sábado, 31 de agosto de 2013

Saúde: buscando respostas às perguntas erradas (Por Andressa Pellanda)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2013/08/29/saude-buscando-respostas-as-perguntas-erradas/)

Um dos principais debates que tomou o governo, a mídia, as redes sociais, as esquinas e os botecos nas últimas semanas tem girado em torno do mais recente programa do governo federal, o Mais Médicos. A pergunta que se faz e que se tenta responder é como levar médicos para os mais distantes rincões deste país. O governo respondeu com um salário de R$ 10 mil e o convite a médicos estrangeiros. O Conselho Federal de Medicina, com uma enxurrada de críticas ao programa, defende a passagem por uma avaliação de conhecimento anterior e obrigatória à atuação profissional, o Revalida.

A resposta é simples: erraram por terem feito uma só pergunta. É óbvio que a preocupação do governo está focada na necessidade de atendimento de uma parcela da população, que não pode esperar a melhoria da infraestrutura como um todo e/ou dos reflexos de maiores investimentos em saúde pública para ter seu direito básico garantido. Os méritos desta ação não podem ser deixados de lado. Porém, também não pode ser adiada uma discussão mais efetiva, e de médio e longo prazos, acerca do tema. É preciso questionar o por quê de a taxa de médicos por 1000 habitantes variar tanto de um estado para o outro; se essa discrepância no sistema de saúde pública e as taxas de mortes evitáveis no Brasil serão reduzidas com a uma melhoria na distribuição de médicos; e, para além disso, se os médicos são o foco do problema.

De acordo com o Datasus 2010, a média de médicos por habitante no Brasil é de 1,86 médicos por 1000 habitantes, acima do valor ideal estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1 médico para cada 1000 habitantes. Olhando somente para este dado, conclui-se que o Brasil tem médicos suficientes, o que significaria um quadro quantitativo de médicos satisfatório. Para se ter um verdadeiro panorama da saúde no país, porém, é preciso ir além.

A média de médicos por 1000 habitantes não representa a realidade de muitos estados: alguns não atingem a média e outros a elevam. No Maranhão, por exemplo, a taxa é de 0,53; no Amapá, de 0,75; e no Pará, de 0,77. Em contrapartida, o Distrito Federal alcança a maior razão, com 3,61. Atrás dele estão o Rio de Janeiro, com 3,52; São Paulo, com 2,5; o Paraná, com 1,97; e Santa Catarina, com 1,68 médicos para cada 1000 habitantes.

Para piorar o quadro, o cruzamento com um dado elementar se faz necessário: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil de 2010 – para compararmos laranjas com laranjas – o município que ganhou o troféu e o carimbo de melhor IDH foi São Caetano do Sul e o pior, Fernando de Falcão. Até aqui, isso não diz muita coisa. É importante, aí, observar que os quinze municípios no topo do ranqueamento estão situados nas regiões sul e sudeste e os quinze últimos no norte e nordeste. Coincidentemente, municípios do Maranhão, Amapá, e Pará não só estão no final da lista de IDH mas como são os que figuram como últimos da lista da relação médico/habitante.

O índice de desenvolvimento humano, entretanto, engloba outros dados que não somente de saúde – educação e renda – e, por conta disso, esta comparação poderia ser considerada rasa. Não seja por isso. As taxas de mortalidade infantil (antes de completar um ano de idade) e de mortalidade na infância (até cinco anos) seguem o mesmo padrão. Em 2010, a taxa de mortalidade na infância por 1000 habitantes no Pará foi de 25,6; no Amapá, de 29,5; no Maranhão, de 25,8. O dobro das de São Paulo, de 13,9; Rio, de 16,7; DF, de 13,8; e Santa Catarina, de 12,9. Muitas delas morreram por causas simples e evitáveis. No Pará, por exemplo, 3,3% das mortes de crianças menores de cinco anos foi por doença diarreica aguda, comparadas a 1% em São Paulo.

É claro que mortes como esta não são causadas somente por falta de acesso a médicos e a saúde. Há muito por trás desses índices entristecedores. O saneamento básico – e a falta dele – é um dos grandes fatores que contribuem para o problema de saúde no país. Quase que de olhos fechados é possível adivinhar a conjuntura: novamente, os estados do norte e nordeste são os mais precários – Pará tem 29% de serviço de esgoto; Amapá, 22%; Maranhão, 25% – enquanto que os do sul e sudeste os mais bem servidos – São Paulo, com 90%; Rio, com 85% e Santa Catarina, com 75%, segundo dados do Datasus de 2010.

Para além desse cenário da desigualdade regional da saúde, há outros fatores que contribuem significativamente para a piora do quadro dos municípios mais carentes do Brasil. Uma pesquisa desta semana do Estadão Dados, a partir do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, mostrou que para cada ponto percentual retirado da taxa de analfabetismo da população de 18 anos ou mais, a taxa de mortalidade de crianças até 5 anos cai 4,7 pontos. Na prática, se 1% dos adultos de uma cidade é alfabetizado, em média, mais 47 crianças sobrevivem à primeira infância, a cada 10 mil nascimentos.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não deixa de ter razão ao alardear sobre a falta de infraestrutura para os médicos no interior do país. Não é somente uma visão classista. Uma boa sugestão é a criação de carreira médica no serviço público, semelhante à de juízes e promotores, como propõe a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 454/2009. “Que fique registrado, contudo, que a resolução do problema do atendimento integral não depende somente da melhor distribuição geográfica de médicos, mas também de estrutura adequada à assistência. Atualmente, repetimos, o SUS enfrenta um grave subfinanciamento e também distorções no processo de gestão. Por consequência, pleiteamos o aumento da destinação de verbas federais para 10% da Receita Bruta, e a criação de mecanismos adequados à fiscalização da gestão”, ressalvou Renato Azevedo Jr, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp).

O movimento Saúde + 10, Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, foi criado em 13 de março do ano passado por diversas organizações, dentre elas a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Médica Brasileira (AMB), o Conselho Nacional de Saúde (CNS), entre outras. O objetivo no movimento foi a coleta de assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular que assegure o repasse efetivo e integral de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde pública brasileira, alterando, dessa forma, a Lei Complementar no 141, de 13 de janeiro de 2012. A ideia era agregar 1,5 milhão de assinaturas para o projeto de lei, objetivo alcançado neste mês, com a apresentação do projeto, no dia 05/08, que contou com 1,8 milhão de assinaturas.

Não há, entretanto, uma rede de incidência política articulada e permanente na área de saúde no Brasil, como ocorre para a educação com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. A Campanha é considerada hoje a articulação mais ampla e plural no campo da educação básica no Brasil, constituindo-se como uma rede que articula mais de 200 grupos e entidades distribuídas por todo o país, incluindo movimentos sociais, sindicatos, organizações não-governamentais nacionais e internacionais, fundações, grupos universitários, estudantis, juvenis e comunitários, além de centenas de cidadãos na defesa de uma educação pública e de qualidade.

Em sua história de lutas, obteve diversas conquistas, como a criação do Fundeb (Fundo da Educação Básica); a reformulação e melhoria do texto do Plano Nacional de Educação (PNE) 2010-2020, com a aprovação de diversas de suas emendas; e a mais recente aprovação do PL 323/2007, que destina 50% do Fundo Social do Pré-Sal e 75% de seus rendimentos para a Educação – sendo os outros 25% para a saúde. Um movimento como este para a saúde seria uma grande plataforma para a exigir o cumprimento pelo Estado de seu dever de garantir o direito à saúde pública de qualidade para todos nas mais longínquas comunidades pelo país.

Portanto, o problema da saúde pública no país e, especialmente, nos pequenos municípios do norte e nordeste é muito mais profundo e amplo que a má distribuição de médicos. Há má distribuição de médicos, de saneamento, de unidades de saúde, de escolas, de professores, de recursos e, principalmente e de forma basilar, de um olhar igualitário, que parece não existir neste sistema social. Para que efetivas mudanças sejam feitas na sociedade é necessário que o grito por elas venha de quem tem seus direitos violados. Por isso, se faz cada vez mais necessária a organização, o engajamento e a incidência política da sociedade civil. É aí que reside a força motriz das mais profundas transformações sociais.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Reforma política com participação popular (Por Júlio César Cardoso)

(Disponível em: http://www.dm.com.br/texto/138285-reforma-polatica-com-participaaao-popular)

Não queremos uma reforma tratada apenas dentro dos gabinetes do Congresso Nacional ou da Presidência da República, mas uma reforma que venha do povo ao Parlamento e que atenda aos reclamos sociais, que são por demais conhecidos nas redes sociais da internet, bem como ficaram bem estampados nos cartazes dos manifestantes que xingavam Renan Calheiros e sua turma, a corrupção política, reclamavam a falta de investimento em educação, saúde e segurança pública, a qualidade do transporte público, o voto obrigatório, a reeleição política, pregavam a instituição de novo sistema representativo político através  do Voto Distrital puro, pois o atual sistema está falido.

A indolência do Congresso de não apreciar até agora uma reforma política ampla e séria, certamente contribuiu também para o descontentamento da sociedade contra a continuidade das velhas práticas políticas instaladas no país. Por outro lado, temos um Parlamento muito distanciado do cidadão e que não atende aos anseios sociais.

Assim, urge uma reforma política que dê mais poder ao povo de interferir diretamente na vida parlamentar, como cassar políticos inescrupulosos, pois já ficou provado que só o voto não seleciona o bom político e dificilmente o Parlamento cassa parlamentares indecorosos.  Vejam, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o deputado federal Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) e o ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves, senador do PMDB-RN em desvio de função, usaram ilegalmente transportes aéreos públicos em missões particulares, e se não fosse a mídia denunciá-los tudo ficaria em surdina. Cometeram faltas graves. Se o povo tivesse poder constitucional de interferência no Parlamento, esses políticos seriam cassados por falta de ética e moralidade pública.

Por isso, é necessária a reforma política ouvindo preliminarmente as propostas do povo em vez das propostas do Parlamento ou do Governo.

