segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Ritalina, a droga legal que ameaça o futuro (Roberto Amado)

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Com efeito comparável ao da cocaína, droga é receitada a crianças questionadoras e livres. Professora afirma: “podemos abortar projetos de mundo diferentes”

Por Roberto Amado, no DCM

É uma situação comum. A criança dá trabalho, questiona muito, viaja nas suas fantasias, se desliga da realidade. Os pais se incomodam e levam ao médico, um psiquiatra talvez.  Ele não hesita: o diagnóstico é déficit de atenção (ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH) e indica ritalina para a criança.

O medicamento é uma bomba. Da família das anfetaminas, a ritalina, ou metilfenidato, tem o mesmo mecanismo de qualquer estimulante, inclusive a cocaína, aumentando a concentração de dopamina nas sinapses. A criança “sossega”: pára de viajar, de questionar e tem o comportamento zombie like, como a própria medicina define. Ou seja, vira zumbi — um robozinho sem emoções. É um alívio para os pais, claro, e também para os médicos. Por esse motivo a droga tem sido indicada indiscriminadamente nos consultórios da vida. A ponto de o Brasil ser o segundo país que mais consome ritalina no mundo, só perdendo para os EUA.

A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista ao  Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de mil  anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela.

O fato, no entanto, é que o uso da ritalina reflete muito mais um problema cultural e social do que médico. A vida contemporânea, que envolve pais e mães num turbilhão de exigências profissionais, sociais e financeiras, não deixa espaço para a livre manifestação das crianças. Elas viram um problema até que cresçam. É preciso colocá-las na escola logo no primeiro ano de vida, preencher seus horários com “atividades”, diminuir ao máximo o tempo ocioso, e compensar de alguma forma a lacuna provocada pela ausência de espaços sociais e públicos. Já não há mais a rua para a criança conviver e exercer sua “criancice.

E se nada disso funcionar, a solução é enfiar ritalina goela abaixo. “Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la a lidar com essa criança. Fala-se muito que, se a criança não for tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH está sendo feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de forma indiscriminada”, diz a médica.

Mas os problemas não param por aí. A ritalina foi retirada do mercado recentemente, num movimento de especulação comum, normalmente atribuído ao interesse por aumentar o preço da medicação. E como é uma droga química que provoca dependência, as consequências foram dramáticas. “As famílias ficaram muito preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os filhos ficassem sem esse fornecimento”, diz a médica. “Se a criança já desenvolveu dependência química, ela pode enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA)”.

Enquanto isso, a ritalina também entra no mercado dos jovens e das baladas. A medicação inibe o apetite e, portanto, promove emagrecimento. Além disso, oferece o efeito “estou podendo” — ou seja, dá a sensação de raciocínio rápido, capacidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo, muito animação e estímulo sexual — ou, pelo menos, a impressão disso. “Não há ressaca ou qualquer efeito no dia seguinte e nem é preciso beber para ficar loucaça”, diz uma usuária da droga nas suas incursões noturnas às baladas de São Paulo. “Eu tomo logo umas duas e saio causando, beijando todo mundo, dançando o tempo todo, curtindo mesmo”, diz ela.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/ritalina-a-droga-legal-que-ameaca-o-futuro/)

Bangladesh: mulheres lideram revolução agrícola (Naimul Haq)

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Em exemplo de conversão notável, milhões de agricultores adotam, com sucesso, cultivos orgânicos. Processo abre alternativa a donas de casa e empregadas domésticas

Por Naimul Haq, na IPS

Em um dia quente e úmido no noroeste de Bangladesh, Anisa Begum senta-se com um grupo de 25 mulheres para explicar a elas como podem usar fertilizantes naturais para aumentar o rendimento dos cultivos de cereais. Begum, de 47 anos e mãe de dois filhos, tenta convencê-las de que, se os homens podem cultivar e fazer dinheiro, elas também podem.

Begum lidera um dos Grupos de Interesse Comum (GIC), que reúnem mulheres interessadas na agricultura nesse país da Ásia meridional, onde ainda poucas das que vivem no campo trabalham fora e, quando o fazem, costumam ser diaristas. Ela se especializa na capacitação sobre o uso de fertilizantes naturais para maximizar cultivos. Begum e outras nove agricultoras visitaram o Vietnã no ano passado, país conhecido por sua eficiência nas colheitas.

“É um sentimento maravilhoso”, disse à IPS uma sorridente Begum, no quintal de sua casa, na aldeia de Islampur, distrito de Rangpur. Este ano, ela capacitou uma dezena de integrantes dos GIC na área de Pairabond, em Rangpur, a 255 quilômetros de Daca, e assegura que cada vez mais mulheres mostram interesse nas novas práticas de cultivo.

Os GIC, formados com a ajuda de escritórios agrícolas locais, são parte do Projeto Nacional de Tecnologia e Agricultura, destinado a melhorar a produtividade e a segurança alimentar de Bangladesh. Esse projeto, de US$ 82,6 milhões, foi desenhado e financiado de forma conjunta pelo Banco Mundial, Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) e governo de Bangladesh.

“É absolutamente incrível”, disse o chefe de avaliação e supervisão do projeto, Mizanur Rahman. “Mais de dois milhões de agricultores, 30% dos quais são mulheres, estão adotando novas técnicas em áreas-piloto dos distritos do noroeste”. Rangpur é conhecida pela boa qualidade de seus cereais e vegetais, graças à qualidade do solo. Todo o país depende dos grãos produzidos nessa região.

Tradicionalmente, as mulheres desse país se dedicam mais ao trabalho doméstico do que à agricultura. Um estudo intitulado Contribuição Econômica das Mulheres em Bangladesh, realizado em 2008 pelo Escritório de Estatísticas, indica que apenas 21% das mulheres bengalis participavam de atividades agrícolas, contra 78% dos homens.

Essa nova capacitação gratuita também procura promover o empreendedorismo. “No começo tivemos dificuldades para convencer as mulheres a investirem mais em agricultura. Demonstramos que podiam adotar novas tecnologias e assim obter benefícios”, explicou Sarwarul Haque, funcionário agrícola no subdistrito de Mithapukur. Nos GIC as mulheres aprendem novas técnicas que incluem o uso de arroz aromático resistente a secas e de grande rendimento, de compostagem à base de minhocas e sementes de tomates para toda temporada que mantém o cultivo livre do vírus amarelo.

Rowshan Ara, uma produtora de sucesso em Pairabond, disse à IPS que, “quando começaram as demonstrações na aldeia de Islampur, quase não havia mulheres interessadas na agricultura. Hoje, dos cerca de 5.500 habitantes de Islampur, 1.200 são camponeses, e mais de 40% são mulheres”.

Antes de entrar para os GIC muitas mulheres eram diaristas, e ganhavam apenas 50 takas (US$ 0,88) por dez horas diárias de trabalho físico, plantando e colhendo arroz. Uma diarista pode ganhar um máximo de 1.500 takas (US$ 20) por mês. Mas, a maior participação feminina na agricultura mudou as regras. Agora uma mulher pode ganhar entre US$ 54 e US$ 100 mensais cultivando cereais de qualidade, que têm grande demanda no exterior.

A camponesa Momena Begum, de 42 anos, disse à IPS que escolheu se “capacitar em compostagem com base em minhocas, e no final do ano passado fiz vendas no valor de US$ 4.500. Consegui um lucro de quase 30%”. A compostagem de minhocas se tornou muito popular, já que é mais barato do que os químicos (menos de US$ 0,25 o quilo). Outra prática muito popular é a produção de sementes resistentes às pragas.

“Aprendi como produzir fertilizantes naturais com base em jacintos de água decompostos. Essas plantas são abundantes, por isso não é preciso muito investimento”, disse Parul Sarkar, vizinha de Momena. Esse fertilizante garante rendimento 150% superior aos químicos. “Com um pequeno investimento, pude começar a abastecer o mercado local”, destacou. Sarkar ganhou mais de US$ 380 com a venda de fertilizantes naturais no primeiro trimestre deste ano. Seu marido, no entanto, conseguiu apenas US$ 90 trabalhando nas colheitas.

