quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gata, eu quero ver você parindo! (Ligia Moreiras Sena)

Aviso 1: Contém inúmeras vezes a palavra "vagina".
Aviso 2: Contém fotos de cicatrizes. Seja forte. Coragem.

"Então eu olhei aquela foto, aquela mãe com um bebê saindo de sua vagina, feliz, radiante, olhos arregalados, boca aberta, pai eufórico, parteira amparando, mãe segurando as costas do bebê em nascimento, e pensei: 'Tem alguma coisa errada... Por que eu tenho dois filhos e nunca imaginei que isso seria possível? Por que eu não sabia que parto não precisava ser daquele jeito azul, branco, frio?"
"Cheguei na casa da minha vizinha pra levar uns livros que ela tinha me emprestado. A filha dela de 16 anos estava assistindo um parto no Youtube! Um parto parto mesmo, mulher gemendo, pernas abertas, vagina à mostra. Choquei. Eu  nunca tinha visto um parto na vida! Fiquei meio sem jeito... e achei estranho estar sem jeito. Por que eu estava sem jeito de ver uma mulher dando à luz pela vagina? Eu não tenho filho nem vou ter, mas era só uma vagina, uma mulher em diferentes posições mas uma vagina. Pedi pra menina se eu podia ver também, ela disse que sim, fiquei por ali. Aí nasce o bebê... Eu não sei como nem porquê, mas fiquei emocionada. Eu nunca tinha visto um bebê sair pela vagina, nem a reação de uma mulher num nascimento daquele. Comecei a chorar. Senti uma alegria... Foi aí que comecei a ler sobre parto, caí no seu blog, caí na blogosfera partolesca, curto muito. Minha cunhada engravidou e tenho muito orgulho de ter sido eu a orientá-la durante a gestação, porque ninguém na minha família conhecia essas coisas. Nasceu num super parto lindo, com meu irmão e eu do lado. 'Parto vaginal', eu sempre conto, porque aprendi a importância disso".
"Foi de tanto ver foto de parto bonito que percebi que tinha sofrido uma violência irreparável".
"Minha filha tem 8 anos e adora ver vídeo de parto comigo. A gente faz "Óinnn" quando o bebê chega, a gente se abraça, é lindo. Quero mostrar pra ela que parto faz parte da vida, é natural, ao contrário do que foi comigo".
"Durante a gestação dela, quando a gente contava que eu estaria junto, que iria ver meu filho nascer, que iria ajudá-la no trabalho de parto, todo mundo da família me repreendia, dizendo que era ruim, que eu não veria minha esposa mais da mesma maneira, que as partes íntimas dela estariam diferentes, enfim. Perguntavam como eu tinha coragem, que grande parte dos homens desmaiava, ou não aguentava e saía. Realmente, na minha família, quase todos os homens passaram mal nos nascimentos dos filhos, mas porque ver cesárea deve mesmo ser foda. E todo mundo teve bebê por cesárea na minha família. Não, minhas avós não, mas o pessoal novo, todo mundo. Imagina! Cortar 7 camadas de tecido, músculo, sei lá mais o que, sangue, ponto, deve ser difícil. Mas não era o nosso caso, já que o Igor ia nascer naturalmente, por via vaginal. E eu fiquei, ajudei e tal. Só não ajudei mais porque chorei que nem menino pequeno. O Igor saindo e eu chorando de alegria. Minha esposa contou depois que eu apertei tanto os joelhos dela que ela até desconcentrou da dor do expulsivo, rsrsrs. E vi meu filho sair da vagina da minha mulher. Eu realmente nunca mais a vi como antes... Sempre tive muita admiração por ela. Ter visto meu filho nascer, ali, na dura, na real, me fez olhar com ainda mais admiração, com quase reverência. Tava ali uma coisa que eu não sabia fazer e nunca saberia, e ela fazia como se sempre tivesse feito: deixar meu filho sair. Que mulher, eu pensava. Num segundo estava dizendo que doía e no outro, tendo o filho parido no braço, estava rindo às gargalhadas. Dá até uma coisa contando..."

Infelizmente, por conta do meu trabalho/pesquisa atual, vejo/leio muito mais sobre partos trash repletos de violências terríveis e sobre cesarianas desnecessárias, em tom de revanche médica e repleta de tecnologia fria e impessoal, do que eu gostaria. Vejo fotos de mulheres amarradas à maca, ou inconscientes no exato momento do nascimento do filho, ou com o bebê no braço e um choro de quem se viu violentada. Tudo isso no momento que era para ser de extrema beleza, alegria, êxtase.
Vejo e leio relatos infindáveis da mais genuína dor, de mulheres que foram enganadas, humilhadas, xingadas, ludibriadas e que perderam o parto do próprio filho e que hoje carregam cicatrizes físicas e emocionais que não foram frutos de uma escolha.

Então, quando abro a rede social e dou de cara com umavagina parindo, sinto uma puta alegria. Quando, nos grupos maternos, alguém posta a foto do nascimento ou escreve: "Eu pari!", é como se uma pequena dose do antídoto necessário pra dar conta do tranco de estudar a violência no parto me fosse dada.
Por tudo isso, tenho a exata noção das coisas: sei exatamente qual dessas circunstâncias - parto violento x vaginaparindo com moça sorrindo - representa a visão do inferno, e não é a segunda alternativa. Nunca pensei na vagina como uma visão do inferno... Por que eu pensaria isso sobre a minha própria vagina, uai?! Gosto dela. Tenho carinho por ela. Somos amigas, puxa vida. Amigas muito íntimas. E entendo a amizade das outras mulheres com as próprias vaginas. A vagina alheia não é uma inimiga para mim. E seria ótimo se todo mundo vivesse essa love story vaginal. Talvez houvesse muito mais respeito por aí. Além, claro, de evitar coisas como isso que aconteceu, de chegarmos ao ponto de alguém publicar, num jornal de grande circulação, aos quatro ventos, o seu ódio pela vagina alheia. 

Li o texto da Tati Bernardi publicado na Folha de São Paulo com o título de "Gata, eu não quero ver a sua xota" e depois vi uma foto em que ela aparecia abraçada em um pênis de pelúcia (escrever "pênis de pelúcia" me dá uma super vontade de rir, acho que é a sonoridade da expressão). A primeira coisa que pensei, assim de cara, foi: "Caraca... Qual será o problema dela com a vagina, gente?!".
Aí fui ler o texto de novo.
E ela não usa a palavra VAGINA uma única vez!
Usa: xota; xoxota; xuranha; prexeca sofrida; ximbica e xereca.
Zero vagina.
Vagina zero (parece até o nome de um movimento... Imagina: '''Vagina Zero - Movimento de Valorização da Direita no Brasil").

Então eu vim aqui apenas para fazer um pedido: GATAS, EU QUERO VER VOCÊS PARINDO! 
Tá, eu sei que não sou ninguém, não publico em jornal de grande circulação e tal. Mas por favor, gatas, eu quero ver vocês parindo!
Não liguem para a Tati Bernardi. Alguma coisa lá não tá legal. Compaixão, minha gente!

Muita gente que está hoje na luta pela humanização do parto - alheio ou próprio, vagina sua ou vagina 
alheia - está nessa justamente por um dia ter visto uma foto de parto, um vídeo de parto, onde - olha que surpresa! - tinha umavagina parindo. Como as pessoas dos relatos que abrem esse texto. Não é surpreendente que encontremos vaginas em partos ainda hoje?! Muito surpreendente. Principalmente em um país onde os hospitais (aqueles lá mesmo que ela mencionou, os que "poderiam estar num guia de hotéis três estrelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu confio: com salão de beleza e "concerto de piano" na recepção") batem os 98% de cesarianas. 
Ver um parto vaginal é, mesmo, um evento em extinção. E eu, como bióloga que sou, tenho uma queda por salvar o que está em extinção. 
Então, repito: gatas, não escondam suas vaginas parindo! Nós queremos ver!
Postem suas fotos, subam seus vídeos, mostrem seus partos!
Marquem o tio Miltinho de Passos de Itu! Deem um print na alegria que a vó Carminha de Serra Negra manifestou na timeline dela por ver que você deu a luz como ela! 
Libertem suas vaginas paridas!

E, moça, você que é uma escritora pop, por favor: deixe em paz a vagina alheia! Ela não te fez nada...

Ah, sim. Antes de finalizar. Ver vaginas parindo na rede social, em um país tão moralista quanto o nosso, de mentalidade tão misógina, onde mulheres são constrangidas por amamentar em público, onde dar à luz naturalmente é ainda, muito infelizmente, um privilégio, é um grande avanço. Mostra que - sim! - estamos no caminho certo. Principalmente quando lembramos que cada foto de vagina parindo que vemos é uma cicatriz a menos. Especialmente aquelas que não foram desejadas.




Disponível em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2014/04/gata-eu-quero-ver-voce-parindo.html

domingo, 20 de abril de 2014

São Paulo, Zona Sul: onde a Tarifa Zero já existe (Débora Lopes)

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Em Marsilac, bairro quase rural, população articula, com apoio do Movimento Passe Livre, micro-experiência de acesso gratuito ao transporte público

Por Débora Lopes | Fotos Felipe Larozza, na Vice

O taxímetro acusava uma fortuna de três dígitos quando chegamos em Marsilac, o bairro mais afastado do marco zero de São Paulo. Celular sem sinal, chão de terra batida, gado, linha de trem, bares deslocados, cães de estrada. O extremo sul da cidade é ermo e bucólico — parece interior. Mas a rotina de quem mora lá e precisa se locomover é sôfrega. A estrada é precária, à noite, nem todas as luzes funcionam e, rá!, não existe linha de ônibus. Exatamente por isso, encorajados pelo saudoso Movimento Passe Livre (MPL), os moradores da região criaram uma comissão, alugaram uma van e mostraram para a subprefeitura de Parelheiros, responsável pela área, com quantos passageiros se faz um busão com tarifa zero.

Mal descemos do táxi e o Caio Martins, do MPL, perguntou “Não se perderam? Várias pessoas da imprensa se perderam para chegar e desistiram”. Ou seja, se andar de carro é complicado, imagina para quem está a pé.


Logo na entrada da van, que eu prefiro chamar de pequeno busão, uma placa anunciava: LINHA POPULAR. TRAJETO: MAMBU X MARSILAC. TARIFA ZERO. HOJE O POVO É QUE VAI MANDAR NO TRANSPORTE! Não só o fato de a passagem ser gratuita era incrível, mas também a provocação feita à subprefeitura, que aprovou a criação de uma linha de ônibus, mas nunca tirou o projeto do papel. Inclusive, dei uma ligada para a assessoria de imprensa perguntando sobre a estrada, sobre uma ponte totalmente zoada e perigosa e sobre a linha de ônibus fantasma, mas eles disseram que às cinco da tarde é difícil encontrar as pessoas que poderiam responder por isso. Ué, meu Brasil lindo, horário comercial não existe para funcionário público?

