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domingo, 20 de abril de 2014

São Paulo, Zona Sul: onde a Tarifa Zero já existe (Débora Lopes)

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Em Marsilac, bairro quase rural, população articula, com apoio do Movimento Passe Livre, micro-experiência de acesso gratuito ao transporte público

Por Débora Lopes | Fotos Felipe Larozza, na Vice

O taxímetro acusava uma fortuna de três dígitos quando chegamos em Marsilac, o bairro mais afastado do marco zero de São Paulo. Celular sem sinal, chão de terra batida, gado, linha de trem, bares deslocados, cães de estrada. O extremo sul da cidade é ermo e bucólico — parece interior. Mas a rotina de quem mora lá e precisa se locomover é sôfrega. A estrada é precária, à noite, nem todas as luzes funcionam e, rá!, não existe linha de ônibus. Exatamente por isso, encorajados pelo saudoso Movimento Passe Livre (MPL), os moradores da região criaram uma comissão, alugaram uma van e mostraram para a subprefeitura de Parelheiros, responsável pela área, com quantos passageiros se faz um busão com tarifa zero.

Mal descemos do táxi e o Caio Martins, do MPL, perguntou “Não se perderam? Várias pessoas da imprensa se perderam para chegar e desistiram”. Ou seja, se andar de carro é complicado, imagina para quem está a pé.


Logo na entrada da van, que eu prefiro chamar de pequeno busão, uma placa anunciava: LINHA POPULAR. TRAJETO: MAMBU X MARSILAC. TARIFA ZERO. HOJE O POVO É QUE VAI MANDAR NO TRANSPORTE! Não só o fato de a passagem ser gratuita era incrível, mas também a provocação feita à subprefeitura, que aprovou a criação de uma linha de ônibus, mas nunca tirou o projeto do papel. Inclusive, dei uma ligada para a assessoria de imprensa perguntando sobre a estrada, sobre uma ponte totalmente zoada e perigosa e sobre a linha de ônibus fantasma, mas eles disseram que às cinco da tarde é difícil encontrar as pessoas que poderiam responder por isso. Ué, meu Brasil lindo, horário comercial não existe para funcionário público?

E lá fomos nós fazer o trajeto. O clima dentro do pequeno busão (escrevo como quiser) era animado. Senhoras, senhores, crianças, cortinas vermelhas e azuis, jornalistas, fotógrafos. Pouca ventilação, um calor do cão, mas todo mundo feliz e balangando estrada adentro.

Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores.

“Aqui, as pessoas andam cerca de 15 km. Não tem lazer, educação, cultura. As pessoas são isoladas. Até existem coisas gratuitas, mas não temos como nos locomover. Os jovens conseguem emprego, mas não conseguem transporte para ir trabalhar. Eles perdem a motivação”, me contou Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores. Conversei com algumas mulheres sobre os principais empecilhos causados pela distância enorme entre tudo o que existe na região e a falta de transporte. A maioria falou sobre como é difícil ir até o posto de saúde. “Uma senhora cardíaca teve um infarto e morreu porque a ambulância do posto não pôde resgatá-la”, me disse uma delas. Quem não tem carro, se vira como dá. Alguns encaram jornadas de três a quatro horas a pé. Em emergências, geralmente se paga 20 reais por uma carona com o vizinho motorizado.


O momento mais absurdo e lisérgico do rolê no pequeno busão foi quando todos os passageiros tiveram que descer e atravessar uma ponte estreita a pé, esquema Ensaio Sobre a Cegueira. A construção do negócio encontra-se tão precarizada que é perigoso passar por ali com um veículo pesado. A questão é que a ponte não tinha nenhuma cerca e, pasmem, havia buracos no meio dela. Sim, buracos enormes. Sem contar que uma madeira improvisada sustentava boa parte do peso daquela lamentável construção sucateada.

Ali, nem todo mundo sabia exatamente que as manifestações de junho foram puxadas pela garotada do MPL e resultaram na revogação do aumento da tarifa do transporte coletivo. Mas todos pareciam gratos, inclusive a Maria. “Eles contribuem muito com nós. Quando pensamos em desistir, eles nos apoiam e dizem ‘isso é um direito de vocês’.”