Cada vez mais mulheres se integram aos GIC. Em 2009, havia menos de 20 grupos em Mithapukur, e agora são mais de 240. A adoção de novas tecnologias agrícolas tem um enorme impacto. Os comerciantes e intermediários preferem vender os fertilizantes naturais. “As batatas e os tomates cultivados com fertilizantes naturais são mais saudáveis e brilhantes. Qualquer um nota a diferença”, afirmou Raja Miha, atacadista no distrito de Bogra.

(Disponível em http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/bangladesh-mulheres-lideram-revolucao-agricola/)

Para somar-se às redes da Ciência Livre (Ladislau Dowbor)

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Ladislau Dowbor propõe a professores e pesquisadores: crie um blog, compartilhe conhecimentos, ajude a superar a era propriedade intelectual

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Henri Matisse, Alegria de Viver

Na virada do milênio, decidi repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um balanço. Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas, relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje a ele, que ajudou a montar meu primeiro site. Alguns já chamam este tipo de ajuda de filhoware.

Decidi fazer este pequeno balanço porque pode ser útil a muita gente que se debate com a transição. Deixem-me dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de arquitetura do trabalho intelectual.

O ponto de partida foi o meu blog, http://dowbor.org, hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.

Deixem-me lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50 milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora. Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE (China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira ainda muito tímida.

Isto dito, eu que não sou nenhum MIT, constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte, esperando que as informações sejam úteis:

1. A criação de um blog individual de professor representa um investimento extremamente pequeno, comparando com o benefício obtido, sobretudo porque hoje temos estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.

2. Ter um blog não é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog científico como o meu é, na realidade, muito mais uma biblioteca de fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu precise acompanhar e administrar. Não é muito distinto, nesse aspecto, de uma estante em minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar meu texto com uma palavra-chave no computador, do que localizá-lo na estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu blog, não precisa pedir o livro emprestado, nem perder tempo dele e meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.

3. Produção científica e divulgação deixam de constituir processos separados. O artigo ou livro que o professor escreve, ou que recebeu e quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português, pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles encontraram simplesmente porque colocaram palavras-chaves na busca por internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada, mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai para a 6ª edição pela editora: uma coisa não atrapalha a outra, a editora encontra o seu interesse também.

4. O essencial não está na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente. Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação em geral.

5. O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros. Coloco no blog, na seção Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta sobre energia, recomendo que leiam, em meu site o artigo de Ignacy Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para alunos.

6. Como professor, recebo frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço suficientemente minha área para saber que se trata de um ótimo trabalho. Normalmente, ninguém o leria, pois o aluno não é conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons trabalhos de pessoas menos conhecidas.

7. Tudo isto está baseado no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido, que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao mesmo tempo que permite que o artigo seja imediatamente acessível para fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.

8. Um aspecto muito enriquecedor do processo é que me permite utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada produção. Associo ao que escrevo ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso ou animações gráfica, livremente – pois do lado de quem lê haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem, ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem utilizada é muito útil.

9. Trata-se de uma ferramenta em que o universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez de o professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos online sobre o tema, desenvolverão sua capacidade de pesquisar no imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados. Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.

10. O processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores. Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A minha solução é que publico, sim, em periódicos formalmente avaliados como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e pelo qual não me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada 24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas condições, francamente, não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e 50 dólares por artigo e por acesso. Mais de 15 mil cientistas norte-americanos já boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não atualizar seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital – um para pontos, outro para leitores.

11. Com pequenos conselhos de alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais evidentes de comunicação. Abri a possibilidade de qualquer pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil “colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento, permite fazer circular o material. Portanto, minha biblioteca virtual não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com todos os interessados, mesmo que não me conheçam.

12. Uma virtude básica do processo, que precisa ser entendida, é que os textos circulam não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular é o que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de construção científica.

13. Finalmente acho que, da mesma forma que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde, Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros – precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de copyright só teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição. Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.

Permito-me aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu blog, hoje um WordPress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho. Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, como organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no começo até montar um formato adequado para professor), fiquem à vontade; eventualmente, posso até recomendar pessoas capazes de ajudá-los. Vamos encher este país de ciência, de boa ciência, progressista, transformadora.

Quanto ao medo das pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável, descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é relevante ou não”.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/para-somar-se-as-redes-da-ciencia-livre/)

sábado, 23 de novembro de 2013

Universidade, entre agroecologia e agronegócio (Luciana Jacob)

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Qual deveria ser o papel do ensino superior de Agricultura, num mundo que enfrenta fome e crise socioambiental planetária?

Por Luciana Jacob | Fotografia: Jorge Luiz Campos

Como instituição social que é, a universidade expressa a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade, em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão e em sua gestão. Assim, tal qual a sociedade, a universidade é constituída não só por diferentes visões de mundo, como principalmente por visões conflitantes: a produção de conhecimento e sua incorporação nos currículos universitários são processos atravessados por relações de poder.

A articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a formação de profissionais para as demandas explícitas do mercado. Isto fica evidente nas formas curriculares, na escolha de quais conhecimentos devem fazer parte da formação e tornar-se objetos de pesquisa e, principalmente, nas ausências que denunciam o descaso legado a projetos contra-hegemônicos. As atividades universitárias foram atingidas por forças que amplificaram sua condição de dependência à globalização neoliberal, afastando-se das demandas sociais necessárias para um projeto democrático de país. Elas têm se aproximado do mundo empresarial, relegando a segundo plano o interesse público.

Social e historicamente construídos, os saberes produzidos pela universidade são eleitos por determinados grupos sociais como legítimos, credíveis e merecedores de serem reproduzidos a determinados grupos sociais.

Que saberes e grupos sociais são incluídos e quais são excluídos da universidade e, em decorrência, quais divisões sociais são produzidas e reforçadas? Qual o significado da ausência de determinados saberes na universidade? É um silêncio genuíno ou fruto de um silenciamento, ou seja, de uma imposição epistemológica?

A degradação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais muito graves da crise do mundo globalizado. Na agricultura, assistimos à perda da soberania alimentar, à fome, à violência no campo, à perda de diversidade genética e dos solos, ao avanço da concentração de terras, ao desmatamento, ao envenenamento por agrotóxicos. Paralelamente, temos assistido a uma ofensiva aterradora de setores conservadores do Congresso Nacional sobre os direitos fundamentais de indígenas, contra o Código Florestal e a Lei de Biossegurança. Presenciamos a aprovação indiscriminada de transgênicos, sem os estudos necessários e a devida responsabilidade social e científica.

De modo predominante, a universidade contribui para a manutenção do paradigma hegemônico, formando pessoas aptas a lhe dar continuidade e produzir conhecimento que alimenta e fortalece seus preceitos. Na área de Ciências Agrárias, as atividades acadêmicas geralmente se articulam em torno do paradigma do agronegócio como cânone de desenvolvimento do país. E, como sabemos, a razão que permeia o agronegócio tem como características o capitalismo e a globalização neoliberal; a total dependência de insumos finitos e externos ao sistema agrícola; a simplificação genética; a concentração de terras e riquezas; entre outros – aspectos completamente avessos à sustentabilidade socioambiental.

A organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou recentemente o Relatório de 2013 sobre Comércio e Meio Ambiente, intitulado “Acorde antes que seja tarde demais: torne a agricultura verdadeiramente sustentável agora para a segurança alimentar em um clima em mudança” (em tradução livre do inglês). O relatório, para além de alertar sobre os danos do paradigma hegemônico de produção agrícola, aponta a adoção da agroecologia como fundamental para evitar o agravamento da crise socioambiental e prováveis crises alimentares futuras – exatamente o oposto do que vem sendo desenvolvido pela grande parte das universidades brasileiras.

