. O exemplo de Paris estendeu-se por outras cidades e povoados provinciais, como Lyon e Marselha, onde proclamaram-se comunas insurgentes, rapidamente esmagadas por Versalhes.

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Mais além de seus tropeços, a Comuna de Paris nos deixou um legado: os exercícios de construção de poder popular vindos de baixo mais relevantes da história recente. Que aprendizagens da Comuna, em matéria de democracia, podem contribuir para iluminar as atuais lutas por democracias reais? Em que medida essas lutas passam por uma prática política revolucionária que amplia o poder efetivo das classes populares e outros coletivos historicamente afetados pela discriminação? Ao meu juizo, como embrião de democracia revolucionária, a Comuna de Paris proporciona alguns ensinamentos chave, que abrem caminhos pouco explorados para o avanço das democracias a serviço da emancipação social:

Democracia de base: a pretensão era a criação de um Estado desde a base, formado por autogovernos municipais federados entre si, com um governo central que tivesse escassas funções de coordenação. Um Estado novo, que contribuísse para desfazer a relação entre governantes e governados e assegurar melhores condições de vida e trabalho; no qual as pessoas se sentissem reconhecidas e, portanto, dispostas a defendê-lo.

Democracia operária de inspiração socialista. Os comuneiros tinham consciência da necessidade de romper com as velhas formas de dominação política (o parlamentarismo liberal e o Estado capitalista burguês), o que os levou a experimentar formas alternativas de política e sociedade. Mesmo que a Comuna não tenha acabado com o Estado capitalista, seu grande mérito foi arrebatar completamente seu controle da burguesia, transformando-o em um organismo novo, que permitia o acesso ao poder a quem tradicionalmente havia sido apartado dele. Já não era o governo das classes elitistas dominantes, mas o das maioria populares não representadas, os operários, cuja bandeira vermelha, símbolo da fraternidade internacional dos trabalhadores, tremulava pela primeira vez na sede do Governo, o Hôtel de Ville.

Neste ponto, adquire especial relevância o componente socialista da Comuna, presente no tipo de democracia que se estabeleceu: uma democracia não meramente formal, mas substantiva, participativa, que combinava democracia representativa com democracia direta. Uma democracia que representava um processo mais além da tomada conjuntural do poder, já que aspirava substituir o aparato burguês do Estado por outro, em correspondência com os interesses da classe trabalhadora. Em outras palavras, a democracia operária da Comuna permitiu a inversão do poder, deslocando o poder político classista e elitista monopolizado por proprietários para colocar nas mãos da classe trabalhadora a capacidade efetiva de deliberar, decidir e organizar a sociedade.

A democracia da Comuna articulava-se em torno de cinco princípios: 1) Eleição por sufrágio universal de todos os funcionários públicos. 2) Limitação do salário dos membros e funcionários comunais, que não podiam exceder o salário médio de um operário qualificado, e em nenhum caso superar os 6 mil francos anuais. 3) Os representantes políticos estavam ligados umbilicalmente aos eleitores por delegação e mandato imperativo. 4) Qualquer representante podia perder a confiança dos eleitores e ser deposto de imediato; ou seja, a Comuna instituiu a revogabilidade do mandato, acabando com a perversidade de um sistema representativo liberal que, como na atualidade, permitia suplantar a vontade dos representados e promovia a profissionalização da política. A Comuna cuidou, deste modo, de fazer um uso contra-hegemônico da democracia representativa, em que os representantes obedecem — e não um sistema como o atual, em que os que mandam não obedecem, e os que obedecem não mandam. Este tipo de democracia representativa consagrava o direito popular a pedir contas, exigir responsabilidades e controlar os representantes, o que representou um duro golpe à (hoje tão em voga…) compreensão parasitária da política, vista como um trampolim para obter privilégios, fazer carreira profissional e esquecer-se do eleitorado. 5) Transferência de tarefas do Estados aos trabalhadores organizados, como a promoção da autogestão operária mediante a socialização das fábricas abandonadas pelos patrões.

Novas medidas emancipadoras. As iniciativas para socializar o poder político não foram as únicas. Também foram acompanhadas de medidas atrevidas de caráter social, entre as quais cabe destacar a separação entre Igreja e Estado, garantindo o caráter laico, obrigatório e gratuito da educação pública; a expropriação dos bens das igrejas; a supressão do serviço militar obrigatório; a aprovação de uma moratória sobre as rendas de habitação, que abolia as leis anteriores nesta matéria, confiscava as residências vazias e cancelava as dívidas por aluguel, pondo a moradia a serviço das necessidades sociais e ao bem estar geral; a supressão do trabalho noturno das padarias e a proibição da prática patronal de multar os empregados, uma estratégia habitual para reduzir seus salários.

Contudo, a burguesia francesa não permitiu que o novo sistema político prosperasse. Com a colaboração das tropas prussianas que cercavam Paris, o governo de Versalhes enviou mais de 130 mil soldados que, em 28 e maio de 1871, depois de 72 dias intensos e fugazes de autogoverno popular, aniquilaram a Comuna. Estima-se que na batalha tenham morrido mais de 20 mil parisienses, e que uns 43 mil combatentes tenham sido capturados; 13 mil condenados à prisão, 7 mil deles deportados para a Nova Caledônia.

A Comuna de Paris representa não apenas a última das grandes revoluções populares do século XIX, mas também o primeiro dos democraticídios da era moderna, algo mencionado apenas de passagem na história “oficial” da democracia. Lamentavelmente, hoje também são tempos de democraticídio, de extermínio de saberes e práticas democráticas. O capitalismo fulminou a democracia representativa em boa parte da Europa, onde os Parlamentos e as eleições tornaram-se praticamente dispensáveis. Mas também são, entre outras coisas, tempos de experimentalismo político, de rachaduras no poder constituído, de protestos populares, de organização coletiva e de lutas por um poder popular constituinte. Como nos recorda a Comuna de Paris, ele nasce nas ruas, como exigência de mudança das velhas estruturas políticas e econômicas que oprimem a gente e restringem a construção de outras democracias possíveis.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/comuna-de-paris-outras-democracias-sao-possiveis/)

sexta-feira, 14 de março de 2014

O Cartaz no Elevador

Hoje cheguei ao edifício onde moro e tive (mais) um desgosto de passar pela área comum até chegar em meu apartamento. Explico.

Estava no elevador um cartaz, com título "MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS II - O RETORNO" e nele descrito uma manifestação em frente à Brigada Militar, solicitando intervenção dos militares na política brasileira, para retirar o PT do poder.

Não me controlei e escrevi dois bilhetes em post-it. Em um deles: "Que tal começarmos uma NOVA POLÍTICA em nosso próprio condomínio, em nossa comunidade? A corrupção, as intrigas, a inoperância e a TIRANIA nascem mais próximas a nós do que imaginamos." Em outro: "Tirem suas bundas de suas camas/cadeiras e vão TRABALHAR por um novo Brasil. Deveriam se envergonhar de exaltar um GOLPE ANTIDEMOCRÁTICO."

Estou inquieto até agora. Já não gosto de morar em meio a tanto dinossauro da elite brasileira (esse é mais um preço que se paga por morar em um bairro nobre, além dos altos impostos), todavia enquanto ficavam em suas cavernas eu ao menos podia ignorar esse fato. Questão é que resolveram sair (fora das reuniões de condomínio, onde já demonstravam seu anacronismo e velharia) para mostrar suas garras nefastas, as garras da velha elite colonialista brasileira, a qual sempre esteve atrelada ao braço militar, por meios escusos de articulação e ação.

Devemos combater a ignorância, o preconceito e a tirania de certos movimentos que estão se fortalecendo em nossa sociedade. E, como ocorre comigo, eles podem estar brotando na porta ao lado. Não podemos ficar calados. Devemos defender nosso bem maior, a democracia, e sobretudo os avanços que já conquistamos na sociedade brasileira.

Não sou PT, mas não sou de uma oposição conservadora e desleal, que ignora valores fundamentais de nossa sociedade para tentar alcançar seus fins elitistas e deploráveis. E, se em algum momento for necessário, irei à rua defender com meu sangue esses baluartes. Por enquanto, me restrinjo à luta no campo intelectual e político, pois mais que isso seria exagero e contraprodutivo no momento atual.

Hoje não vou dormir em paz. A bem da verdade, já não durmo em paz há muito tempo, já que há muita miséria e desolação - sintomas de um sistema hegemônico selvagem e desumano, o capitalismo - para combater. Estão a nossa volta, e muitos fingem não existir, ou não se sentem responsáveis, ou, pior, sabem que da fome, do suor e da lágrima do outro forja seu banquete de farturas e coisas supérfluas.