E lá fomos nós fazer o trajeto. O clima dentro do pequeno busão (escrevo como quiser) era animado. Senhoras, senhores, crianças, cortinas vermelhas e azuis, jornalistas, fotógrafos. Pouca ventilação, um calor do cão, mas todo mundo feliz e balangando estrada adentro.

Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores.

“Aqui, as pessoas andam cerca de 15 km. Não tem lazer, educação, cultura. As pessoas são isoladas. Até existem coisas gratuitas, mas não temos como nos locomover. Os jovens conseguem emprego, mas não conseguem transporte para ir trabalhar. Eles perdem a motivação”, me contou Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores. Conversei com algumas mulheres sobre os principais empecilhos causados pela distância enorme entre tudo o que existe na região e a falta de transporte. A maioria falou sobre como é difícil ir até o posto de saúde. “Uma senhora cardíaca teve um infarto e morreu porque a ambulância do posto não pôde resgatá-la”, me disse uma delas. Quem não tem carro, se vira como dá. Alguns encaram jornadas de três a quatro horas a pé. Em emergências, geralmente se paga 20 reais por uma carona com o vizinho motorizado.


O momento mais absurdo e lisérgico do rolê no pequeno busão foi quando todos os passageiros tiveram que descer e atravessar uma ponte estreita a pé, esquema Ensaio Sobre a Cegueira. A construção do negócio encontra-se tão precarizada que é perigoso passar por ali com um veículo pesado. A questão é que a ponte não tinha nenhuma cerca e, pasmem, havia buracos no meio dela. Sim, buracos enormes. Sem contar que uma madeira improvisada sustentava boa parte do peso daquela lamentável construção sucateada.

Ali, nem todo mundo sabia exatamente que as manifestações de junho foram puxadas pela garotada do MPL e resultaram na revogação do aumento da tarifa do transporte coletivo. Mas todos pareciam gratos, inclusive a Maria. “Eles contribuem muito com nós. Quando pensamos em desistir, eles nos apoiam e dizem ‘isso é um direito de vocês’.”


Infelizmente, o pequeno busão autogestionado onde todos são bem-vindos não irá acontecer novamente, mas a comissão de moradores e o MPL já chamaram um novo encontro para o dia 19, sábado. Pode ser uma pressão singela, mas se tem a mão dos jovens arautos do transporte coletivo, provavelmente será contínua.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17154)

Galeano fala sobre Literatura e Política (Cynara Menezes)

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Em entrevista na Bienal do Livro de Brasília, ele debate esquerda (no poder e nas letras…), futebol, idade, câncer e… Mujica!

Por Cynara Menezes, em Socialista Morena

Em 1998, entrevistei a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) e ela me confessou sentir “antipatia mortal” por O Quinze, o clássico da literatura brasileira que publicou aos 20 anos, em 1930, e que, desde então, seria sua “obra mais importante e mais popular” (tudo quanto é enciclopédia se refere assim ao livro). O mesmo acontece com As Veias Abertas da América Latina e o escritor uruguaio Eduardo Galeano.  Publicado em 1971, quando Galeano tinha 30 anos, a obra até hoje o persegue. É sempre nomeado como “o autor de As Veias Abertas…“, o que, pelo visto, o incomoda –mesmo porque tem mais de 30 livros além dele.

Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira 11 em Brasília, onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal do Livro e da Leitura, Galeano ouviu provavelmente a milionésima pergunta sobre Veias Abertas. “Faz 40 anos que você escreveu As Veias Abertas da América Latina. Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um português bastante razoável: “Seria para mim impossível responder a uma pergunta assim, especialmente porque, depois de tantos anos, não me sinto tão ligado a esse livro como quando o escrevi. O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a me aproximar mais à realidade humana em geral e em especial à economia política – porque As Veias Abertas tentou ser um livro de economia política, só que eu ainda não tinha a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo escrito, mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz de ler de novo esse livro, cairia desmaiado. Para mim essa prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem alguma cama livre?’, perguntaria.” Risadas.

Aproveito e emendo: mas o que você achou de Chávez dar o livro para o Obama? Obama entenderia As Veias Abertas…? “Nem Obama nem Chávez”, responde Galeano para gargalhada geral. “Claro, porque ele entregou a Obama com a melhor intenção do mundo – Chávez era um santo, cara mais bondoso que esse eu não conheci –, mas deu de presente a Obama um livro em uma língua que ele não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco cruel.”

Eu nunca tinha visto o grande escritor uruguaio de perto. É mais baixo do que imaginava, cerca de 1m70. Bastante frágil, aparenta ter mais do que seus 73 anos. Ele mesmo comenta que a maioria dos escritores é de esquerda e, como tal, chegados a uma boemia e isso não faz bem à saúde… Uma menina pergunta: “A idade não é boa para os jogadores de futebol. E para os escritores?” Galeano discorda. “Depende. Tem velhos muito mais jovens que os velhos velhíssimos e tem velhos que você acha que estão esperando a morte e surpreendentemente acabam ganhando uma partida por 8 a zero. Não depende da biologia nem do prognóstico dos profetas. Não depende de ninguém. O melhor que o futebol tem como esporte – a festa que o futebol é, a festa das pernas que jogam, a festa dos olhos – é a capacidade de surpresa, de assombro. Na verdade ninguém sabe o que vai acontecer. E menos ainda os especialistas. Aqueles doutores do futebol são seres temíveis, perigosíssimos para a sociedade e o mundo em geral.”

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Outro jornalista espeta: “Por que a esquerda não deu certo na América Latina?” Galeano não se faz de rogado: “Algumas vezes deu certo, algumas vezes, não. A realidade é mutável, a realidade política e todas as outras –por sorte. Senão seríamos estátuas, estaríamos congelados no tempo. Não é verdade que a esquerda não deu certo. Deu certo e muitas vezes foi demolida por ter dado certo, por ter tido razão, porque o que a esquerda predicou, em certo momento na América Latina, resultou ser a verdade, então foi punida. Punida pelos golpes de Estado, ditaduras militares, períodos prolongadíssimos de terror de Estado, crimes horrorosos cometidos em nome da paz social, do progresso. Da convivência democrática, imaginem! Que democracia e que convivência são essas? Tinham que perguntar: ‘do que está falando, senhor?’ As coisas são muito mais complexas do que parecem. Em alguns períodos, também, a esquerda comete erros gravíssimos e em outros, não, faz o que deve ser feito da melhor maneira, até além do que o próprio movimento de massas estava esperando. A realidade sempre tem esse poder de surpresa. Te surpreende com a resposta que dá a perguntas nunca formuladas. E que são as mais tentadoras. O grande estímulo para a vida está aí, na capacidade de adivinhar possíveis perguntas não formuladas.”

Galeano está cansado, foram muitas horas de viagem para chegar à capital federal, e quer encerrar a entrevista. Eu protesto: “Mas e Mujica? Você não vai falar de Mujica?” Ele não resiste e se senta de novo. “Estou meio cansado, estou fatigado de falar de Mujica, porque todo mundo fala dele! Até em outros planetas se fala de Mujica. Em Marte, Júpiter… É incrível a capacidade de ressonância que Mujica tem. E ele é muito meu amigo, já faz muitos anos. A única coisa que posso fazer para incorporar um grão de areia a esta praia imensa de Mujica caminhando pelo mundo seria contar uma piccola história que dá ideia da qualidade humana do personagem.”

E começou a narrar, saborosamente, como é de seu feitio:

“Faz uns quatro anos –não tenho interesse em lembrar direito a data– fui operado de câncer. Foi um câncer sério, agudo. Tomei uma anestesia muito forte, dessas que não desaparecem rápido. E estava sozinho na cama do hospital, esperando que passasse o efeito da anestesia. Ou seja, mais dormido do que acordado. Sem saber muito o que acontecia, onde estava, delirando. E neste período, estando sozinho em uma cama –sozinho, não, acompanhado pelo câncer, mas o câncer não é um amigo confiável. Não te recomendo. Bem, estava eu ali e volta e meia delirava. Como sou muito futeboleiro, um religioso da bola, tinha delírios futebolistas que me levaram aos anos de infância, quando jogava na rua, com bolas improvisadas, feitas com trapos velhos. E em uma dessas fugas, comecei a bater bola. Como se fosse uma múmia egípcia que tinha errado de domicílio, jogando futebol contra ninguém e sem bola nenhuma, só na imaginação. Chutava a bola e ela voltava, chutava e ela voltava. Tudo debaixo do lençol. E nada, a bola continuava, como se estivesse morta de riso da minha estupidez de achar que podia com ela. ‘Não, você não pode comigo’. Numa dessas, senti um peso em cima dos meus joelhos. Aí começo a recobrar a realidade e vejo alguém que conheço, uma voz que reconheço, de um amigo. E pergunto:

–O que você está fazendo aqui?

E ele:

–Isso é maneira de receber um amigo?

–Não importa, quero saber o que você faz aqui. Está doente também?

–Que é isso, estou saudabilíssimo. O enfermo é você.

–Estou sabendo. Obrigado pela notícia, mas já estou sabendo.

–O doente é você, está fodido, irmão. Eu vim te visitar. Agora, não sabia que se recebia um amigo assim, chutando-o, chutando-o e chutando-o. Não é muito educado.

Continuamos nessa até que eu falei:

–Olhe, chega. Sua função não é estar aqui brincando comigo. Você é o presidente da Repoública e sua função é governar. Mujica, você é o presidente! Vai governar este país já! Estamos precisando de sua participação ativa, desinteressada, importantíssima para o nosso povo. Não perca mais tempo comigo.

–Ah, bela maneira de ser amigo, hein?

–Será bela ou será feia, mas é a única maneira para você. Você é o presidente! Além disso, para piorar, todo mundo gosta de você e quer que continue sendo presidente por uns 300 anos mais. Se você não gosta, foda-se.

E aí acabou.”

Na saída, consigo falar a Eduardo Galeano do enorme prazer que sinto em conhecê-lo pessoalmente e lhe conto que adoro O Livro dos Abraços. Ele olha para mim e diz: “Eu também”.