A construção de uma racionalidade ambiental para o enfrentamento destes problemas – em oposição à racionalidade econômica – exige a elaboração de novos saberes e, principalmente, a participação dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade na construção destes saberes. No espaço da universidade, isto implica a internalização das discussões socioambientais nas atividades de ensino e pesquisa, a abertura do diálogo com outras formas de saber e o repensar do papel da extensão universitária na perspectiva que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia de saberes.

Assento esta ideia em três pressupostos. A abundância de conhecimento no mundo é muito superior ao o conhecimento disponível em um currículo de determinada área. Além disso, a escolha de quais conhecimentos são legítimos e válidos é feita pelos grupos sociais dominantes e que assim o são pois historicamente oprimiram os grupos sociais hoje excluídos. Por fim, esta relação de poder guarda em si a força da hierarquização: os saberes que não passam nesse crivo são considerados alternativos, lendas, crenças, locais, ou seja, são descredibilizados.

Como avançar na construção de conhecimento socioambiental destinado à transformação social, quando a cultura e os saberes de camponeses e camponesas foram marginalizados e deslegitimados? Como dissolver o muro que tem separado a universidade das lutas sociais de modo geral e, especificamente, da agroecologia e soberania alimentar?

Proponho três alternativas que, se não completas e definitivas, se configuram como desafios para estas transformações.

Primeiro: mudanças nas prioridades da universidade – o que, como e para quem pesquisar e ensinar – não se operam de forma desconectada das estruturas sociais. Embora possa ser espaço de resistência, questionamento e promoção de transformação social, a universidade é sobretudo reprodutora de paradigmas mais amplos e funciona de acordo com dinâmicas sociais que por vezes a transcendem. Assim, não há possibilidade de se construir conhecimento contra-hegemônico de forma descolada dos grupos que mais sofrem as violências do conhecimento hegemônico nem à revelia de outros setores da sociedade. Há a necessidade de se avançar para uma ecologia de saberes que, segundo Boaventura, é o confrontamento da monocultura do saber e do rigor científico pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em práticas sociais.

O segundo é que as mudanças não podem ser implementadas apenas por alguns, mas é pela força de alguns poucos que elas ganharão projeção institucional. Sua promoção faz sentido em contextos específicos, com lutas conectadas com a história de cada instituição, apesar de fortalecerem e serem fortalecidas por lutas mais amplas, de outros grupos sociais, de outros lugares, de outros movimentos, de outras escalas e outras identidades culturais – ou seja, inserida em uma globalização contra-hegemônica.

O terceiro é que não há possibilidade de se pensar a inclusão de saberes socioambientais na universidade sem que isto seja tratado em termos epistemológicos e metodológicos. Epistemológicos porque promover o debate sobre sustentabilidade na universidade requer uma ecologia de saberes que luta contra a injustiça cognitiva. E metodológicos, uma vez que a inserção deste saber, pela sua própria complexidade, está imbricado também no questionamento crítico acerca dos métodos e estruturas em que se pauta atualmente o ensino superior.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/universidade-entre-agroecologia-e-agronegocio/)

Depois de Jango, falta desenterrar as reformas de base (Victor Leonardo de Araujo)

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No momento em homenageia ex-presidente, país vive encruzilhada e parece necessitar, como nunca, das mudanças estruturais por que ele lutou

Por Victor Leonardo de Araujo*, na Carta Maior

A exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart é inequivocamente um avanço para que o Brasil seja passado a limpo. O País cumpriu, com três décadas de atraso, o dever de lhe prestar as honras de Estado negadas quando de sua morte e de apurar as reais condições em que ela ocorreu. Mas deve continuar a lhe prestar homenagem, exumando também as reformas de base, enterradas pela ditadura militar e jamais trazidas de volta para a agenda após a democratização.

A agenda de reformas de base previa uma reforma tributária. Ela foi realizada pelo governo militar, mas seu caráter foi concentrador de renda, porque manteve a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro, concentrado em impostos indiretos. A Constituição de 1988 não alterou a essência do sistema tributário brasileiro quanto a este quesito. Discutir reforma tributária é sempre um assunto árduo, porque significa discutir sobre quais ombros recairá o esforço de financiar o Estado. Na agenda atual, a reforma tributária permanece na agenda econômica, mas o debate tem sido capitaneado pelo empresariado, e por isso é pautado pelos temas concernentes à desoneração da produção, à busca por competitividade da produção nacional, e ao tamanho da carga tributária bruta. Como os grandes empresários que influenciam a agenda também são ricos, a agenda pautada por eles não toca nas questões distributivas, ou seja, às modificações que são necessárias para tornar progressivo o sistema tributário brasileiro. Renda, propriedade do capital e grandes fortunas são itens que estão fora da agenda de reforma tributária do empresariado brasileiro. O impostômetro que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo exibe na Avenida Paulista não informa ao transeunte que os industriais da Fiesp pagam relativamente menos imposto que o restante dos brasileiros.

Outro item das reformas de Jango era o sistema financeiro. Novamente, as reformas realizadas pelo governo militar tiveram um viés conservador: estimularam a concentração bancária, e facilitaram a diversificação dos padrões de consumo de uma classe média alta. Entretanto, deixou sem solução os problemas concernentes ao financiamento do setor produtivo, que continuou dependente do setor público, e ainda assim privilegiando as grandes empresas e as regiões mais ricas. Atualmente, o setor financeiro tem papel privilegiado no desenho da política macroeconômica, haja visto que o ônus dos ajustes fiscais sempre recaem sobre o aumento da arrecadação e/ou da redução das despesas ditas primárias, jamais com o significado de redução das despesas financeiras. O sistema financeiro permanece com pouca ou nenhuma funcionalidade para parte importante do setor produtivo, operando no curto prazo, a taxas  elevadas (spreads), e tendo os títulos públicos ainda como opção preferencial de parte do sistema bancário.

Finalmente, o país não acertou as contas com a estrutura fundiária arcaica. Arcaica não no sentido econômico, porque o agronegócio introduziu técnicas avançadas de produção e gaba-se de ser responsável pela geração de superávits comerciais. Mas é arcaica porque ainda não foi capaz de assegurar, de forma generalizada, ao pequeno agricultor as condições de gerar excedentes comercializáveis. No Brasil, menos de 10% dos estabelecimentos agropecuários eram responsáveis pela geração de mais de 85% da produção bruta no ano de 2006 (veja nota). E, sobretudo, por não ter sido capaz de superar uma estrutura fundiária arcaica, continua a concentrar o poder político regional na figura dos velhos coroneis, como Sarney, Lobão e Calheiros, agora de forma na forma renovada de Kátia Abreu, Ronaldo Caiado entre tantos outros.

A demora em acertar contas com os problemas estruturais brasileiros agravou alguns deles, e assim um sexto item deve ser acrescentado à lista de reformas necessárias: a reforma urbana, para assegurar o direito à moradia nas grandes cidades e frear o mecanismo puramente mercadológico que orienta o acesso aos terrenos urbanos e que tem como resultado mais perverso o inchamento das grandes cidades, a marginalização de parte significativa das populações urbanas e o afastamento dos mais pobres das áreas centrais, cada vez mais caras e acessíveis somente aos mais ricos, transformando a mobilidade urbana em um problema cada vez mais grave.

Trazer essas reformas à ordem do dia seria a mais justa forma de dar prosseguimento às merecidas homenagens ao ex-presidente Jango.

Nota
Vieira Filho, J. E. R. & Santos, G. R. Heterogeneidade no setor agropecuário brasileiro: contraste tecnológico. Radar: tecnologia, produção e comércio exterior, nº 14. Brasília: Ipea.

* Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/depois-de-jango-falta-desenterrar-as-reformas-de-base/)

Ramonet: “Inevitável Mundo Novo”? (Ignacio Ramonet)

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Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para barbárie

Por Ignacio Ramonet | Tradução: Teresa Van Acker

(Publicado originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro de 2000)

Seria pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?