Sabemos que o tema é complexo e que, indubitavelmente, deve interferir em alteração da Constituição Federal. Mas é necessário.

(Júlio César Cardoso, bacharel em Direito e servidor federal aposentado)

Política ou poder? (Por José João Neves Barbosa Vicente)

(Disponível em: http://www.dm.com.br/texto/139864-polatica-ou-poder)

De um modo geral, não parece que o “politico” está preocupado em manter a sua palavra, mas em manter-se no “poder” a qualquer custo.

É dificil refletir sobre a política em uma epoca em que ela encontra-se dominada por “políticos” que, a cada momento, mudam de lugar, de discurso e de convicção, mirando simplesmente a sua permanencia no “poder”. Os discurso ditos “políticos”, são na verdade, discursos sobre a melhor maneira de conseguir e de se conservar no “poder”. Por isso, hoje, o comum é falar de “poder” e nao da política, cuja razão de ser é a liberdade, e aquele que a pratica mira exclusivamente o bem comum.

Quando se troca a política pelo “poder”, o que prevalece é o interesse próprio sob a máscara de um discurso inflamado em defesa da nação e do bem de todos os seus cidadãos. A busca pelo “poder” como fim último das chamadas “práticas políticas atuais”, rendeu aos “políticos” um título significativo que muitos fazem questão de honrar de forma total: “Homem de discurso falso, sem ética e sem identidade”. Quando se domina o “poder”, a nação é dirigida para o sentido que convém ao “dono deste poder”, que se apresenta por meio de uma imagem mentirosa cuidada pelos profissionais especializados em preparar o “discurso certo”; o cenário político passa a ser o local de espetáculos de boas intençoes, ou de intenções boas que não se realizaram porque os opositórios não deixaram.

Quando se almeja apenas o “poder”, a intenção é permanecer nele para que seja possível mais poderes, isto é, busca-se o poder para buscar poder, não existe nenhum resultado final. Em essência, essa atividade é inútil, é irracional, por isso a política atual é desconcertante, pois basea-se numa conduta irracional. Pior de que tudo isso, é que o “povo” parece convencido da inutilidade de toda a ação para mudar o triste cenário político da nossa época. É preciso deixar a “servidão voluntária”, à qual nos é, decididamente, tão difícil de escapar!

(José João Neves Barbosa Vicente, filósofo; professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB); editor da Griot – Revista de Filosofia)

domingo, 25 de agosto de 2013

Suicídios, a face radical da “austeridade” (Por Juan Gelman)



Na Europa e EUA, série de estatísticas aponta nítida relação entre ataque aos direitos sociais e aumento do número de pessoas que preferem morrer

Por Juan Gelman*, na Carta Maior

Sócrates, Platão, Plotino e muitos outros filósofos analisaram o tema do suicídio ao longo dos séculos. A maioria o condena, como o judaísmo e o cristianismo.

Para Santo Augustinho “o que mata a si mesmo é um homicida”. Os epicúreos opinaram que a falta de sofrimento é o bem supremo e justificaram o ato quando a existência, em vez de alegrar, se converte em uma causa de aflição.

Os estoicos pensavam que era um tema grave a tratar com circunspecção e, em efeito, é muito difícil desentranhar as razões pelas quais alguém se tira a vida. Nunca é uma só. Cabe dizer que as circunstâncias exteriores exercem um papel maior ou menor, algumas vezes decisivo.

No dia 1° de outubro se comemora o dia europeu contra a depressão. Entre os habitantes do Velho Continente, “imersos nesta situação de crise econômica e a prevalência do estresse por trabalho, os problemas da depressão e os suicídios estão experimentando um notável aumento”, afirmou a Associação Europeia sobre a Depressão. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) “alertou que o suicídio… constitui uma das três principais causas de morte entre as pessoas de 15 a 44 de idade” (www.infocop.es, 11012). O suicídio de pessoas despejadas de suas casas porque não podem pagar a hipoteca é um fato notório na Espanha.

O fenômeno não se limita a Europa. Os centros de controle e prevenção de enfermidades dos EUA (CDC, na sigla em inglês), organismos oficiais, informaram recentemente que as mortes por suicido superaram em número as causadas por acidentes de trânsito. “As taxas de suicídio entre os estadunidenses se elevaram desde 1999” (www.cdc.gov/2513). Os CDC levaram a cabo uma investigação entre adultos de 35 a 64 de idade e comprovaram que essas taxas haviam aumentado em 28%, especialmente entre brancos não hispanos e sobretudo em 39 dos 50 estados do país. O maior incremento foi observado nas pessoas de 50 a 54 (48%) e de 55 a 59 (49%), idades nas quais aqueles que perderam o trabalho pela crise econômica praticamente não encontrarão outro.

Não se trata apenas dos adultos. David Stuckler, investigador de mais alto escalão em Oxford, e o epidemiólogo Sanjai Basu, da Universidade de Standford, descobriram que 750 mil  jovens (em sua maioria sem trabalho) haviam se voltado ao álcool e que mais de cinco milhões de estadunidenses perderam o acesso à saúde pública no período mais duro da recessão porque passaram a integrar as filas dos desempregados. A taxa de suicídios se elevou abruptamente no lapso 2007/2010, destacaram em um estudo publicado em maio (www.nytimes, 13-5-13). Um caso particular é o estado da Virginia, onde foram registradas as taxas de suicídios mais altas dos últimos 13 anos: é três vezes mais provável que os virginianos morram por suicídio que por homicídio (capitalnews.reu.edu, 8-5-13).

Stuckler e Basu encerram seu relatório com a seguinte conclusão: “O que aprendemos é que o perigo real para a saúde pública não é a recessão per se, mas a austeridade”, ou seja, as medidas impostas pela chamada Troika – o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu – para enfrentar a crise. Se presenciam reuniões dos chefes de Estado europeus com representantes da Troika nas quais estes últimos ditam as políticas econômicas que devem seguir os países da União Europeia. Nunca foi tão descarada a inversão dos termos “a política dirige a economia”, hoje substituídos por “a economia dirige a política”.

A correlação suicídios/austeridade é clara não apenas no Velho Continente e nos EUA. Investigadores australianos determinaram que a taxa de suicídios aumenta em seu país sob os governos conservadores (news.bbc.co.uk, 18-9-12). Quando as políticas de austeridade começaram a devastar a Grécia, dita taxa cresceu 18%: apenas em Atenas se elevou 25%. Antes deste flagelo, a Grécia tinha a taxa de suicídios mais baixa da União Europeia (www.euronews.com, 5-4-12).

A Islândia é o exemplo contrário. Em 2008 padeceu a crise bancária mais grave de sua história: três dos bancos mais importantes se declararam em bancarrota, o desemprego subiu para as nuvens e se desvalorizou a moeda nacional. Apesar disso, Reijawick não cortou o orçamento de seus programas sociais nem se dobrou à austeridade e, mediante acordos diversos, saiu da crise. Não se registrou um aumento significativo da taxa de suicídios durante o colapso financeiro (www.altenet.org, 3-8-13).

Como disse o Nobel de Economia Paul Krugmam: “A crise que estamos atravessando é fundamentalmente gratuita: não é necessário sofrer tanto nem destruir a vida de tanta gente”.



*Poeta, escritor e jornalista argentino. Chefe de Redação da IPS entre 1974 e 1976. Desde 1976 reside no México, onde chegou exilado pela ditadura militar que lhe arrancou seu filho e sua nora grávida. Entre sua vasta obra se destacam seus livros: Os poemas de Sidney West (1969), Fábulas (1971), Hechos y relaciones (1980), Citas y comentarios (1982), La junta luz (1985), Composiciones (1986), Interrupciones I e II (1988) e Salarios del impío (1993).

É possível outro sistema financeiro? (Por Paulo Kliass)


Divulgação do lucro bilionário dos bancos revela como eles dominaram economia capitalista. E convida a descobrir novas formas de oferecer crédito sem concentrar riqueza

Por Paulo Kliass*, em Carta Maior

Apenas poucos dias após os principais bancos privados apresentarem seus resultados relativos ao primeiro semestre deste ano, agora vem a notícia bombástica do Banco do Brasil (BB). A maior instituição financeira nacional, um banco bicentenário e constituído sob a forma de empresa de economia mista, registrou em seu balanço o maior lucro semestral de uma instituição do gênero no País. Foram R$ 10 bilhões de lucro líquido no período de janeiro a junho.

A divulgação de tais números espantosos deveria contribuir para a ampliação do debate a respeito das funções e do modelo do sistema financeiro nos tempos de hoje, no capitalismo global e também aqui em nossas terras.

Afinal, se somarmos esse lucro do BB aos outros 3 maiores bancos privados, chegaremos à cifra de R$ 26 bi somente para o primeiro semestre. Como houve 123 dias úteis no período, podemos raciocinar com um lucro líquido diário de R$ 211 milhões apenas para os 4 grandes bancos. Um lucro horário de quase R$ 27 mi em jornada de 8 horas e de quase meio milhão de reais por minuto. Uma loucura! São números que escancaram a supremacia do poder do financismo e a total submissão das autoridades governamentais à sua força.

Bancos públicos quase privados
Em termos bastante objetivos, um banco não produz nada. Outra particularidade interessante: um banco não opera com recursos próprios. Os bancos oferecem serviços, aos quais a maioria da população é obrigada a recorrer para sobreviver na sociedade, tal como ela se organiza nos dias de hoje. Mas a cada nova etapa de desenvolvimento do sistema capitalista, eles se fortalecem em sua função de promover a intermediação de recursos e de oferecer um conjunto enorme de novos serviços que combinam evolução tecnológica e instrumentos sofisticados do sistema financeiro. Como muitas dessas funções são de natureza pública e ocorrem em ambientes bastante oligopolizados, faz-se necessária a presença do Estado. Seja como agente direto (por meio de bancos estatais), seja por meio da regulação, da fiscalização e do controle das atividades do setor.