Ufa.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17176)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Quando a catástrofe climática vira produto financeiro (Razmig Keucheyan)

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Superfuracão Hayian, 2013, Filipinas: 5 mil mortos, 1,5 milhão de desabrigados e mais lenha na fornalha das finanças globais


“Derivativos climáticos”, “obrigações de catástrofe”, “bolsa de troca de riscos”… Em torno dos novos desastres naturais surge universo de oportunidades e acumulação

Por Razmig Keucheyan*, no Le Monde Diplomatique

Em novembro de 2013, o “supertufão” Haiyan atingiu o arquipélago das Filipinas: mais de 6 mil mortos, 1,5 milhão de lares destruídos ou danificados, US$ 13 bilhões de danos materiais. Três meses depois, duas corretoras privadas de seguros, Munich Re e Willis Re, acompanhadas por representantes da Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), apresentavam aos senadores filipinos um novo produto financeiro desenvolvido para cobrir eventuais déficits do Estado em termos de gestão de desastres climáticos: o Philippines Risk and Insurance Scheme for Municipalities (Prism), um tipo de título com altos rendimentos que os municípios ofereceriam, em caso de catástrofe, a investidores privados [1]. Estes últimos se beneficiariam de taxas de juros vantajosas subsidiadas pelo Estado, mas, caso houvesse sinistro de uma força ou desastre predefinidos, perderiam seus investimentos.

“Derivativos climáticos” (weather derivatives), “obrigações de catástrofe” (catastrophe bonds) e outros produtos de seguro climático fazem muito sucesso. Além dos países asiáticos, o México, a Turquia, o Chile e até mesmo o estado norte-americano do Alabama, duramente afetado pelo furacão Katrina em 2005, recorreram a eles de uma forma ou de outra. Para os promotores desses instrumentos, trata-se de confiar ao mercado financeiro os seguros de riscos naturais, inclusive os prêmios; avaliações de ameaças e ressarcimento das vítimas. Mas por que o mercado financeiro cobre danos causados pela natureza justamente agora, que ela mostra sinais cada vez mais claros de desgaste?

Durante muitos séculos, a Terra forneceu ao sistema econômico matérias-primas e recursos naturais a preços baixos. O ecossistema também conseguia absorver os dejetos da produção industrial. Mas essas duas funções não se realizam mais tão facilmente. Não só o preço das matérias-primas e da gestão de dejetos aumenta, como a multiplicação e o agravamento dos desastres naturais fazem subir o custo global dos seguros. Isso exerce uma pressão para diminuir as taxas de lucro dos atores industriais. Desse modo, a crise ecológica não é apenas o reflexo, mas também a provável causadora de uma crise do capitalismo.

Nesse contexto, a “financeirização” parece oferecer uma escapatória: as companhias de seguros e de resseguros (ver boxe) colocam em jogo novas formas de dissipar o risco, das quais a principal é a titularização de riscos climáticos − uma transposição para a esfera meteorológica dos mecanismos testados com o sucesso que conhecemos no sistema imobiliário americano…

Entre os produtos mais fascinantes desse novo arsenal financeiro está o cat bond, diminutivo de catastrophe bond, ou seja “obrigação de catástrofe”. Uma obrigação é um título de crédito ou uma fração de dívida liquidável em um mercado, e sujeita a uma cotação. A particularidade dos cat bonds é que eles não surgem de uma dívida contraída por um Estado para renovar suas infraestruturas ou por uma empresa para financiar sua inovação, e sim da natureza e seus perigos. Eles abrangem uma eventualidade que pode ocorrer, mas sem certeza; sabe-se apenas que ocasionará desgastes materiais e humanos importantes.

A partir daí, trata-se de dispersar os riscos naturais no espaço e no tempo, tornando-os financeiramente insensíveis. Conforme os mercados se desdobram em escala mundial, esses riscos ficam em evidência máxima.

Esse prodígio da engenharia financeira nasceu em 1994, logo após uma série de desastres com custos fora do normal (o furacão Andrews na Flórida em 1992, o terremoto de Northridge na Califórnia em 1994) obrigar a indústria de seguros a encontrar novos recursos. Desde então, foram emitidos cerca de duzentos cat bonds, 27 apenas em 2007, totalizando US$ 14 bilhões.

Furacão no Caribe vs. tsunami na Ásia

Como todo título financeiro, as obrigações climáticas têm de se submeter ao crivo das agências de classificação de risco – Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s –, que geralmente dão a eles a medíocre nota BB, o que significa que eles possuem risco. O valor de um cat bond flutua no mercado em função da maior ou menor probabilidade de que a ameaça venha a acontecer e em função da oferta e procura do título em questão. Acontece que esses títulos continuam circulando quando uma catástrofe se aproxima e mesmo durante seu desenrolar; por exemplo, durante uma onda de calor na Europa ou de um furacão na Flórida. É o que os traders especialistas chamam de live cat bond trading – comércio ao vivo de títulos [2], o que faz sentido em razão de sua composição característica.

Uma bolsa de valores de títulos chamada Catastrophe Risk Exchange (Catex), localizada em Nova Jersey, surgiu em 1995. Um investidor excessivamente exposto aos tremores de terra californianos poderá diversificar seu portfólio trocando seus cat bonds por outros de furacões no Caribe ou de tsunamis no Oceano Índico. A Catex também serve para fornecer base de dados a seus clientes, permitindo a avaliação de riscos.

Protagonistas do dispositivo, as agências de modelização se rendem ao catastrophe modeling, ou seja, à modelização das catástrofes. Seu objetivo é calcular a natureza e reduzir quanto for possível a incerteza. Existe um pequeno número de agências de modelização de negócios no mundo, a maioria delas norte-americana: Applied Insurance Research (AIR), Eqecat e Risk Management Solutions (RMS). Em função de variáveis como velocidade dos ventos, tamanho dos ciclones, temperaturas e características físicas da zona em questão (material utilizado na construção, tipo de terreno, população), elas avaliam o custo de uma catástrofe, bem como as indenizações a serem pagas pelas seguradoras. E, consequentemente, determinam o preço do cat bond.

A maioria das obrigações desse tipo emitidas até hoje partiu de seguradoras e resseguradoras. Mas, desde meados dos anos 2000, os próprios países colocam no mercado cat bonds “soberanos” – da mesma forma que se fala em dívida soberana. Essa tendência, lançada pelos teóricos contemporâneos de seguros advindos da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, uma das escolas de comércio mais prestigiadas do mundo, é fortemente encorajada pelo Banco Mundial e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Esse deslocamento ilustra a ligação estreita que se estabelece entre a crise de orçamento dos países (endividamento e queda de suas receitas) e a crise ambiental. Por causa da dificuldade que atravessam, os países se mostram cada vez menos capazes de assumir o custo dos seguros contra desastres climáticos pelos meios convencionais, ou seja, principalmente por impostos. E essa incapacidade fica a cada dia mais evidenciada conforme aumentam o número e o poder dos cataclismos causados pelas mudanças climáticas. Para governos em apuros, a financeirização dos seguros de riscos climáticos representa um sopro de oxigênio: a titularização como substituto ao imposto e à solidariedade nacional. Esse é um ponto de fusão entre a crise ecológica e a financeira, como mostra o exemplo mexicano.

Furacões no Golfo do México, terremotos, deslocamentos de terra ou erupções do Popocateptl: o México parece cercado por ameaças “naturais”. Segurador em última instância em caso de catástrofes, o Estado indeniza as vítimas com o orçamento federal, ou seja, graças aos impostos, segundo o princípio da solidariedade nacional consubstancial ao Estado-nação moderno. Em 1996, o governo lançou o Fondo de Desastres Naturales (Fonden), destinado na época a fornecer ajuda de urgência aos sinistros e permitir a reconstrução das infraestruturas. Esse dispositivo funcionou até uma série de catástrofes com custo exorbitante se abater sobre o país. Em 2005, o governo federal gastou US$ 800 milhões para cobrir esses danos, quando só tinha… US$ 50 milhões para gastar. (3)

Critérios muito rigorosos

A ideia de titularizar o seguro de riscos de tremores de terra se concretizou no ano seguinte, com o incentivo do Banco Mundial. Em 2009, o país decidiu incluir no dispositivo os furacões, o que deu origem a um programa “multicat”, que cobria uma multiplicidade de riscos. Estavam presentes na mesa de negociações somente pessoas de alto gabarito: o ministro das Finanças do México, representantes da Goldman Sachs e da resseguradora Swiss Re Capital Markets, encarregados de vender o programa aos investidores. A Munich Re também estava presente, bem como dois grandes escritórios de advocacia norte-americanos, Cadwalader, Wickersham & Taft e White & Case. A Applied Insurance Research (AIR), agência de modelização encarregada de estabelecer os parâmetros para o lançamento da obrigação – o nível de gravidade no qual os investidores perderiam seu dinheiro –, elaborou dois modelos: um para os terremotos e outro para os furacões. Depois de estar registrado nas Ilhas Cayman pela Goldman Sachs e pela Swiss Re, o cat bond foi vendido aos investidores em turnês de promoção organizadas pelos bancos.

Cada vez que uma catástrofe abate o México, a agência AIR determina se o acontecimento corresponde aos parâmetros estabelecidos pelos contratantes. Se for o caso, os investidores devem colocar o dinheiro à disposição do Estado do México. Caso contrário, não gastam nada e continuam lucrando com o seguro.

Em abril de 2010, um terremoto arrasou o estado da Baja California, mas seu epicentro se encontrava ao norte da zona delimitada pelo cat bond. Resultado: o dinheiro da obrigação não foi liberado, e o México continuou pagando juros. Da mesma forma, quando um furacão atingiu o estado de Tamaulipas dois meses depois, sua força foi inferior ao nível predeterminado, e o México não viu a cor dos dólares. Os critérios são tão rigorosos que apenas três dos duzentos cat bonds emitidos em quinze anos foram acionados (The Economist, 5 out. 2013).

No Sudeste Asiático, região particularmente exposta, a introdução de cat bonds soberanos se opera segundo modalidades particulares [4]. Na Indonésia, maior país muçulmano do mundo, os princípios de seguros islâmicos, o takaful, se aplicam. Sem poder ignorar que o setor apresenta após uma década um crescimento anual de 25% (contra os 10% obtidos pelo mercado tradicional de seguros), a resseguradora Swiss Re se esforça para reforçar sua sharia credibility, segundo sua própria expressão [5]. Os países em desenvolvimento são com frequência os mais duramente afetados por catástrofes climáticas, tanto por razões geográficas como por não possuírem os mesmos meios de enfrentá-las que os países ocidentais. O aumento do nível do mar atinge tanto a Holanda como Bangladesh, mas é preferível enfrentar as ondas em Amsterdã a encará-las em Munshiganj. [6]

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As obrigações de catástrofe – ou, em outro gênero, os créditos de carbono – não são os únicos produtos financeiros ligados a processos naturais. Os derivativos climáticos, por exemplo, propõem aos investidores apostas em relação ao tempo que faz, ou seja, sobre as variações da meteorologia que não representem uma interrupção no curso normal da vida social. Desde eventos esportivos a colheitas, passando pelo granizo, concertos de rock e variações no preço do gás, bem como diversos outros aspectos das sociedades modernas são influenciados pelo tempo. Estima-se que um quarto da riqueza anual produzida pelos países desenvolvidos esteja suscetível a sofrer impactos em relação ao tempo.7 O princípio do derivativo climático é quase infantil: uma quantia financeira é liberada para o lucro de quem o adquiriu caso as temperaturas – ou algum outro parâmetro meteorológico – superem, ou não atinjam, um nível predeterminado; por exemplo, se o frio – e, portanto, os gastos com energia – excede certo nível ou se a chuva restringe a frequentação de um parque de diversões durante o verão.

