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domingo, 25 de maio de 2014

Em Busca do Orgasmo Perdido (Carla Rodrigues)

Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire
Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire

O orgasmo libertário de Wilhem Reich volta a ganhar força numa era de banalização do sexo

Por Carla Rodrigues


Wilhelm Reich causou escândalo ao defender a função libertária do orgasmo, inspirou a contracultura e gerou discípulos como Roberto Freire e Gaiarsa - antes de sair de moda. Na era da banalização do sexo, suas ideias voltam a ganhar sentido e seguidores
“Relaxa e goza!”, prega o ditado popular como saída para enfrentar situações de estresse e tensão. A máxima pode ser lida como uma tradução para lá de simplificada de uma teoria psicanalítica séria que desde o início do século passado vem associando orgasmo com libertação. Para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, além de proporcionar prazer, a função do orgasmo é produzir uma carga energética poderosa capaz de dissolver a “couraça neuromuscular do caráter” de indivíduos bloqueados pelas exigências de uma sociedade hierarquizada em que a sexualidade é oprimida. Reich trabalhou com Freud nas primeiras décadas do século 20 e trocou a Europa pelos EUA em 1939, onde depois seria perseguido e preso, sobretudo por seu passado comunista.

A partir do fim dos anos 60, tornou-se uma das referências teóricas para o movimento da contracultura. Suas propostas para pensar a sexualidade como ponto central da existência humana deram origem a quatro tipos de terapias cujo denominador comum é o prefixo bio: bioenergética, a mais famosa delas, biodinâmica, biossistêmica e biossíntese. No Brasil, dois importantes autores construíram suas obras inspirados em Reich: o médico e psicanalista Roberto Freire, autor de best-sellers como Ame e dê vexame e Sem tesão não há solução, que ajudaram a popularizar o pensamento reichiano, e o psiquiatra José Angelo Gaiarsa, falecido este ano.

Satisfação genital

Em 1927, Reich publicou a primeira edição de A função do orgasmo, um dos seus títulos até hoje mais conhecidos. Reescrito e ampliado até 1942, essa última versão foi editada pela Brasiliense e lançada aqui em 1975, no auge da emergência dos movimentos alternativos, e ainda está nas livrarias, agora na sua 19ª edição. O primeiro texto de A função do orgasmo foi escrito quando Reich tinha 30 anos e havia sete militava na Sociedade de Psicanálise de Viena ao lado de Freud, de onde seria expulso pelas articulações que fazia entre psicanálise e as ideias comunistas que abraçou e pelo combate ao nazismo nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Reich fazia parte do pequeno grupo de psicanalistas que dava ouvidos aos sintomas neuróticos dos primeiros pacientes a se deitar em divãs para falar de seus problemas sexuais. Naquele momento, a libertação em relação às repressões era o principal objetivo da psicanálise. Os reflexos dessa preocupação estão na frase “problemas econômicos sexuais na energia biológica”, subtítulo de A função do orgasmo, e em toda a estrutura do livro, cujas afirmações provocaram profundas transformações na cultura sexual. Logo nas primeiras páginas do capítulo dedicado ao desenvolvimento da teoria do orgasmo, Reich escreve: “É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que estão psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa – completa e repetida satisfação genital”.

Essas e outras orientações soaram escandalosas em um ambiente sexual repressor e reprimido, fortemente influenciado pela moral rígida do período vitoriano e diametralmente oposto à cena sexual contemporânea. “Não se poderia estar vivendo uma situação mais oposta àquela. O sexo hoje é tão escancarado que muitas vezes perde o valor. São duas épocas extremas e o século passado experimentou esses dois extremos fortes: da máxima repressão à liberalização total”, diz o psicoterapeuta corporal Rubens Kignel, diretor do Instituto Brasileiro de Biossíntese, estudioso de Reich e um dos que seguiram os caminhos da bioenergética pela orientação de Roberto Freire, de quem foi paciente nos anos 70.