Que essa minha falta de paz seja minha força-motriz para defender sempre aqueles desassistidos. E que meu grito não seja solitário. A luta é nossa, da humanidade, para banir aquilo que nos prende ao passado de tirania e de iniquidades, no vislumbre de uma nova sociedade, a qual garanta a todos seu direito legítimo e básico à humanidade.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Comer, ato revolucionário? (Satish Kumar)

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Refletir sobre o que nos alimenta pode nos levar a rebeldias como reforma agrária, mercados de agricultores, jardins operários, “slow food”, permacultura e agricultura florestal

Por Satish Kumar | Tradução Josemar Vidal Jr., editor de Tautologia Total

A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Comer alimentos apropriados é parte da solução de problemas como as mudanças climáticas e a fome no mundo. Na tradição cristã, festejar no Natal e jejuar na Quaresma são símbolos significantes da relação estreita entre as pessoas e os alimentos, entre liberdade e comedimento, entre celebração e solitude.

Mas festejar e jejuar não são opostos: são complementares. Quando nós praticamos a liberdade de um banquete e somos pessoas habituadas à pratica do jejum, muito provavelmente vamos aproveitar a festa sem abusos.Jejuar é uma grande habilidade. Quando, no romance de Herman Hesse, a bela cortesã Ka­mala pergunta a Siddhartha quais eram as suas qualidades para conquistar o seu amor, Siddhartha responde: “Pensar, esperar, jejuar”. Infelizmente, no mundo moderno, muitos de nós não sabem como esperar, como jejuar, ou, ainda, como banquetear.

Nós vivemos no mundo da comida congelada, junk food e pratos prontos. Esse é o mundo da produção em massa, dos empacotados e das redes de comercialização de alimentos. Esse é o mundo onde os conhecimentos e as técnicas de produzir comida foram esquecidos, e a arte de cozinhar é desvalorizada; onde o prazer de preparar as refeições em companhia é diminuído. Nós perdemos o controle das origens dos alimentos. Muitos não sabem dizer poucas palavras sobre como a comida é semeada, distribuída, tarifada, ou mesmo como é preparada.

O acesso à comida deveria ser um direito fundamental do ser humano, o alimento é um presente da natureza a todos. Alimentar as pessoas e todos os seres vivos é algo intrínseco à vida, à existência, mas, infelizmente, a comida tornou-se produto comercial e já não esta disponível à todos igualmente. O objetivo primeiro dos que trabalham com negócios alimentícios é fazer dinheiro, alimentar as pessoas se tornou algo secundário. Não admira vermos múltiplas crises, tais como o crescimento do custo dos alimentos, crescimento da obesidade, junto à malnutrição e fome.

O grande desafio com o qual precisamos nos deparar é percebermos o principal objetivo dos sistemas alimentares, que é suster a vida. A principal responsabilidade dos governos e dos homens de negócios é desenvolver políticas e práticas que atendam às necessidades alimentares de todos, em todo o mundo, ao mesmo tempo em que garantam a integridade e a sustentabilidade do planeta terra em si.

Cultivar, preparar e comer boa comida é um imperativo ecológico, e, como Thomas Morus muito bem pontua, a comida é mais do que apenas o combustível para o corpo; ela é fonte para a nossa nutrição espiritual, social, cultural e física.

As pessoas perguntam: “O que eu posso fazer para combater o aquecimento global, a degradação ambiental e as injustiças sociais?” A resposta dada por Thomas Morus e outros escritores é: “Vamos começar pela comida: vamos comer alimentos locais, orgânicos, sazonais e deliciosos. Vamos lidar com os alimentos com as nossas próprias mãos, e não deixar a sua produção apenas nas mãos das corporações.”

O ato de comer o alimento apropriado é parte da solução dos problemas de aquecimento global e fome. A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Quando nós observamos as movimentações econômicas por trás dos alimentos vemos imediatamente a influência das corporações multinacionais, que transformam comida em produto, onde, da engenharia genética das sementes ao cultivo, o controle passou do homem do campo e dos agricultores para administradores e engenheiros. Se nos preocupamos com a agricultura industrial, agronegócio, terras cultiváveis, erosão do solo, crueldade com os animais, fast foods, fatty (gordurosas) foods, ou ainda, “não-foods“, temos que olhar para o nosso prato e o que esta nele. A comida em nossa dispensa e na nossa cozinha esta conectada com as mudanças climáticas, com a pobreza, bem como com a nossa própria saúde.

Uma reflexão profunda sobre o que comemos pode nos levar à reforma agrária, mercados de agricultores, Jardins Operários, Slow Food, comida artesanal, permacultura, agricultura florestal e muito mais. Nós devemos transformar nossa relação com a comida como um primeiro passo em direção às transformações sociais, econômicas e políticas. O pessoal e o político são dois lados da mesma moeda, nós não podemos manifestar um sem o outro. Quando nós começamos no plano pessoal e caminhamos em direção ao político, então há integridade no que falamos, fazemos e pedimos para que os outros façam. É claro que não podemos parar na vida pessoal. Nós precismos nos comunicar, organizar e construir um movimento popular que pressione governos e empresas a efetuarem mudanças.

Será que estamos prontos pra “por a mão na terra”? Temos tempo para assar nosso próprio pão e compartilhar nossas refeições em companhias agradáveis? Se nós não temos tempo para cozinhar e comer adequadamente, então nós não temos tempo para viver. Como Molière disse: “É boa comida, não boas palavras que me mantem vivo”.


*Satish Kumar é fundador e diretor do Instituo Schumacher e reconhecido como um pilar da militância pacifista.


(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/12/comer-e-o-comeco-ou-a-meta-esta-na-mesa/)

domingo, 26 de janeiro de 2014

ZYGMUNT BAUMAN: “NOS HAN IMPUESTO QUE ERES MÁS FELIZ CUANTO MÁS CONSUMES Y MÁS COMPITES”

¿Están sexo y amor convirtiéndose en una hipoteca para la sociedad occidental?

Todos estamos hechos para amar y ser amados y no nos sentimos plenos salvo que tengamos esa persona para amar y ser amados, y también en el plano de las amistades, de las relaciones interpersonales. Cuando hablo de este término hipoteca me refiero a que para poder amar se necesitan ciertas obligaciones, un compromiso a largo plazo que puede implicar sacrificio para cuidar a la otra persona y de algún modo hipotecar tu futuro, arriesgarse. Y lo que ocurre en esta sociedad es que sobre todo los jóvenes están siendo animados a evitar un compromiso a largo plazo. La gente se junta para ver si funciona, pero si lo haces así, el más mínimo desacuerdo se convierte en un gran problema. Y esto también se refleja en las amistades, relaciones interpersonales, vecinos… Es parte también de la crisis.


¿En qué medida?

Es tremendamente importante para el futuro de la humanidad. El problema real es reemplazar las lecciones de cómo vivir que nos han sido impuestas: primero, se nos ha enseñado que para ser más feliz hay que consumir más, tener el último iPad o el último modelo de teléfono o de camiseta. En segundo lugar nos han dicho que hay que ser mejor que el otro, que hay que competir constantemente. Y estos dos caminos son dos de las causas de la crisis actual.


¿Qué caminos serían más deseables?

Buscar un sentido conjunto y unos objetivos comunes de las personas, compartiendo y debatiendo, discrepando -lo cual también da mucha felicidad-, pero estamos demasiado ocupados intentando competir. Vamos a encontrar vías todos juntos, y no sólo escuchando lo que una persona mayor como yo pueda decir. Pero sí puedo decir que una de las claves es entender que lo que da felicidad no es consumir, sino producir. Ese es el regalo.


¿En la actual sociedad de Internet seguimos siendo lo que escribimos?

Le diré que una persona adicta a Facebook puede hacer más de 200 amigos en un día. Yo en 87 años no pude hacer más de 500 amigos, y no me estoy refiriendo a ese tipo de amigos que pueden llenarte de felicidad. Los amigos de Internet no son más que amigos de red, y puedes perderlos también en un día y no estarán allí cuando los necesites. La amistad y el amor no son una cuestión de tecnología; necesitas una dedicación espiritual.


¿Está Europa hundida? ¿Va a ganar la economía la batalla frente a los valores y los derechos?

No soy un profeta, pero puedo mirar a mi alrededor y veo pocas señales de que estemos en el camino para salir de la crisis. Este colapso del crédito ha sido al final una redistribución de riqueza que ha dado más a unos pocos ricos y ha hecho más pobres a los pobres, especialmente a los jóvenes. Un 52 % de los jóvenes está sin empleo en España y eso es muy grave, no pasaba algo así desde la Segunda Guerra Mundial. Y eso los frustra, porque les quita su dignidad haciéndoles sentir que nadie les quiere, que no sirven para nada. Se está quitando riqueza a los más débiles y eso es muy peligroso; y los gobiernos sienten la presión de los bancos, de las instituciones. Y ante esto no hay caminos intermedios: o te rindes a lo que te piden los bancos y la economía, haciendo más fácil la vida a los bancos y penalizando a los débiles; o por el contrario defiendes los intereses de tu población.