No ramo agrícola, alguns derivativos têm como subjacente – o ativo real sobre o qual um instrumento financeiro versa – o tempo de germinação das plantas. Um índice como o “grau por dia de crescimento” (growing degree days) mede a diferença entre a temperatura média que uma plantação necessita para amadurecer e a temperatura real, ativando o pagamento de determinada quantia caso seja ultrapassado um nível estabelecido. Em caso de um swap (“troca”), duas empresas afetadas de maneira oposta pelas variações climáticas podem decidir se segurarem mutuamente. Se uma empresa de energia perde dinheiro em caso de inverno pouco rigoroso e o mesmo ocorre com uma empresa de eventos esportivos em caso de inverno muito rigoroso, elas se cobrem com um montante predeterminado conforme o termômetro sobe ou desce.8

Os ancestrais dos derivativos climáticos apareceram na agricultura no século XIX, principalmente nos Estados Unidos, no Chicago Board of Trade. Eles tratavam de matérias-primas como algodão e trigo.9 No momento da liberação e da aglutinação dos mercados financeiros, nos anos 1970, e da proliferação dos derivativos, os subjacentes potenciais se multiplicaram. Pioneiras nesse ramo, as multinacionais de energia, entre elas a Enron, encontraram nos derivativos um meio de “suavizar” seus riscos de perdas.10 Desse modo, após o inverno de 1998-1999, particularmente brando nos Estados Unidos por causa do fenômeno La Niña, algumas termelétricas decidiram utilizar os derivativos para se “cobrir” – para essas empresas, as flutuações de alguns graus implicavam variações financeiras colossais. A partir de 1999, os derivativos climáticos passaram a ser trocados no Chicago Mercantil Exchange, historicamente especializado em produtos agrícolas. O surgimento desses produtos financeiros está atrelado ao movimento de privatização dos serviços meteorológicos, principalmente nos países anglo-saxões: são eles que, em última instância, determinam o nível que precisa ser atingido para que um derivativo seja acionado.

Em um artigo intitulado “Pourquoi l’environnement a besoin de la haute finance” [Por que o meio ambiente precisa da alta finança], três teóricos de seguros sugerem atualmente a implantação do species swap, um tipo de derivativo que trata do desaparecimento de espécies.11 A interpenetração das finanças e da natureza assume aí uma de suas formas mais radicais: tornar a preservação das espécies rentável para as empresas, a fim de incentivá-las a tomar conta da biodiversidade. Na verdade, essa missão custosa cabe hoje ao Estado, cujos cofres estão cada dia mais vazios. Ainda nesse tema, o aumento da crise fiscal justifica a financeirização da natureza.

Imaginemos que o estado da Flórida assine um contrato de species swap com uma empresa, tendo como subjacente uma variedade de tartaruga ameaçada que vive nos arredores da contratante. Se o número de espécimes aumentar por causa da atenção dedicada pela empresa, o estado paga juros a esta; porém, se as tartarugas rarearem ou se aproximarem da extinção, é a empresa que tem de pagar ao estado, para que este possa iniciar uma operação de salvação.

As “hipotecas ambientais” (environmental mortgages) – tipo de subprime cujo subjacente não é um bem imobiliário, e sim uma parte do meio ambiente –, os títulos garantidos por florestas (forest backed securities) e ainda os mecanismos de compensação de zonas úmidas (wetlands), legalizados nos Estados Unidos pela administração do presidente George H. Bush durante os anos 1990, constituem outros exemplos de produtos financeiros desse tipo.

O capitalismo, segundo o teórico do ecossocialismo James O’Connor, implica “condições de produção”.12 À medida que se desenvolve, enfraquece e até destrói suas condições de produção. Se o petróleo barato permitiu durante mais de um século o funcionamento daquilo que Timothy Mitchell chama de “democracia do carbono”,13 sua escassez aumenta consideravelmente os custos da indústria. O capital precisa dessas condições de produção, mas não consegue evitar que, por sua ação, as fontes se esgotem. É o que O’Connor chama de “segunda contradição” do sistema: aquela entre o capital e a natureza, ao passo que a primeira opõe o capital e o trabalho.

Essas duas contradições se entrelaçam: o trabalho humano gera valor transformando a natureza. A primeira contradição conduz a uma baixa tendenciosa da taxa de lucro, ou seja, ao surgimento de crises profundas do sistema. A segunda induz a um encarecimento crescente da manutenção das condições de produção, que pesa igualmente na queda da taxa de lucro, pois volumes crescentes de capitais empregados nessa manutenção – por exemplo, para pesquisas de reservas de petróleo, cujo acesso está cada vez mais difícil – não são transformados em lucro.

Nessa configuração, o Estado moderno tem um papel de interface entre o capital e a natureza: ele regula o uso das condições de produção para que elas possam ser exploradas. O objetivo do ecossocialismo consiste em desfazer o tríptico formado pelo capitalismo, a natureza e o Estado. Trata-se de impedir este último de trabalhar a favor dos interesses do capital e reorientar sua ação a favor do bem-estar da população e da preservação do equilíbrio natural. A conferência Paris Climat 2015 (COP 21), na qual o governo do presidente François Hollande parece estar depositando grandes esperanças, oferecerá ao movimento global pela justiça climática uma chance de expressar essa reivindicação.

Listas negras

O seguro moderno é indissociável do resseguro – o “seguro das seguradoras” –, que o segue como sua sombra. Ele permite às seguradoras se prevenirem contra riscos que julgam importantes, por isso contratam um seguro para seguros. O mecanismo é o mesmo que no grau inferior: a seguradora paga um montante à resseguradora, que lhe pagará indenizações caso ocorra algum sinistro. Esse montante normalmente é reinvestido pela resseguradora em outros títulos financeiros, cujos lucros servem para reembolsar as seguradoras. Sendo assim, as resseguradoras ocupam desde o século XIX a vanguarda da finança internacional. O setor – hoje em dia dominado pelas companhias Munich Re (fundada em 1880) e Swiss Re (criada em 1863) – surgiu após incêndios que devastaram grandes cidades. Em 1842, Hamburgo ardeu em chamas; as seguradoras alemãs entraram em situação de calamidade, e assim nasceu o resseguro.

Diversos tipos de risco reviraram o setor recentemente: terrorismo, riscos tecnológicos e multiplicação de desastres naturais – principalmente por causa das mudanças climáticas – com custos cada vez mais elevados. A Swiss Re produz dados anuais bem completos, compilados em uma revista chamada Sigma, sobre a amplitude dos desastres humanos e seus danos materiais.1 Os números tratam principalmente dos bens assegurados, ou seja, dos totais que as seguradoras e resseguradoras pagaram a seus clientes. Nela é possível constatar que, nos países em desenvolvimento, apenas 3% dos bens perdidos são segurados, contra mais de 40% nos países desenvolvidos.2

Com US$ 75 bilhões, o furacão Katrina, que atingiu a região de Nova Orleans em 2005, é considerado até hoje o episódio mais custoso da história em danos segurados desde 1970 – época na qual esses dados começaram a ser compilados. A conta sobe para até US$ 150 bilhões se adicionarmos os bens não assegurados. Aparecem em seguida na lista o terremoto seguido de um tsunami no Japão em 2011 (US$ 35 bilhões) – que ocasionou a catástrofe nuclear de Fukushima –, o furacão Andrews de 1992 nos Estados Unidos (US$ 25 bilhões) e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 (US$ 24 bilhões); estes últimos foram os mais custosos na categoria que a Swiss Re chama de “técnicos”, ou seja, sem relação com um fenômeno natural.

Na França, em 2003, ano da onda de calor, o custo agregado dos cataclismos naturais passou de 2 bilhões de euros, um recorde para o país. Nos últimos vinte anos, o principal risco natural eram as inundações, seguidas pelas secas. Dos 25 desastres mais custosos no período entre 1970 e 2010, mais da metade ocorreu após 2001. O número de furacões de categoria 4 ou 5 dobrou em 35 anos (5 é a força máxima dos ventos).

Esse tipo de acontecimento pode ter um custo material elevado e um custo humano baixo, e vice-versa. Os mais mortíferos foram as tempestades e inundações causadas em 1970 pelo ciclone Bhola em Bangladesh (Paquistão Oriental na época) e no estado indiano de Bengala, que fez em torno de 300 mil vítimas. Em terceiro lugar está o tremor de terra no Haiti em 2010, com 222 mil mortos. A onda de calor e a seca europeia em 2003, que provocaram a morte de 35 mil pessoas, ficam em 12o segundo lugar na lista. Aliás, esse é o pior desastre na Europa, que ocupa com os Estados Unidos as mais altas posições do ranking de desastres mais custosos financeiramente. Isso comprova, se necessário, o impacto do desenvolvimento econômico sobre mortalidade nessas situações.

No ano de 2011 – último com números disponíveis –, a Swiss Re contabilizou 325 catástrofes, das quais 175 foram consideradas “naturais” e 150 “técnicas”. A essa segunda categoria, a resseguradora julgou sábio acrescentar… a Primavera Árabe. (R.K.)


*Razmig Keucheyan Conferencista de Sociologia da Universidade Paris-Sorbonne

Ilustração: Patricio Bisso

1 Imelda V. Abano, “Philippines mulls disaster risk insurance for local governments” [Filipinas refletem sobre seguros contra riscos de desastres com governos locais], Thomson Reuters Foundation, Londres, 22 jan. 2014.

2 Cenas burlescas foram descritas por Michael Lewis, “In nature’s casino” [No cassino da natureza], New York Times Magazine,26 ago. 2007.

3 Erwann Michel-Kerjan (org.), “Catastrophe financing for governments: learning from the 2009-2012 Multicat Program in Mexico” [Financiamento de catástrofes pelos governos: aprendendo com o Programa Multicat do México de 2009-2012], OECD Working Papers on Finance, Insurance and Private Pensions, n.9, Paris, 2011. Esse relatório serve de fonte para os dois próximos parágrafos.

4 “Advancing disaster risk financing and insurance in ASEAN countries. Framework and options for implementation” [Avançando sobre financiamento e seguros contra riscos de desastres nos países da Asean. Quadro e opções de aplicação], Banco Mundial, Washington, abr. 2012. Disponível em: .

5 Cf. “Insurance in the emerging markets: overview and prospects for Islamic insurance” [Seguros nos mercados emergentes: visão geral e prospecção para seguros islâmicos], Sigma, n.5, Zurique, 2008.