Felizmente para a sociedade brasileira, a onda do neoliberalismo não logrou levar a cabo a privatização dos dois maiores bancos públicos, que ainda pertencem ao governo federal e se subordinam ao Ministério da Fazenda. Refiro-me ao BB e à Caixa Econômica Federal (CEF). Mas tais instituições continuaram a operar praticamente como se privadas fossem, seja na sua relação com a clientela seja na política de concessão de crédito. Quem é correntista de algum deles sabe das práticas a que seus funcionários são obrigados a desenvolver, em função de uma orientação estratégica geral da direção da empresa. Direito do consumidor, critérios básicos de cidadania? A coisa passa longe desse tipo de princípio, uma vez que o interesse é a realização de resultados, o lucro no final do exercício.

Durante alguns meses, em 2011, ainda houve um início de movimento para que os 2 gigantes fossem utilizados pelo governo como importante instrumento de política econômica, com o intuito de obrigar a banca privada a reduzir suas margens de ganho e pressionar a que oferecessem crédito a taxas de juros mais “razoáveis”. Porém, logo em seguida tudo voltou como dantes, no quartel de Abrantes. Mas, afinal, qual é a lógica de estabelecer uma regra de conduta para o maior banco público que seja a de se comportar à maneira de seus concorrentes privados e buscar a obtenção de lucros a qualquer preço?

Lucro não é melhor critério de eficiência
Na verdade, há uma grande confusão entre a necessidade de melhoria no funcionamento das empresas e instituições públicas e o fato delas se mirarem no exemplo dos conglomerados privados como critério de aferição de sua eficiência. Nada mais equivocado, especialmente em se tratando de um setor como o financeiro. O BB não será mais eficiente em sua ação se continuar trilhando o caminho da “bradesquização” de suas atividades. Mimetizar o desempenho do financismo privado não soma ponto algum à avaliação do retorno que o BB proporciona à sociedade brasileira. O enfoque do lucro como instrumento de avaliação da performance da empresa deixa de considerar que a natureza pública da instituição deve prevalecer em qualquer análise de seu desempenho.

Um banco público deve, sim, apresentar uma eficiência em sua ação. E nesse aspecto existe ainda um longo caminho a ser percorrido. Parece desnecessário repetir aqui o óbvio. O ponto a reter, no entanto, é que os meios de se avaliar a qualidade de sua ação devem ser diferentes dos utilizados pelos bancos privados. Mais do que qualquer outra instituição financeira, o banco estatal deve dar conta de bons retornos em termos de sua função social. A acumulação de lucros a qualquer preço deveria passar longe de seus programas de planejamento estratégico. Sua prioridade deve ser a oferta de crédito a setores e clientes que não conseguem acesso no mercado privado, bem como a utilização de sua vasta rede de agências pulverizadas para reforçar o contato mais estreito com as comunidades espalhadas pelo Brasil afora

A generalização das atividades financeiras em nossa sociedade e a dependência cada vez maior dos indivíduos, famílias e empresas a esse tipo de alternativa em nossas vidas cotidianas são fenômenos que carregam uma força e um sentido inequívocos. No entanto, a lógica a nortear nossas relações sociais e econômicas deveria ser o reconhecimento da função social das instituições financeiras – tanto as públicas quanto as privadas. Com isso, não poderia haver espaço para prejuízos provocados à maioria da população pela ação espoliadora da banca. Caberia ao Estado, por meio de seus grandes bancos e por intermédio da regulamentação (via Banco Central), o estabelecimento de condições para evitar abusos e limites no comportamento de tais instituições.

Alternativas: cooperativas de crédito e bancos éticos
Por outro lado, também seria essencial que a administração pública estimulasse o surgimento e o fortalecimento de outras formas de organizações financeiras. Alguns exemplos podem ser lembrados, por se situarem justamente fora da lógica da instituição financeira privada que visa tão somente o lucro. É o caso, por exemplo, das cooperativas de crédito. Elas são o espaço, por excelência, onde se concretiza a máxima de colocar em contato os poupadores de recursos e aqueles que necessitam dos mesmos na forma de empréstimo. Como a cooperativa não tem por objetivo a realização de lucro, as taxas e as margens praticadas nas operações podem ser bastante reduzidas na comparação com aquelas utilizadas pela banca privada.

Deveria ser enfatizado também o movimento dos chamados bancos éticos, que ganha cada vez mais força no espaço europeu. O aprofundamento da crise econômico-financeira naquele continente tem reduzido bastante a credibilidade social nas instituições bancárias tradicionais. O contraponto a essa falta de confiança no sistema em geral, e nos bancos em particular, é a busca de alternativas para as aplicações e os empréstimos. Em geral, os bancos éticos são instituições que oferecem taxas mais reduzidas, tanto na captação dos recursos quanto na oferta de crédito na outra ponta. Além disso, não operam com empresas ou setores de alto risco e comprometem-se com os princípios da sustentabilidade (econômica, social e ambiental) e da transparência em suas operações.

A natureza particular da atividade financeira transforma o setor em elemento que sintetiza as contradições sociais e econômicas de toda a sociedade. Ali estão presentes os aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo. O sistema financeiro é intrinsecamente portador e reprodutor da desigualdade. Basta ver a diferença de tratamento na forma como são atendidos os clientes VIP e a grande massa de assalariados, aposentados/pensionistas e demais beneficiários de programas sociais. O sistema financeiro comporta um alto grau de assimetria entre aquilo que o economês chama de “agentes da oferta e agentes da demanda”. Um punhado de conglomerados que cabem nos dedos das mãos em relação comercial junto a centenas de milhões de usuários, correntistas e clientes. O sistema financeiro é espoliador de recursos e direitos da grande maioria dos indivíduos e empresas que são obrigados a se utilizar de seus serviços. Basta ver a quantidade de tarifas que conseguem cobrar (com a complacência dos órgãos fiscalizadores) e os lucros bilionários que conseguem acumular a cada exercício.

Tributação para promoção de maior justiça social
Esse é um dos argumentos para que ele seja o locus por excelência para se praticar maior grau de justiça fiscal e social. O princípio da Taxa Tobin também deve ser aplicado nas transações financeiras no interior do território nacional. Assim, caberia a criação de alíquotas progressivas desse tipo de imposto, de acordo com o valor das transações efetuadas. O valor da tributação pode ser absolutamente residual no âmbito de cada operação individualmente (era o caso da extinta CPMF), mas certamente resultará em volumes significativos, quando arrecadados no conjunto das atividades financeiras ao longo de um determinado período de tempo.

Finalmente, um sistema financeiro mais justo e solidário deve comportar alíquotas de imposto de renda mais elevadas, com o objetivo de promover um maior retorno social para os lucros acumulados privadamente no interior dos grandes conglomerados empresariais que o compõem. E veja que não cabe o argumento de que isso viria inviabilizar o sistema privado, em razão da suposta alta carga tributária. Trata-se apenas de reduzir a margem de lucratividade estratosférica do setor, obrigando a que as instituições que o integram participem de forma mais ativa de sua própria função social.

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*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

O analfabeto midiático (Por Celso Vicenzi)

“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões em torno de poema de Brecht, no século 21

Por Celso Vicenzi


Leia, ao final do texto, O Analfabeto Político, de Bertolt Brecht


O pior analfabeto é o analfabeto midiático.

Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos. Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.

Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.

O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.

O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”

O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.

Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.



O analfabeto político

O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.

Bertold Brecht

Breve inventário da desigualdade planetária (Por Inês Castilho)


Novo vídeo revela dados chocantes sobre injustiças globais. Exemplo: trezentas pessoas mais ricas da Terra têm mais que populações do Brasil, Índia, China e EUA

Por Inês Castilho

A crise do capitalismo e as revoltas populares que varrem o mundo vêm trazendo à consciência coletiva a desigualdade entre países e seres humanos. Os governos dos países ricos gostam de dizer que ajudam os países pobres, mas todo ano tiram, destes, dez vezes mais do que põem em forma de ajuda ao desenvolvimento. Eles se comprometeram a ajudar os pobres com cerca de 130 bilhões de dólares por ano, mas esse compromisso não vem sendo honrado: em 2012 a ajuda ao desenvolvimento registrou queda pelo segundo ano consecutivo, em razão das medidas de “austeridade” adotadas na zona do euro – segundo informação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A despeito dessa ajuda, a desigualdade continua crescendo. Uma das razões é que as grandes corporações estão levando mais de 900 bilhões de dólares anuais dos países pobres por meio de uma forma de evasão fiscal conhecida por “trade mispricing” (manipulação de preços comerciais). Além disso, os países pobres estão pagando aos ricos cerca de 600 bilhões de dólares em serviço da dívida – empréstimos que já foram quitados muitas vezes.

E depois há o dinheiro que os países pobres perdem em negociações realizadas sob regras comerciais impostas pelos países ricos. As políticas neoliberais que instituições internacionais como Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio impuseram aos países em desenvolvimento nas últimas décadas tiveram por objetivo forçar a liberalização dos mercados, de modo a dar às corporações multinacionais acesso sem precedentes a recursos naturais, terra e mão de obra barata. Os países pobres foram subtraídos em cerca de 500 bilhões de dólares por ano em consequência dessas políticas, de acordo com o economista Robert Pollin, da Universidade de Massachusetts.

Tudo somado, são aproximadamente 2 trilhões de dólares que saem das áreas mais pobres do mundo, todos os anos – o que leva a pensar que alguma coisa está errada com os fundamentos da economia global.

Números da desigualdade

Os números mostram a que extremo chegamos: as 200 pessoas mais ricas do mundo detêm cerca de 2,7 trilhões de dólares – mais riqueza do que as 3,5 bilhões mais pobres, que, juntas, somam 2,2 trilhões de dólares. Em números redondos, as 300 pessoas mais ricas da Terra têm riqueza maior do que as 3 bilhões mais pobres – quase metade da população mundial. Dito de outra forma, um pequeno grupo de pessoas, não mais que o necessário para encher um avião comercial, possui mais riqueza que as populações do Brasil, da Índia, da China, dos Estados Unidos – juntas.