Essas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda mais na literatura.

E, entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua atualidade surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado, pelo menos por uma vez.

O romance, que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano 600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a produção em série e da padronização das peças.

Essa técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as grandes indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também entre os intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e criadores da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos, por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos modernos (1935), de Charles Chaplin.

O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.

Nascido numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres, Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold (1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro diretor geral da Unesco.

Como não poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes “centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial (1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.

Ao retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley, 1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza — iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.

Em seus primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley apresenta um universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles que mais os deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.

Nesse sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo desse período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do moralista.

Essa visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929 castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos. Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo acondicionamento à Pavlov [1] e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos eugênicos e produtivistas.

Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.

Os seres humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” — segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.

No momento de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade da atividade profissional a que estarão destinados.

Além do mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo, recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”

Dessa forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus gostos ou a origem de seus antepassados.

Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia soviética construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados Unidos em nome da modernidade tecnicista.

Huxley, excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em condição humana, no sentido próprio.

O título original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”

No espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado, como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.

Excesso de pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.

Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos, quando, por todos os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos confrontam com desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie humana.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/ramonet-inevitavel-mundo-novo/)

Por que deixamos Varsóvia (Jamie Henn)

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Ao retirarem-se das negociações climáticas, movimentos por justiça global mandaram recado: não aceitaremos mais farsas. E voltaremos mais fortes

Por Jamie Henn, da YesMagazine | Tradução: Inês Castilho

Estou sentado em um espaço de convergência no centro de Varsóvia, a um quilômetro e meio do Estádio Nacional, onde, nas duas últimas semanas, negociadores do mundo inteiro foram incapazes de conseguir qualquer progresso na última rodada da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas.

Cai a noite, e a maioria dos ativistas que estão aqui quase enlouqueceram nas últimas semanas de negociação, mas a sala ainda vibra de energia. A meu lado, Evelyn Araripe, ativista e jornalista do grupo brasileiro Viração, rememora os acontecimentos do dia. Do outro lado da sala, um grupo de jovens do Friends of the Earth (Amigos da Terra) planeja suas próximas atividades. No andar de baixo, as pessoas conspiram sobre os vídeos e entrevistas que pretendem fazer amanhã.

Aqui é onde está acontecendo o verdadeiro enfrentamento das mudanças climáticas: um prédio velho, meio caído, perto da principal rua comercial de Varsóvia. Nosso cenário não tem a ordem das estéreis salas plenárias da Conferência das Partes 19, mas é repleta de criatividade e determinação.

Especialmente agora. Faz apenas algumas horas que grande parte das organizações da sociedade civil abandonou a COP19, para protestar contra a falta de progresso nas conversações. Em particular, contra as manobras dos grandes poluidores, tais como Austrália e Japão, para abandonar seu compromisso de cortar emissões de CO²; a falta de financiamento para os países em desenvolvimento; e o domínio exercido pelas corporações sobre um processo supostamente criado para representar as vozes dos povos do mundo.


Nosso anfitrião, o governo polonês, não apenas permitiu que corporações patrocinadoras estampassem seus logos por todo lado, nas salas onde ocorreu o encontro, mas chegou ao ponto de se aliar à Associação Mundial de Carvão para sediar uma grande cúpula sobre o combustível, lado a lado com as negociações sobre o clima. É o equivalente a montar uma feira de armamentos junto com uma conferência mundial de paz – o que gerou protestos, naturalmente.

De modo que hoje, com camisetas onde se lê “Polluters Talk, We Walk“ (Quando os poluidores Falam, nós saímos), algumas das maiores organizações ambientais – Greenpeace, Oxfam, Friends of the Earth, 350.org etc.— uniram-se a grupos como ActionAid, redes de trabalhadores como Confederação Internacional de Sindicatos, movimentos do Sul Global como Aliança Pan-Africana pela Justiça Climática e jovens de todo o mundo, para deixar a conferência.

Foi uma condenação a essas conversas em particular, não a todo o processo da ONU. Atrás, em nossas camisetas, pode-se ler “Volveremos”, em espanhol – mais fortes e poderosos que nunca. Não abandonamos nossa esperança nas negociações climáticas da ONU, mas essas reuniões eram uma farsa, e sabemos que elas não vão construir um processo relevante até que digamos basta à indústria de combustíveis fósseis e acabemos com seu domínio sobre nossos governos e economias.

A amplitude e o alcance da paralisação de hoje foram um acontecimento sem precedentes no processo da ONU. Grupos isolados já abandonaram as negociações climáticas, no passado (perdi a conta de quantas vezes grupos como Friends of the Earth ou 350.org marcharam, protestaram ou foram expulsos de reuniões). Mas nunca antes tantos grupos, de ONGs gigantes como a World Wildlife Federation (Federação Mundial para a Vida Selvagem) a movimentos sociais de todo o Sul Global marcharam juntos com uma só voz. A ação de hoje foi pequena – o abandono de uma conferência –, mas significou outro nível de unidade no movimento climático global.

Depois de deixar as conversações, centenas de nós viemos para o espaço de convergência partilhar nossas percepções sobre o dia e nos comprometer com o duro trabalho que temos pela frente. Estamos exigindo um bocado dos nossos líderes políticos: financiamento de verdade, forte redução das emissões, novos mecanismos para lidar com as perdas e os prejuízos causados pelas mudanças climáticas. Precisamos também exigir muito de nós mesmos: outro nível de colaboração, vontade de correr riscos, e foco na mobilização de um movimento poderoso nas capitais mundo afora.

Sabemos que não estamos sós. Já estão chegando, neste momento, as fotos das vigílias We Stand With You (Estamos Com Vocês), que acontecem em todo o mundo para honrar as vítimas do Tufão Haiyan e demandar ação imediata contra o aquecimento global.

Esta é a sétima vez que venho a uma conferência climática anual da ONU, e é difícil não haver uma depressão em massa com todo o processo. O progresso é lento, as coisas desmoronam. E apesar disso, este ano há algo diferente no ar.

Pela primeira vez, parece que realmente sabemos quem são os inimigos. É a indústria de combustíveis fósseis – e estamos começando a ir atrás deles seriamente, fazendo de campanhas de desinvestimento à obstrução de dutos.

Lutar contra as mudanças climáticas é difícil, mas, sentado em salas como esta, cercado por ativistas de todo o mundo que estão empenhando seus corações e vidas nesta luta, é difícil não se sentir otimista. Com sempre diz Bill McKibben, não tenho certeza de que vamos ganhar, mas vamos provocar uma briga infernal.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/por-que-deixamos-varsovia/)

domingo, 17 de novembro de 2013

Suécia fecha 4 prisões e prova: a questão é social (Lino Bocchini)

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Penas alternativas e investimento na ressocialização de detentos derrubaram a população carcerária e levaram ao fechamento de 4 prisões no país nórdico

por Lino Bocchini

O jornal inglês The Guardian informou em sua edição de ontem que 4 prisões e um centro de detenção foram fechados na Suécia, pela Justiça daquele país, por falta de prisioneiros. O diretor de serviços penitenciários local, Nils Oberg, afirmou que o número de detentos estava caindo 1% ao ano desde 2004 e, de 2011 para 2012, caiu 6%.

Oberg e outras fontes ouvidas pelo jornal inglês acreditam que a queda do número de presos tem os seguintes motivos: 1) investimentos na reabilitação de presos, ajudando-os a ser reinseridos na sociedade; 2) penas mais leves para delitos relacionados às drogas e 3) adoção de penas alternativas (como liberdade vigiada) em alguns casos.

Com uma política semelhante, a superpopulação carcerária no Brasil e em outros países poderia ser bastante atenuada. O exemplo sueco deixa claro, mais uma vez, que a questão da criminalidade é, sim, social. Ninguém nasce malvado, não existe o que popularmente é chamado de sangue ruim.