6 Ler Donatien Garnier, “Au Bangladesh, les premiers réfugiés climatiques” [Em Bangladesh, os primeiros refugiados climáticos], Le Monde Diplomatique, abr. 2007.

7 Frédéric Morlaye, Risk management et assurance [Gerenciamento de riscos e seguro],Economica,Paris, 2006.

8 Melinda Cooper, “Turbulent worlds: financial markets and environmental crisis” [Mundos turbulentos: mercado financeiro e crise ambiental], Theory, Culture & Society, n.27, Londres, 2010.

9 Para uma história desses produtos financeiros, cf. William Cronon, Nature’s metropolis. Chicago and the Great West [Metrópoles da natureza. Chicago e o Grande Oeste], WW Norton, Nova York, 1992, capítulo 3.

10 John E. Thornes, “An introduction to weather and climate derivatives” [Uma introdução para derivativos climáticos e de tempo], Weather, v.58, Reading (Reino Unido), maio 2003; Samuel Randalls, “Weather profits. Weather derivatives and the commercialization of meteorology” [Lucros sobre o clima. Derivativos climáticos e a comercialização da meteorologia], Social Studies of Science, n.40, Kingston, 2010.

11 Cf. James T. Mandel, C. Josh Donlan e Jonathan Armstrong, “A derivative approach to endangered species conservation” [Uma abordagem derivativa para a conservação de espécies ameaçadas], Frontiers in Ecology and the Environment, n.8, Washington, 2010.

12 James O’Connor, Natural causes. Essays in ecological marxism [Causas naturais. Ensaios sobre ecologia marxista], Guilford Press, Nova York, 1997.

13 Timothy Mitchell, Carbon democracy. Le pouvoir politique à l’ère du pétrole [Democracia do carbono. O poder político na era do petróleo], La Découverte, Paris, 2013.

14 Cf. e especialmente “Catastrophes naturelles et techniques en 2011” [Catástrofes naturais e técnicas em 2011], Sigma, n.2, Zurique, 2012. Os dados apresentados provêm desse exemplar.

15 Koko Warner et al., “Adaptation to climate change. Linking disaster risk reduction and insurance” [Adaptação às mudanças climáticas. Ligações entre redução de riscos de desastres e seguros], Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), 2009.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/quando-a-catastrofe-climatica-vira-produto-financeiro/)

Independências, o novo fantasma europeu (Conn Hallinan)

Barcelona, 2013: 1,5 milhão de pessoas nas ruas, pela independência da Catalunha. Esquerda cresce entre movimento, e reivindica fim das políticas de "austeridade"


Espanha, Grã-Bretanha, Itália e Bélgica podem se dividir. Quem reivindica autonomia. Por que movimento é respostas às políticas de “austeridade”

Por Conn Hallinan, do The Nation | Tradução: Antonio Martins

As famílias felizes são todas parecidas;
cada família infeliz o é à sua maneira”
Leon Tolstoi, Anna Karenina

A abertura do grande romance de amor e tragédia de Tolstoi poderia ser uma metáfora da Europa de hoje, onde “famílias infelizes” de catalães, escoceses, belgas, ucranianos e italianos consideram divorciar-se dos países de que são parte. E, em mais um caso em que a realidade imita a ficção, cada uma delas é infeliz à sua própria maneira.

Enquanto os Estados Unidos e seus aliados exasperam-se com o recente referendo na Crimeia, que separou a província da Ucrânia, os escoceses viverão uma consulta muito similar em 18 de setembro e os catalães gostariam muito de fazer o mesmo. Assim como os habitantes do Tirol do Sul e a população de língua flamenga do norte da Bélgica.

Na aparência, muitos destes movimentos de secessão sugerem que regiões ricas estão tentando “libertar-se” de outras mais pobres. Mas ainda que haja alguma verdade nisso, a fórmula é muito simplista. No norte da Bélgica, os flamengófonos, mais ricos, querem separar-se dos francófonos despreocupados do Sul, assim como os tiroleses gostariam de se separar da Itália meridional, castigada pela pobreza. Mas na Escócia, muito da luta tem a ver com a preservação do contrato social que os governos do “novo” Partido Trabalhista – agora conservador – e do Partido Conservador – de direita – desmantelaram sistematicamente. O caso da Catalunha, bem, é complicado.

As fronteiras europeias podem parecer imutáveis, mas certamente não o são. Foram deslocadas várias vezes – pela guerra, necessidades econômicas ou porque os poderosos desenharam linhas caprichosas que ignoram a história e a etnicidade. A Crimeia, conquistada por Catarina, a Grande, em 1783, foi arbitrariamente cedida à Ucrânia, em 1954. A Bélgica resultou de um congresso das potências europeias, em 1830. A Escócia, empobrecida, ligou-se à ria Inglaterra, em 1707. A Catalunha caiu diante dos exércitos espanhol e francês em 1714. E o Tirol do Sul foi um espólio da Primeira Guerra Mundial.

Em todos os casos, ruídos históricos, desenvolvimento injusto e tensões étnicas foram exacerbados por um crise econômica de longa duração. Nada como o desemprego e as políticas de “austeridade” para acender as fogueiras da secessão. Os dois movimentos separatistas mais fortes estão na Escócia e Catalunha – e são os que podem ter impacto mais profundo no resto da Europa.

As regiões são infelizes de diferentes maneiras.

Escócia

A Escócia sempre teve um partido nacionalista expressivo, embora marginal – mas foi dominada tradicionalmente pelo Partido Trabalhista britânico. Os Conservadores quase não existiam a norte do rio Tweed. Mas o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro Tony Blair adotou cortes de investimentos públicos e privatizações que marginalizaram muitos escoceses, obrigados a gastar mais com Saúde e Educação que o resto dos britânicos.

Quando o Partido Conservador ganhou as eleições, em 2010, seu orçamento de “austeridade” devastou a Educação, Saúde, os subsídios para Habitação e o Transporte. Os escoceses, irados, votaram no Partido Nacional Escocês (SNP), nas eleições de 2011 para o parlamento local. O SNP imediatamente propôs um plebiscito que indagará aos eleitores se querem revogar o Ato de União de 1707 e voltar a ser um país independente. Se a resposta for sim, o SNP propõe renacionalizar o correio e expulsar da Escócia os submarinos britânicos Trident, dotados de mísseis nucleares.

Levando em conta o petróleo do Mar do Norte, quase não há dúvidas de que uma Escócia independente seria viável. O país tem um PIB per capita mais alto que o da França e, além de petróleo, exporta bens industriais e uísque. A Escócia seria um dos 35 países com maiores receitas de exportação.

O governo britânico do Partido Conservador diz que, se a Escócia votar pela independência, não poderá mais utilizar a libra como moeda. Os escoceses dizem que se a ameaça for mantida, não assumirão mais responsabilidade por sua parcela na dívida pública britânica. Neste ponto, há um impasse.

Segundo os britânicos, e alguns tecnocratas em posições de poder na União Europeia (UE), uma Escócia independente não poderá permanecer integrada ao bloco europeu, mas isso pode ser um blefe. Primeiro, porque contrariaria precedentes históricos. Quando a Alemanha reunificou-se, em 1990, cerca de 20 milhões de habitantes do país oriental (a República Democrática Alemã) foram automaticamente reconhecidos como cidadãos da UE. Se 5,3 milhões de escoceses foram excluídos, será por ressentimento, não por política. De qualquer forma, como o Partido Conservador britânico planeja, em 2017, um referendo que poderia separar a Grã-Bretanha da União Europeia, Londres não está apostando todas as fichas numa postura de intransigência…

Se as eleições fossem hoje, os escoceses provavelmente optariam por permanecer no Reino Unido, mas as tendências estão mudando. A pesquisa mais recente indica que 40% votarão pela independência – um avanço de 3 pontos percentuais, em relação à sondagem anterior. A parcela dos eleitores contrária à independência caiu 2 pontos percentuais, e agora representa 45% do total. Há 15% de indecisos. Todos os residentes na Escócia com mais de 16 anos podem votar. Dada a formidável habilidade eleitoral de Alex Salmod, o primeiro-ministro da Escócia e líder do SNP, as perspectivas não são tranquilizadoras para o governo de Londres.

Catalunha

A Catalunha, situada no Nordeste da Espanha bem junto à fronteira com a França, foi sempre um motor da economia espanhola e uma região marcada por sensação de injustiça histórica. Conquistada pelos exércitos unidos da França e Espanha, na guerra de secessão espanhola (1701-1714), foi também derrotada na Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 39. Em 1940, os fascistas, triunfantes, suprimiram o uso do idioma catalão, reprimiram sua cultura e executaram o presidente da região, Lluis Companys – um ato pelo qual nenhum governo de Madri desculpou-se até hoje.

Após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, a Espanha buscou reconstruir sua democracia, sepultando as animosidades profundas engendradas pela Guerra Civil. Mas os mortos podem não permanecer enterrados para sempre, e cresce um movimento pela independência catalã.

Em 2006, a região conquistou autonomia considerável, mas ela foi revogada pelo Supremo Tribunal espanhol em 2010, para alegria do Partido Popular (PP, conservador), no poder. A decisão serviu de combustível para o movimento pela independência da Catalunha e em 2012 partidos separatistas chegaram ao poder.

O PP, do primeiro-ministro Mariano Rajoy, é uma preocupação permanente na Catalunha, cujo parlamento é dominado por diversos partidos independentistas. O maior deles é a Convergencia i Unio (CiU), do presidente provincial, Artur Mas. Porém, a Esquerra Republicana de Catalunya (ERC) dobrou, há pouco, sua representação legislativa.

Estes partidos divergem entre si. Muitos tendem a ser centristas ou conservadores, enquanto o ERC é de esquerda e se opõe às políticas de “austeridade” do PP – algumas das quais foram adotadas também pelo CiU. O centrismo deste partido é uma das razões pelas quais sua bancada caiu de 62 deputados para 50, nas eleições de 2012, enquanto a do ERC saltou de dez para 21.

A taxa oficial de desemprego na Espanha é de 25%, mas o índice é bem mais alto entre os jovens e nas regiões do Sul – e a esquerda parece disposta a ir à luta. Mais de 100 mil pessoas marcharam em Madri, no mês passado, exigindo o fim da “austeridade”.

Dizendo apoiar-se na Constituição de 1976, Rajoy recusa-se a permitir um referendo de independência, uma intransigência que alimentou a chama do movimento separatista. Em janeiro, o parlamento catalão votou, por 87 a 43, por realizar o referendo, e as pesquisas mostram uma maioria em favor da separação. Há seis meses, um milhão e meio de catalães marcharam em Barcelona pela independência.