“A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, diz o somaterapeuta João da Mata

A liberalização total banalizou o sexo na vida cotidiana. O excesso de oferta de pornografia, ao alcance de um clique do mouse, as relações sexuais descartáveis, as imagens sexualizadas onipresentes nas campanhas publicitárias e na programação de TV, no entanto, não garantem que as repressões que motivaram a obra de Reich tenham sido superadas. Apesar de a expressão “revolução sexual” (que deu título a um dos livros de Reich, escrito em 1936) ter se popularizado como sinônimo de uma mudança de valores que abriu espaço às novas formas de experimentar a sexualidade – fora da estrutura familiar, antes do casamento, em arranjos homossexuais –, a ideia de liberdade sexual é contestada por muitos autores. O sociólogo francês Michel Bozon, por exemplo, não acredita que “revolução sexual” seja um termo adequado para definir as mudanças de comportamento que começaram nos anos 60. Para ele, o que aconteceu foi a criação de um novo conjunto de normas, que podem ser tão repressoras quanto as antigas.

Essa percepção se expressa nos consultórios dos terapeutas que trabalham com bioenergética e confirmam a atualidade da obra de Reich. “Ainda há muitas dificuldades de viver a sexualidade de maneira plena. Mesmo com toda a liberdade de escolha, as repressões ainda existem e ainda há um aspecto moral que impõe à vida sexual uma série de dificuldades. Trabalhar com Reich continua muito válido”, diz Rubens Kignel. “A revolução sexual que Reich pregava ainda não houve”, defende o somaterapeuta João da Mata. Ele afirma que a banalização do sexo nada tem a ver com o pensamento de Reich, que pregava uma sexualidade plena com afetividade e amor. Embora reconheça que se vive hoje dentro de uma moldura de experiência sexual mais ampla – com arranjos afetivos mais livres que no passado –, ele acredita que a força do capitalismo em todas as formas de sociabilidade faz do sexo mais um objeto de consumo. “O corpo é cultivado para mostrar, não para gozar.”

João da Mata é discípulo de Roberto Freire, cuja produção teve Reich como influência e referência. “Freire tropicalizou a teoria de Reich”, explica Mata. Coube ao terapeuta brasileiro acrescentar ao pensamento do psicanalista austríaco uma metodologia que incorpora práticas corporais como o teatro, a capoeira e um componente libertário que define a somaterapia, a terapia anarquista criada por Freire. Com grupos em atividade permanente, a somaterapia propõe movimentos corporais que simulam os efeitos da energia sexual no corpo a partir de exercícios com o objetivo de libertar o paciente da tal “couraça neuromuscular do caráter” pensada por Reich.

O médico e o poeta

Granger Collection / Other images
Reich em seu laboratório em 1944
Reich em seu laboratório em 1944
No Brasil, o pioneiro no trabalho com essa couraça, pedra de toque da terapêutica reichiana, foi José Angelo Gaiarsa. Morto em outubro, aos 90 anos, ele deixou como legado uma ampla obra sobre libertação sexual, tema que perpassa seus cerca de 25 títulos publicados. “Seus livros foram muito importantes e se tivessem sido escritos em inglês teriam sido referência no mundo inteiro”, diz Rubens Kignel, que atribui as diferenças entre Gaiarsa e Freire ao estilo: enquanto o primeiro era mais médico e analítico, o segundo era mais poeta e romântico.

Esse romantismo fez com que Freire se autodefinisse como “filósofo do tesão”. A somaterapia, prática criada por ele há 40 anos, tem como sustentação a defesa do prazer como arma revolucionária de combate ao autoritarismo. Por tudo isso, ainda é vista como marginal pelo acento que dá ao pensamento anarquista e libertário e pelas críticas que faz às relações de poder. “A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, defende Mata. Esse tipo de pensamento casava com os objetivos da contracultura e com as reivindicações de liberdade, que passavam por um corpo livre para uma vida sexual plena e satisfatória.

A expectativa de liberdade levou, reconhece Rubens, a alguns exageros. Grupos terapêuticos de fim de semana com “todo mundo nu e gritando” se multiplicavam no rastro do amor livre dos hippies dos anos 70. No auge da prática, os encontros eram quinzenais e a proposta era passar por experiências radicais de liberação. “Podiam ser boas, mas também podiam ser complicadas. Porém muitas coisas eram sérias. Mesmo que fosse ficar nu, era sério, tinha um conceito em cima disso. Depois acabou virando festa”, lembra Rubens.