Infelizmente, o pequeno busão autogestionado onde todos são bem-vindos não irá acontecer novamente, mas a comissão de moradores e o MPL já chamaram um novo encontro para o dia 19, sábado. Pode ser uma pressão singela, mas se tem a mão dos jovens arautos do transporte coletivo, provavelmente será contínua.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17154)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Por mais parques — e menos cinzentos (Breno Castro Alves)

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Surgem, em S.Paulo, coletivos dispostos a lutar pelos espaços públicos e a geri-los de modo não burocrático. Mídia, enquanto isso, torce por espigões

Por Breno Castro Alves

Em tempos de voracidade do capital imobiliário, o Parque Augusta — última área livre de mata atlântica no centro de SP — sofre a ameaça real de ser transformado em duas torres de 100 metros. A Folha de São Paulo atuou, esses dias, como porta voz das incorporadoras Setin e Cyrella.

Apesar de o jornal afirmar que ali haverá torres, o prefeito Fernando Haddad sancionou, em dezembro de 2013 a a Lei 345/2006, que determina a criação do parque público na área disputada. Há resistência engravatada. Dois dias depois da aprovação dessa lei, as incorporadoras Setin e Cyrella, sócias do proprietário e ex-banqueiro Armando Conde, fecharam ilegalmente os portões de acesso ao parque, que se mantém assim há 90 dias.

Em resposta a essa restrição ilegal à circulação de pessoas em espaço público, um movimento social — o Organismo Parque Augusta — articulou-se e iniciou diálogo formal com a prefeitura, em 25 de março. Publicamos aqui uma carta pública com nosso posicionamento a partir deste encontro.

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O Organismo, que defende a gestão popular de um parque 100% público, está cobrando a participação da gestão Haddad na construção da política pública que vai garantir o cumprimento da lei já aprovada pelo prefeito. Entendemos ser necessária a participação de, no mínimo, as secretarias de Desenvolvimento Urbano, Verde e Meio Ambiente, Educação, Cultural, Governo, Subprefeituras, além dos outros órgãos da máquina pública descritos na carta. Os objetivos a que pretendemos chegar com essa mobilização estão descritos no site Parque Augusta (http://www.parqueaugusta.cc).

Ao aprofundar este processo político que propomos, descobrimos que não estamos sós. Encontramos a luta de diversos outros parques municipais ameaçados. São 130, segundo a secretaria do Verde — e há gente que começa a lutar por eles. O Organismo Parque Augusta participou do I Ato em Defesa dos Parques Ameaçados em SP. Aconteceu dia 31, no centro da cidade. Contou com a participação dos parques Águas Espraiadas, Brasilândia, Embu-Mirim, Minhocão, Augusta, Mooca, Morro do Querosene, Peruche, Pinheiros e Vila Ema. Terminou com a criação da Rede Novos Parques SP.

A Rede se propõe a pensar uma política pública que primeiro garanta a integridade física de todos os parques da cidade, para depois desenvolver um processo de abertura para as comunidades ao redor, construindo experiências de gestão popular nestes espaços.

Propomos um ciclo aberto de debates e pesquisa sobre os parques da cidade e entendemos que a Virada Cultural é cenário ideal para essa realização. O evento, que traz a ocupação do centro em seu dna, poderá amplificar e democratizar o debate, envolvendo população e prefeitura na construção dessas soluções necessárias.

Aqui, carta aberta do Organismo Parque Augusta sobre o ínicio de nossa conversa com a prefeitura e o convite ao diálogo que estendemos a toda a gestão Haddad.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/10/por-mais-parques-e-menos-cinzentos/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Florianópolis já encara quem a captura (Felipe Amin Filomeno)