Na Suécia, 112º país do mundo em população carcerária, são 4.852 presidiários para 9,5 milhões de habitantes –51 para cada 100 mil habitantes. No Brasil, que tem a 4ª maior população carcerária do mundo, são 584.003 detentos, ou 274 por 100 mil habitantes.

E olha que a reportagem nem entra no mérito de que naquele país nórdico toda população têm acesso a serviços públicos de qualidade (educação, saúde, cultura etc) e que lá os direitos humanos são levados a sério pelos governantes.

Acreditar que não há ligação entre a questão social e o número de presos em um país é acreditar que há pessoas mais propensas para o mal. Ou que quem nasce abaixo da linha do Equador é mais malandro ou algo que o valha.

Isso sem falar na questão moral. Insuflada pelos Datenas da vida, boa parte da população acha que mesmo quem cometeu um crime leve tem de amargar longos períodos encarcerados em condições sub-humanas. E grita contra qualquer investimento na ressocialização de detentos –“pra quê gastar dinheiro com bandido?”.

O que o autoproclamado “cidadão de bem” precisa entender é que a melhor opção para a segurança de sua família –e para um mundo melhor— é o modelo sueco, e não a manutenção das prisões brasileiras tais como estão hoje.

(Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/suecia-fecha-4-prisoes-e-prova-mais-uma-vez-a-questao-e-social-334.html)

sábado, 16 de novembro de 2013

A Arca da Aliança: blog de poesias, contos e crônicas

"A Arca da Aliança é descrita na Bíblia como o objeto em que as tábuas dos dez mandamentos e outros objetos sagrados teriam sido guardadas, como também veículo de comunicação entre Deus e seu povo escolhido." (Wikipedia)

Este blog foi criado com o intuito de abrigar toda minha produção literária: contos, crônicas, poesias, entre outros. Também, raramente, posto textos, músicas ou imagens de outros autores, quando devidamente especificado.

Este blog nasceu como o Oráculo Perdido, amadureceu como o Exército de Mim e hoje é a Arca da Aliança, que representa o que guarda aquilo que é de mais sagrado. Simbolicamente, exponho a arca que abriga meus sentimentos e intimidade expressos em minhas produções literárias para aqueles que se interessarem, que admiram o que escrevo.

Fique à vontade neste espaço que compartilho contigo, aproveite para compartilhar comigo seus sentimentos também.

O tiro no pé das entidades médicas (Lilian Terra)

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Jaru-RO: posto de saúde pichado em março, por moradores obrigados a percorrer 30 quilômetros até médico mais próximo


Rechaçar programa do governo, sem propor alternativas, evidenciou dilemas de profissão atordoada com tecnologia e massificação do atendimento

Por Lilian Terra

As entidades que em teoria representam a classe médica deram um tiro no pé. Ao se oporem ao programa “Mais Médicos”, tudo o que conseguiram foi fortalecer a imagem de elitistas e corporativistas que vem nutrindo ao longo das últimas décadas.

Nem sempre foi assim. Há não muito tempo atrás a medicina era vista como um dom, um sacerdócio. O médico era como o padre, sabia da vida das famílias que assistia – suas angústias, aflições. Era, além de cuidador, conselheiro. Mas o perfil do cuidado em saúde mudou. A tecnologia trouxe avanços de forma muito rápida e talvez o médico não tenha sabido conciliar os novos conhecimentos com a antiga e preciosa escuta do doente. Além disso, o acesso à saúde ampliou-se bem mais que a quantidade de médicos formados, de maneira que os que estavam no mercado precisaram captar os novos pacientes, em detrimento do tempo de atenção a cada um.

Hoje, temos muitas escolas médicas no país, com estudantes que buscam status e enriquecimento, mas também que buscam salvar vidas, cuidar de pessoas, independentemente de cor, credo ou classe social. Há ainda aqueles que buscam um sistema de saúde melhor e mais justo para o Brasil. Entram na faculdade entre seus 17 e 20 anos, vindos de famílias mais abastadas, de escolas particulares, tendo tido até então pouco ou nenhum contato com a pobreza, exceto aquele provocado pela violência ou pelos funcionários mais pobres da família. A faculdade precisaria fazer com que estes futuros médicos abrissem seus olhos para esta nova realidade que se apresenta.

O fato é que existe muito preconceito dentro da classe médica com o trabalho na atenção básica. O “médico do postinho” é visto como alguém inferior, que não teve sucesso em escolher uma especialidade. As residências de Saúde Coletiva, Medicina Preventiva ou Saúde da Família são menos procuradas. Todos aspiram a ser Ivo Pitangui, quase ninguém a ser Osvaldo Cruz. Quando se fala em ir para o interior ou trabalhar nos Centros de Saúde da periferia, sempre dizem que não há estrutura e condições de trabalho – o que é bem verdade, mas talvez não seja o motivo real da recusa.

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Tudo isso ficou muito claro no debate acerca do Programa Mais Médicos do governo federal. As entidades erraram ao não mostrar à população que algumas alternativas já vinham sendo debatidas. Desde 2009, por exemplo, tramita no Legislativo a Proposta de Emenda Constitucional 454, cujo objetivo é instituir a Carreira de Estado para médicos. Quatro anos depois, a PEC segue sob análise de uma comissão especial. Sendo aprovada, tramitará por tempo indefinido até apreciação do plenário das duas casas do Legislativo.

A exemplo do que ocorre no Poder Judiciário, não faltariam profissionais mesmo nos locais mais remotos do país – caso houvesse uma carreira. Porém, ao invés de chamar atenção para este aspecto, as entidades médicas focaram na recusa, não nas alternativas. Não mostraram à população o desejo real, de muitos médicos brasileiros, de ir para estas unidades de saúde; mas, sim, o desejo de bloquear a vinda de estrangeiros. Demonstraram, em sua luta, mais medo de perder status e nível salarial do que de deixar a população desassistida, permitindo que o governo colocasse nos médicos a responsabilidade pela má qualidade da saúde pública.

As entidades médicas representaram bem a classe médica. Infelizmente, porém, existem profissionais que se viram abandonados pelos que deveriam representá-los – aqueles comprometidos com o SUS, que estão na luta por menos desigualdade social, por mais acesso aos serviços públicos, por mais qualidade destes serviços. Mais comprometidos que o próprio governo, que parece rejeitar a proposta de iniciativa popular que visa destinar 10% da receita bruta da União para a saúde. Ao se dirigir ao Congresso na última quarta-feira, 18/09/2013, a ministra Miriam Belchior afirmou não ser possível destinar essa fatia para o financiamento da saúde, ainda que especialistas tenham estudado previamente a proposta e que outros países destinem uma parte ainda maior de seu PIB.

Enquanto isso, as entidades médicas não tomam posição ao lado do governo ou ao lado da população. São uma terceira categoria, cada vez mais isolada. Como apontou a colunista Cláudia Colluci, em recente texto para a Folha de São Paulo, os médicos precisam se colocar “na pele de quem vive nos rincões sem assistência médica” e provavelmente este é um exercício muito difícil para jovens da classe média alta brasileira – certamente bem mais do que o das provas de vestibular.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/o-tiro-no-pe-das-entidades-medicas/)

A melancolia fora de lugar (Arlindenor Pedro)

Gravura "Mellancolia", de Albrecht Dürer

Num mundo racional, em que tudo é previsível, melancolia é tratada como doença. Deve a humanidade reagir a esse desígnio, traçado por um sistema sem sujeitos?

Por Arlindenor Pedro | Imagem: Albrecht Dürer, Melancolia

Refletir, pensar, saber o porquê: eis uma das características marcantes dos seres humanos – que se acentua em alguns, noutros menos.

Sentir, provar, viver intensamente o que se apresenta, eis outra característica que também se acentua em uns, em outros não tanto.