¿Por qué ha venido al foro social de un festival reggae?

Creo que este tipo de puntos de encuentro con intereses comunes son muy importantes; compartiendo no sólo una música, sino también intercambiando y haciendo relaciones interpersonales. Yo he sacrificado para venir aquí, porque creo que es importante, ya que en Benicàssim hace mucho calor y soy una persona que lo pasa ciertamente mal con el calor, pero aquí estoy porque creo que es importante.


¿Qué mensaje va a trasladar a los jóvenes que van a escucharle en el foro social y que buscan respuestas, guías para salir de esta crisis, para cambiar las cosas?

Tú puedes hornear o amasar tu futuro. Es solamente tu elección, y no hay certeza, pero simplemente es una cuestión de compromiso con tu sociedad. ¿Usted conoce a un filósofo italiano que se llama Gramsci? Gramsci dijo que el único modo de predecir el futuro es organizarse y hacer que eso que quieres ocurra.


Entrevista publicada en Laprovincia.es por Nacho Martín

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A atualidade de uma marxista rebelde

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Como Rosa Luxemburgo, morta há 95 anos, ajuda a reinventar, em tempos de crise do capitalismo, o pensamento de Marx

Entrevista de Isabel Loureiro | Imagem: Rolando Astarita

(Publicado originalmente em 19/3/13. Atualizado em 15/1/14)

Há cinco anos, surgiu e cresce, em paralelo a uma crise do capitalismo duradoura e de final imprevisível, um movimento intelectual surpreendente: a reabilitação das ideias de Karl Marx. O filósofo alemão, que muitos desprezaram após a queda do Muro de Berlim, está de volta. Seus livros são republicados em todo o mundo, com tiragens e repercussão expressivas. Não raro, sua importância e contemporaneidade são reconhecidas até mesmo por publicações conservadoras e por consultores ilustres das grandes finanças globais.

Num 15 de janeiro como hoje, era assassinada, em Berlim, uma pensadora e militante que se apaixonou pelo marxismo muito jovem, viveu intensamente sob sua influência e contribuiu para enriquecê-lo – mas foi esquecida, no século 20, tanto pelo socialismo soviético quanto pelas correntes hegemônicas entre a esquerda. Estamos falando de Rosa Luxemburgo.

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Talvez esta polonesa judia, que se tornou líder da Revolução Alemã de 1918 (1 2 3) seja importante hoje exatamente pelos motivos que a fizeram maldita no passado. É o que pensa a filósofa Isabel Loureiro, principal estudiosa da obra de Rosa no Brasil, autora de diversos livros sobre a líder da Revolução Alemã de 1918 e organizadora de uma vasta coletânea sobre sua obra, em três volumes (1 2 3),

A primeira particularidade de Rosa, avalia Isabel, é ponto de vista extremamente sofisticado sobre Revolução, Reformas e Poder. Rosa enxergava a importância (e a beleza…) das revoluções — as mudanças inesperadas, os grandes movimentos da História em que as maiorias desafiam o automatismo enfadonho das relações sociais e viram a mesa. Mas via estes momentos como a abertura de um longo processo de mudanças, não como mera oportunidade para instalar novos grupos no poder de Estado.

Disso derivava seu grande empenho em construir formas avançadas de democracia. Para transformar a vida, pensava ela, as sociedades precisavam enxergá-la; deviam superar a alienação, a repetição quase inconsciente de relações consolidadas ao longo do tempo. Esta lenta conquista de autonomia exige, é claro, abertura ao debate, à crítica e à polêmica. Por isso, Rosa, embora aliada a Lênin na luta contra o amortecimento e burocratização do marxismo, no início do século 20, divergiu abertamente das tendências centralizadoras do revolucionário russo. Em consequência, “foi posta no índex dos partidos comunistas”, diz Isabel Loureiro.

Mas esta combinação de rebeldia contra o capitalismo e desejo de valorizar a autonomia não fará de Rosa uma autora a ser estudada com atenção especial em nossos dias? Sua obra não será, de certa forma, um convite a rever a obra de Marx e reinventar seus sentidos? Isabel pensa que sim. Na entrevista abaixo, ela, que dedicou um dos três volumes da coletânea de Rosa à correspondência trocada com amigos e amantes, frisa: “Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza e suas reflexões sobre arte”. (A.M.)

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Isabel Loureiro: “Rosa tem uma concepção aberta do marxismo. Para ela, Marx não era uma Bíblia com verdades prontas e imutáveis, mas manancial que permite levar adiante trabalho de compreensão do mundo contemporâneo”
Pouco mais de um ano depois de lançar uma coletânea de três volumes sobre a obra de Rosa Luxemburgo, você organizou, em 2013, um seminário de três meses sobre o tema. Em que Rosa e sua visão particular do marxismo podem ajudar os novos movimentos que questionam o capitalismo no século 21?

Essa foi precisamente a pergunta que me fiz quando comecei a preparar o seminário. Por que, quase cem anos depois de seu assassinato, voltar a discutir as ideias de uma revolucionária marxista clássica, formada na cultura humanista europeia do século 19, cujo mundo desmoronou com a Primeira Guerra Mundial? A resposta não é evidente. Por que sua interpretação de Marx ainda hoje é atual? Para começar, Rosa tem uma concepção aberta do marxismo. No seu entender a teoria de Marx não era uma Bíblia com verdades prontas e imutáveis que os fieis tinham que seguir sem questionar, mas um manancial inesgotável que permite levar adiante o trabalho de compreensão do mundo contemporâneo.

Por isso mesmo, ela nunca hesitou em criticar as vacas sagradas do marxismo europeu, como Bernstein e Kautsky, e nem sequer o próprio Marx. Essa independência intelectual é, para os marxistas – que infelizmente têm uma tendência ao dogmatismo e à ossificação – uma indicação de que precisam continuar pesquisando e criando conceitos que permitam dar conta da nova fase da acumulação do capital e da nova situação em que se encontram as forças sociais. Além disso, Rosa acrescenta à teoria de Marx algo original, propriamente seu: a ideia de que as transformações sociais são fruto da ação autônoma das massas populares que, na luta quotidiana pela ampliação de direitos e, sobretudo, na luta revolucionária pela transformação radical da sociedade capitalista, ou seja, no seu processo de existência real, forjam sua consciência político-social. Em resumo, e simplificando muito, se queremos mudar o que está aí, devemos agir aqui e agora, porque a nossa ação é o que pode interromper o curso da história em direção ao abismo.

Alguns aspectos centrais que você enxerga no pensamento de Rosa têm muito a ver com a nova cultura política de autonomia e horizontalidade. Por que você a identifica com a crítica ao vanguardismo, à burocratização e ao centralismo?

Esses pontos que você menciona resumem bem o que opôs Rosa Luxemburgo à social-democracia e ao bolchevismo e continuam sendo de grande atualidade na cultura da esquerda. Durante o século 20, Rosa foi posta no índex dos partidos comunistas devido à sua crítica a Lênin e aos bolcheviques. Foi usada como ícone revolucionário pelos comunistas da antiga Alemanha Oriental (RDA), mas suas ideias democráticas e libertárias foram deixadas na sombra ou censuradas. O stalinismo acusou-a de espontaneísta, de não dar importância à organização política.

É preciso deixar claro que Rosa não é contra a organização (afinal ela sempre militou num partido político), e sim contra uma concepção de partido como vanguarda de revolucionários profissionais, hierarquicamente separada das massas, e que leva de fora a consciência às massas informes. Essa crítica era endereçada tanto à social-democracia, quanto ao bolchevismo. Para Rosa, que é herdeira do Iluminismo, o verdadeiro líder político é aquele que esclarece, que destrói a cegueira da massa, que transforma a massa em liderança, que acaba com a separação entre dirigentes e dirigidos, que contribui para formar aquilo que ela considera o mais importante pré-requisito de uma humanidade emancipada: a autonomia intelectual, o pensamento crítico das massas trabalhadoras. E, por sua vez, a autonomia intelectual requer a existência de liberdades democráticas: direito de reunião, associação, imprensa livre, etc. Daí a crítica que Rosa faz aos bolcheviques por terem eliminado o espaço público, que ela vê como o único antídoto contra a burocratização do partido e dos sovietes.

No seminário, uma sessão foi dedicada à “dialética entre reforma e revolução”. Algumas das características mais marcantes da nova cultura é o desejo de produzir mudanças, ainda que parciais; a recusa a reduzir a política a eleições, ou mesmo a apostar na revolução como um momento mágico e transcendente, em que toda a sociedade se transforma. O que Rosa poderia dizer sobre isso?