A porra-louquice dos anos 70 foi-se e levou consigo alguns traços do pensamento de Reich que hoje se mostram ultrapassados. A ênfase nos aspectos biológicos do orgasmo, tônica dos textos de Reich a partir da sua mudança para os EUA; um detalhado manual do “orgasmo correto” em todas suas fases; e um ideal romântico do “gozo cósmico”, de entrega infinita, ou de uma “vida orgástica” são alguns dos pontos que mesmo os seguidores de Reich descartam hoje.

Existem outros aspectos do pensamento reichiano, no entanto, que foram revitalizados pelas neurociências. Uma de suas teses básicas é que a consciência vem da percepção do corpo. “Reich já falava disso e os exercícios de percepção do corpo que ele propõe já eram formas de chegar à consciência”, explica o psicoterapeuta Ricardo Rego, do Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica. Doutor em psicologia pela USP, Ricardo integra um grupo de dez pesquisadores que retomou a leitura de Reich, não mais à luz da contracultura, mas no ambiente acadêmico. “A contracultura produziu uma certa visão sobre Reich e até hoje os reichianos pagam um preço por isso”, diz ele.

Ricardo foi um dos alunos de Paulo Albertini, precursor nos estudos de Reich na USP. Professor do Instituto de Psicologia da universidade desde 1978, Albertini propôs em 1986 a criação de uma disciplina sobre o autor de A função do orgasmo. Seis anos depois, defendeu a primeira tese inteiramente dedicada à investigação das ideias de Reich no Brasil, e desde então, tem se dedicado a orientar pesquisas de pós-graduação sobre o psicanalista austríaco. Entre mestrados e doutorados, já são dez trabalhos voltados ao estudo do pensamento de Reich.

Almoço de domingo

Albertini acredita que ainda há muito a ser lido e pesquisado, num movimento que pode trazer à tona mais do que as ideias de Reich, tão em voga nos anos 70. Com Albertini, novos reichianos foram, a partir dos anos 90, conquistando espaço na academia, movimento que João da Mata também percebe em relação ao trabalho de Freire. “Estão surgindo alguns cursos e grupos de pesquisa”, constata Mata, ele mesmo hoje professor na Universidade Federal Fluminense.

Na USP, Albertini garante não ter passado por adversidades, mas lembra quando preencheu um formulário sobre seus temas de pesquisa e escreveu “teoria do orgasmo”. O documento voltou devidamente revisado para “teoria bioenergética”. Hoje, no ambiente universitário, a barreira a enfrentar é outra. Reich é apontado como um pensador que contribuiu para relações contemporâneas marcadas pela ausência de vínculos afetivos sólidos e para experiências de sexualidade narcísicas. “Não era nisso que ele apostava”, diz Albertini, lembrando que o espírito reichiano não era o da quantidade, mas da qualidade das relações sexuais. Ele defende que a crítica de Reich ao patriarcado foi um ponto fundamental para desmontar as estruturas hierárquicas da sociedade que sustentam a opressão sexual. Albertini recorda a afirmação de uma aluna que, nos anos 80, expressou a visão de Reich sobre as relações autoritárias: “Violento é o almoço de domingo em família”.

(Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/195/reportagens/em-busca-do-orgasmo-perdido.html)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gata, eu quero ver você parindo! (Ligia Moreiras Sena)

Aviso 1: Contém inúmeras vezes a palavra "vagina".
Aviso 2: Contém fotos de cicatrizes. Seja forte. Coragem.