De olho no eleitorado de direita, o PP também radicalizou e parece disposto a provocar os catalães. Quando a Catalunha proibiu as touradas, Madri aprovou uma lei que as considera herança cultural da nação. Os bascos podem arrecadar seus próprios impostos; os catalães, não.

Como a União Europeia reagiria a uma Catalunha independente? E o governo central de Madri faria algo para impedir o passo? É difícil imaginar o envolvimento do exército espanhol, embora o partido de Rajoy tenha entre seus fundadores um ex-ministro do governo franquista e a reivalidade entre Madri e Barcelona seja evidente.

Outras linhas de ruptura

Há outras linhas de ruptura na Europa.

A Bélgica poderá se dividir? A fissura entre os flamengófonos (no norte) e os francófonos (no sul) é tão profunda que foram necessários dezoito meses para formar um governo, após a última eleição. E se a pequena Bélgica rachar, ela dará origem a dois países, ou será engolida pela França e Holanda?

Na Itália, o Partido da Liberdade do Tirol do Sul reivindica um referendo de independência e uma fusão com a Áustria, embora a minúscula província, – chamada na Itália e Alto Adige – quase não tenha do quê se queixar. Ela retém 90% dos impostos que arrecada, e sua economia conseguiu evitar o pior da crise de 2008. Mas parte da população germano-austríaca ressente-se de cada centavo transferido a Roma e há um profundo preconceito contra os italianos – que constituem 25% dos habitantes – particularmente, os do Sul. Nesse sentido, o Partido da Liberdade não é muito diferente da Lega Norte, racista e elitista, que tem como base o Vale do Po.

É instrutivo assistir a um vídeo, no YouTube, sobre como as fronteiras da Europa mudaram, de 1519 a 2006 – um período de menos de 500 anos. O que julgamos eterno é efêmero. O continente europeu está novamente à deriva, tensionado por linhas de ruptura antigas e contemporâneas. A atitude de países como Espanha e a Grã-Bretanha, e de organizações como a União Europeia diante deste processo determinará seu caráter – se civilizado ou doloroso. Mas tentar interrompê-lo causará, muito provavelmente, apenas mais dor.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/independencias-o-novo-fantasma-europeu/)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Por mais parques — e menos cinzentos (Breno Castro Alves)

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Surgem, em S.Paulo, coletivos dispostos a lutar pelos espaços públicos e a geri-los de modo não burocrático. Mídia, enquanto isso, torce por espigões

Por Breno Castro Alves

Em tempos de voracidade do capital imobiliário, o Parque Augusta — última área livre de mata atlântica no centro de SP — sofre a ameaça real de ser transformado em duas torres de 100 metros. A Folha de São Paulo atuou, esses dias, como porta voz das incorporadoras Setin e Cyrella.

Apesar de o jornal afirmar que ali haverá torres, o prefeito Fernando Haddad sancionou, em dezembro de 2013 a a Lei 345/2006, que determina a criação do parque público na área disputada. Há resistência engravatada. Dois dias depois da aprovação dessa lei, as incorporadoras Setin e Cyrella, sócias do proprietário e ex-banqueiro Armando Conde, fecharam ilegalmente os portões de acesso ao parque, que se mantém assim há 90 dias.

Em resposta a essa restrição ilegal à circulação de pessoas em espaço público, um movimento social — o Organismo Parque Augusta — articulou-se e iniciou diálogo formal com a prefeitura, em 25 de março. Publicamos aqui uma carta pública com nosso posicionamento a partir deste encontro.

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O Organismo, que defende a gestão popular de um parque 100% público, está cobrando a participação da gestão Haddad na construção da política pública que vai garantir o cumprimento da lei já aprovada pelo prefeito. Entendemos ser necessária a participação de, no mínimo, as secretarias de Desenvolvimento Urbano, Verde e Meio Ambiente, Educação, Cultural, Governo, Subprefeituras, além dos outros órgãos da máquina pública descritos na carta. Os objetivos a que pretendemos chegar com essa mobilização estão descritos no site Parque Augusta (http://www.parqueaugusta.cc).

Ao aprofundar este processo político que propomos, descobrimos que não estamos sós. Encontramos a luta de diversos outros parques municipais ameaçados. São 130, segundo a secretaria do Verde — e há gente que começa a lutar por eles. O Organismo Parque Augusta participou do I Ato em Defesa dos Parques Ameaçados em SP. Aconteceu dia 31, no centro da cidade. Contou com a participação dos parques Águas Espraiadas, Brasilândia, Embu-Mirim, Minhocão, Augusta, Mooca, Morro do Querosene, Peruche, Pinheiros e Vila Ema. Terminou com a criação da Rede Novos Parques SP.

A Rede se propõe a pensar uma política pública que primeiro garanta a integridade física de todos os parques da cidade, para depois desenvolver um processo de abertura para as comunidades ao redor, construindo experiências de gestão popular nestes espaços.

Propomos um ciclo aberto de debates e pesquisa sobre os parques da cidade e entendemos que a Virada Cultural é cenário ideal para essa realização. O evento, que traz a ocupação do centro em seu dna, poderá amplificar e democratizar o debate, envolvendo população e prefeitura na construção dessas soluções necessárias.

Aqui, carta aberta do Organismo Parque Augusta sobre o ínicio de nossa conversa com a prefeitura e o convite ao diálogo que estendemos a toda a gestão Haddad.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/10/por-mais-parques-e-menos-cinzentos/)

Dieta perigosa para o planeta (Taís González)

QUE1 QUERÊNCIA 29/01/2008  VIDA & DESMATAMENTO QUERÊNCIA MATO GROSSO  . FOTO: JF DIORIO/AE


Pesquisa sueca revela: aumento do consumo de carne e laticínios pode ter efeitos devastadores sobre clima. Mudança de hábitos alimentares deveria começar rapidamente

Por Taís González

O Painel Intergovernamental da Mudança do Clima (IPCC) afirma ser imperativo evitar que a temperatura da terra eleve-se em mais de 2ºC, em relação aos níveis pré-industriais. Para tanto, instituições como o Programa da ONU para Meio Ambiente (PNUMA) já haviam alertado para a necessidade de reduzir o consumo de proteínas animais. Agora, cientistas da Universidade de Tecnologia Chalmers, na Suécia, deram caráter preciso a esta recomendação. Um estudo recente realizado por eles calcula que, caso não haja mudanças na estrutura de produção e consumo dos alimentos humanos, as emissões de gases do efeito-estufa provenientes da pecuária (óxido nitroso e metano) podem dobrar, até 2070. Ela passará das 7,1 gigatoneladas, registradas em 2000, para 13 gigatoneladas, em 2070.

Os números importam muito. De acordo com a pesquisa, a criação de animais é responsável por 25 a 30% dos gases de efeito-estufa produzidos pela atividade do ser humano. Significa que, para alcançar a meta de limitar o aquecimento global em 2ºC e evitar as piores consequências das mudanças climáticas, não basta reduzir a queima de combustíveis fósseis.

“A mudança de dieta exite um longo tempo. Já deveríamos estar pensando em como tornar nossa alimentação menos perigosa para o clima”, afirmou Fredrik Hedenus, um dos autores do estudo. O cientista acredita que uma dieta vegana pode reduzir até 95% dos gases de efeito-estufa procedentes da alimentação (aqui, em sueco). Hedenus defende o imposto sobre o carbono para o setor pecuário, mas admite que esta é uma ação complexa. “O problema fundamental que temos hoje é que a pecuária não paga pelos seus custos climáticos. No entanto, é difícil taxar as emissões do setor, já que essas emissões consistem principalmente do metano dos estômagos do gado e do óxido nitroso dos campos.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/10/dieta-perigosa-para-o-planeta/)

Livros: a aventura da autopublicação (Daniel Cariello)

Feira Plana, evento de venda de livros, fanzines e impressos independentes que acontece anualmente em São Paulo
Feira Plana, evento de venda de publicações independentes que acontece anualmente em São Paulo


Como quatro autores criaram selo editorial alternativo, lançaram suas obras sem intermediários, tiveram êxito e podem ser seguidos por gente como você

Por Daniel Cariello

Em 2007, fui morar na França. Meu francês se limitava a “croissant” e “quatre-vingt”, que significa “oitenta” e eu conhecia porque achava muito estranho eles dizerem “quatro vinte”, fazendo conta para falar um número. As descobertas iniciais na nova casa foram tão intensas que criei o site Chéri à Paris, no qual postava crônicas semanais sobre a vida de um brasileiro na terra do fromage. Logo elas passaram a ser republicadas por veículos como Outras Palavras, Le Monde Diplomatique online, Magazine Brazuca (em Paris) e UOL.

CHERIPARIS_Capa_F02.inddUm ano depois, recebi e-mail de uma editora: “Adoramos seus textos. Avise-nos se quiser lançá-los em livro”. Claro que queria, era o meu sonho! Respondi na hora e já passamos à discussão de detalhes do contrato. A dona da instituição me confessou ser apaixonada por tudo o que diz respeito à França. Desconfio que era também interessada por druidas e suas magias, pois, assim como apareceu do nada, sumiu pouco tempo depois, sem deixar vestígios. Verdadeira Panoramix moderna.

Se a poção mágica de sumiço que ela tomou me deixou triste por um lado, por outro me motivou a fazer um projeto enviá-lo a editoras, escritores, críticos e a todo mundo que tivesse alguma relação com o mercado editorial. O que não sabia, no entanto, é que aquela recusa era apenas a primeira de uma longa série de “não, obrigado”, “não há interesse por crônicas”, “não há planos de novos lançamentos esse ano” e diversas outras variações introduzidas pelo monossílabo de negação. Cansado, quase desisti de publicar o Chéri à Paris.

Autopublicação?

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“Daniel, você precisa lançar um livro”, dizia a lacônica mensagem que recebi às 23h de uma terça-feira vulgar de setembro do ano passado, enviada pelo amigo e escritor Yury Hermuche. De bate pronto, devolvi o desafio. “Ok, mas só se você também escrever um e lançarmos juntos”. Ele topou. E aí me dei conta de que não tínhamos editora. E eu não sentia nenhuma vontade de correr atrás novamente. “Pra quê?”, ele perguntou. “Autopublicação. Você vai ser seu próprio editor. E a tiragem se paga rapidamente, você vai ver”.

A rua de todo mundo - Carolina NogueiraA ideia de convidar as amigas Carolina Nogueira e Gabriela Goulart Mora a participarem com a gente foi natural. Achei que tinha tudo a ver elas colocarem no papel um pouco de suas experiências distantes: Carolina, em Paris; Gabriela, na Índia. Terminamos os quatro livros no tempo recorde de dois meses. E decidimos criar um selo para reuni-los. Afinal, se a amizade nos unia, a temática dos livros (distância, estranhamento e viagens) também nos era comum.