Esse é o tema do vídeo de animação Change the Rules (Mude as Regras) – aqui legendado em português – realizado pelo coletivo britânico The Rules sobre a questão da desigualdade global. Ligado ao movimento Occupy, o grupo “busca mudar políticas, práticas e crenças que criam desigualdade e pobreza”.

Assim se constrói um planeta desigual (Por Ladislau Dowbor)


No preço decomposto do seu cafezinho emerge intermediação global, que espolia agricultores e provoca inflação cada vez mais segregadora

Por Ladislau Dowbor | Foto: Letícia Freire


A visão que herdamos é a de que lucro se gera na empresa, que paga aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Isto sem dúvida é verdadeiro, quer chamemos o valor obtido de lucro, de mais valia, ou, de maneira mais neutra, de excedente. Não há muito a acrescentar neste debate. O que queremos aqui focar é como este lucro se desloca na cadeia produtiva. É cada vez menos o produtor que se apropria do resultado do valor agregado de um determinado produto, e cada vez mais o intermediário. Um exemplo prático, extraído do excelente estudo sobre a aplicação de ciência e tecnologia à economia agrícola, nos dá a dimensão do problema¹.



O gráfico acima mostra como se forma a cadeia de preços de um produto, o café, à medida que avançamos na cadeia produtiva, desde a produção do grão pelo agricultor, até o momento em que é transformado na bebida que tomamos. Ou seja, a evolução do preço da porta da fazenda em Uganda, à porta do bar no Reino Unido, desde os 14 centavos de dólar pagos a quem produziu o café até o equivalente de 42 dólares que pagamos no bar.

É bom seguir a evolução das colunas, que representam o valor obtido em cada etapa: porta da fazenda, comercialização primária (trader price), colocado no porto em Mombasa, colocado em Felixstowe no Reino Unido, custo do produto após processamento na fábrica, preço na prateleira do supermercado e, finalmente, o preço sob forma de café para consumo (when made into coffee). Veja-se antes de tudo a participação ridícula do produtor de café, que arca com o grosso do trabalho. Depois, ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena.

O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no ”when made into coffee”, ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos.

Não há nada de muito novo nisto, todos sabemos do peso dos atravessadores, conceito inventado justamente para dar uma conotação negativa aos intermediários dos processos produtivos que ganham não ajudando, mas colocando gargalos, ou pedágios, sobre o ciclo produtivo. Mas o que queremos levantar aqui é que há um desequilíbrio muito forte entre os esforços que dedicamos ao estudo e divulgação da variação de preços no tempo, essencialmente a inflação, e o pouco que estudamos sobre a variação de preços dentro das cadeias produtivas. Aparecem de vez em quando, como no Globo Rural que apresentou produtores de tomate no Paraná que se recusavam a vender o produto ao preço de 13 centavos por quilo (quatro reais por caixa de 30 quilos), sabendo quanto o consumidor pagaria na feira.

O impacto econômico deste processo é simples: do lado do produtor, o lucro é insuficiente para desenvolver, ampliar ou aperfeiçoar a produção, e em consequência a oferta não se expande. Do lado do consumidor, o preço é muito elevado, o que faz com que o consumo também seja limitado. Quem ganha é o intermediário, com margens muito elevadas sobre um fluxo relativamente pequeno de produto.

A lógica da desintermediação, naturalmente, é reduzir os lucros gerados no pedágio, redistribuindo esta apropriação de mais-valia entre o produtor (que poderá produzir mais e melhor) e o consumidor (sob forma de preço mais baixo, o que permitirá consumo maior, absorvendo assim o fluxo maior de produtos). E o intermediário descobrirá que ao ganhar menos sobre um volume maior, voltará a ter a sua parte do bolo sem prejudicar a cadeia produtiva.

De onde vem este poder do intermediário de travar o processo para maximizar o seu lucro? Um outro gráfico do mesmo estudo ilustra bem a situação do pequeno produtor e do consumidor final frente ao “gargalo” dos grandes intermediários:


O título do gráfico é “a concentração do mercado oferece menos oportunidades para os agricultores de pequena escala”. Trata-se aqui essencialmente de entender a dificuldade da agricultura familiar. O sentido geral do gráfico, é que a ampla base na parte de baixo, representando os agricultores (small-scale farmers) é constituída por muitos produtores (mais de quatro milhões no Brasil), dispersos e portanto com pouca força. Forma-se depois um gargalo logo acima, ao nível dos traders (comercialização primária), e o gargalo se afina mais ainda no nível dos processadores do produto, e se mantém muito concentrado no nível dos varejistas. No nível dos consumidores, a ampulheta se abre novamente de maneira radical, pois são milhões os consumidores, sem nenhuma força individual para influenciar os preços. Quando perguntamos, nos consumidores do produto final, porque o preço subiu, nos dizem que o produto “está vindo mais caro”. Vindo mais caro de onde?

A importância deste tipo de estudos, que aparecem apenas ocasionalmente e em casos extremos, é que mostram onde surge efetivamente a inflação (é o momento de “salto” radical do preço), e portanto onde se trava também o desenvolvimento dos processos produtivos. Temos hoje inúmeras instituições que fazem um seguimento muito detalhado da inflação, inclusive porque é importante para o reajuste de aluguéis, de salários e assim por diante. Mas a análise sobre de onde vem a mudança do nível geral de preços busca os setores que se destacam (por exemplo os alimentos) e não as variações de preços dentro de cada cadeia produtiva.

Praticamente ninguém estuda onde o preço está sendo aumentado, em que elo da cadeia produtiva. Os dois gráficos que apresentamos acima são muito raros, e em todo caso nem sistemáticos nem regulares, no sentido de formar uma imagem da evolução no tempo. E no entanto todos os dados da composição de custos de cada produto existem, pois uma empresa precisa deles para definir o preço final de venda. O que é necessário é fazermos um tipo de engenharia reversa, tomando um produto final – por exemplo um medicamento – e verificar a evolução dos custos em cada nível de transformação e intermediação.

Isto permitiria, por exemplo, deixar mais claro o custo da intermediação financeira nos processos produtivos, outro tipo de gargalo que encarece muito o produto final e reduz a produtividade da cadeia. Permitiria também estimular investimentos complementares nas áreas do gargalo, de forma a diversificar a oferta e reduzir o efeito de cartelização (monopsônios ou oligopsônios, no jargão econômico). Seria um instrumento poderoso para o CADE identificar pontos de incidência para políticas anti-truste e de defesa de mecanismos de mercado. E melhoraria a relação de força dos produtores frente aos intermediários, cada vez mais desequilibrada.

O que não podemos é continuar a manter esta situação em que todos sabemos do entrave que representam os atravessadores de diversos tipos para a dinamização da produção e do consumo, mas não se produz nenhuma informação adequada sobre como se constrói o preço final de cada produto. Não basta medir a inflação, temos de ver como se gera, e quem a gera. Não é particularmente complexo comparar quanto vale no mercado atacadista o ácido ascórbico, a popular vitamina C, com o que pagamos na farmácia.

Em termos de dinamização do processo produtivo em geral, trata-se de identificar os gargalos que geram lucros extraordinários sem agregação de valor correspondente. São os elos da cadeia produtiva que inflam os preços e travam a expansão do ciclo produtivo. Com cada vez menos grandes intermediários atravessando as principais cadeias produtivas, trazer um pouco de luz para a compreensão da formação da cadeia de preços seria fundamental. As diversas instituições que hoje seguem a inflação com tanto detalhe poderiam, sem muita dificuldade, abrir uma janela de atividade promissora, e prestar um bom serviço para a racionalização dos processos produtivos.



¹ IAASTD – Agriculture at a Crossroad – International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development – Unep, New YORK, 2009

Martin Luther King Jr.

"A medida final de um homem não é onde ele fica nos momentos de conforto e conveniência, mas onde fica em fases de desafio e controvérsia." Martin Luther King Jr.

sábado, 24 de agosto de 2013

A terceirização da ética

"370 anos antes de Cristo (a.C), Hipócrates deixou como herança um juramento que serve de modelo até hoje, pra todo profissional da medicina, quando da diplomação.

Juramento de Hipócrates:

“Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.

Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.

Conservarei imaculada minha vida e minha arte.

Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.

Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.

Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.

Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.”

Em 1957, orador da turma, foi em cima desse ensinamento que ousei falar, ousei pregar, sob o título “A Função Social do Médico e os Imperativos da Hora Presente”.

Os anos passam, mas as verdades permanecem.

Pouco importa os desvios e os descaminhos dos que não honraram seu juramento, muitos, mais vítimas do que réus do sistema.

Todos nós sabemos que a Economia e a Ética nem sempre andam juntas.

Daí compreender que o economista Ministro da Educação, de maneira autoritária, não ouça os que praticam e ensinam a medicina no Brasil e ouse mudar currículos, determinar regras, estabelecer critérios, de maneira autoritária e interesseira, própria dos politiqueiros tradicionais desse país.

Data vênia, não é natural que o Ministro da Educação Mercadante, mercadeje com a dignidade da medicina brasileira.

Cousa pior faz o médico Padilha, juramentado com Hipócrates, terceirizando a mão-de-obra médica sob a alegação, sempre esperta e malandra de atender o interesse público.

Parabéns ao Ministério Público do Trabalho que atento, percebeu as contradições de um Governo que perdeu o respeito pela sua própria história.

Pouco importa que a mercantilização na medicina tenha acontecido, que a indústria farmacêutica tenha corrompido profissionais, fazendo da saúde um negócio.

Pouco importa que os erros médicos nesse país não sejam punidos como deveriam.

Pouco importa que não tenham planejado como Governo, a falta de profissionais médicos e paramédicos.

Pouco importa que tenham preferido estádios à hospitais.

Marx, Hegel, Bobbio, Adam Smith, Gramsci, pensaram muito sobre o problema da “mais valia”, tema atual até hoje.

Comprar mão-de-obra barata de maneira oficial entre governos, que serão remuneradas à critério dos patrões, é inacreditável.

O Brasil já vive a vergonha do aluguel do seu esporte preferido aos quadrilheiros da FIFA que além de suspenderem temporariamente a legislação brasileira, determinam regras até mesmo para os catadores de lixo e baianas vendedoras de acarajé, com a complacência inaceitável, dos que se dizem socialistas.