Ser melancólico e saber o que é melancolia, creio, sempre acompanhou o homem em sua trajetória pela terra. Melancolia, então, tornou- se um grande enigma: por uns vivido, por outros pretensamente desvendado.

Embora presente em todas as culturas, foi entre os gregos da Antiguidade que se destacou a sua racionalização, ou seja, a real compreensão do que poderia ser. Em Aristóteles conseguimos ter sua sistematizacão, que chegou até nós após ter influenciado várias sociedades. Ele faz uma clara associação entre melancolia e criatividade.

“Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem (…)?” (Aristóteles, “O Problema XXX”).

Talvez guiados por essa pergunta, artistas procuraram retratar tal comportamento, cientistas buscaram suas causas e, naturalmente, melancólicos trataram de vivê-la na sua intensidade, como na Renascença e no Romantismo, quando era “doença bem-vinda”, pois enriquecia a alma.

Provavelmente a gravura Mellancolia, de Albrecht Dürer, produzida nesse período, seja a obra mais conhecida sobre o tema, atravessando os tempos e nos colocando frente a frente com tal enigma.

No nascimento da era industrial, com o texto Luto e Melancolia, de Freud, parece que nos aproximamos mais do momento de desvendá-la. Para Freud, a melancolia é um estado emocional semelhante ao processo de luto – semelhante, não igual, pois não há a perda que o caracteriza. A melancolia pode ocorrer sem causa definida (sic).

Mas, na sociedade moderna, principalmente na contemporaneidade, constatamos que a melancolia não é mais bem-vinda, pois se choca com o espírito hedonista necessário a um “bem-viver” e a uma padronização normótica.

No início do século XX, Edward Bernays, sobrinho de Freud que vivia nos Estados Unidos, apropriou-se dos estudos do renomado cientista – que via no interior da mente humana áreas ainda não conhecidas, a que chamou de inconsciente, onde existiriam forças que moldavam seu comportamento. Observou, então, que essas forças podiam ser controladas e desenvolveu, através de técnicas da psicanálise e de conselhos de seu tio, mecanismos que pudessem induzir ao consumo de bens, mesmo que desnecessários ao pretenso consumidor.

Em Bernays vemos a gênese do que foram as técnicas de propaganda e controle da mente que deram à humanidade tanto as grandes ações de propaganda do nazi-fascismo e do “socialismo real” da terceira internacional, quanto o desenvolvimento das campanhas de massa do agressivo capitalismo norte-americano. Aquilo que Guy Debord chamou de “espetáculo concentrado”, contido nas sociedades totalitárias e no “espetáculo difuso das sociedades ditas democráticas (“A Sociedade do Espetáculo”).

Após apropriar-se da força de trabalho do homem o capital parte, então, através das técnicas de propaganda (das quais Bernays é pioneiro), para o controle e a manipulação do que poderiam ser seus gostos, sentimentos, desejos… enfim: da sua alma.

É por demais conhecido o estudo de caso da campanha de marketing criada por Bernays no início do século passado, que levou as mulheres americanas a fumar em público (coisa até então inimaginável) .

Ocorre, então, que a melancolia se apresenta como necessária de ser controlada, por todos os meios disponíveis criados pela psicologia, pela psicanálise e pela psiquiatria.
No mundo racional, em que tudo é previsível, a melancolia não tem lugar. Tem que ser substituída por atitudes que todos julguem ter sob controle. As emoções serão então contidas, dando lugar a relações humanas totalmente reificadas.

Mas será que esse controle se dá na sua totalidade? Ou, deve a humanidade reagir a tal desígnio, traçado por um sistema sem sujeitos? Mais ainda: a melancolia deve ser extirpada e tratada como uma doença hostil ao homem?

Na ação concreta da obra de arte, o artista exercita claramente a sua liberdade livrando-se das amarras a ele impostas. A obra que apresenta ao mundo, e que a partir daí não mais lhe pertencerá, torna-se um instrumento de libertação, que cada um viverá de acordo com seu senso estético, suas considerações. Tocar a sensibilidade, chegar até a alma – eis aí o caminho do artista.

No filme Melancolia, o cineasta dinamarquês Lars Von Trier nos coloca diante da temática da euforia e do sofrimento através de um filme em que não existe saída, e o final não é feliz. Tenta dessa forma tocar a nossa alma com um tema sobre o qual, no passado, debruçaram-se tantos pensadores.

Trata-se de um filme de atmosfera especial, cheio de simbolismos. O espectador escolherá sua identificação com os personagens, numa situação-limite de fim próximo – não o fim de um ser, individualmente, mas da totalidade do mundo onde vivemos, com suas cidades, florestas, animais etc.

Vemos então o embate entre os diversos personagens, com sua postura perante o mundo, destacando-se a relação entre duas irmãs com visões diametralmente opostas perante a vida e o fim que se aproxima.

Para horror de muitos, Von Trier nos faz refletir sobre a morte (no sentido da extinção da espécie) e o sofrimento, que tanto queremos afastar de nós. Apresenta-nos um planeta com uma trajetória de colisão determinada, sem possibilidade de mudanças: o que fazer em um momento que não há nada a fazer?

Diante do desespero de sua irmã, Justine, a personagem afetada pela melancolia, vê como perfeitamente lógico o desfechar trágico de suas vidas. Como se fosse o esperado: afinal, não fará nenhuma diferença no Universo!

Trazendo este tema para reflexão, Von Trier nos mostra a sensibilidade dos melancólicos e o seu desajuste em relação ao mundo real. E ao mesmo tempo a necessidade de equilibrar razão e sentimento, em um mundo onde o deus da razão reina absoluto, afastando os sentimentos dionisíacos da humanidade.

Talvez não estejam errados os que veem no planeta, denominado Melancolia no filme, e que irá chocar-se com a Terra, uma alusão aos perigos que rondam a nossa e outras espécies em um mundo erigido pelo capitalismo, com sua devastação ambiental. Salta aos olhos de todos que o planeta está em perigo. E, nesse sentido, os melancólicos são mais conhecedores do perigo que corremos .

Não restam dúvidas de que o homem contemporâneo, aprisionado por um sistema que não lhe permite ver a totalidade do mundo em que vive, tornou-se limitado e regrediu na sua capacidade de observar e sentir a realidade. Muito por ter combatido e afastado a melancolia de sua existência, tornou pobre a sua alma – ao contrário do homem da Renascença e do Romantismo, este um ser mais completo por não temer essa forma de ser.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-melancolia-fora-de-lugar/)

Os governos não sofrem com tufões (Walden Bello)

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Megaciclone Haiyan deveria tornar autoridades e poder econômico mais propensos a ações contra aquecimento global. Por que eles permanecem imóveis?

Por Walden Bello | Tradução: Inês Castilho

Parece que, atualmente, sempre que a natureza deseja enviar uma mensagem urgente à humanidade, ela o faz por intermédio das Filipinas. Este ano, o mensageiro foi o tufão Haiyan, conhecido nas Filipinas como Yolanda.

Pelo segundo ano consecutivo, o tufão mais forte do mundo passou pelas Filipinas, com Yolanda seguindo os passos de Pablo (conhecido como Bopha), de 2012. E pelo terceiro ano consecutivo, uma tempestade destruidora desviou-se do caminho habitual seguido pelos tufões, atingindo comunidades que não aprenderam a viver com esses temíveis eventos climáticos porque, no passado, eram raramente atingidos por eles. Sendong em Dezembro de 2011 e Bopha no ano passado fatiaram a região de Mindanao horizontalmente, e Yolanda atravessou as Visayas também no sentido horizontal.