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Em meio à ostentação e apetite dos que privatizam terras e bens públicos, emergem ocupações de sem-teto e lutas pelo Comum
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Ana Rita MayerOcupação Amarildo de Souza
Florianópolis é uma cidade belíssima por sua paisagem natural e, por isso, há décadas atrai turistas do Brasil e da América do Sul nas temporadas de verão. Em anos mais recentes, a cidade também ganhou destaque pela alta qualidade de vida que proporciona a seus habitantes – comparativamente a outras cidades brasileiras – e pela visita ocasional de celebridades. Em especial, a praia de Jurerê Internacional, no norte da Ilha de Santa Catarina, virou referência internacional para a habitação e o turismo de luxo. Ali, celebridades são vistas saindo de automóveis Ferrari em direção a festas em mansões. Esta reputação glamurosa não combina com a notícia de que, em 16 de dezembro de 2013, movimentos sociais do campo e da cidade, juntamente a mais de 60 famílias, ocuparam um latifúndio situado às margens da SC-401, rodovia que leva às praias do norte da ilha – incluindo Jurerê. Hoje, num passeio de carro de apenas cinco minutos é possível sair de uma mansão à frente do mar em Jurerê e chegar ao conjunto de barracas de madeira e lona, que formam a ocupação denominada “Amarildo de Souza”. Estas duas realidades, aparentemente opostas, estão organicamente relacionadas. Elas são produtos contraditórios da acumulação por expropriação, que historicamente caracteriza a economia política de Florianópolis e a liga a processos de exploração e resistência em curso no Brasil e no mundo.
Jurerê Internacional - Florianópolis
Jurerê Internacional – Florianópolis
Um pouco de teoria…
Um dos conceitos mais importantes em economia política é o de “acumulação primitiva”, o qual se refere à acumulação de capital que não resulta do modo de produção capitalista, mas é seu ponto de partida. É o processo pelo qual os meios de produção foram originalmente acumulados sob controle de uma determinada classe social que, então, tornou-se capitalista. A forma mais clássica de acumulação primitiva – geralmente ensinada em cursos de história no ensino médio, quando se fala sobre a Revolução Industrial – foi o cercamento de terras de propriedade comum, praticado por latifundiários ingleses amparados pelo Estado, no final do século XVIII. Este cercamento deixou camponeses sem terra e os transformou em proletários disponíveis para as indústrias nascentes. Karl Marx, no entanto, apontou também outras formas de acumulação primitiva através das quais a propriedade comum, coletiva ou do Estado se tornou propriedade privada: os saques e invasões feitos através das colonizações, o endividamento público e o sistema de crédito.
Em tempos contemporâneos, o geógrafo marxista David Harvey introduziu o termo “acumulação por expropriação” para se referir ao processo que Marx chamou de “acumulação primitiva” e, com isso, mostrar que não se trata de algo prévio ao capitalismo, mas sim de um processo integral ao seu funcionamento até a atualidade. As privatizações de empresas públicas a preços abaixo do seu valor real, a supressão da agricultura familiar pelo agronegócio e o aumento da carga tributária para pagar uma dívida pública inchada por juros elevados são exemplos atuais de acumulação por expropriação. Nestes casos, a acumulação não cria valor novo: ela se dá através da transferência de valor já existente na esfera pública ou comum para a esfera privada. Isto se dá, muitas vezes, através de mecanismos não econômicos, como o Estado (que privatiza, que subsidia o agronegócio, que cobra tributos regressivos).
Frequentemente, a acumulação por expropriação gera oportunidades para o “rentismo”. Na economia política de língua inglesa, “rent” é um pagamento a um fator de produção (terra, trabalho ou capital) acima de seu custo de oportunidade. “Rent” é uma remuneração excessiva derivada da escassez (natural ou criada) de um dado fator de produção. Por exemplo, se o fator de produção “trabalho” está organizado na forma de guildas, a ação política dos trabalhadores pode forçar um aumento excessivo da sua remuneração. No caso da terra, a acumulação por expropriação pode tornar a terra escassa, permitindo a seus proprietários a cobrança de aluguel exorbitante. Quando a “rent” é recebida por um agente privado, este é denominado “rentier” – o rentista.