O selo Longe já nasceu com os genes da independência e da autopublicação, bem explícitos no manifesto publicado em nosso site: “Com todo respeito ao mercado editorial, (…) nosso negócio é outro. Queremos escrever livros, contar nossas histórias, compartilhar nosso universo – e queremos ser lidos. Só isso”. E continuamos: “Aliás, o gosto pelo papel também tem a ver com a decisão. Escolher a gramatura, a textura da folha que vai receber nossas ideias, a fonte com que serão compostas páginas (…) – por que diabos delegaríamos tudo isso a outra pessoa?”

Anti-heróis e aspirinas - Yury HermucheMas funciona?

E muito. A noite de lançamento do Longe reuniu mais de 1.000 pessoas no Cine Brasília, o cinema mais tradicional da cidade. Ali, vendemos 700 livros e praticamente pagamos as tiragens. Depois, como não temos distribuidora, criamos sites individuais e um coletivo, para o selo, onde os livros estão à venda. E firmamos parcerias com diversos pontos de comercialização, dentro e fora de Brasília.
O reconhecimento veio ainda de outras maneiras. Toda a mídia local escreveu sobre o Longe, assim como diversos veículos nacionais. Além disso, A Rua de Todo Mundo, da Carolina, foi escolhido para ser oficialmente lançado pela II Bienal do Livro e da Leitura, que ocorre em abril, em Brasília; Anti-heróis e Aspirinas, do Yury, teve mais de 100 mil downloads de seu e-book em inglês e de sua trilha sonora; e Depois das Monções, da Gabriela, ficou entre os 20 mais vendidos da loja Amazon, em março.

Já o Chéri à Paris foi destaque em veículos como Folha de S. Paulo, Estado de Minas, Diário de Pernambuco, Educar para Crescer, Rádio Senado e CBN. O e-book, que eu mesmo formatei e publiquei, foi duas vezes o mais vendido da loja Amazon. Entre livros físicos e digitais, Chéri já vendeu mais de 1,2 mil cópias em pouco mais de 3 meses, o que é um feito considerável para o mercado editorial tradicional. E quase heróico para o independente.

Depois das monções - Gabriela GoulartA iniciativa vem sendo tão bem sucedida que autores que antes apostavam na publicação tradicional, via editora e distribuidora, já estão nos contactando. A autopublicação é um caminho sem volta. E que vai longe.

Conheça:

Chéri à Paris – www.cheriaparis.com.br

Selo Longe – www.muitolonge.com.br


(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/livros-a-aventura-da-auto-publicacao/)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Água: Brasil vive crises que marcarão o século (Cândido Grzybowski)

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca
Perspectiva de racionamento em S.Paulo e disputas pelo Rio Paraíba sugerem: políticas atuais levarão a desastre. É preciso tratar recurso como Bem Comum

Por Cândido Grzybowski*, via Carta Maior

A água bem merece um dia seu no nosso calendário, o 22 de março. Este reconhecimento só se deu em 1993, após a Eco-92. No fundo, deveríamos celebrar a água todos os dias, o dia inteiro. Mas só lembramos dela na sua falta ou no seu excesso. Quem vive em territórios áridos ou semiáridos, dada a sua relativa escassez, organiza a vida em torno à água. No Brasil, isto vale para a grande Região Nordeste, que possui 30% da população brasileira e só 3% da água. São seculares as secas no Nordeste, tanto quanto a nossa incapacidade de gerir a questão. Afinal, no nosso semiárido até chove mais do que na Argélia, por exemplo. Por que, com mais água, nosso povo sofre tanto?

Açudes, represas e poços foram feitos ao longo do tempo para estocar água, mas muito investimento acabou sendo privatizado pelo nosso secular patrimonialismo, que beneficia sistematicamente os grandes proprietários de terras. Mas, há que se reconhecer, é no Nordeste rural que, nos anos recentes, se desenvolve a experiência participativa mais promissora de gestão da água: a Articulação do Semiárido Nordestino, com a experiência de construção comunitária de cisternas familiares coletoras de águas das chuvas, já mais de 500 mil.

Nada, porém, como um verão tórrido e seco, como este de 2014, para a gente pensar na bendita água. Isto é particularmente relevante para as duas maiores regiões metropolitanas do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro. Para milhões de pessoas a água faltou nas torneiras e chuveiros. As notícias e as imagens alarmantes de represas vazias e o inevitável racionamento, especialmente em São Paulo, apavoram. A enorme estiagem significa também reservatórios hidrelétricos no limite e possibilidade de falta de eletricidade logo aí. Enfim, é a água mostrando que está nas nossas vidas mais do que a gente pensa.

Mas também esquecemos. Estamos vendo imagens de enormes inundações na Região Amazônica. Como seria bom se tanta água fosse melhor distribuída. No entanto, esquecemos que em dezembro, alguns meses atrás, as inundações foram aqui na Região Sudeste. A Baixada, na área metropolitana do Rio, foi devastada por duas enxurradas antes do Natal. O pior aconteceu no Espírito Santo, que quase virou mar. Bem: agora, a seca. Será que isto tudo são catástrofes? Ou não sabemos lidar com a água?

A água e a vida

Não existe vida sem água. E a água mal gerida por nós pode significar morte. É tão simples e trágico assim!  A água ocupa um dos lugares centrais no ciclo da vida e do conjunto de sistemas ambientais que regulam a vida, o clima e a própria integridade do planeta Terra.

A água é tão presente no nosso cotidiano que a gente só lembra dela quando falta. É como o ar que respiramos, nunca pode faltar. Mas como somos negligentes com a água! Esperamos que ela flua, venha até nós e passe, pronto. Esquecemos que sem ela não há vida, nenhuma vida. No nosso modo de vida, ainda mais em grandes metrópoles, vivemos um cotidiano sem pensar na água, como se não fosse algo relacionado a uma condição vital, que deveria estar no centro da própria organização social urbana.

Como recurso natural, a água é um estoque dado, uma quantidade na natureza de tamanho determinado: 97,5% da água forma os mares, mas só uma pequeníssima parcela da água doce restante é disponível para consumo, pois muita água está congelada ou armazenada no alto de cordilheiras e na Antártida. A água doce seria suficiente não fosse a forma predatória como a utilizamos. Ela se mantém e renova num ciclo ambiental definido: dos estoques em aquíferos, flui para nascentes, córregos, riachos, rios e deságua no mar, evapora, forma nuvens, chove, irriga a terra e alimenta os aquíferos, e o ciclo recomeça. Isto, de um modo simplificado, mostra o funcionamento de um dos sistemas mais essenciais e, ao mesmo tempo, mais ameaçados hoje em dia, que está no centro das mudanças climáticas.  A água é um sistema ambiental complexo, que afeta outros sistemas fundamentais e é por eles afetado: atmosfera e clima, biodiversidade e florestas, oceanos e evaporação. A água fresca, tão essencial, como estoque dado, precisa se renovar no seu ciclo natural.

São afetados e interagem com a água, condicionando, portanto, a vida, toda a vida, mudanças provocadas pela ação humana sobre o meio ambiente: as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, as emissões de aerosol e o buraco de ozônio, o uso da terra, a perda da biodiversidade, a composição química do meio ambiente (poluição). Hoje a humanidade é uma força que afeta o funcionamento do conjunto dos sistemas ambientais vitais, ultrapassando os umbrais do tolerável para que eles funcionem e não provoquem mudanças imprevisíveis e irreversíveis.

Tomando o exemplo da água, precisamos pensar como formamos o nosso habitat humano, os territórios em que nos organizamos como sociedade. Talvez o exemplo mais emblemático dessa distorção seja o da água mesmo. As águas, pelo seu próprio ciclo, são complexos sistemas de drenagem com suas bacias hidrográficas. Elas estão no centro natural de territórios de todo planeta. No entanto, ao longo da história, tendemos a transformar as bacias em fronteiras humanas, ao invés de sistemas naturais integradores. Quantos rios no mundo não passam de fronteiras entre países! E pior, mesmo no interior de Estados, muitos rios e baciais são fronteiras naturais entre divisões territoriais, chegando até a pequenas unidades administrativas, como os municípios entre nós.

Enfim, neste exemplo sobre a água é possível examinar a tragédia que a ação humana pode provocar. Estamos diante de uma ruptura insustentável entre humanidade e natureza — na religião, na filosofia, na economia, na política, na organização social e no conjunto de nossas práticas pela sobrevivência. Negamos a nossa própria condição de natureza e nos consideramos acima dela, feitos para dominá-la, para violar os seus segredos, segundo Bacon. Agredimos a natureza sem ética, como que negando a ela o direito de ser o que é. O desastre está na nossa porta. A ruptura entre natureza e seres humanos é a causa da insustentabilidade do modo de vida que temos. A água é o exemplo mais palpável.

A crise mundial da água

Já estamos vivendo a crise mundial da água, mas fazemos de conta que não. A humanidade é a principal causa de mudança no ciclo de água fresca, que torna possível a vida no planeta Terra. Hoje, estima-se que 80% dos rios no mundo estão em perigo e 25% deles chegam secos antes de desaguar no mar, o que se soma ao fato de já termos passado do limite natural na acidificação dos oceanos (RISILIANCE ALLIANCE,  2012). Nunca é demais lembrar aqui a tragédia do rio Jordão, no centro da guerra territorial entre Palestina e Israel, que chega seco ao mar Mediterrâneo devido ao uso intenso de suas águas para irrigação pelos israelitas. A antiga União Soviética, devido ao intenso uso agrícola, secou um imenso lago na Europa Central.

Segundo Maude Barlow, do Council of Canadians, a cada dia jogamos de esgoto e de resíduos industriais e agrícolas no sistema mundial de águas o equivalente ao peso mundial de toda a população humana (2 milhões de toneladas). A indústria de mineração no mundo deixa nos territórios, como veneno, o equivalente a cerca de 800 trilhões de litros, a cada ano. Estima-se que  um terço de todo o fluxo de água é usado hoje para a produção de agroenergia, água suficiente para satisfazer a necessidade de toda a população mundial. Por isto, a água é uma das maiores ameaças ecológicas para a humanidade. A água contaminada mata mais crianças por dia do que HIV-AIDS, malária e as guerras juntas (BARLOW, 2010).

Não falta água, nós é que criamos a escassez de água pelo modo com que a usamos. Devido à escassez criada, a água se transformou num negócio global. Por que? Para que? Nada mais emblemático do absurdo do negócio da água do que o trágico acidente no grande túnel de passagem entre Itália e França no Mont Blanc, anos atrás. O acidente foi provocado por dois caminhões… carregados de água, um da Itália para a França e outro da França para a Itália!