É a Economia sem Ética da “mais valia”, praticada pelos que tinham que ter mais consciência.

Em tempo, recebamos nossos médicos cubanos com solidariedade.

Que a saga trágica do povo cubano, que nós reverenciamos na juventude, na figura libertária de Che Guevara, seja respeitada.

Que os “médicos da família” que para aqui vêm, impedidos de trazer as suas próprias, protegidas como reféns, mereçam nossa acolhida e conforto.

Manipular necessidades sociais com uma visão oportunista e sacana, com medidas improvisadas, desagregando categorias profissionais, dividindo a sociedade, próprio de bandoleiros, exige coragem para serem denunciadas.

Escusas,

Saudações Democráticas.

JAISON BARRETO"

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

USA 2014

Estou precisando escrever sobre meu processo de intercâmbio. Como não quero ficar enchendo o saco dos amigos com isso, tampouco minha timeline do facebook - acendendo o pavio da inveja -, resolvi escrever aqui no blog mesmo, onde poucos acompanham e em geral não é povo que quer meu pescoço Hahahaa

Então... já passei na homologação da universidade (na qual é avaliado o mérito acadêmico), já passei na homologação parcial da CAPES (onde avaliam o ENEM e as vagas disponíveis) e já fiz o TOEFL, agora só aguardo a nota. Sinto que fui muito bem! Espero acertar no mínimo 50% (preciso de 35% para conseguir a bolsa).

Agora começo a ir atrás das cartas de recomendação e também de escolher as universidades.

Já optei por duas professoras para as cartas, espero que elas aceitem! Desenvolvi projetos legais com elas e creio que elas me conheçam bem para poder redigir a carta.

Em relação às universidades, já tenho algumas em mente, preciso pensar melhor sobre isso ainda... São elas: Harvard, Yale, John Hopkins, University of California - Los Angeles, Columbia University e University of Pittsburgh.

Preciso escolher três dessas aí. Vou focar em uma cidade com qualidade de vida, onde eu possa continuar sendo vegetariano, praticando Yôga e ao mesmo tempo fazendo um bom curso em Public Health, com algumas cadeiras em Fisiologia ou Anatomia, talvez.

No mais, em duas semanas vou tirar meu passaporte e já vou mandar traduzir meu histórico escolar.

Ou seja: tudo encaminhadinho!! Vou ir narrando aqui pelo blog minha trajetória. Não nego que isso tudo me deixa um pouco ansioso e eu preciso sublimar escrevendo! Heheeheh

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Felicidade (Por Vicente de Carvalho)

"Felicidade

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos"

Vicente de Carvalho

The Greatest Thing (Cher feat. Lady Gaga)


I don't know why you hurt inside,
Or what was said to make you cry
I hope that you can see
You are the greatest thing to me and when
You feel like you're not enough.
I'll give you wings, i'll lift you up.
I hope that you can see
You are the greatest, greatest thing to me.

I don't wanna waste another day,
I'm thinking of you,
Up, in the middle of the day.
And i can see you waste another day.

Cause when i'm with you i-i fall apart,
I see your permanently broken heart.
Baby, you're the greatest to me,
No, no matter what, what, what.

I don't know why you hurt inside,
Or what was said to make you cry
I hope that you can see
You are the greatest thing to me and when
You feel like you're not enough.
I'll give you wings, i'll lift you up.
I hope that you can see
You are the greatest, greatest thing to me.

I don't wanna waste another day,
I'm thinking of you,
Up, in the middle of day.
And i can see you waste another day.

Cause when i'm with you i-i fall apart,
I see your permanently broken heart.
Baby, you're the greatest to me,
No, no matter what, what, what.

I don't know why you hurt inside,
Or what was said to make you cry
I hope that you can see
You are the greatest thing to me and when
You feel like you?re not enough.
I'll give you wings, i'll lift you up.
I hope that you can see
You are the greatest, greatest thing to me.


Link: http://www.vagalume.com.br/cher/the-greatest-thing-traducao.html#ixzz2cQtr8wqB

Applause (Lady Gaga)


I stand here waiting for
You to bang the gong
To crash the critic saying
Is it right or is it wrong?

If only fame had an I. V
Baby could I bear
Being away from you, I
Found the vein, put it in here

I live for the applause, applause, applause
I live for the applause-plause
Live for the applause-plause
Live for the way that you cheer and scream for me
The applause, applause, applause

Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)
Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)

A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch
A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch

I've overheard your theory
"Nostalgia's for geeks! "
I guess sir, if you say so
Some of us just like to read

One second I'm a Koons then
Suddenly the Koons is me
Pop culture was in art
Now art's in pop culture, in me!

I live for the applause, applause, applause
I live for the applause-plause
Live for the applause-plause
Live for the way that you cheer and scream for me
The applause, applause, applause

Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)
Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)

A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch
A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch

Touch, touch
Touch, touch now

I live for the applause, applause, applause
I live for the applause-plause
Live for the applause-plause
Live for the way that you cheer and scream for me
The applause, applause, applause

Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)
Give me that thing that I love
(I'll turn the lights out)
Put your hands up make 'em touch
(Make it real loud)

A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch
A-P-P-L-A-U-S-E
(Make it real loud)
Put your hands up make 'em touch, touch
A-R-T-P-O-P

Link: http://www.vagalume.com.br/lady-gaga/applause.html#ixzz2cQqCGmN9

sábado, 17 de agosto de 2013

A mobilização que você faz dentro de si (Por Katia Marko)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-mobilizacao-que-voce-faz-dentro-de-si/)

“Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém”. Essa pequena frase da música Berimbau, do poetinha Vinícius de Moraes, tem me feito refletir muito. Principalmente nestes tempos de ressignificação da vida e busca de maior liberdade. Acredito que o mundo está em transformação, mas o que será ainda não dá para saber. Porém, podemos capturar algumas experiências e ir arriscando palpites.

Quando decidi morar em uma comunidade, o maior conflito era abandonar o “eu”, ou seja, a minha casa, o meu carro, os meus interesses, o meu umbigo. E continua sendo, de alguma forma, pois não é fácil soltar condicionamentos. Vivemos em uma cultura narcisista, na qual a imagem é mais importante do que a realidade. A idéia de rendição e entrega é muito impopular, pois consideramos a vida uma luta, uma batalha. O objetivo é vencer, obter conquistas, algum sucesso. O fazer é mais importante do que o ser. O sucesso proporciona auto-estima, mas somente porque inflaciona o ego. Já o fracasso surte o efeito oposto. Nesse cenário, os termos rendição e entrega, equivalem a ser derrotado, mas, na realidade, é apenas a derrota do ego narcisista. E sem essa rendição, é difícil entregar-se ao amor.

Leonardo Boff defende que o grande desafio atual é conferir centralidade ao que é mais ancestral em nós, o afeto e a sensibilidade. “Numa palavra, importa resgatar o coração. Nele está nosso centro, nossa capacidade de sentir em profundidade, a sede dos afetos e o nicho dos valores.” Arrisco enveredar por um caminho não muito fácil, para afirmar que iniciativas cá e acolá me fazem acreditar que estamos resgatando a confiança no ser humano. Bem, na minha visão, é isso que significa as novas formas de viver que estão pipocando pelo mundo.

Notícias como a que “1200 catalães praticam a autogestão com moeda, educação e saúde próprias”, com a expansão para a França e a Itália, ou de que a  “Crise na Grécia estimula criação de comunidades sustentáveis”, ou ainda a experiência vivida pelos jovens organizados nas casas do Fora do Eixo, no Brasil, demonstram que formas alternativas estão sendo buscadas. Claro que existem problemas, contradições e insatisfeitos. E isso acontece em qualquer ação. Mas o importante é que existem pessoas que querem furar o “esquema”.

“Jamais a humanidade dispôs de tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas (…) Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade”. Essas são as primeiras frases do Manifesto do Convivialismo, outra descoberta que fiz recentemente.

O seu idealizador é Alain Caillé, sociólogo fundador do MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), que conseguiu reunir e fazer trabalhar junto um grupo de 64 pesquisadores e universitários procedentes do mundo inteiro, de sensibilidade altermundista, ecologista, ou oriundos do cristianismo social, como Edgar Morin, Susan George, Patrick Viveret, Serge Latouche, Elena Lassida, Jean Baptiste de Foucauld, Jean Pierre Dupuy, Jean Claude Guillebaud, entre outros. O resultado é a elaboração de uma nova base doutrinal filosófica, o convivialismo, para responder às quatro grandes crises – moral, política, econômica e ecológica – vividas pelas nossas sociedades nesse início do século XXI.

Segundo o manifesto, para além do liberalismo, do socialismo ou do comunismo, devemos inventar um convivialismo, uma convivialidade, dito em outras palavras, a arte de viver juntos mesmo nos opondo, mas sem nos massacrarmos e levando em conta a finitude e a fragilidade do mundo.

É claro que tenho a noção de que são iniciativas ínfimas, mas são passos na direção da invenção do novo. Voltando ao Leonardo Boff, vou reproduzir dez pontos cruciais, apontados no livro “Cuidar da Terra, proteger a Vida, como evitar o fim do mundo”. Segundo ele, representam experiências humanas que não podem ser desperdiçadas, pois incorporam valores que poderão alimentar novos sonhos, nutrir nossa imaginário e, principalmente, fomentar práticas alternativas.

O primeiro é reconhecer que a Terra é Mãe (Magna Mater, Pacha Mama), um superorganismo vivo, chamado Gaia, que combina todos os elementos físicos, químicos e biológicos para manter-se apta a produzir e reproduzir, mas que é finito, com recursos escassos.

O segundo é resgatar o princípio da re-ligação: todos os seres, especialmente, os vivos, são interdependentes e são expressão da vitalidade do Todo que é o sistema-Terra. Por isso todos temos um destino compartilhado e comum.