"Então eu olhei aquela foto, aquela mãe com um bebê saindo de sua vagina, feliz, radiante, olhos arregalados, boca aberta, pai eufórico, parteira amparando, mãe segurando as costas do bebê em nascimento, e pensei: 'Tem alguma coisa errada... Por que eu tenho dois filhos e nunca imaginei que isso seria possível? Por que eu não sabia que parto não precisava ser daquele jeito azul, branco, frio?"
"Cheguei na casa da minha vizinha pra levar uns livros que ela tinha me emprestado. A filha dela de 16 anos estava assistindo um parto no Youtube! Um parto parto mesmo, mulher gemendo, pernas abertas, vagina à mostra. Choquei. Eu  nunca tinha visto um parto na vida! Fiquei meio sem jeito... e achei estranho estar sem jeito. Por que eu estava sem jeito de ver uma mulher dando à luz pela vagina? Eu não tenho filho nem vou ter, mas era só uma vagina, uma mulher em diferentes posições mas uma vagina. Pedi pra menina se eu podia ver também, ela disse que sim, fiquei por ali. Aí nasce o bebê... Eu não sei como nem porquê, mas fiquei emocionada. Eu nunca tinha visto um bebê sair pela vagina, nem a reação de uma mulher num nascimento daquele. Comecei a chorar. Senti uma alegria... Foi aí que comecei a ler sobre parto, caí no seu blog, caí na blogosfera partolesca, curto muito. Minha cunhada engravidou e tenho muito orgulho de ter sido eu a orientá-la durante a gestação, porque ninguém na minha família conhecia essas coisas. Nasceu num super parto lindo, com meu irmão e eu do lado. 'Parto vaginal', eu sempre conto, porque aprendi a importância disso".
"Foi de tanto ver foto de parto bonito que percebi que tinha sofrido uma violência irreparável".
"Minha filha tem 8 anos e adora ver vídeo de parto comigo. A gente faz "Óinnn" quando o bebê chega, a gente se abraça, é lindo. Quero mostrar pra ela que parto faz parte da vida, é natural, ao contrário do que foi comigo".
"Durante a gestação dela, quando a gente contava que eu estaria junto, que iria ver meu filho nascer, que iria ajudá-la no trabalho de parto, todo mundo da família me repreendia, dizendo que era ruim, que eu não veria minha esposa mais da mesma maneira, que as partes íntimas dela estariam diferentes, enfim. Perguntavam como eu tinha coragem, que grande parte dos homens desmaiava, ou não aguentava e saía. Realmente, na minha família, quase todos os homens passaram mal nos nascimentos dos filhos, mas porque ver cesárea deve mesmo ser foda. E todo mundo teve bebê por cesárea na minha família. Não, minhas avós não, mas o pessoal novo, todo mundo. Imagina! Cortar 7 camadas de tecido, músculo, sei lá mais o que, sangue, ponto, deve ser difícil. Mas não era o nosso caso, já que o Igor ia nascer naturalmente, por via vaginal. E eu fiquei, ajudei e tal. Só não ajudei mais porque chorei que nem menino pequeno. O Igor saindo e eu chorando de alegria. Minha esposa contou depois que eu apertei tanto os joelhos dela que ela até desconcentrou da dor do expulsivo, rsrsrs. E vi meu filho sair da vagina da minha mulher. Eu realmente nunca mais a vi como antes... Sempre tive muita admiração por ela. Ter visto meu filho nascer, ali, na dura, na real, me fez olhar com ainda mais admiração, com quase reverência. Tava ali uma coisa que eu não sabia fazer e nunca saberia, e ela fazia como se sempre tivesse feito: deixar meu filho sair. Que mulher, eu pensava. Num segundo estava dizendo que doía e no outro, tendo o filho parido no braço, estava rindo às gargalhadas. Dá até uma coisa contando..."

Infelizmente, por conta do meu trabalho/pesquisa atual, vejo/leio muito mais sobre partos trash repletos de violências terríveis e sobre cesarianas desnecessárias, em tom de revanche médica e repleta de tecnologia fria e impessoal, do que eu gostaria. Vejo fotos de mulheres amarradas à maca, ou inconscientes no exato momento do nascimento do filho, ou com o bebê no braço e um choro de quem se viu violentada. Tudo isso no momento que era para ser de extrema beleza, alegria, êxtase.
Vejo e leio relatos infindáveis da mais genuína dor, de mulheres que foram enganadas, humilhadas, xingadas, ludibriadas e que perderam o parto do próprio filho e que hoje carregam cicatrizes físicas e emocionais que não foram frutos de uma escolha.