Nos parágrafos abaixo, vou mostrar como a geo-economia de Florianópolis é marcada pela acumulação por expropriação, capitaneada por uma elite rentista e conservadora, à qual se contrapõem movimentos sociais em defesa dos espaços públicos e do meio-ambiente.
Florianópolis, cidade da acumulação por expropriação e do rentismo
O hino municipal de Florianópolis, de autoria do poeta Zininho, começa com os versos “Um pedacinho de terra, perdido no mar!… Num pedacinho de terra, beleza sem par…”. Estes versos nos mostram, artisticamente, duas características fundamentais da economia política da cidade: a escassez do espaço (um “pedacinho de terra”) e sua utilidade econômica para o turismo e a construção civil (derivada de sua “beleza sem par”). Em função disto, em Florianópolis – mais do que em outros lugares – a privatização e a monopolização do espaço geram vantagens econômicas extraordinárias. O hotel pode ter um serviço de quarto excelente, mas se da janela do quarto o hóspede não enxerga o mar, o valor da diária cai lá embaixo. O terreno com vista para o mar é o principal ativo do empresário hoteleiro. Análoga é a situação da indústria local da construção civil.
Este é o rentismo da paisagem, manifesto claramente em um projeto privado para a construção de um hotel de luxo numa área de Florianópolis conhecida como Ponta do Coral. A área foi privatizada por decreto em 1980 por Jorge Bornhausen, governador “biônico”, indicado não democraticamente pelo regime militar. Conforme artigo do Diário Catarinense (31/05/2013), a “venda foi contestada, uma vez que precisaria de aprovação da Assembleia Legislativa (conforme previsto pela Constituição Estadual em vigor na época), o que não ocorreu. A atitude provocou revolta na sociedade, que passou a protestar considerando a venda um ato nulo”. Em 2005, uma lei aprovada na Câmara de Vereadores, e sancionada pelo então prefeito Dário Berger, autorizou um aterro numa faixa de 33 metros no entorno da península. Este enorme aterrro – ainda que público – viabilizaria a construção de um hotel muito maior do que seria possível na ausência de aterro. Na prática, esta legislação – considerada posteriormente inconstitucional pela Secretaria de Patrimônio da União – implicava a privatização do mar. Acumulação primitiva, nua e crua, baseada em privilégios políticos, pois um pobre pescador que pedisse à prefeitura autorização para aterrar área marítima em frente ao seu rancho certamente teria o pedido negado.
Ponta do Coral - Florianópolis.
Ponta do Coral – Florianópolis.
O caso da área da Ocupação Amarildo de Souza é também desconcertante. Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC, Alexandre Botelho, na ação de reintegração de posse da área de cerca de 900 hectares, movida pelo “proprietário”, este demonstrou, com documentos (cinco escrituras públicas), a propriedade de apenas 9,8 hectares (cerca de 1% da área cercada). Além disso, a maioria dos barracos instalados pelos ocupantes está às margens da rodovia SC-401, numa faixa de terra onde passava a antiga estrada Virgílio Várzea – terra pública, portanto. Cercamentos típicos do século XVII ocorrendo em pleno século XXI.
A construção civil e a hotelaria não são, entretanto, as únicas atividades importantes na Ilha de Santa Catarina. Muito antes de ser capital turística do Mercosul e lócus de um “boom” imobiliário, Florianópolis já era capital do Estado de Santa Catarina, repleta de órgãos públicos federais, estaduais e municipais. Transfira-se a capital para outra cidade e Florianópolis enfrentará um longo período de depressão econômica, carente que ficará dos investimentos e despesas públicas assim como dos salários do funcionalismo. Aqui também, o rentismo domina, pois o “alto funcionalismo público” – onde estão os grandes salários, os generosos “auxílio-moradia” e a influência política – é formado por verdadeiras guildas medievais no século XXI. Neste caso, é a escassez de altos cargos no Estado e o acesso restrito a estes que garante a “rent” na forma de altos salários e prestígio político.