Esse é mais um ponto em que Rosa continua sendo atual. Ela queria uma humanidade em que houvesse liberdade e justiça social; para isso, era necessário passar do capitalismo ao socialismo. Porém, essa transição só seria possível com a mais ampla participação dos de baixo nos assuntos que lhes dizem respeito, o que significava um longo processo de amadurecimento, de correção de rota, etc. Daí a necessidade do debate público. A revolução não consistia na troca de homens no poder, era muito mais que isso, era todo um processo econômico, social, cultural e, claro, político – isto é, de tomada do poder pelos trabalhadores, que levaria muito tempo para se efetivar. Resumindo: no pensamento de Rosa Luxemburgo a ideia de tomada do poder – revolução como quebra rápida das relações de poder existentes – não se separa da ideia de mudança estrutural da sociedade, o que implica mudança de valores, ou seja, uma revolução no longo prazo. Para ela, as duas coisas precisam ocorrer conjuntamente.

Vivemos num mundo em que estão abertas janelas tanto para enormes transformações como para riscos de desumanização inéditos. Estão aí os drones, a tentativa de controlar a internet e vigiar os cidadãos por meio dela, os sinais de xenofobia, os grupos nazistas em certos países europeus. “Socialismo ou barbárie”, uma consigna de Rosa, tem a ver com este futuro tão aberto?

Quando Rosa diz que a humanidade está perante o dilema “socialismo ou barbárie”, o que ela tem diante dos olhos é o horror da Primeira Guerra Mundial que, para aquela geração, foi um cruel divisor de águas. Pela primeira vez, as pessoas se deram conta de que os avanços tecnológicos podiam ser mortíferos, de que a modernização capitalista destruiria todos os obstáculos que aparecessem no caminho de seu avanço infernal. E a esquerda radical alemã, de que Rosa era uma das lideranças, via no socialismo a única alternativa capaz de barrar essa descida aos infernos.

Mas, ao mesmo tempo, ela também se dava conta de que, com a guerra e o chauvinismo, que haviam engolido as massas trabalhadoras europeias, a luta em prol do socialismo tinha se tornado infinitamente mais difícil. Acho que podemos fazer um paralelo com o que se passa hoje. Depois da queda do comunismo burocrático, parecia que agora sim o terreno estava finalmente livre para que as ideias socialistas democráticas vingassem. Mas o que vemos é que, precisamente num momento em que o capitalismo está em crise e sofre um golpe poderoso, no momento em que constantes e gigantescas manifestações da população europeia mostram claramente que o capitalismo chegou ao fim da linha, o que acontece em termos de mudança no rumo de uma sociedade mais justa, mais igualitária? Absolutamente nada!

Os governantes continuam fazendo os ajustes pedidos pelo capital financeiro e as populações vivem num permanente estado de sítio econômico, sem saber o que o dia de amanhã lhes reserva. Precisamos nos perguntar por que, precisamente num momento em que caiu a máscara ideológica do neoliberalismo, a esquerda não consegue aparecer como alternativa. É necessário rever a história da esquerda institucional europeia para entender porque isso acontece. E aqui, mais uma vez, Rosa Luxemburgo tem o que dizer com sua crítica à adesão da social-democracia alemã ao estado de coisas vigente.

A democracia institucional está esvaziada e em crise, mas os novos movimentos reivindicam formas cada vez mais democráticas de decisão — inclusive em seu próprio interior. De que forma o debate sobre o partido, que opôs Rosa Luxemburgo a Lênin, no início do século XX, pode informar este anseio por democracia?

É preciso que fique claro que Rosa Luxemburgo é contra a abolição da democracia “burguesa” tal como ocorreu no mundo soviético. O que ela quer é complementar a liberdade política com a igualdade social. Isso significa que o pluralismo partidário, a imprensa livre, a liberdade de associação, etc. devem ser preservados. Rosa era uma marxista clássica, como eu disse, que tinha uma visão muito crítica dos regimes autoritários do seu tempo, como o czarismo e o império alemão.

Ao mesmo tempo, também se deve enfatizar que ela, diferentemente de seu companheiro de partido Eduard Bernstein, não tem ilusões quanto à democracia burguesa parlamentar. Ela não acredita na transição ao socialismo pela via eleitoral. Durante a revolução alemã de 1918, Rosa ficou entusiasmada com os conselhos de operários e soldados que surgiram no início do movimento, vendo neles uma forma de ampliar a participação dos de baixo. Mas não foi muito longe nestas reflexões, pois foi assassinada pouco tempo depois.

É muito comum que a esquerda libertária recorra ao exemplo dos conselhos como panacéia que supostamente resolveria os problemas da democracia representativa. É sem dúvida uma forma democrática que deve ser preservada, sobretudo no âmbito local. Mas penso que devemos pensar, como Rosa indicou sem aprofundar em seu texto de crítica aos bolcheviques escrito na prisão em 1918, que o ideal é combinar mecanismos de democracia representativa com mecanismos de democracia direta.

Hugo Chávez, símbolo do “socialismo do século 21″ para parte da esquerda, baseou sua ação num Estado forte e num comando centralizado. Em contrapartida, os zapatistas difundem a ideia de  ”mudar o mundo sem tomar o poder”, cunhada por John Holloway. O que o pensamento de Rosa  sugeriria, sobre esta polêmica?

Rosa defende a tomada do poder de Estado pelos trabalhadores. Nesse sentido, ela se oporia à fórmula de Holloway. No entanto, ao defender a necessidade da transformação radical dos valores burgueses-capitalistas na transição ao socialismo ela percebe que a revolução é um processo muito mais complicado, lento e doloroso que a simples tomada do poder de Estado. Ao mesmo tempo, ela não recusa a tomada do poder, vendo aí um meio de acelerar as mudanças necessárias. Porém, acima de tudo, para Rosa Luxemburgo, o novo grupo que chega ao poder tem a obrigação de preservar e/ou construir mecanismos de participação, de formação política, de criação de autonomia da massa popular e não eliminar os mecanismos democráticos existentes, como se fossem apenas expressão da dominação burguesa.

Crescem em todo o mundo, e em particular no Brasil, os movimentos que criticam a crença cega no “desenvolvimento”. A tradição marxista mais difundida também é desenvolvimentista. Materialista, acredita que o “desenvolvimento das forças produtivas” é anterior aos avanços da consciência. Rosa tem algo a dizer sobre isso?

Rosa é filha do seu tempo, e também filha do marxismo do seu tempo. Isso quer dizer que, por um lado, ela é defensora do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da modernização capitalista. Mas, por outro – e isso é interessante e atual sobretudo para nós da América Latina –, ela também enfatiza o aspecto sombrio dessa modernização capitalista, com todo o seu conhecido séquito de horrores: destruição violenta de modos de vida primitivos pelo capitalismo europeu, a fim de submetê-los aos mecanismos do mercado; guerra do ópio na China; enriquecimento da metrópole às custas do endividamento da periferia; acumulação de capital mediante compras de armas pelo Estado, o que favorece guerras de todos os tipos, etc. Essa postura avessa ao eurocentrismo e à ideia de que o progresso da civilização justifica os sofrimentos dos povos periféricos dá-nos elementos para repensar no que consiste verdadeiramente o progresso e se o capitalismo é mesmo o horizonte inelutável da humanidade.

De que forma permanece atual a noção de imperialismo, que era cara a Rosa Luxemburgo? Como este conceito sobrevive num mundo marcado pelo declínio dos EUA e Europa, pela ascensão dos BRICS e, ao mesmo tempo, pela difusão, nestes países, dos modos de vida típicos do capitalismo?

Para Rosa, o imperialismo não é, como para Lênin, uma “etapa superior do capitalismo” e sim uma característica do capitalismo desde as origens. Desde o início, o capitalismo precisou de mercados externos (por exemplo, ao transformar as economias primitivas em economias de mercado) para se reproduzir. A violência e o saque das camadas sociais não-capitalistas, que Marx restringia ao período da chamada “acumulação primitiva”, Rosa Luxemburgo considera uma característica do capitalismo até sua plena maturidade.

Hoje assistimos à mercantilização de tudo que ainda não foi transformado em mercadoria: serviços públicos, saúde, educação, cultura, conhecimento, direitos autorais, recursos ambientais, etc. É precisamente aqui que David Harvey, ao analisar o novo imperialismo, procede a uma interessante atualização da teoria de Rosa Luxemburgo, forjando o conceito de “acumulação por expropriação”. As feministas alemãs, também inspiradas em Rosa, incluem nesse âmbito o trabalho doméstico feminino. Logo, como podemos ver, apesar da ascensão dos BRICS, e apesar de algumas alterações na divisão do mundo entre centro e periferia, a verdade é que o imperialismo, ainda que novo, vai bem, obrigado.

Um dos três volumes da coletânea organizada por você trata da vida privada de Rosa, recupera cartas pessoais, discute sua condição de mulher. Por que este destaque, pouco comum na literatura marxista?