O terceiro é entender que a sustentabilidade global só será garantida mediante o respeito aos ciclos naturais, consumindo com racionalidade os recursos não renováveis e dar tempo à natureza para regenerar os renováveis.

O quarto é o valor da biodiversidade, pois é ela que garante a vida como um todo, pois propicia a cooperação de todos com todos em vista da sobrevivência comum.

O quinto é o valor das diferenças culturais, pois todas elas mostram a versatilidade da essência humana e nos enriquecem a todos, pois tudo no humano é complementar.

O sexto é exigir que a ciência se faça com consciência e seja submetida a critérios éticos para que suas conquistas beneficiam mais à vida e à humanidade que ao mercado.

O sétimo é superar o pensamento único da ciência e valorizar os saberes cotidianos, das culturas originárias e do mundo agrário porque ajudam na busca de soluções globais.

O oitavo é valorizar as virtualidades contidas no pequeno e no que vem de baixo, pois nelas podem estar contidas soluções globais, bem explicadas pelo efeito borboleta.

O nono é dar centralidade à equidade e ao bem comum, pois as conquistas humanas devem beneficiar a todos e não como atualmente, a apenas 18% da humanidade.

O décimo, o mais importante, é resgatar os direitos do coração, os afetos e a razão cordial que foram relegados pelo modelo racionalista e é onde reside o nicho dos valores.

Esperança em tempos fraturados (Por Rogério Ferreira de Souza* e Carlos Eduardo Rebuá Oliveira**)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/esperanca-em-tempos-fraturados/)

Desencantamento com Fúria
Estreou há pouco no Brasil o instigante filme do diretor francês Olivier Assayas, “Depois de Maio”. A obra tratou de pôr em tela toda efervescência juvenil do pós-1968, capturando, inicialmente, toda a explosão cultural e os inúmeros caminhos de possibilidades libertárias e democráticas que a juventude francesa (e mundial) acreditara atingir. Era a promessa de uma nova década, de um novo milênio e de uma nova sociedade mundial. Em defesa desses ideais estes jovens não se furtaram à luta, ao enfrentamento sempre em situações desiguais com o aparato policial militar. Todavia, isso pouco importava. A causa da luta era maior! O diretor, no entanto, vai além do clichê revolucionário e apresenta um desvanecer lento e melancólico, onde sonho e realidade concreta entram em rota de colisão levando os jovens protagonistas ao desencanto anestesiador. São engolidos pelo mar da cotidianidade em que necessidades materiais se pautam prementes ao mundo capitalista. Emprego, carreira, status, situação financeira, enfim: cai-se o véu e o mundo os engole. Iniciara o que os teóricos sociais ulteriores classificariam como juventude alienada, como uma fração social desinteressada, desmotivada, despolitizada. Uma juventude sedenta por individualização narcísica e fugaz, uma juventude neoliberal.

O filme de Assayas, trazido aqui como introdução, permite-nos, ao contrário da proposta do desencanto, do olhar lacrimal da esperança perdida e do que ficou benjaminianamente retido na aura dos movimentos de 1968, refletir sobre as inúmeras manifestações públicas promovidas e lideradas por jovens em nossa sociedade. Destarte, propõem-se dois pontos de reflexão: primeiro, pensar no que eles têm a dizer quando se manifestam violentamente pode ser um caminho aberto para entender a nossa sociedade e o “legado” de encantamento propagado pelos megaeventos? E, além disso, como e por que o dito Estado Democrático de Direito lança mão de práticas do Estado de Exceção para lidar com as mobilizações públicas promovidas pelos jovens?

Nas franjas do processo
Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de valor
é o que permanece no dia seguinte, ou como
nossa vida cotidiana é modificada.
(Slavoj Zizek)

A advertência que o filósofo esloveno faz às manifestações populares no mundo contemporâneo são sérias e de profunda reflexão. No entanto, só poderão ser apreendidas em sua totalidade em outro momento, em um pós-processo. Cabe-nos,mesmo que epidermicamente captar o momento, perceber diferenças e continuidades.

Parafraseando a afirmativa que Karl Marx e Friedrich Engels fizeram na abertura do Manifesto do Partido Comunista, há mais de 150 anos atrás – “Um Espectro ronda a Europa” – pode-se dizer que um espectro hoje também está a rondar. Um espectro que já se materializou nas ruas, nas praças, nas avenidas das grandes metrópoles mundiais.

Um espectro que assim como o movimento comunista do século XIX, descrito por Marx e Engels, vem questionando e tensionando os poderes estabelecidos do status quo capitalista. A juventude contemporânea vem assumindo um papel de protagonista nas manifestações e levantes populares dos últimos anos e trazendo para a arena pública questões candentes às toda a população. Queremos democracia diziam os jovens egípcios na Praça Tahrir! Queremos nossos empregos e salários, bradavam os jovens gregos! Queremos um novo tipo de capitalismo, “Main Street, not Wall Street” argumentavam os norte-americanos no movimento Occupy Wall Street! Queremos vida digna e o fim da corrupção no governo, em coro gritavam os “Indignados” na Espanha! Queremos um transporte digno, cidadão e público, protesta o Movimento Passe Livre nas capitais do Brasil!

Do ponto de vista dos enunciados proferidos pelos jovens manifestantes mundo afora, diferentemente do que foi a década de 1980, como demonstrado por Manuel Castells, esses novos movimentos e manifestações públicas não se fragmentam em lutas isoladas por identidades, etnias, de gênero etc. Eles lutam e reivindicam causas comuns, ou seja, são contra o modelo econômico capitalista financeiro e contra a forma de democracia representativa. Seja nos EUA, seja nos países europeus, seja na América Latina, a insatisfação contra um sistema político e econômico é a tônica desses novos movimentos, dessas manifestações públicas e desses enfrentamentos com poder policial. A ocupação de praças, avenidas, prédios e espaços públicos carregados de significados torna-se expressão máxima da indignação contra o modelo hegemônico que centralizou grande parte das discussões/questões políticas, sociais e econômicas das últimas quatro décadas.


Foto do Movimento Passe Livre em São Paulo: ação política não apenas nas redes sociais
Mas quem são esses jovens? O que pensam e o que desejam? Seriam eles a antítese do movimento proletariado que nos anos de 1980, com as greves do ABC paulista, apresentava ao país as alternativas para um estado democrático e mais justo? Seriam eles o início de um novo partido político, ou de uma nova concepção política?

Talvez seja cedo e precipitado para apresentarmos uma radiografia exata da composição orgânica dessa juventude; porque talvez, esta mesma consciência do que eles sejam, do que pensam e do que idealizam não esteja clara na própria juventude. O que é claro e significativo, e isso não resta dúvida, é a motivação voluntária que esses jovens, organizadores e participantes dos movimentos e manifestações expressam na arena pública. São estudantes universitários em sua maioria, sensíveis aos problemas sociais que atravessam toda a sociedade, principalmente os mais frágeis e vulneráveis. Por isso seu caráter emergencial. Querem produzir ruídos. Querem ser ouvidos e levados a sério. Por isso estão no dissenso. Política para os debaixo não se faz no consenso. Faz-se na luta, no grito, no se fazer presente.

O que estamos acompanhando recentemente no Brasil, com o Movimento Passe Livre, olhando retrospectivamente, vem sendo um movimento com forte participação dos jovens desde as manifestações anti-globalização nos anos de 1990. O que se pode perceber é um continuum do processo. Pensando por esse ponto de vista, o que hoje parece tomar de assalto os governantes e a as camadas conservadoras da sociedade, como algo isolado de “baderna e vandalismo”, faz eco a um processo muito maior de insatisfação social a nível mundial. A juventude brasileira que se manifesta pelas grandes avenidas das cidades não estão “atrasadas” em relação às lutas e manifestações mundiais. Estão inseridas em um sincronismo dialógico com as grandes demandas sociais. O que se mostra estar na contramão, em um profundo diacronismo em relação às conquistas e avanços políticos no âmbito das democracias são os governos, seus mandatários e seus aparelhos repressores. Como será visto a seguir.

Estado de Exceção na contemporaneidade e a relação força-consenso


E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória

A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
(Canción por la unidad latinoamericana,
Chico Buarque e Pablo Milanés)

Há exatos 35 anos, em junho de 1978, ocorria na Argentina a 11ª Copa do Mundo de Futebol da Fifa, durante um dos seis governos oriundos de golpes civil-militares ocorridos naquele país no século XX. Este, o mais brutal deles (1976-1983), responsável pela morte/desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas, soube utilizar o megaevento futebolístico como propaganda do regime e propulsor do ufanismo, coroado com o primeiro título em Copas do Mundo daquele país. Do outro lado, a juventude, militantes da esquerda, movimentos sociais, parentes de vítimas, jornalistas engajados, identificavam naquele evento uma oportunidade para, através das agências de notícia internacionais, romperem o silêncio imposto e denunciarem o terrorismo de Estado apoiado e financiado por Washington. O mundo tomaria conhecimento do período de “amnésia obrigatória”, como diz Eduardo Galeano (1), e a Copa argentina teria seu “efeito colateral”: a divulgação detalhada do Estado de Exceção no país.

Hoje, às vésperas da Copa das Confederações da Fifa, a ante-sala da Copa de 2014, inúmeras manifestações – capitaneadas pela juventude — ocorrem nas grandes capitais brasileiras, tendo como pauta as mais variadas reivindicações, notadamente a diminuição/supressão do preço das passagens de ônibus. A reação do chamado Estado de Direito brasileiro tem sido imediata e violenta (como em tantos outros episódios), reprimindo com vigor aqueles que no discurso da grande mídia são taxados como “marginais”, “arruaceiros” e “bárbaros”.