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Que as mudanças climáticas estão criando supertufões que tomam estranhas direções é a mensagem da natureza não apenas para os filipinos, mas para o mundo todo – paralisado diante das imagens televisivas de um ciclone furioso, que varria a região central das Filipinas em direção ao continente asiático. A mensagem que a natureza enviou via Yolanda – com ventos mais fortes que os da supertempestade Sandy, que atingiu New Jersey e New York em outubro passado, e os do furação Katrina, que devastou New Orleans em 2005 – teve significado especial para os governos reunidos em Varsóvia para as negociações anuais globais sobre as mudanças climáticas (COP19), iniciadas em 11 de novembro.

Seria uma coincidência que ambos, Pablo e Yolanda, tenham ocorrido justo no momento das negociações globais sobre o clima? Pablo esmagou a região de Mindanao durante o último estágio da Conferência das Partes 18 (COP18) em Doha, no ano passado. Para reforçar a mensagem de Haiyan, o comissário Naderev Sano, principal negociador das Filipinas em Varsóvia, entrou em greve de fome quando as negociações começaram, em 11 de novembro.

COP19: um novo impasse?

É duvidoso, contudo, que os governos reunidos em Varsóvia venham a dar conta da questão. Por algum tempo, no início deste ano, pareceu que o furacão Sandy colocaria as mudanças climáticas no primeiro plano da agenda do presidente Obama. Isso não aconteceu.

Obama alardeou que estava ordenando, às agências norte-americanas, tomar medidas para forçar as usinas de energia a reduzir as emissões de carbono, e incentivando uma transição para fontes limpas de energia. Mas não enviou a Varsóvia uma delegação orientada a alterar a política dos EUA, de não-adesão ao Protocolo de Kyoto – que Washington assinou mas nunca ratificou. Embora 70% dos norte-americanos acreditem agora nas mudanças climáticas, o presidente não tem coragem de desafiar os fanáticos “céticos do clima” que enchem as fileiras do Tea Party e o establishment corporativo dos EUA.

É pouco provável que a China, hoje o maior emissor mundial de carbono, concorde com limites obrigatórios às suas emissões de gases de efeito estufa. Está munida da justificativa de que aqueles que mais contribuíram para o volume acumulado desses gases, como os Estados Unidos, devem ser forçados a fazer cortes obrigatórios de suas emissões. Assim como Beijing, agirão Brasil, Délhi e uma série de governos em desenvolvimento industrialmente mais avançados, que são as vozes mais influentes da coalizão “Grupo dos 77 e China”.

O que os governos desses países parecem estar dizendo é que os planos de desenvolvimento industrial de uso intensivo de carbono que estão perseguindo não são negociáveis.

Lacuna perigosa

De acordo com a Plataforma de Durban, de 2011, os governos devem apresentar em 2015 seus planos de redução das emissões de carbono, a ser implementados no início de 2020. Para os cientistas climáticos, isso deixa uma lacuna perigosa de sete anos, em que nenhum movimento obrigatório de redução de emissões pode ser esperado a partir dos Estados Unidos e muitos países que usam carbono intensivamente. Está cada vez mais claro, agora, que cada ano conta, se o mundo pretende evitar um aumento da temperatura média global além de 2ºC, ponto de referência além do qual se prevê que o clima global fique realmente fora de controle.

Países como as Filipinas e vários outros Estados insulares estão na linha de frente das mudanças climáticas. A cada ano, com eventos climáticos desastrosos, maciços e frequentes, como Yolanda e Pablo, eles recordam a injustiça da situação. Embora estejam entre os que menos contribuiram com as mudanças climáticas, são suas maiores vítimas. Seu interesse não é apenas ter acesso aos fundos de “adaptação” – como o Fundo Verde para o Clima, que canalizaria, a partir de 2020, 100 bilhões de dólares anuais dos países ricos aos países pobres para ajudá-los a adaptar-se às mudanças climáticas (até agora as contribuições têm sido pequenas e chegam lentamente).

Com os tufões abrindo a série dos eventos climáticos extremos, esses países da linha de frente precisam compelir os principais emissores de gases-estufa a concordar com cortes radicais imediatos das emissões, e não em 2020.

Táticas heterodoxas

Durante as negociações do ano passado em Doha, um dos líderes da delegação filipina chorou quando falou sobre os estragos causados pelo Pablo em Mindanao. Foi um momento de verdade nas negociações sobre o clima.

Este ano, a delegação deve converter as lágrimas em raiva, e denunciar os grandes poluidores do clima por sua contínua recusa de dar os passos necessários para salvar o mundo da destruição que suas economias carbono-intensivas desencaderam sobre todos nós. Talvez o melhor papel a ser desempenhado pela delegação filipina e a de outros países-ilha seja adotar táticas heterodoxas, como interromper as negociações processualmente para evitar que a conferência caia no alinhamento familiar do Norte rico versus o Grupo dos 77 e China. Essa configuração garante um impasse político, mesmo quando o mundo é arremessado em direção a quatro graus a mais – mundo esse que, como o Banco Mundial alertou, será uma certeza, se não for feito um esforço global em massa para impedi-lo.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/os-governos-nao-sofrem-com-tufoes/)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Açúcar, droga pesada (Ricardo Abramovay)

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Indústria de refrigerantes dissemina epidemia global de obesidade, cinco vezes mais onerosa que o tabagismo. Brasil é segundo país mais afetado

Por Ricardo Abramovay, em Página 22

A alimentação talvez seja o exemplo mais emblemático da distância que pode existir entre riqueza e prosperidade. Parte importante daquilo que o sistema econômico oferece à vida social agrava problemas cujas soluções vão ficando cada vez mais difíceis e caras.

Não há dúvida de que para eliminar a vergonhosa existência de 1 bilhão de pessoas em situação de fome é necessário dispor de alimentos. Mas a verdade é que há, no mundo contemporâneo, 500 milhões de obesos. Somados às vítimas do sobrepeso, é um contingente que supera e cresce muito mais que o de famintos.

As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta. Os riscos sociais que decorrem daí são crescentes e repercutem sobre a própria viabilidade de financiamento dos sistemas de saúde em diferentes países.

Esta é a razão pela qual o tema desperta o interesse não só dos especialistas em saúde pública, mas também de organizações financeiras globais.

O Credit Suisse acaba de publicar um importante relatório, cujo objeto é aquele que, isoladamente, pode ser considerado o principal vetor da epidemia global de obesidade: o açúcar. Não o contido naturalmente nas frutas ou no leite, mas o que se adiciona aos alimentos, o que inclui o xarope de milho, muito usado nos Estados Unidos e, em menor proporção, no México, na Argentina e no Canadá. No início dos anos 1980 o consumo de açúcar (incluindo o xarope de milho) chegava a 48 gramas per capita. Hoje, já está em 70 gramas. Isso corresponde a 280 calorias.

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Só que o consumo de açúcar não se distribui de forma homogênea. A média per capita chinesa é de 115 calorias diárias de açúcar. A dos Estados Unidos sobe a nada menos que 658. O Brasil é o segundo consumidor, superando as 600 calorias diárias, seguido por Austrália, Argentina e México, todos na faixa de 600 calorias diárias ou mais. Em 2009, a Associação Americana de Cardiologia (Heart American Association) recomendava não mais que 150 calorias diárias de açúcar adicionado para homens e 98 para as mulheres.

Nos Estados Unidos (e não só lá, é claro) é nos refrigerantes que está a maior proporção do açúcar contido em produtos alimentares: nada menos que 33% do total.

Mas o metabolismo do açúcar diluído em refrigerantes – e também nos sucos, é importante assinalar– é diferente daquele consumido sob a forma de doces, balas, sorvetes, iogurtes ou molhos: a informação que o corpo recebe do consumo de açúcar em forma líquida não o induz a reduzir proporcionalmente o consumo de outras formas de calorias. Ou seja, refrigerante não mata a fome e tudo indica que, ao contrário, estimula o apetite.

A responsabilidade das empresas

As maiores marcas globais insistem na existência de um componente genético da obesidade. Apesar disso, o estudo do Credit Suisse mostra imensa convergência da literatura científica que associa as doenças da obesidade ao consumo de açúcar: 98% dos médicos entrevistados no âmbito da pesquisa acreditam que o açúcar está na origem da obesidade, e 96% deles associam-no à diabetes tipo 2.