Antes de mais nada, é preciso observar que tivemos a sorte de suas cartas terem sido preservadas praticamente intactas graças à devoção dos amigos. Essa correspondência é um documento precioso sobre o socialismo alemão e internacional da época. Mas a minha escolha recaiu sobre as cartas aos amantes e amigos, pois queria mostrar, pelo exemplo de uma revolucionária, que mesmo a militância política requer qualidades que muitas vezes são desprezadas como pequeno-burguesas, ou sei lá o que.

O exemplo de Rosa se opõe à imagem falsificada do militante como um ser puritano que dedica 24 horas do dia à causa revolucionária. Pelas cartas, podemos acompanhar seu doloroso processo de amadurecimento, conflitos amorosos, desejo de ser feliz, suas reclamações de como a vida política era desumana, seu grande amor à natureza, reflexões sobre arte.

Ela vai se libertando aos poucos de um relacionamento amoroso que não a satisfazia e se afirmando como uma intelectual dona do seu nariz, que intervém no espaço público, que não teme enfrentar as vacas sagradas da social-democracia alemã, com uma vida privada bastante livre para os valores da época. É uma personagem muito rica do ponto de vista emocional, uma ótima escritora, uma pessoa com um amplo espectro de interesses: fala de pintura, literatura, botânica, geologia, e, sobretudo nas cartas da prisão, descreve o pouco de natureza que pode enxergar da janela da cela ou do pátio da prisão com grande sensibilidade e riqueza de detalhes. As cartas aos amigos eram seu jeito de fugir do cárcere. As cartas da prisão, publicadas pela primeira vez logo depois do seu assassinato e republicadas inúmeras vezes, levaram gerações de militantes a se interessarem por Rosa Luxemburgo. Quem sabe acontece o mesmo com a nossa coletânea, publicada em 2011 pela Editora UNESP?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-atualidade-de-uma-marxista-rebelde/)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Mujica, teórico da transição pós-capitalista? (Antônio Martins)

Em entrevista inédita no Brasil, ele debate causas do fracasso do “socialismo real” e afirma: para superar sistema, é preciso começar pelo choque de valores

Cada vez mais popular tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, o presidente do Uruguai, Pepe Mujica, arrisca-se a sofrer um processo de diluição de imagem semelhante ao que atingiu Nelson Mandela. Aos poucos, cultua-se o mito, esvaziado de sentidos — e se esquecem suas ideias e batalhas. Por isso, vale ler o diálogo que Pepe manteve, no final do ano passado, com o jornalista catalão Antoni Traveria. Publicada no site argentino El Puercoespín, a entrevista revela um presidente que vai muito além do simpático bonachão que despreza cerimônias e luxos.

Mujica, que viveu a luta armada e compartilhou os projetos da esquerda leninista, parece um crítico arguto das experiências socialistas do século XX. Coloca em xeque, em especial, uma crença trágica que marcou a União Soviética e os países que nela se inspiraram: a ideia de que o essencial, para construir uma nova sociedade, era alterar as bases materiais da produção de riquezas. ”Não se constrói socialismo com pedreiros, capatazes e mestres de obra capitalistas”, ironiza o presidente. Não se trata de uma constatação lastimosa sobre o passado ou de um desalento. Mujica mantém-se convicto de que o sistema em que estamos mergulhados precisa e pode ser superado. Mas será um processo lento, como toda a mudança de mentalidades, e precisa priorizar o choque de valores: tornar cada vez mais clara a mediocridade da vida burguesa e apontar modos alternativos de convívio e produção. Leia a seguir, alguns dos trechos centrais da entrevista:

“A batalha agora é muito mais longa. As mudanças materiais, as relações de propriedade, nem sequer são o mais importante. O fundamental são as mudanças culturais e estas transformações exigem muitíssimo tempo. Mesmo nós, que não podemos aceitar filosoficamente o capitalismo, estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades. Ninguém escapa à densa malha do mercado, a sua tirania. Estamos em luta pela igualdade e para amortecer por todos os meios as vergonhas sociais. Temos que aplicar políticas fiscais que ajudem a repartir — ainda que seja uma parte do excedente — em favor dos desfavorecidos. Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar; mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”.

“A vida é muito bela e é preciso procurar fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que seja capitalista. Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes dificuldades sociais; ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de pensar que reformando o capitalismo vou a algum lado. Não podemos substituir as forças produtivas da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que precisam de coparticipação e inteligência. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, é preciso fazer funcionar o velho, porque as pessoas têm de viver. É uma equação difícil. O desafio é bravo. Há quem siga com o mesmo que dizíamos nos anos 1950. Não se deram conta do que ocorreu no mundo e por quê ocorreu. Sinto como minhas as derrotas do movimento socialista. Me ensinam o que não devo fazer. Mas isso não significa que vá engolir a pastilha do capitalismo, nesta altura de minha vida”.

“Não sei se vão me dar bola, mas digo aos jovens de hoje que aprendemos mais com o fracasso e a dor que com a bonança. Na vida pessoal e na coletiva pode-se cair uma, duas, muitas vezes, mas a questão é voltar a começar. E é preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar, trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade — não quero usar a palavra austeridade, porque na Europa está sendo muito prostituída, quando se deixa as pessoas sem trabalho em nome do ‘austero’”.

“Em toda a história do Uruguai, o presidente repartia as licenças de rádio e TV com o dedo. Tivemos a ideia de abrir consultas e processos democráticos baseados em méritos. Pensamos e realizamos! O que certa imprensa diga não me preocupa. Já os conheço. O problema que o diário [uruguaio] El País pode me criticar e se, algum dia, estiver de acordo e me elogiar. Seria sinal de que ando mal”.

[Para ler, na íntegra (em castelhano) a entrevista com Pepe Mujica, clique aqui]

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/01/06/mujica-teorico-da-transicao-pos-capitalista/)

Ernst Bloch: “Viver o futuro no presente” (Arlindenor Pedro)

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Filósofo alemão do século XX é indispensável para compreender conceito contemporâneo de utopia: o “vir-a-ser” que convida a “astuciar o mundo”

Por Arlindenor Pedro

Às vezes me pego pensando no porquê de a língua alemã ter produzido uma gama tão grande de pensadores, artistas, e filósofos que contribuíram de forma tão expressiva para história da humanidade.

Desnecessário seria citar os nomes de Schiller, Kant, Hegel, Beethoven, Schopenhauer, Nietzsche, Marx,  Weber, Horkheimer, Adorno, Erich Fromm, Habermas, Walter Benjamim, e agora uma nova geração de marxistas como Robert Kurz, Anselm Jappe e tantos outros — gigantes nos seus objetos de estudo.

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Alguém argumentou que isto se dá devido à estrutura da língua alemã, que se apresenta como extremamente prática e precisa na tradução de um pensamento, sendo para muitos uma ferramenta decisiva na criação e na “arte de filosofar”; concepção que tornou célebre a frase do filósofo Heidegger, quando disse que a filosofia só poderia ser escrita em duas línguas: o grego e o alemão.

Exageros à parte, pois sabemos que a produção cultural, artística e filosófica da humanidade vai muito além do que nos legaram os gregos e também o povo alemão, não deixo de me encantar com as ideias oriundas dos filósofos germânicos, notadamente  com o pensamento original do professor Ernst Bloch. Nascido em 1885, em Ludwigshafen, viveu 92 anos , encerrando sua vida em 4 de agosto de 1977, em Tubingen. Considerado um dos mais importantes pensadores marxistas alemães do século XX,  sua obra vastíssima incursionou por um vasto leque temas de relevantes.

Bloch conviveu com os maiores pensadores do século passado sendo por eles influenciado e certamente influenciando-os, por meio dos inúmeros estudos  que publicou: Entre estes, estão Lukács — com quem manteve uma relação de amizade, marcada por altos e baixos –, Simmel e Max Weber — os três participaram juntos de círculos de reflexão — e, mais tarde, Adorno, Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Bertolt Brecht, Hans Eisler, Kurt Weil e Otto Klemperer.

Durante sua vida, em vários momentos teve que se tornar refugiado, ora para fugir do alistamento militar na I Guerra Mundial, ora para fugir do nazismo, às vésperas da II Guerra,  ou mesmo para escapar, já no pós-guerra, escapar ao estalinismo da Alemanha Oriental, onde exercia importante cátedra  na  Universidade Karl Marx. Conheceu, portanto, picos de prestígio por seu valor acadêmico e o desprezo da intelectualidade do comunismo oficial, que o perseguiu por suas posições pouco ortodoxas no campo do marxismo.