Em primeiro lugar, há os funcionários mais antigos, que ingressaram no serviço público antes da Constituição de 1988 mais por favores políticos do que por concurso público. Em segundo lugar, há os funcionários em cargos comissionados, ainda hoje nomeados legalmente por critérios políticos. Em terceiro lugar, há o funcionalismo concursado, que é apenas parcialmente meritocrático. Digo parcialmente, porque ser aprovado nos concorridos concursos públicos para altos cargos é mais acessível para quem já é da classe média, para quem teve formação básica de qualidade e para quem não precisa trabalhar e tem tempo para estudar. Além disso, uma vez aprovado no concurso público, a progressão dentro da “corporação” depende de mais do que competência técnica e experiência. Para virar desembargador, por exemplo, um juiz depende de decisão – necessariamente política – tomada pelo governador do Estado.
Ocupação Amarildo de Souza - Florianópolis
Ocupação Amarildo de Souza – Florianópolis
Assim, a elite de Florianópolis é formada por grandes proprietários de imóveis, construtores, hoteleiros e altos funcionários públicos empregados nos três poderes. Com a modernização da cidade e a atração de pessoas de outras regiões, esta elite incorpora novos membros (do cirurgião plástico ao empresário do ramo de tecnologia), mas aquele permanece como seu “núcleo duro”. Entre as famílias “tradicionais” de Florianópolis, facilmente se encontra, na mesma família, pessoas em todas aquelas posições: o hoteleiro é irmão de um construtor, ambos filhos de um grande proprietário de imóveis, cujo cunhado é fiscal de tributos. E há uma simbiose entre estas categorias da elite florianopolitana. Com uma breve pesquisa no Google, encontra-se processos judiciais contra grandes proprietários de imóveis acusados de subornar funcionários públicos para que agências do Estado aluguem seus imóveis por valores acima dos de mercado. A elite de Florianópolis é, portanto, por definição, oligárquica e rentista.
Há também uma colaboração entre a elite e a imprensa local, responsável por reproduzir entre os habitantes da ilha a visão de mundo conservadora que corresponde ao rentismo.  Na colunas de opinião dos jornais locais, são frequentes as críticas a iniciativas do atual prefeito César Souza Júnior contra a acumulação por expropriação. Entre elas, o cancelamento de alvará que a administração anterior havia concedido para a construção do enorme hotel na Ponta do Coral e o aumento do IPTU e do ITBI para penalizar a especulação imobiliária e socializar parte dos ganhos econômicos dos grandes proprietários de imóveis. Para o conservador florianopolitano, a acumulação por exproriação é “empreendedorismo e desenvolvimento” e quem defende o espaço público e o meio-ambiente contra a acumulação por expropriação é “socialista eco-chato”.
Esta estrutura social e padrão de acumulação de capital condicionam a política local. As diversas lutas pela justiça social em Florianópolis – do movimento pela conversão da Ponta do Coral em área pública verde ao movimento dos estudantes pelo passe livre no transporte público – tem, como denominador comum, a resistência contra a acumulação por expropriação e a proteção dos espaços comuns. Talvez por isso, o discurso socialista de partidos de esquerda, focado na exploração do proletariado industrial, não tenha ressonância na população de Florianópolis e explique a pequena dimensão destes partidos na política local. Florianópolis não é o ABC paulista; nossa mobilização popular é mais pós-moderna.
Florianópolis como cidade brasileira e global 
O caso de Florianópolis interessa não apenas aos seus habitantes, pois é manifestação extrema de processos sociais que marcam o Brasil e o mundo atual. Não é por acidente que a ocupação no norte da ilha foi denominada por seus líderes de Ocupação Amarildo de Souza, o ajudante de pedreiro que virou mártir da onda de protestos que tomou o Brasil em meados de 2013. Assim como a ocupação, os protestos pelo país foram motivados largamente pela defesa do espaço público das cidades. Estes conflitos, em Florianópolis e no Brasil, integram — junto com o “Occupy Wall Street”, o movimento anti-austeridade na Europa e as lutas contra a usurpação de terras na África — uma onda mundial de resistência contra a acumulação por expropriação.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/florianopolis-ja-encara-quem-a-captura/)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Passe Livre (Michael Löwy)