Com Gramsci, entendemos que tais manifestações são, na grande maioria, de caráter econômico-corporativo (redução do preço das tarifas do transporte urbano), com alguns “ensaios” de reivindicações mais “políticas”. Pelo menos até aqui. Os participantes de tais atos são em sua maioria jovens estudantes e trabalhadores, mas o caráter heterogêneo (e as redes sociais, instrumentos importantes na divulgação/organização de diversas manifestações em todo o mundo, contribuem para essa diversidade) e “aberto” do movimento não permite rotulações, enquadramentos teóricos. Ao mesmo tempo em que produz ações espontaneístas, reúne grupos com pautas políticas mais sólidas, mais organizados (sobretudo oriundos dos setores médios); da mesma forma que quem quebra uma vidraça pode ser um trabalhador  indignado, também pode ser um representante de algum grupo mais radicalizado. Todavia, como de praxe, os atos violentos, independente de como e por quem foram praticados, são fundamentais para a pasteurização ideológica realizada pela imprensa burguesa, que homogeneíza os manifestantes (todos são violentos!) ao mesmo tempo em que deslegitima sua luta, dando seu aval para o uso indiscriminado da força por parte do Estado. É fundamental frisar que não estamos condenando ações mais radicalizadas e seus significados: a quebra de máquinas do ludismo do XIX tem seus equivalentes no presente, quando, por exemplo, um ônibus é depredado, pois materializa/simboliza o capital das empresas de transporte coletivo.

É imprescindível dizer que a violência pré-megaeventos não começou nesta semana e não se resume ao enfrentamento nas/das ruas. Já há algum tempo, as cidades sede da Copa de 2014 têm sido o palco das chamadas “limpezas urbanas” (“modernizações” no discurso oficial) já há algum tempo, em que remoção de pessoas à força de suas casas, proibição do direito de greve durante os eventos, destruição de centros de cultura, privatização do espaço público, dentre outras ações, têm provocado enfrentamentos entre o poder estatal – sob a égide do grande capital (imobiliário, financeiro, industrial, etc.), “dono” dos megaeventos em associação com o poder político federal, estadual e municipal – e a sociedade civil.

A partir de Agamben entendemos que o Estado de Exceção não se restringe aos períodos de ditaduras civil-militares, mas representa um modus operandi, um recurso “sempre à mão” dos governos das sociedades atuais, ditos democráticos:

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o
estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e
excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de
fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se,
nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo (AGAMBEN, 2004, p. 13).

A concepção do filósofo italiano coaduna com a perspectiva de um clássico conterrâneo seu: Antonio Gramsci. Para Gramsci, o Estado é o somatório dialético da sociedade política (aparato burocrático-repressivo) com a sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia), ou seja, hegemonia revestida de coerção, força e consenso, orquestrados magistralmente pelo establishment burguês. Segundo ele, a força nunca pode “pesar” demais sobre o consenso e deve se apoiar na aprovação da maioria, expressa por intermédio dos canais de opinião pública, os quais se destacam os meios de comunicação e a escola/universidade, por exemplo. Da mesma forma, o consenso, a adesão a uma agenda, a uma ordem social, somente são garantidos se a iminência do uso da força estiver sempre presente. Em suma, para o intelectual marxista a supremacia de um grupo social se manifesta de duas formas: pela força e pelo consenso. Por mais que o domínio de uma classe seja consensual, tal classe não pode nunca prescindir da força, e de maneira dialética, o uso exclusivo da força não garante o poder de uma classe e suas frações sobre as demais.

Com o desquite cada vez maior entre capitalismo e democracia – como afirma Zizek (2) - e com o acirramento da luta de classes em várias regiões do mundo (destaque para a Primavera Árabe em 2010, o Occupy Wall Street em 2011 e os atuais movimentos em Espanha, Portugal, Grécia, etc.), o Estado de Exceção, o uso da força como garantia da hegemonia tem se tonado “regra” em diversos países, como pudemos ver há semanas nas grandes capitais brasileiras. No campo do consenso, é quase imediata a ação do partido-mídia – na ascepção gramsciana – e seus porta-vozes da sociedade civil, que criminalizam qualquer forma de intervenção política mais incisiva e negam cinicamente as demandas sociais, políticas, econômicas destes indivíduos/grupos que se manifestam, quando não negam sua própria existência: Quem são eles? O que querem? De onde vêm?, esbraveja a grande mídia.

Como exemplos do discurso dos grupos dominantes, podemos citar o chefe da casa civil da Prefeitura Rio de Janeiro (gestão Eduardo Paes), Régis Fichtner (3), e o cientista político Fernando Luis Schüller (4), diretor do IBMEC/RJ. Ambos defenderam  na mídia televisiva, nos últimos dias, que as manifestações se referem a “questões ideológicas/políticas”, ou seja, não representam demandas materiais, reais dos trabalhadores/estudantes. Schüller chega a afirmar que tais manifestações reúnem “pessoas que querem aparecer” e “pessoas/movimentos marginais do sistema político tradicional”.


Tropa de choque da polícia de São Paulo “fecham” a Rua Augusta impedindo passagem de manifestantes: choque de ordem é a ordem do choque
Obviamente, não quisemos igualar a ditadura argentina dos anos 1970/80 com o Brasil de hoje, tampouco afirmar que tais manifestações foram previamente planejadas para ocorrerem na conjuntura dos megaeventos. Ainda que não se possa afirmar categoricamente que há uma vinculação, também não se pode negar o uso político disso por parte dos manifestantes/movimentos. Nossa intenção foi provocar reflexões acerca da necessidade de um Estado de Exceção mesmo em regimes caracterizados como democráticos, bem como instigar no leitor o esforço de construção de uma análise de conjuntura, que seja capaz de enxergar as dinâmicas/necessidades atuais do capital, onde os megaeventos – direta ou indiretamente – afetam a vida das populações, seja com os pesados investimentos direcionados para as obras (em detrimento de inversões na saúde, educação, transportes, habitação, etc.), seja com o não-beneficiamento das cidades-sede com obras de mobilidade urbana, infraestrutura, etc., agravando ainda mais o atual estado de coisas, que não está “bem” nem nas lentes da tevê e seu espetáculo.

Tais questões não são apenas circunstanciais ao calor da hora, ao “the Day after” da forte repressão policial às manifestações populares, ocorridas em junho de 2013, em várias cidades do país. Essas questões são imprescindíveis ao debate político, acadêmico e social que esta juventude nos traz ao imprimir no espaço público a urgência da mudança em nossos “tempos fraturados (5) ”.



*Rogério Ferreira de Souza – Economista, Doutor em Ciências Sociais pela UERJ e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro –  IUPERJ/RJ

**Carlos Eduardo Rebuá Oliveira – Historiador, Doutorando em Educação pela UFF e professor da graduação bilíngue em Pedagogia do Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES/RJ

(1) Extraído de: http://www.dhnet.org.br/desejos/sentidos/delirio/ddelirio.htm Acesso em 14 de junho de 2013.

(2) Extraído de: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18669 Acesso em 14 de junho de 2013.

(3) Extraído de: http://www.espbr.com/noticias/copa-vai-ocorrer-relacao-manifestacoes-diz-ministro-esporte

(4) Tal afirmação ocorreu no programa do canal Globo News, Entre Aspas, no dia 13 de junho de 2013, no debate com o professor da PUC-SP e cientista político Lúcio Flávio de Almeida. O debate/entrevista, na íntegra, está disponível em: http://globotv.globo.com/globo-news/entre-aspas/v/especialistas-discutem-osmotivos-e-efeitos-das-manifestacoes-em-sao-paulo-e-rio/2633797/ Acesso em 14 de junho de 2013.

(5) Obra póstuma do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, lançada este ano (2013).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. In: A era da Informática: Economia, Sociedade e Cultura. Volume 2. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX. Cia das Letras: São Paulo, 2013.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.
QUINO. Toda Mafalda. Rio de Janeiro: Martins Fontes Editora, 2002.
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2012.

Frijof Capra polemiza, no Brasil, sobre sustentabilidade (Por Leonardo Boff)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/frijof-capra-polemiza-no-brasil-sobre-sustentabilidade/)

Fritjof Capra é um dos pensadores mais importantes no campo da ecologia entendida como novo paradigma. Amigo e interlocutor, juntos temos acompanhado o grande projeto Cultivando Água Boa, da Itaupu Binacional que ele considera como um dos experimentos ecológicos mais bem sucedidos do mundo. Ofereceu-se para escrever o prefácio do livro que escrevi com o pedagogo/cosmólogo Mark Hathway, “O Tao da Libertação”: explorando a ecologia da transformação, Vozes 2012. Publicamos aqui o resumo desta conferencia dada no Brasil nos inícios de julho  porque esclarece este conceito tão usado e tão mal compreendido: sustentabilidade. Seus livros  O Tao da Física e Teia da Vida são fundamentais para entender as posições mais avançadas e cientificamente mais bem fundadas da ecologia. A reportagem (a seguir) foi publicada no site “Carbono Brasil”.

O físico abriu a sua fala buscando esclarecer o que seria o conceito de sustentabilidade, que tem assumido diversas formas desde a sua concepção na década de 1980.

“Não é o que os economistas gostam de falar – sobre crescimento econômico e vantagens competitivas”, colocou. “Uma comunidade sustentável deve ser desenvolvida de forma que a nossa forma de viver, nossos negócios, nossa economia, tecnologias, e estruturas físicas não interfiram na capacidade da natureza de sustentar a vida. Devemos respeitar e viver de acordo com isto”.

Os primeiros passos para tal seriam entender como a natureza sustenta a vida, isso envolve toda uma nova compreensão ecológica, um pensamento sistêmico, explica Capra.

“Não podemos mais enxergar o universo como uma máquina, composta de blocos elementares. Descobrimos que o mundo material é principalmente uma rede inseparável de relações. O planeta é um sistema vivo e auto-regulado. A evolução não é uma luta competitiva pela existência, mas sim uma dança cooperativa.”

Nesta nova ênfase na complexidade, as redes são o padrão básico da organização dos seres vivos. Os ecossistemas são uma rede de organismos, por exemplo. Para compreender as redes, Capra explica que precisamos pensar em termos de relacionamentos, de padrões.

“Isto é o pensamento sistêmico. É compreender que a natureza tem sustentado a ‘Teia da Vida’ por milhões de anos e que para isto são necessários ecossistemas e não apenas organismos ou espécies.”