O fato é que Ernst Bloch pouco se afinou com a visão economicista do marxismo oficial, desenvolvendo estudos em áreas por ela desprezadas , como a psicologia , arte e filosofia. Priorizou a visão de totalidade dos escritos  de Marx , colocada no esquecimento pela ortodoxia da Terceira Internacional. Para Bloch, a ação revolucionária, objetivo do marxismo, é justamente captar esses conteúdos e acioná-los em favor da liberdade. Vanguardas, para ele, são movimentos que conseguem explorar esses conteúdos, expressando-os antes que eles sejam confinados ao senso comum — tornando possível, assim, o exame  da ação adequada. Por isso é que, para ele, a utopia  é tão importante para o marxismo.

Nesse campo, sem dúvidas, sua obra mais importante é o  enciclopédico Príncipio Esperança, escrito em seu exílio nos Estados Unidos e publicado em 1956, quando já retornara à Alemanha.

Hoje, é impossível entendemos  o conceito moderno de utopia se não levarmos em consideração os estudos feitos nesta área por Ernst Bloch e  seu contemporâneo , o húngaro Karl Mannheim, notadamente com o clássico Ideologia e Utopia, onde se debruça sobre esses conceitos, tão presentes na vida moderna .

Mannheim entende que “as ideologias são idéias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de fato a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente à  pratica, são, na maior parte, deformados.

A ideia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece, sob uma sociedade fundada na servidão, irrealizável. Nesse sentido, é uma ideia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa fé, um motivo de conduta do indivíduo. E impossível viver harmoniosamente, à luz do amor fraterno cristão, em uma sociedade que não se acha organizada sob o mesmo princípio. O individuo se vê, em sua conduta pessoal, sempre forçado — à medida em que não ocorre a ruptura da estrutura social existente — a renunciar a seus motivos nobres.”  (in Ideologia e Utopia).

Devido a seu papel de incongruência — isto é, dissonância com a ordem estabelecida — as utopias passam então  a ter um relevante papel como motor do processo histórico, isto é, da busca por mudanças. Estariam elas, entendo, no campo das pulsões, conceito presente nas obras de Ernst Bloch principalmente em Principio Esperança.

Ali, ele nos propõe a visão da existência de um nexo entre as potencialidades “ainda-não-manifestas” e a atividade criadora da “consciência antecipadora”. Isto é, podemos equacionar problemas atuais em sintonia com as linhas que antecipam o futuro. O conceito blochiano de superação “do que-já-se-efetivou” pela esperança “do que ainda-não-veio-a-ser”, torna-se um importante elemento para entendermos o papel das utopias no desenvolvimento das sociedades.

O “ainda-não-ser” — categoria fundamental da filosofia blochiana da práxis — baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para futuro. Imaginando, os sujeitos “astuciam o mundo”. O futuro deixa de ser insondável para vincular-se à realidade como expectativa de libertação e desalienação.

Bloch nos diz que, ao contrário do que a psicanálise freudiana procura ensinar, não está no passado o único elemento de entendimento do comportamento humano no “presente-vivido”. Na verdade, no presente, o individuo vive já o futuro, que está presente nas suas ações e comportamentos — isto é, suas utopias. Quanto menos se tem utopias, menos se vive o futuro no presente, vivendo-se apenas no campo das ideologias, formatadas pela realidade social que nos cerca.

Mas,  é importante, porém, diferenciarmos o  que é imaginação e o que é fantasia: na primeira tendemos a criar um imaginário alternativo; já na segunda nos alienamos num conjunto de imagens exóticas em que procuramos compensar uma insatisfação vaga e difusa da realidade por outra imagem irreal. A imaginação é um elemento decisivo na luta contra a opressão. O ato de imaginar aclara os rumos e acelera as utopias. Eis aí, portanto, uma visão que vai além do conceito mecanicista  de luta de classes desenvolvido pelos teóricos de plantão da Terceira Internacional.

Princípio Esperança é uma obra instigante e apaixonante. Leva ao entendimento das diferenças entre o “sonho noturno” , objeto de estudo das importantes  descobertas de Freud,  e os “sonhos diurnos” , elementos transformadores , impulsionadores da história. Em alguns momentos, a obra de Bloch assemelha-se com outro importante livro, lançada em 1959. Trata-se de Visão do Paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, de nosso Sérgio Buarque de Holanda. Aí ele analisa o imaginário das utopias, das lendas paradisíacas do século XVI na Europa, que impulsionaram subjetivamente as grandes navegações, levando-nos a fazer a pergunta: será que estes autores se conheceram? Suas obras são tão relevantes e se tocam em tantas questões!

Olhando para ambas, dificilmente deixamos de nos indagar:  não será a utopia o elemento impulsionador das navegações portuguesas? Se não assim, como entender que um país tão diminuto e frágil tenha se lançando em uma aventura de tamanha dimensão?

Fernando Pessoa  é um dos maiores poetas da língua portuguesa. Em sua obra Mensagem, onde se destaca o poema O Quinto Império, ele retrata bem o espírito português, que vê na expansão para o ultramar um momento épico da nacionalidade, que se propôs levar ao mundo uma nova civilização, com os valores extraídos dos povos celtas, românicos, mouros e visigóticos. Isto também pode ser percebido em outro grande gigante da poesia épica lusitana — Camões –, que, nos Lusíadas compreendia  a Península Ibérica como o final da terra, onde começava o grandioso e misterioso mar: “Onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões, in Lusíadas, III, 20)

Era inevitável, portanto, que surgisse naquele povo, no seu ideário, a necessidade de se lançar à mar, onde a terra terminava. Era o infinito que atraía coletivamente a todos — afinal, o que existiria além-mar?   Além dos interesses materiais envolvidos no processo de expansão, percebemos que, naquele momento, amalgamou-se no imaginário português a utopia do 5º Império que ajudou a unir o país — o povo e as elites — num sonho único, capaz de realizar tanto a nacionalidade quanto o indivíduo, dando-lhes condições para tão grandiosa empreitada. Foi um momento mágico, único. Aquele momento em que a nação como um todo é capaz de executar e tornar vitorioso um grande desafio. As pulsões do que nos fala Ernsth Bloch.

Enquanto esta utopia esteve viva — durante a dinastia de Aviz –, Portugal conseguiu unidade. Suponho, portanto,  que no período entre o início do reinado de D. João I e a morte precoce do jovem rei D. Sebastião, desenrole-se o profundo drama da nacionalidade lusitana. Referindo-se esses tempos, Oliveira Martins, na obra Os filhos de D. João I”, retrata esta dramaticidade, quando da decisão de D. João em invadir Ceuta:

“Estava o rei com os infantes em Sintra, talvez naquela pequena câmara forrada de azulejos também, que a tradição diz ter sido o lugar de D. Sebastião no Conselho decisivo na campanha de Alcacér Quibir. Nesta câmara devia ser, para que num mesmo lugar se resolvessem as duas expedições: a que abre e a que encerra o círculo mágico de nossa vida gloriosa. Desde os tempos misteriosos da Caldeia, esse berço de todas as adivinhações, o anel representado pela serpente devorando-se a si própria, foi a imagem simbólica da vida no seu ritmo fatal, voltando ao ponto de partida, acabando por onde começara…”( in Os filhos de D. João I, Oliveira Martins,1998) .

“Negar que durante os três séculos da dinastia de Avis a nação portuguesa viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento arreigado da sua coesão interna, seria um absurdo. Essa coesão que fora ganha nas lutas e campanhas da primeira dinastia perde-se no XVI século, por causa das consequências do império oriental e da educação dos jesuítas. Portugal acaba: Os Lusíadas são um epitáfio.” (in Historia de Portugal, Oliveira Martins, 1972).

Na atualidade, vejo que as utopias  estão de volta no imaginário do mundo global e  elas ganham uma feição pós-capitalista — um novo mundo fora dos padrões da sociedade da mercadoria.

A crise que varre o mundo globalizado acelera estas utopias e cada vez mais arrasta pessoas para um “sonho diurno”, tirando-as do torpor da vida de autômatos-consumistas. Após as derrotas das utopias do século XX, do socialismo real, do nazismo e do fascismo, surgem propostas de um viver agora, já, neste momento, diferente do que nos impõem a sociedade erigida pela burguesia liberal. Nesse sentido os conceitos blochianos têm um imenso valor e são instrumentos importantes para a rebeldia que leva à revolução.

Desta forma, iniciativas que passam desde a formação de Zonas Autônomas, a encontros periódicos como os Rainbows, até a grandes ou pequenas manifestações que atingem a essência  do sistema como a proposta do Passe Livre, jogam um importante papel na busca dessa utopia, pois o desmoronamento desse mundo não se fará de uma única forma ou em um único momento. Ele é fruto da  ação de milhões de pessoas que, em rede, conectadas por um sentimento de mudanças  paralisarão o sistema. Tal processo já se torna visível com as crise do sistema financeiro, do sistema produtivo, no mundo do trabalho e de valores éticos que levam a sociedade para a barbárie e apontam para grandes colapsos energético e ambiental. Não queremos mais isto, é um grito que ecoa com grande intensidade em todo o planeta!