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Para sociólogo, movimento reúne duas marcas contemporâneas e transformadoras: atitude libertária e pauta tóxica… para o capitalismo

Por Michael Löwy, Mediapart | Tradução Caipora (MPL-Rio)

A luta do Movimento Passe Livre (MPL) – movimento pelo transporte público gratuito – contra o aumento dos preços das passagens foi a que desencadeou a ampla e impressionante mobilização popular no Brasil no último mês de junho, que levou às ruas centenas de milhares, quando não milhões, de pessoas nas principais cidades do país. O MPL foi uma pequena faísca libertária que provocou o incêndio. Quais lições podem ser tiradas desta experiência e qual é o alcance social, ecológico e político da luta pelo transporte gratuito?

O MPL foi fundado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais. Estes coletivos já existiam há vários anos e levaram a cabo importantes lutas como a de Salvador (BA) em 2003, contra o aumento das passagens de ônibus. A carta de princípios do MPL (revisada e completa em 2007 e 2013) o define como um “movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário”.

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A horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um projeto libertário que desconfia das estruturas e instituições “verticais” e “centralizadas”. A autonomia em relação aos partidos significa a negação em ser instrumentalizado por estes últimos, mas o movimento não recusa a colaboração e a ação comum com as organizações políticas, em particular as da esquerda radical. Atua em conjunto também com associações de bairros populares, com movimentos pelo direito à moradia, com as redes de luta pela saúde e com certos sindicatos (trabalhadores do metrô, professores). Enxerga no transporte gratuito não um fim, mas um “meio para a construção de uma sociedade diferente”. Pequena, a rede nunca superou algumas centenas de militantes, advindos primeiro das instituições de ensino e mais tarde dos bairros populares. De sensibilidade anticapitalista libertária, os ativistas têm diferentes origens políticas: trotskystas, anarquistas, altermundialistas, neozapatistas; com um toque de humor, alguns se definem “anarco-marxistas punk”. Em novembro de 2013 realizou, pela primeira vez, uma Conferência Nacional em Brasília – graças ao apoio financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo – com a participação de 150 delegados, que representaram 14 coletivos locais. Foram adotadas, através de consenso, algumas resoluções e formou-se um grupo de trabalho, composto por representantes dos coletivos, que coordenará as iniciativas, respeitando a autonomia e a “horizontalidade”. (Obtivemos estas informações em duas reuniões com militantes do MPL em São Paulo, Brasil, em novembro de 2013).

O método de luta do MPL é também de inspiração libertária: a ação direta nas ruas, geralmente lúdica e ousada, mais do que a “negociação” ou o “diálogo” com as autoridades. Os militantes não cultuam nem a violência, nem a não violência; uma de suas ações típicas é bloquear as ruas, ao som de grupos musicais, colocando fogo em pneus e “catracas”. Este termo, intraduzível, significa no Brasil um torno metálico giratório, bem firme, que fica em todos os ônibus, o qual não se pode atravessar antes de pagar a passagem ao cobrador. O símbolo do MPL é uma “catraca” em chamas… É bom lembrar que o transporte público, que em sua origem era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades do país e pertence a empresas capitalistas de práticas mafiosas. As prefeituras têm, no entanto, controle sobre o preço das passagens.

A inteligência tática do MPL foi colocar como prioridade um objetivo concreto e imediato: barrar o aumento do preço das passagens decidido pelas autoridades locais nas principais cidades do país, tanto as geridas pela centro-direita como pela centro-esquerda (o Partido dos Trabalhadores, que se tornou social-liberal). Recusando os argumentos pretensamente “técnicos” e “racionais” das autoridades, o MPL mobilizou milhares de manifestantes, que foram duramente reprimidos pela polícia. Estes primeiros milhares de manifestantes se tornaram dezenas de milhares e logo milhões (com o preço, certamente, de algum esvaziamento político), e os poderes locais se viram obrigados, precipitadamente, a cancelar os aumentos. Primeira lição importante: a luta pode ser ganha, e fazer com que as autoridades responsáveis retrocedam!

Uma vez que assumiu este combate prático e urgente, o MPL não deixou em nenhum momento de destacar seu objetivo estratégico: a tarifa zero, o transporte público gratuito. Para eles é preciso, segundo a Carta de Princípios, “retirar o transporte público do setor privado colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da população”. É o que os militantes do MPL chamam “perspectiva classista” de sua luta. É uma exigência de justiça social elementar: o preço do transporte é proibitivo para as camadas mais pobres da população, que vivem nas periferias degradadas das grandes cidades, e dependem do transporte público para trabalhar ou estudar. É uma reivindicação que interessa diretamente aos jovens, aos trabalhadores, às mulheres, aos habitantes das favelas, ou seja, a grande maioria da população urbana.