Estamos diante de um iminente risco da água virar mais uma commodity, de ser transformada em um produto comercializável, que se adquire pelo preço determinado de quem a explora. Aliás, isto é precisamente o que está sendo proposto sob o belo nome de economia verde e sustentável, que estende o domínio do capitalismo e dos mercados a toda a natureza e seus chamados “serviços”. Está em jogo o próprio direito de viver. Cobrar taxa para que a água jorre na torneira de casa, um direito fundamental, já é discutível. Mas ter que pagar pelo monopólio privado da água é estar submetido a uma violação absurda de um direito básico.

A gradativa escassez gerada e a mercantilização da água afetam tudo na vida humana e na natureza: a diversidade de culturas humanas, a biodiversidade natural, o alimento, a segurança ecológica e o funcionamento dos sistemas ambientais, que vão do sequestro de carbono da atmosfera, da resiliência dos sistemas aquáticos e terrestres, à regulação do clima. A água, num certo sentido, resume nela a crise do desenvolvimento que temos, que produz luxo e lixo ao mesmo tempo, tudo em nome da acumulação de riquezas.


As lutas pela água

Neste final de verão e início de outono, entre tantas questões que alimentam as inquietações do nosso cotidiano, surgiu a questão do uso das águas do rio Paraíba do Sul. Com nascentes em São Paulo, mas correndo em direção ao Nordeste, sendo o principal rio e atravessando todo o Estado do Rio de Janeiro, suas águas viraram uma controvérsia federativa. Com falta de água, São Paulo quer interligar a bacia do Paraíba do Sul ao sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, hoje sob ameaça de “estresse” hídrico. Sem entrar nos meandros técnicos, o fato soa como uma ameaça,  uma guerra federativa. Por que? Não desenvolvemos uma cultura de gerir nossas águas como um bem comum.

A água já está no centro de importantes conflitos sociais pelo mundo. A lista de exemplos é longa. Basta lembrar alguns. Além da disputa do rio Jordão entre Palestina e Israel, importa lembrar aqui a questão do Tibet, ocupado militarmente pela China por causa exatamente da água, pois os dois grandes rios chineses são abastecidos naturalmente pelo degelo das montanhas do Himalaia. Em 2000, devido à tentativa de privatização do abastecimento de água em Cochabamba, na Bolívia, explodiu a guerra popular pela água, obrigando o governo a rever a sua decisão. Na Índia, alastrou-se um grande movimento contra a Coca-Cola, devido ao crescente controle dessa multinacional de refrigerantes de fontes naturais de água fresca, logo num país onde a água não é exatamente abundante. Cabe lembrar que a Coca-Cola usava 3 litros de água fresca para produzir 1 litro de seu refrigerante. Foi em Mumbai, na Índia, em 2004, durante o Fórum Social Mundial, que a comercialização da Coca-Cola foi proibida no espaço de realização do evento. Talvez isto tenha ajudado a empresa a adotar práticas um pouquinho mais responsáveis, pois em 2009, conforme publicação da própria empresa, se consumia 2,04 litros de água para cada litro de produto (COCA-COLA, sd).

Mas a água não é só disputada pelo seu consumo imediato. Ela representa complexos sistemas, que muitas vezes são agredidos em nome do desenvolvimento. No momento, é possível ver isto na questão que envolve a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, e de Belo Monte, no Xingu.  O uso da água para gerar energia elétrica é uma forma de extrativismo agressivo social e ambientalmente, apesar de ser contabilizada como energia limpa nas estatísticas do país. Para construir hidrelétricas é preciso agredir o rio e o que ele significa para a população que vê no rio agredido uma parte fundamental de seu território e seu modo de vida. Na bacia do Xingu vivem importantes povos indígenas, com seu direito ao território reconhecido em nossa constituição democrática.

Interessante lembrar aqui o caso de Itaipu, hidrelétrica construída pela ditadura nos anos 70 do século passado. O Rio Paraná, em Itaipu, é fronteira entre Paraguai e Brasil. Para usá-lo na produção de energia foi importante um acordo que divide ao meio, entre os dois países, a energia produzida. Mas como ficou a população a ser “inundada”? Eram milhares de pequenos produtores familiares só do lado brasileiro. O processo de exclusão da área foi feito à força, com indenizações que não garantiam a reprodução das mesmas condições de vida em outro lugar. Surgiu, então, o movimento dos atingidos por barragens e, dado que havia sem-terra, o MST tem uma da origens por lá. Acontece que ninguém pensou nos índios Guaranis, ocupantes ancestrais de todo o território. Só depois, muito depois, é que a questão mereceu atenção e foram cedidos territórios específicos para os Guaranis. Mas o interessante é como a questão da água do rio mudou no decurso do tempo. Usina hidrelétrica depende de água como qualquer ser vivo. O Oeste do Paraná é uma das áreas de maior intensidade de exploração agrícola e pecuária intensiva. O assoreamento do lago de Itaipu avançava espantosamente.

Foi por iniciativa da própria Itaipu que, desde 2003, se desenvolve o exemplar programa “Cultivando Água Boa”, de sustentabilidade das águas e do modo de vida dos municípios brasileiros do entorno. Á água, ontem agredida e usada como mero recurso, hoje é cuidada, das microbacias dos rios, que alimentam o lago, ao alimento orgânico produzido para as escolas da região.

Enfim, existem conflitos sociais porque a água é de algum modo ameaçada como bem comum, que está aí no centro de toda a vida. O aprisionamento da água para o seu uso privado, para a sua mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de disputa. Na verdade, hoje em dia, todos os conflitos de água se referem a territórios específicos, territórios entendidos como as condições dadas, as naturais e as criadas pela ação humana passada, e os modos de vida atuais que os organizam. Aí a água pode ser tratada como um mero recurso natural, na visão de empresas e, muitas vezes, governos, ou como um bem essencial à própria vida de quem aí vive. A disputa, simplificadamente, é entre tais visões diametralmente opostas.

A Água como bem comum

Aqui é essencial destacar a água como bem comum fundamental da vida, de toda vida. Os bens comuns, ou simplesmente comuns, são parte intrínseca da integridade das condições de vida de todos e todas. São bens comuns: o próprio planeta Terra,  a atmosfera (o ar e o clima), o espaço sideral (órbitas geoestacionárias) e o espectro de ondas (para frequências de comunicação), a biodiversidade, as terras férteis, as montanhas, os oceanos, os rios, as águas….Bens que existem em um estoque dado. São também comuns bens produzidos como a língua e a cultura, o conhecimento, a informação, a internet… , todos bens que se multiplicam e se enriquecem com o seu uso humano. A cidade, como um conjunto coletivo, é um bem comum, convivendo com propriedades privadas  de casas, apartamentos, casas comerciais e de serviços, indústrias, em seu interior. Nenhum bem é comum por si, torna-se comum, faz-se comum pelas relações sociais (ver: VIEIRA, 2012; HELFRICH et alii, 2009; GRZYBOWSKI, 2011).

O que faz um bem ser comum é o indispensável compartilhamento e o necessário cuidado. A percepção da necessidade de compartilhar e cuidar de certos bens leva os grupos humanos a se organizar e a tratá-los como comuns. Por isto é que socialmente se criam bens comuns. Voltar a tornar comum o que foi privatizado está no centro de muitas indignações e insurgências pelo mundo. O caso da água é um dos mais evidentes e emergentes hoje em dia. A água só é garantida de fato quando tratada como bem comum. No Fórum Social Mundial, ainda na primeira edição em 2001, em Porto Alegre, começou a se formar a rede mundial do direito à água como bem comum, uma das maiores redes de cidadania no mundo. Na luta contra a privatização e pela volta a formas de tratar a água como bem comum vale lembrar aqui os casos de Roma e de Paris, hoje com o abastecimento de água sob a gestão da municipalidade e sob controle direto cidadão.

Ser comum é ser um direito coletivo. Não é uma questão de propriedade. Não é “de ninguém”, mas de todos. Não é só ser público que garante ser de todos. O ar é comum porque é de todos, mas é difícil imaginá-lo público ou, ainda mais difícil, privado.  A rua é comum porque pública, também de todos, mas temos experiências de sobra sobre a sua privatização, com cancelas e guardas armados. A água é um direito coletivo porque comum, só que pode ser privatizada na medida em que pode ser aprisionada. Não é automático que a gestão pública da água a trate como um bem comum, mas estar sobre gestão pública muda a natureza do conflito pelo direito coletivo à água.

O privado é o que é controlado privadamente, segundo interesses particulares. O que é público, controlado ou não pelo Estado, deve atender a interesses coletivos, de todas e todos. Mas para isto necessariamente precisa ser visto e tratado como um comum, um direito igual de todos e todas da coletividade. Só a cidadania em ação pode garantir o caráter comum de um bem.  A água merece ser mais do que uma tragédia, por sua falta ou excesso. Está no hora de instituirmos publicamente a água como um bem comum. Não esqueçamos que somos gestores de 12% da água doce do mundo!

Para finalizar

Toda a minha análise sobre a água tem como referência o indispensável tratamento que devemos a ela como um bem comum vital. Devemos trazê-la para a agenda pública, para o centro da ação cidadã. Não vamos conseguir enfrentar nossos problemas de justiça social e ambiental sem resgatar a água do seu aprisionamento como recurso na produção e como mercadoria rara por agressivas forças privatizantes. Mas não vamos progredir muito sem lutar para que o Estado garanta o caráter comum da água, como bem a ser compartilhado entre todos e todas, sem discriminações e exclusões.

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(*) Sociólogo, diretor do Ibase

(**) Este artigo é uma adaptação e atualização de palestra do autor no Seminário “Sustentabilidade – Múltiplos Olhares: Água e Saneamento & Resíduos Sólidos”, organizado pelo Museu Ciência e Vida, Fundação CECIERJ, Duque de Caxias, 07/11/2012.

Referências

• BARLOW, Maude. “Every now and then in history, the race takes a collective step forward in ist evolution”. On the Commons. 2010 (Disponível em: <http://onthecommons.org-commons-future-already-here>. Acesso em 15 out 2012)

• COCA-COLA Brasil. Guia de Sustentabilidade. sd

• GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos para a biocivilização. Rio de Janeiro, Ibase, 2011 (Disponível em <http://www.ibase.br/pt/wp-content/uploads/2011/08/Caminhos-descaminhos.pdf>

• HELFRICH, Silke et alii. Biens Communs – La prospérité par le partage. Berlin, Heinrich Böll Stiftung, 2009.

• O GLOBO. Amanhã. Rio de Janeiro, 11/03/2014

• RESILIENCE ALLIANCE. Planetary Boundaries: exploring the safe operatin space for humanity. Ecology and Society. London, v.14 (Disponível em <www.ecologyandsociety.org/vol14/art32> Acesso em 15 out 2012)

• VIEIRA, Miguel Said. Bens comuns intelectuais e bens comuns globais: uma breve revisão crítica. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2012.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17002)
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