Como era de se esperar, prevalece o instinto de sobrevivência humana que impulsiona os escravos para a rebeldia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/ernst-bloch-viver-o-futuro-no-presente/)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Risco de volta da direita? (Ivo Lesbaupin)

"O que traria a volta da direita?", pergunta Ivo Lesbaupin. "Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização da reforma agrária?" E ele responde: "Tudo isso está sendo feito por este governo".

Segundo o professor da UFRJ, "existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há dúvida".

Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ - e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro, e membro da direção da Abong. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).

Eis o artigo.

A privatização do megacampo petrolífero de Libra (área de pré-sal) é um divisor de águas. Todos os movimentos sociais do Brasil, inclusive alguns muito próximos ao governo, se posicionaram contra. O governo se manteve inflexível e, copiando o governo FHC nas grandes privatizações (Vale, Telebrás), garantiu o leilão com segurança policial e tropas militares, de um lado, e batalhões de advogados da Advocacia Geral da União para derrubar liminares, de outro.

O governo deixou claro de que lado está.

Muitas das análises sobre os governos do PT (Lula-Dilma) partem do pressuposto de que houve antes um governo de direita, neoliberal, o de FHC, e que hoje temos um governo se não de esquerda, ao menos de centro-esquerda, de coalizão.

Seria um governo em disputa, que ora tomaria medidas mais voltadas para os setores populares ora voltadas para os setores dominantes. Isto dependeria da maior ou menor pressão de cada um dos lados.

Este pressuposto leva a crer que este governo mereça todo o nosso apoio para evitar a "volta da direita". Porque esta volta traria políticas que não queremos ver novamente.

Os governos do PT indubitavelmente deram mais atenção ao social que os governos anteriores, como o aumento real do salário-mínimo e o programa Bolsa-Família, e reduziram fortemente o desemprego. A política externa é mais independente e também solidária com os governos progressistas de outros países da América Latina. E poderíamos citar uma lista de avanços ocorridos nos últimos dez anos, avanços que devem ser mantidos e devemos apoiar.

Há setores do governo que têm uma preocupação centrada na sociedade, nos trabalhadores, que se dedicam a uma maior democratização. Mas, infelizmente, estes setores não mandam no governo. E, na hora da cobrança, apoiam as grandes decisões (Belo Monte, Libra...).

Porém, se examinarmos mais de perto, o que nos impressiona não são as diferenças com os governos anteriores, são as semelhanças – cada vez maiores, à medida que o tempo passa. O governo FHC é considerado uma “herança maldita”. Mas a política econômica que privilegia o capital financeiro permanece de pé: os bancos tiveram mais lucros nos governos do PT do que antes. E estes governos introduziram medidas que favoreceram ainda mais os investidores financeiros ao isentá-los, em vários casos, de imposto. Não foi feita nenhuma reforma estrutural nas estruturas geradoras da desigualdade no país. No entanto, foram feitas reformas estruturais para atender aos interesses do capital, como a reforma da previdência do setor público, aprovada no primeiro ano do governo Lula.

Os recursos do país: para quem vão prioritariamente?

Se queremos saber para quem o governo trabalha, temos de examinar o orçamento realizado: para onde estão indo os recursos? Os recursos do país são destinados fundamentalmente ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus juros. A dívida externa chegou em dezembro de 2012 a 441 bilhões de dólares e a dívida interna a 2 trilhões e 823 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida). O orçamento realizado de 2012 mostra que 44% do nosso dinheiro foi usado para os juros, amortização e rolagem da dívida, enquanto que apenas 5% para a saúde e 3% para a educação. Em suma, o destino de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país – que são aqueles que recebem os juros da dívida -, além dos credores externos. Cada décimo de aumento dos juros pelo Banco Central significa maiores ganhos para os que já são muito ricos.

Portanto: o primeiro setor cujos interesses são atendidos é o capital financeiro (bancos e investidores financeiros)

Obras de infraestrutura: para as empreiteiras

Mas, há um segundo setor que é também privilegiado pelo governo: são as grandes empreiteiras – Odebrecht, OAS,Camargo Correia, Andrade Gutierrez... Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas – Belo Monte é o exemplo mais notório – e até na do Maracanã. Em 1993, durante a CPI do Orçamento, o senador José Paulo Bisol havia denunciado a existência de um “governo paralelo” no país: eram as grandes empreiteiras, que distribuíam entre si as licitações das obras públicas. Denunciou, mas nada aconteceu... A maior parte destas obras são financiadas pelo BNDES, com recursos públicos, portanto.

Estas empreiteiras são também, junto com os bancos, as principais financiadoras das campanhas eleitorais. Este dado nos ajuda a entender o empenho do governo na realização de certas políticas – os megaprojetos, por exemplo, as privatizações, outro exemplo – e no impedimento de controles sobre o capital – a não realização da auditoria da dívida, por exemplo.

Portanto, o segundo setor cujos interesses são atendidos é constituído pelas grandes empreiteiras.

O agronegócio: o grande aliado do governo no campo

E há um terceiro setor que tem recebido muito apoio do governo: o agronegócio. O governo ajuda a agricultura familiar, sem dúvida, mas a proporção é de 90% para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar. Esta é a razão pela qual, em dez anos de governos do PT, a reforma agrária não avançou: o principal aliado do governo no campo é o agronegócio, não os movimentos sociais. E certas medidas que favorecem este setor acabam sendo aprovadas no Congresso – o Código Florestal -, porque o governo não quer perder este aliado.

Portanto, o terceiro setor cujos interesses são atendidos é o agronegócio.

Povos indígenas: pedra no caminho do agronegócio, de megaprojetos de infraestrutura, de grandes mineradoras

O governo está ressuscitando a política indigenista da ditadura, para a qual "o índio não pode atrapalhar o progresso do país". O capítulo sobre os povos indígenas foi comemorado, na época, como um dos mais avançados da Constituição Cidadã. Pois exatamente os direitos destes povos originários ás suas terras estão sendo derrubados: pouco a pouco, a cada nova usina hidrelétrica, a cada nova lei ou portaria (ou código...), os direitos estão sendo violados e até as demarcações já feitas correm o risco de serem questionadas. Para atender aos interesses de setores do capital, este governo está desprezando os direitos dos povos indígenas.

O sistema tributário reprodutor da desigualdade social permanece

Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo FHCacentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema concentra renda, é um “Robin Hood” às avessas, tira dos pobres para dar aos ricos. É um sistema pelo qual os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque nele o peso maior está no imposto sobre o consumo. Mesmo aquele que não têm renda para pagar imposto de renda compra bens, compra alimentos. E no preço dos bens está incluído o imposto.

Embora tenha introduzido pequenos avanços, no essencial esta herança de FHC foi mantida pelos governos do PT: a regressividade do sistema permanece. E a combinação de superávit primário (...) com a política monetária de juros altos incidentes sobre a dívida pública resulta “num dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres para os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo. (...) Na verdade, o mais poderoso mecanismo de concentração de renda na economia é essa combinação de política fiscal e monetária perversa, onde o Estado atua como um redistribuidor de renda e de riqueza a favor dos poderosos” (Assis, 2005: 89) (1).

Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma reforma tributária, para tornar o sistema progressivo (os que podem mais, pagam mais). Mas o governo não fez isso: ao contrário, apresentou um projeto de reforma que não mexe no caráter regressivo e que cortará recursos da Seguridade Social, se for aprovada.

Haveria uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos para os ricos: seria a realização de uma auditoria da dívida pública. Ela provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto reduziria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos depois, quando oEquador fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há sérias suposições de que parte desta dívida é indevida. O que só uma auditoria poderia verificar e comprovar (a CPI da dívida evidenciou várias irregularidades que teriam de ser examinadas, mas PT e PSDB se uniram para impedir que esta CPI tivesse resultados).

Esta é uma exigência da constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT puseram em prática. Preferiram favorecer os poucos privilegiados que ganham com a manutenção do status quo. E desfavorecer os muitos que sofrem as consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: pois esta é a razão da falta de recursos suficientes para a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, para os serviços públicos em geral.

Havia ainda uma grande diferença entre o governo neoliberal de FHC e os governos do PT: as privatizações. No entanto, o governo Lula não fez uma auditoria das privatizações, como se esperava; não reestatizou nenhuma das empresas privatizadas, como fez o governo Evo Morales. O governo Lula privatizou algumas rodovias federais e ogoverno Dilma passou a privatizar tudo: portos, aeroportos, rodovias, hospitais universitários e até riquezas estratégicas como o petróleo.