Mas a tarifa zero também é uma pauta profundamente subversiva e antissistema, no sentido do que se poderia chamar um método de programa de transição: como observa a carta de princípios “deve-se construir o MPL com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem vigente”. É um simpático exemplo do que o filósofo marxista Ernst Bloch chamava utopia concreta. Certamente há cidades no Brasil ou na Europa em que esta proposta pôde se realizar. Numerosos estudos especializados demonstram que ela é completamente possível, sem causar déficit às administradoras locais. Não deixa de fazer sentido que a gratuidade é um princípio revolucionário, que se contrapõe à lógica capitalista, na qual tudo deve ser uma mercadoria; é, portanto, um conceito insuportável, inaceitável e absurdo para a razão mercantil do sistema. Mais ainda quando, como propõe o MPL, a gratuidade dos transportes é um precedente que pode abrir caminho à gratuidade de outros serviços públicos: educação, saúde, etc. De fato, a gratuidade é o presságio de uma sociedade diferente, baseada em outros valores e outras regras diferentes das do mercado e da ganância capitalistas. Daí a resistência desesperada das “autoridades”, tanto conservadoras, como neoliberais, “reformistas”, de centro ou social-liberais.

Existe ainda outra dimensão da reivindicação pelo transporte gratuito, que até o momento não foi suficientemente defendida pelo MPL (mas que começa a se dar conta): o aspecto ecológico. O atual sistema, totalmente irracional, de desenvolvimento ilimitado do uso do carro individual, é um desastre pelo ponto de vista da saúde dos habitantes das grandes cidades – milhares de mortos por causa da poluição do ar diretamente provocada pelos escapamentos – e pelo ponto de vista ambiental. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás com efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica das mudanças climáticas. O carro continua sendo, desde o fordismo até hoje, a mercadoria de destaque do sistema capitalista mundial; consequentemente, as cidades estão completamente organizadas em função da circulação de automóveis. Agora bem, todos os estudos mostram que um sistema de transporte coletivo eficaz, universal e gratuito, permitiria reduzir significativamente o uso do transporte individual. O que esta em jogo não é só o preço da passagem de ônibus ou de metrô, mas outro modo de vida urbana, sensivelmente, outro modo de vida.

Em resumo: a luta pelo transporte público gratuito é, de uma só vez, um combate pela justiça social, pelos interesses dos jovens e dos trabalhadores, pelo princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios ecológicos. Permite que se formem amplas frentes e se abram brechas na irracionalidade do sistema mercantil. Não deveríamos, na França e em toda a Europa, nos inspirar no exemplo do MPL impulsionando em nossas cidades movimentos amplos, unitários, autônomos, de luta pela gratuidade dos transportes públicos?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/o-passe-livre-segundo-michael-lowy/)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Nova Palestina: quem são os sem-teto que protestam em São Paulo (Camila Maciel)

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Acampamento de 8 mil famílias na Zona Sul revela que programas oficiais não resolveram déficit habitacional. Assembleias diárias reúnem 4 mil pessoas

Por Camila Maciel, na Agência Brasil

Programas como o “Minha Casa Minha Vida” são suficientes para assegurar o Direito à Habitação no Brasil? Ao interromperem o tráfego da Marginal Pinheiros — uma das principais vias rápidas de São Paulo — milhares de pessoas ofereceram, esta madrugada, uma resposta sonora à pergunta. Elas são parte de um elemento novo na paisagem da metrópole. Na região do Jardim Ângela, a 25 quilômetros do Centro, uma área urbana imensa (um quilômetro quadrado, ou cem campos de futebol) foi ocupada em outubro, por famílias participantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto — MTST. A novidade alastrou-se rapidamente. Hoje, 8 mil famílias já habitam o que chamam de “latifúndio urbano” e há mais 2,5 mil inscritas. Formam uma comunidade mais populosa que milhares de municípios brasileiros. Deram, ao lugar em que agora moram, o nome significativo de Nova Palestina.