Alfabetização Ecológica

Nas próximas décadas, a sobrevivência da humanidade vai depender da nossa capacidade de entender os princípios básicos da ecologia e de viver de acordo com eles, ressalta o físico. Isso significa que a alfabetização ecológica precisa se tornar um campo crítico para políticos, lideres empresariais e profissionais de todas as áreas, além de ser a parte mais importante da educação em todos os níveis.

“Quando pensamos sobre os maiores problemas, o surpreendente é que estão interconectados. Não temos apenas uma crise econômica, ou ecológica, ou de pobreza, ou financeira, elas estão todas conectadas. Esses problemas não podem ser compreendidos isoladamente. São sistêmicos, interdependentes e precisam de soluções correspondentes”.

Capra elogiou o Programa Água Boa, desenvolvido pela Itaipu Energia, classificando a iniciativa como um “exemplo muito bonito de solução sistêmica”.

“Analisando os problemas atuais dessa forma sistêmica, podemos constatar que a questão subjacente é a ilusão que o crescimento infinito pode continuar em um planeta finito. Os economistas, com o seu pensamento linear, parecem não entender”, lamenta o físico.

“Nosso sistema econômico é movido pela ganância e pelo materialismo, pensando que não há limites. Isto resulta nas diferenças imensas entre o preço de mercado e o verdadeiro custo, como é visto com os combustíveis fósseis. Ouvimos sobre o gás de xisto e o novo processo de ‘fracking’ – ouvimos que é muito barato, mas o fato é que devasta o ambiente e é tóxico para as pessoas (..) O pensamento linear leva a concluir que o xisto é muito barato, mas se pensarmos nisso sistemicamente, ele é muito caro e perigoso”, explica Capra.

“No centro da economia global está uma rede de crescimento financeiro, criado sem qualquer enquadramento ético. Hoje, se você é especulador pode investir em qualquer projeto ao redor do mundo e computadores levam uma fração de segundo para movimentar dinheiro. O único critério é lucrar (..) não há critérios éticos envolvidos nesta economia global. Exclusão social e desigualdades são elementos inerentes desta globalização.”

O crescimento indiscriminado é na verdade “uma doença”, nota, completando que o desafio elementar é como mudar do crescimento ilimitado para um sistema ecologicamente sustentável e socialmente justo.

Crescimento qualitativo

Para Capra, o crescimento zero não é a resposta, pois crescer é uma característica central da vida.

“Na natureza o crescimento não é linear e ilimitado. Em um ecossistema, uns crescem mais, outros declinam e assim reciclam seus componentes, que se tornam recursos para um novo crescimento. Há um crescimento multifacetado, qualitativo, que contrasta com o quantitativo pregado atualmente por economistas”.

Assim como outros grandes pensadores, Capra questiona o uso preponderante Produto Interno Bruto (PIB) para medir a saúde dos países.

Custos sociais como acidentes, guerras, mitigação e cuidados com a saúde são adicionados e aumentam o PIB e o fato que o seu crescimento pode ser patológico raramente é citado por economistas, alerta.

“Esse reconhecimento da falácia do crescimento econômico é essencial. É o primeiro passo para superar a atual crise econômica global (..) Grande parte do que se chama de ‘crescimento’ é lixo e destruição.”

O verdadeiro crescimento, explica, melhora a qualidade de vida e aumenta a sua complexidade, sofisticação e maturidade.

“Isto faz parte de uma mudança de paradigma de quantidade para qualidade. O crescimento qualitativo é consistente com a nova concepção científica da vida”, explica. “Não se pode medir a natureza de um sistema complexo, como os ecossistemas, a sociedade ou a economia, em termos puramente quantitativos.”

Para Capra, a qualidade não pode ser agregada em um único número. “Então, como seria possível promover o crescimento qualitativo? Definitivamente não através do PIB”.

“Precisamos distinguir o bom do ruim para que os recursos naturais presos a processos ruins possam ser direcionados para os eficientes e sustentáveis”, comentou. “O crescimento ruim é aquele que gera externalidades ambientais, econômicas e sociais e o bom envolve processos produtivos mais eficientes, que usam energias renováveis, têm emissões zero, reciclam, restauram ecossistemas e a apoiam as comunidades locais.”

Construindo a qualidade

Entender as conectividades dos nossos problemas globais e reconhecer soluções sistêmicas é a primeira lição para construir a qualidade que precisamos hoje para a liderança global, segundo Capra. Outra lição seria a construção de um ‘senso moral’.

A perspectiva sistêmica mostra que dois problemas urgentes, a desigualdade econômica e as mudanças climáticas, resultam da estrutura econômica e corporativa global que não têm ‘senso moral’, nota.

Um exemplo disso são as conclusões de um estudo de 2012 apontando que os ricos globais somam juntos até US$ 32 trilhões. “Se eles tivessem um senso moral e pagassem seus impostos não haveria mais crise. Haveria dinheiro suficiente”, ressaltou Capra.

Outro exemplo citado pelo físico se volta para as conclusões inequívocas da ciência sobre as mudanças climáticas e a necessidade das empresas que exploram combustíveis fósseis de abandonar os planos de exploração de 80% das reservas contabilizadas em seus ativos.

“Elas estão dispostas a fazer isso? As empresas precisam se perguntar: o meu modelo de negócios inclui a destruição do planeta? Ou tem uma alternativa moral?”

Liderança e o Brasil

“Hoje temos conhecimento e tecnologia para a transição para um futuro sustentável, não precisamos dos perigos da energia nuclear e nem de gás de xisto. Podemos ir além dos combustíveis fosseis”, defendeu Capra.

“Precisamos de vontade política e liderança (..) O que em tempos estáveis é diferente do que em tempos de crise ambiental e econômica, que é o que temos hoje. A maioria dos problemas são globais, apesar da demanda por lideranças em nível regional e corporativo, precisamos também de lideranças em nível global”.

Capra ressalta que na atual crise global, o Brasil e a Alemanha estão melhor posicionados do que a maioria dos países.

Ele comentou que nos Estados Unidos, Barack Obama foi eleito com grandes esperanças, mas sucumbiu ao sistema corrupto, e no fim, a riqueza dos pobres está sendo sistematicamente repassada para os ricos. Porém, ele acredita que no Brasil a situação está melhor, apesar da população não estar satisfeita.

“Programas como o Bolsa Família e o Fome Zero reduziram a desigualdade econômica ao retirar milhões de pessoas da pobreza, mas mesmo assim muitos problemas de desigualdade e corrupção permanecem e ainda há muito trabalho a ser feito.”

“O Brasil pode ser um líder global”, ressaltou após assistir apresentações sobre o Programa Água Boa e sobre as ações de sustentabilidade previstas para a Copa de 2014. “Estes são ótimos exemplos de liderança global que precisam ser divulgados. O que pode acontecer no ano que vem, já que todo o mundo vai olhar para o Brasil”.

Fora do Eixo: obstáculos brasileiros ao surgimento do novo (Por Luis Nassif)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/fora-do-eixo-obstaculos-brasileiros-ao-surgimento-do-novo/)

O Brasil sempre enfrentou enormes barreiras para aceitar mudanças de paradigmas. Há uma intolerância exacerbada que quase sempre desagua na fulanização e nos julgamentos pessoais.

É o que está ocorrendo com a discussão que se instaurou sobre a Casa Fora do Eixo e a Mídia Ninja — as duas experiências coletivistas, objetos de um programa Roda Viva, que já comentei.

Nos portais de jornais e nas redes sociais explodiu um amplo processo de desconstrução, brandido à esquerda e à direita, deixando para segundo plano o essencial: a análise e a celebração das novas práticas, dos novos modos de produção abrindo um horizonte até então inimaginável, graças ao conceito de rede social.

***

É interessante analisar a quebra de paradigma trazida por essas experiências e a razão de terem despertado a ira tanto da esquerda quanto da direita.

A reação da direita deveu-se ao caráter coletivista de ambas as experiências. Nos dois casos, são comunidades trabalhando de forma articulada, em cima de modelos de atuação claros – porém impensáveis para quem só entende o trabalho a partir do modelo de chefia-subordinados-tarefas com horário e funções determinadas.

Para dinossauros da direita, todo trabalho coletivo é socialista e contra os meios de produção e de mercado. Vem daí sua resistência.

***

A resistência da esquerda é em direção contrária. O grupo é coletivista, sim, mas trabalha de acordo com leis de mercado.

As Casas Fora do Eixo são comunidades espalhadas por todo o país coordenando shows, turnês de grupos, abrindo espaço para artistas de diversas regiões e da periferia.

Conquistaram espaço com sua estrutura de shows, com as formas de divulgação e com a organização, que lhes permite participar de editais públicos.

São vistos por parte da esquerda e dos artistas como exploradores.

De fato, não há nada de mais mercado do que desenvolver uma marca, um modo de produção, uma estrutura de distribuição e de captação de recursos e se beneficiar desses ativos.

***

Esse é o dado importante, não a análise do caráter, oportunismo, esperteza e outros aspectos pessoais dos seus líderes.

Se as Casas Fora do Eixo representam um novo modo de produzir cultura, a Midia Ninja explora um novo modo de fazer jornalismo, coletivo, tecnicamente imperfeito mas muito mais dinâmico do que o telejornalismo convencional.

***

É praticamente impossível que ambas as formas de produção se tornem hegemônicas – e reside aí outro vício da crítica. “Jamais poderão substituir as formas tradicionais”, e bordões do gênero.

Mas é claro que não. São propostas alternativas válidas e que fazem o contraponto, assim como fazem blogs e portais alternativos.

Essa é a raiz da democracia e do mercado: a criação de novos ambientes que permitem o florescimento de práticas alternativas, algumas das quais poderão ganhar dimensão maior, outras desaparecendo na poeira.

Hoje em dia, no ambiente da Internet e da produção audiovisual vicejam essas formas novas de produção, de parcerias, de sistemas horizontais de produção.

O futuro já chegou no dia-a-dia dos TICs (Tecnologia da Informação e da Comunicação) e nas experiências mais radicais dos rapazes do Fora de Eixo.
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