O governo FHC havia quebrado o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar de reiterados protestos dos movimentos de trabalhadores, especialmente dos petroleiros. O governo Dilma promoveu o leilão de petróleo docampo de Libra – cujas reservas valem no mínimo 1 trilhão de dólares - e tem ignorado solenemente a oposição dos movimentos sociais. O petróleo é nosso? Não, parte dele será das empresas privadas e estatais estrangeiras que venceram este leilão, assim decidiu o governo brasileiro. É como se só devesse satisfação ao setor privado, às multinacionais: os interesses do país, as reivindicações dos movimentos populares não são prioritárias.

O que traria a volta da direita?

Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização da reforma agrária?

Tudo isso está sendo feito por este governo.

Com exceção dos líderes do PSDB, todos os líderes da direita são hoje aliados do governo: Sarney, RenanCalheiros, Jader Barbalho, Romero Jucá, Collor, Maluf, Sérgio Cabral, Kátia Abreu...

Apesar de sua prática, de suas políticas fundamentais, o governo mantém um discurso de esquerda, de quem defende os direitos dos pobres e oprimidos e que "a direita quer solapar", "olhem o que a grande mídia diz de nós". Os movimentos de trabalhadores e demais movimentos sociais veem suas reivindicações desprezadas (povos indígenas), não atendidas (reforma agrária) ou mal atendidas (recursos para a agricultura familiar).

Movimentos sociais e entidades da sociedade civil precisam constantemente se mobilizar, denunciar, fazer pressão, para evitar perda de direitos, para evitar retrocessos maiores. E a maioria das vezes não o conseguem (Libra é apenas um exemplo).

Apesar da defesa e do apoio de alguns movimentos sociais, o governo nunca se sentiu obrigado a cumprir os compromissos assumidos com relação aos trabalhadores: nem a reforma agrária, nem a auditoria da dívida, nem a defesa das terras dos povos tradicionais...

A grande mídia é denunciada por autoridades públicas como parcial, agressiva, injusta com o governo, adepta de uma postura demolidora. Mas o governo nada faz para democratizar os meios de comunicação no Brasil, nada faz para quebrar o oligopólio existente, através da regulamentação do setor, que permitiria abrir o espectro das comunicações para outros atores. Por que? Porque, na verdade, apesar das críticas a aspectos secundários, a grande mídia apoia todos os projetos importantes do governo: o pagamento da dívida sem auditoria, os aumentos da taxa de juros (supostamente para conter a inflação), as usinas hidrelétricas na Amazônia, a transposição do S. Francisco, o leilão de Libra... As críticas da grande mídia mantêm a aparência de que os interesses da direita não estão sendo atendidos e que o governo é "de esquerda". A manutenção desta aparência interessa aos que querem se manter no poder. Na verdade, o governo receia a entrada em cena de outros meios de comunicação, capazes de trazer outras opiniões, de fazer a crítica a aspectos centrais da atual política. É por isso que, neste campo, tudo fica como está.

Existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há dúvida. Ele tem certamente várias políticas louváveis, faz o enfrentamento da pobreza, reduz a miséria, melhora a capacidade de consumo dos pobres com mais crédito. Mas não muda as estruturas geradoras da desigualdade social e, por isso, continua transferindo a maior parte da renda e da riqueza do país para os mais ricos do país e do mundo. E entregando nossas riquezas naturais para o setor privado e as multinacionais. Isso mostra claramente a quem este governo serve em primeiro lugar.

Nota do autor:

1.- ASSIS, José Carlos de (2005). A Macroeconomia do pleno emprego. In: SICSÚ, João, PAULA, Luiz Fernando de, MICHEL, Renaut (orgs.) (2005). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com eqüidade social. Barueri, Manole; Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer, p. 77-93.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O Complexo de Sansão (Immanuel Wallerstein)


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Wallerstein sustenta: crise do sistema-mundo capitalista produz divisão rara entre poderosos e gera enorme instabilidade. Será preciso definir projetos alternativos
Por Immanuel Wallerstein | Imagem: Francisco Goya, Duelo com porretes (1823, detalhe) | Tradução: Antonio Martins
Na Bíblia, há a famosa lenda do herói Sansão. São muitas as interpretações sobre seu significado; mas Sansão, um israelita cuja força era originária de Deus, põe abaixo o templo os inimigos filisteus (também muito poderosos), morrendo no processo. Seu sentido, imagino, é dizer que um ato aparentemente irracional (Sansão morre) pode ser ao mesmo tempo heróico e inteligente, porque se converte na saída (possivelmente a única) para derrotar um inimigo forte e “salvar seu povo”.
Parece que temos um punhado de supostos Sansões, atualmente. Estão bloqueando, ou procurando bloquear, o que consideram ser “compromissos” perigosos com o inimigo. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, está dizendo que “um mau acordo é pior que nenhum acordo”. Ele refere-se ao que enxerga como o acordo entre os EUA e a Rússia, em torno da Síria; e a um possível acordo entre Washington e Teerã. Na Colômbia, o ex-presidente conservador [Alvaro Uribe] está investindo contra seu sucessor, também conservador [Juan Manuel Santos], porque este está em negociações com as FARC, sob os auspícios de Cuba e do Brasil.
E, é claro, temos as não-negociações maciças, em curso nos Estados Unidos. Nelas, os membros de ultra-direita do Congresso, em especial na Câmara dos Representantes, estão usando sua força para vetar qualquer comprimosso com as forças inimigas lideradas pelo presidente Obama e o Partido Democrata. Veem como “inimigo interno” todos os republicanos que buscam algum tipo de “compromisso”.
Não é difícil mostrar que todos estes Sansões estão botando a casa abaixo não apenas sobre seus inimigos mas também sobre si mesmos. Para eles, contudo, mesmo que isso seja verdadeiro, há um timing a considerar. Estão convencidos de que precisam agir agora, enquanto têm forças para fazê-lo. Do contrário, o inimigo vencerá e poderá institucionalizar – ou manter – o mal que estaria sendo cometido.
Este tipo de luta ideológia, impermeável ao chamado pragmatismo, não foi inventado nos últimos dez ou vinte anos. É tão velho quanto a socialização humana. Mas assumiu uma característica especial agora, precisamente porque estamos nos espamos de uma crise estrutural em nosso sistema-mundo capitalista. Numa crise estrutural, pode-se esperar dois grandes fenômenos: enorme confusão intelectual e, como consequência, mudanças selvagens de atitude, que conduzem, por sua vez, a guinadas ainda mais bruscas.
Como há cada vez mais grupos prontos para botar o templo abaixo, mesmo que sejam também esmagados, quem parece mais confuso e indeciso sobre o que fazer é o chamado Establishment. Foram-se os dias em que ele podia cinicamente manobrar e obter o que queria. Não é mais verdade que “plus ça change, plus c’est la même chose” – ou seja, que as mudanças são apenas aparentes.
Que podemos fazer, os que buscamos mudanças reais, um sistema-mundo distinto do que prevaleceu ao menos nos últimos 500 anos? A primeira coisa é não nos prendermos aos debates e guinadas selvagens entre os Sansões e os Establishments. Realmente não importa qual deles vença, no curto prazo.
A segunda coisa que deveríamos fazer é não disperdiçar toda nossa energia lamentando o fato de que quem deseja mudanças fundamentais (a chamada esquerda global) não parece estar unida, ou ter clareza sobre seus objetivos, ou envolvida em ações e organização urgentes. O fato é que ela própria está envolta na confusão, pelo menos no momento.
O fato de o templo estar caindo é algo muito além de nossas forças para contê-lo – mesmo que o desejássemos. Mas não somos obrigados a permanecer sob a avalanche das rochas. Precisamos tentar escapar. Podemos estar certos de que os membros mais poderosos do Establishment também estão tentando.
Mas como escapar, e com que objetivos? Também nós precisamos ter senso detiming, e lembrar a diferença entre o curto prazo (três anos ou menos) e o médio prazo (os próximos vinte a quarenta anos).
No curto prazo, as pessoas (os 99%) estão sofrendo. Precisamos lutar para reduzir sua dor, uma luta que deve assumir múltiplas formas. Podem ser pressões por leis, ou decisões de órgãos do Estado, que ajudem de modo imediato os necessitados, ou evitem danos maiores ao ambiente, ou protejam direitos de populações como os indígenas ou as chamadas minorias sociais.
Mas no médio prazo, precisamos tentar esclarecer a natureza das estruturas que queremos construir, se formos bem-sucedidos na encruzilhada que nosso sistema-mundo atravessa. Precisamos tentar entender não apenas os objetivos de médio prazo da direita mundial, mas a natureza de suas profundas divisões internas. A chamada esquerda está profundamente dividida, também. Precisamos trabalhar para superar isto.
 Nada é fácil, neste tempo de transição de um sistema-mundo para outro. Mas tudo é possível – ainda que inteiramente incerto.
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