Estão em área de proteção ambiental, próxima à represa de Guarapiranga. O prefeito Fernando Haddad, acossado pela mídia e atingido por decisões judiciais que reduziram o orçamento do município, afirma que não tem recursos para desapropriar a área — mas não oferece alternativas. Por isso, o protesto de hoje. Na reportagem abaixo, a jornalista Camila Maciel descreve a área e a notável mobilização de seus ocupantes, que realizam assembleias diárias com 4 mil pessoas. organizam-se em 21 grupos de trabalho e cuidam, por si mesmas, de tarefas como alimentação coletiva, limpeza e segurança. (A.M.)


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Em um terreno de aproximadamente 1 milhão de metros quadrados, na zona sul da capital paulista, quase 8 mil famílias acampam em barracas de lona, desde o dia 29 de novembro, para reivindicar o direito à moradia digna. A ocupação, que começou há pouco mais de um mês, com cerca de 2 mil famílias, já quadruplicou. Além disso, cerca de 2,5 mil famílias aguardam vaga em uma lista de espera, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

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Para os coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o rápido crescimento da comunidade, batizada de Nova Palestina, mostra como é grande o déficit habitacional da região. “As pessoas que estão aqui não têm condições de pagar aluguel, algumas moravam na rua, outras na casa de parentes. Aqui, eles têm a esperança de conseguir um teto. É uma região muito carente”, explicou Helena Santos, coordenadora estadual do MTST. Ela, que é militante há cinco anos, conta que nunca viu uma procura tão grande por vaga em uma ocupação. “Já participei de outras e essa é a maior”, disse. A ocupação é dividida em 21 grupos, cada um com coordenação própria. Cada área possui uma cozinha comunitária e dois banheiros, sendo um masculino e um feminino.

Diariamente, cerca de 4 mil pessoas participam de uma assembleia no acampamento, na qual são repassadas informações sobre as negociações por moradias definitivas, dentre outras decisões. O estatuto da ocupação, por exemplo, foi aprovado em assembleia. Entre os pontos acordados, está a proibição do consumo de bebida alcoólica, de drogas e também agressões. “Caso ocorra algum problema, nós conversamos e, caso continue, a pessoa pode ser convidada a se retirar”,  destacou.

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Tauana Oliveira da Silva, de 18 anos, vive em um barraco com o marido e os três filhos – o mais novo de apenas 3 meses. “É a primeira vez que participo de uma coisa assim. Foi meu marido que trouxe a gente. Foi a única forma que a gente viu de ter uma casa”, relatou. Marx William, 24 anos, também trouxe os poucos pertences que tem para viver com a mãe e os filhos na ocupação. “A gente pagava R$ 450 de aluguel, sendo que nossa renda é R$ 800. Ficava faltando [dinheiro] para as outras coisas”, destacou.

Helena explica que estruturas de alvenaria não são permitidas e que o objetivo é conseguir moradias dignas para os que participam da mobilização. “Nossa primeira ideia é construir as casas aqui. Se a prefeitura disser que vai fazer, saímos. Também pedimos auxílio-aluguel, mas já disseram que não tem verba”, disse.

A destinação do terreno é objeto de conflito com a prefeitura, pois um decreto municipal estabelece que a área deve ser transformada em um parque público. “A maior parte não pode ser usada para edificar moradias, porque é uma área de preservação ambiental e o proprietário tinha, sob pena inclusive de responder por crime ambiental, que cuidar para que não fosse invadido”, declarou o prefeito Fernando Haddad. Ele destacou que, neste momento, não há ação cabível ao governo municipal, por se tratar de área privada. Além disso, não há recursos para o processo de desapropriação.

O movimento, por sua vez, questiona a posição da prefeitura, pois a classificação da área como Zona de Proteção e Desenvolvimento Sustentável (ZPDS) permite edificações em 10% do total, o que corresponderia a mil moradias. “Agora, inclusive, nós estamos ocupando somente a área permitida. Não houve nenhum desmatamento para colocar as barracas”, disse Helena. O MTST propõe, ainda, que o terreno seja transformado em Zona Especial de Interesse Social 4, o que permitiria a construção de edificações em 30% da área. Diante do impasse, o movimento planeja um protesto para esta sexta-feira (10), ainda sem horário e local divulgados.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/nova-palestina-quem-sao-os-sem-teto-que-protestam-em-sao-paulo/)
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