Então, quando abro a rede social e dou de cara com umavagina parindo, sinto uma puta alegria. Quando, nos grupos maternos, alguém posta a foto do nascimento ou escreve: "Eu pari!", é como se uma pequena dose do antídoto necessário pra dar conta do tranco de estudar a violência no parto me fosse dada.
Por tudo isso, tenho a exata noção das coisas: sei exatamente qual dessas circunstâncias - parto violento x vaginaparindo com moça sorrindo - representa a visão do inferno, e não é a segunda alternativa. Nunca pensei na vagina como uma visão do inferno... Por que eu pensaria isso sobre a minha própria vagina, uai?! Gosto dela. Tenho carinho por ela. Somos amigas, puxa vida. Amigas muito íntimas. E entendo a amizade das outras mulheres com as próprias vaginas. A vagina alheia não é uma inimiga para mim. E seria ótimo se todo mundo vivesse essa love story vaginal. Talvez houvesse muito mais respeito por aí. Além, claro, de evitar coisas como isso que aconteceu, de chegarmos ao ponto de alguém publicar, num jornal de grande circulação, aos quatro ventos, o seu ódio pela vagina alheia. 

Li o texto da Tati Bernardi publicado na Folha de São Paulo com o título de "Gata, eu não quero ver a sua xota" e depois vi uma foto em que ela aparecia abraçada em um pênis de pelúcia (escrever "pênis de pelúcia" me dá uma super vontade de rir, acho que é a sonoridade da expressão). A primeira coisa que pensei, assim de cara, foi: "Caraca... Qual será o problema dela com a vagina, gente?!".
Aí fui ler o texto de novo.
E ela não usa a palavra VAGINA uma única vez!
Usa: xota; xoxota; xuranha; prexeca sofrida; ximbica e xereca.
Zero vagina.
Vagina zero (parece até o nome de um movimento... Imagina: '''Vagina Zero - Movimento de Valorização da Direita no Brasil").

Então eu vim aqui apenas para fazer um pedido: GATAS, EU QUERO VER VOCÊS PARINDO! 
Tá, eu sei que não sou ninguém, não publico em jornal de grande circulação e tal. Mas por favor, gatas, eu quero ver vocês parindo!
Não liguem para a Tati Bernardi. Alguma coisa lá não tá legal. Compaixão, minha gente!

Muita gente que está hoje na luta pela humanização do parto - alheio ou próprio, vagina sua ou vagina 
alheia - está nessa justamente por um dia ter visto uma foto de parto, um vídeo de parto, onde - olha que surpresa! - tinha umavagina parindo. Como as pessoas dos relatos que abrem esse texto. Não é surpreendente que encontremos vaginas em partos ainda hoje?! Muito surpreendente. Principalmente em um país onde os hospitais (aqueles lá mesmo que ela mencionou, os que "poderiam estar num guia de hotéis três estrelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu confio: com salão de beleza e "concerto de piano" na recepção") batem os 98% de cesarianas. 
Ver um parto vaginal é, mesmo, um evento em extinção. E eu, como bióloga que sou, tenho uma queda por salvar o que está em extinção. 
Então, repito: gatas, não escondam suas vaginas parindo! Nós queremos ver!
Postem suas fotos, subam seus vídeos, mostrem seus partos!
Marquem o tio Miltinho de Passos de Itu! Deem um print na alegria que a vó Carminha de Serra Negra manifestou na timeline dela por ver que você deu a luz como ela! 
Libertem suas vaginas paridas!

E, moça, você que é uma escritora pop, por favor: deixe em paz a vagina alheia! Ela não te fez nada...

Ah, sim. Antes de finalizar. Ver vaginas parindo na rede social, em um país tão moralista quanto o nosso, de mentalidade tão misógina, onde mulheres são constrangidas por amamentar em público, onde dar à luz naturalmente é ainda, muito infelizmente, um privilégio, é um grande avanço. Mostra que - sim! - estamos no caminho certo. Principalmente quando lembramos que cada foto de vagina parindo que vemos é uma cicatriz a menos. Especialmente aquelas que não foram desejadas.




Disponível em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2014/04/gata-eu-quero-ver-voce-parindo.html

sábado, 5 de abril de 2014

Outra visão sobre Ninfomaníaca (Bruno Lorenzatto)

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Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente

Por Bruno Lorenzatto*

Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.

Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).

Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.

(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)

Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.

Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.

Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.


* Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/26/outra-visao-sobre-ninfomaniaca/)

Ninfomaníaca 2: contra normatização do desejo (José Geraldo Couto)

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Agora, Lars Von Triers deixa claras suas intenções e sugere: excesso e comedimento sexuais, pulsão e sublimação são duas faces da mesma moeda

Por José Geraldo Couto, no Blog IMS

Com a exibição do “segundo volume” de Ninfomaníaca, é possível ter uma ideia mais clara da ambição de Lars von Trier. E ela não é pequena. Visto em seu conjunto, em suas quatro horas de duração, o filme, mais que um inventário de perversões sexuais, pode ser visto como uma tragicomédia feroz sobre (ou contra) a normatização do desejo em nossa época.

A protagonista Joe (Stacy Martin/ Charlotte Gainsbourg) é uma aberração porque não se enquadra nas normas. Ao não saber onde colocar o desejo, ela o dissemina por toda parte, como uma criança às voltas com sua sexualidade polimorfa.

A segunda parte dá continuidade ao mesmo esquema narrativo da primeira: Joe, já madura, castigada pela vida, rememora sua acidentada trajetória para o solitário e casto homem que a recolheu na rua, Seligman (Stellan Skarsgard). Ao jorro de experiências dela, mostradas em flashbacks, ele tenta contrapor ensaios de ordenamento e construção de sentido, conforme escrevi aqui a propósito do “primeiro volume”.

Acúmulo e depuração

Nesta segunda metade, além de apresentar momentos importantes do percurso de Joe (a maternidade, o experimento masoquista, a tortura), von Trier passa em revista – ou melhor, arrasa – pragas de nossa época como o politicamente correto, as terapias para curar o “vício do sexo”, a paranoia com a pedofilia.

A par desse acúmulo (de histórias, de assuntos, de situações), há paradoxalmente uma depuração: fica mais claro do que nunca que Joe e Seligman são duas faces da mesma moeda – o excesso e o comedimento, pulsão e a sublimação –, ao mesmo tempo opostos e complementares em sua solidão irredutível. Dois enjeitados que não encontram lugar na sociedade “normal”. (Millôr Fernandes disse certa vez que, de todas as perversões sexuais, a mais esquisita é a abstinência. Seligman talvez seja a prova disso.)

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, o que salta aos olhos é uma espécie de hibridismo sistemático, um jogo de contrastes perseguido conscientemente pelo diretor, como se ele quisesse a todo momento desmontar o que acabou de construir. Por exemplo: o tom de parábola, que despreza a verossimilhança e o naturalismo das situações, parece estar em contradição com a câmera instável, de documentário ou home movie, que mutila os seres e objetos e perde a todo momento o foco.

Alusões ao cinema

Outra antinomia frequente é a que se observa entre a gravidade e o humor, ou antes entre a intensidade dramática e o distanciamento irônico. Isso se evidencia, nesta segunda parte, nas inúmeras alusões ao próprio cinema.

Por exemplo: quando diz que seu conhecimento do sexo se deu unicamente pela literatura, Seligman cita três livros – Decameron, Os cantos de Canterbury e As mil e uma noites – que são justamente os que compõem a célebre “trilogia da vida” de Pasolini, cujo erotismo jubiloso é o contrário do calvário de Joe.

Em outra passagem, von Trier chega ao requinte ou desfaçatez de glosar um filme dele próprio, O anticristo, ao repetir a mesma cena do menino que se levanta do berço à noite para ver a neve, trepa na mureta do terraço e… O desfecho diferente é uma derrisória piscadela ao espectador.

E quando a protagonista, na reunião das “viciadas em sexo”, se apresenta dizendo “My name is Joe”, é impossível não pensar no filme homônimo de Ken Loach, sobre um alcoólatra em recuperação.

Em meio a essa teia de referências (que incluem a música e as artes plásticas), von Trier encontra espaço para produzir momentos de potente poesia, dos quais o mais significativo talvez seja a cena em que Joe encontra a “sua árvore”, uma árvore “bela, áspera e intratável” como o cacto do poema de Manuel Bandeira. Ou como a sexualidade de Joe.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/ninfomaniaca-2-contra-a-normatizacao-do-desejo/)
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