Essa é uma doença que atinge hoje 370 milhões de pessoas no mundo. No México, já é a principal causa de mortalidade. O país está entre os campeões de obesidade (inclusive infantil) e é o segundo consumidor mundial de refrigerantes.

Os custos do tratamento da diabetes 2 para o sistema global de saúde já chegam a US$ 470 bilhões. Só nos Estados Unidos, são US$ 140 bilhões, mais que os US$ 90 bilhões que se gastam com doenças decorrentes do consumo de tabaco. Globalmente, o horizonte é que, em 2020, o sistema de saúde gaste US$ 700 bilhões para tratar o que poderá ser 500 milhões de habitantes atingidos por essa doença.

As grandes marcas globais que se voltam à produção de refrigerantes e sucos levam adiante ações relevantes para a conservação e a recuperação da água, para estimular a reciclagem de suas embalagens e até para fortalecer o empreendedorismo.

Por mais importantes que sejam, tais iniciativas empalidecem diante da tentativa permanente de negar o vínculo, corroborado por robustas evidências, entre o produto que elas oferecem e algumas das mais graves patologias epidêmicas de nossa época.


* Professor titular do departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA) e do Instituto de Relações Internacionais da mesma universidade. Autor de Muito além da Economia Verde e Lixo Zero: gestão de resíduos sólidos para uma sociedade mais prospera

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/acucar-droga-pesada/)

What About the Soul? (Charles R. Perakis)

By Charles R. Perakis, DO

If you could be any cell in the human body, which one would you choose and why? I found this question in a letter to the editor in the New England Journal of Medicine in the 1990s. The authors posed this question when interviewing medical students because they felt that it offered insights into the students' motivations.

During orientation, I used to ask all new students in the family medicine rotation at my hospital to consider this question. The neuron is an unsurprising, popular choice and is often selected by those students who like to be in control or at the center of things. Since the liver is versatile and capable of regeneration, some choose the hepatocyte. Nowadays, the stem cell is another frequent choice. Maybe some students are indecisive and others don't like limiting their options. Some choose the lymphocyte, the erythrocyte, or the myocardial cell. Still others choose the ova or spermatozoa, cells capable of creating life. My favorite answer, however, is from a medical student who quickly indicated her choice was a cell in the islets of Langerhans because she responded well to sweetness.

It is only fair that my students in turn want to know which cell I would choose. Over the years, I have had lots of time to contemplate my choice. I finally decided on the soul cell, which leads to the question about its location. Is the soul located in one cell, all the cells, or beyond mankind somewhere in the cosmos? The answer to this question continues to elude scientific inquiry.

My choice of the soul cell was inspired by Leonardo da Vinci's anatomical drawing illustrating the soul as located behind the eyes in the anterior ventricle of the brain. da Vinci believed that "the senso commune (sense of community), phantasy, and imagination originated in the anterior ventricle." In this drawing, he connected the soul to the eye, which we often refer to as the window to the soul. Here, all the senses converged where judgment formed. Consciousness was the soul. da Vinci felt that to see was to know and to know was the soul.

One can view the soul as spiritual and immortal or as material and mortal. This dichotomy is a great starting point for a dialogue about what the soul is and what healers need to know about it. For students who have been studying the basic sciences, pathology, and textbook diseases, considering the soul may be a reach. After years of caring for patients as a general practitioner, I realized that medical education should pay more attention to the soul.

During their family medicine rotation, students often are faced with patients who have medically unexplained symptoms. These patients' lives are complicated by poverty, abuse, and hopelessness. They lack meaning. They are demoralized. When we treat these patients, I introduce my students to the diagnosis of soul sickness. We discuss how the prescription for a drug or the overinvestigation of symptoms is counterproductive. The treatment for soul sickness is often just listening.

How can we encourage healers, then, to attend to the needs of the soul as well as the needs of the body? How can doctors sort through the symptoms a patient presents to recognize their underlying beginnings? These questions should prompt a dialogue between students and their teachers about the influence of the mind, body, and spirit in treating patients.

What better way to introduce students to the humanities (philosophy, aesthetics, history, literature, and ethics), which provide insight into the human condition and the nature of suffering, than to discuss the exact location of the soul?

(Disponível em: http://www.medscape.com/viewarticle/812274?src=mp&uac=179489CG&spon=25)

domingo, 10 de novembro de 2013

Krugman: a Civilização no cassino (PAUL KRUGMAN)

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Interesses econômicos, ideologia do livre-mercado e crença infinita na técnica bloqueiam ação contra mudança climática. É uma aposta mortal

Por Paul Krugman, no New York Review of Books | Tradução: Cristiana Martin


Resenha de:
“The Climate Casino: Risk, Uncertainty, and Economics for a Warming World“, de William D. Nordhaus, Yale University Press, 378 pp.


1.

Quarenta anos atrás, um jovem e brilhante economista da Universidade de Yale chamado William Nordhaus publicou um renomado artigo, The Allocation of Energy Resources, que expandiu fronteiras na análise econômica. Nordhaus argumentou que era necessário pensar claramente sobre a economia de recursos esgotáveis como petróleo e carvão, para olhar para o futuro e avaliar seu valor à medida que vão ficando mais escassos. Esse olhar necessariamente envolveria considerar, não apenas recursos disponíveis e crescimento econômico futuro, mas também prováveis futuras tecnologias. Além disso, Nordhaus desenvolveu um método incorporando todas essas informações – estimativa de recursos, previsões econômicas de longo prazo e as melhores previsões de engenheiros sobre custos de futuras tecnologias – em um modelo quantitativo de preços energéticos em um longo período.

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Os recursos e informações de engenheiros para o artigo de Nordhaus foram, na maioria, organizados e reunidos por seu assistente, um aluno de graduação de 20 anos que permaneceu longas horas fechado na Biblioteca de Geologia de Yale, debruçado no “Bureau of Mines” e afins. Era uma aprendizagem de valor inestimável. Minhas razões para ter buscado este trecho de história intelectual, no entanto, vão muito além da revelação pessoal – embora os leitores desta resenha devam saber que Bill Nordhaus foi meu primeiro mentor profissional. Pois se alguém se debruçar sobre The Allocation of Energy Resources, aprenderá duas lições cruciais. Primeiro, que é difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro distante. Segundo, que às vezes as previsões devem ser feitas mesmo assim.

Voltando a “Allocation” depois de quatro décadas, o que salta aos olhos é o quão errado estavam os especialistas a respeito das futuras tecnologias. Por anos, seus erros pareciam estar em um superotimismo, especialmente sobre a produção de petróleo e de energia nuclear. Mais recentemente, as surpresas apresentaram-se do lado oposto. A extração de petróleo por meio de fracking tem maior impacto imediato nos mercados, mas a novidade fundamental é a competitividade crescente das energias solar e eólica – nenhuma das quais apareceu na obra “Allocation”. Os preços atuais do petróleo, ajustados pela inflação, são praticamente o dobro do que Nordhaus havia previsto, enquanto o preço do carvão e especialmente o do gás natural estão bem abaixo de suas bases de cálculo.

De modo que o futuro é incerto, uma realidade reconhecida no título do novo livro de Nordhaus: The Climate Casino: Risk, Uncertainty, e Economics for a Warming World (“O Cassino Climático: Risco, Incerteza e Economia para um Mundo em Aquecimento”, sem edição em português). Ainda assim, as decisões devem ser feitas levando em consideração o futuro – e às vezes o futuro de longo prazo. Isso é verdade quando se trata de recursos esgotáveis, em que cada barril de petróleo queimado hoje é um barril não disponível para as próximas gerações. É ainda mais verdadeiro para o aquecimento global, em que cada tonelada de dióxido de carbono emitida hoje permanecerá na atmosfera, alterando o clima do planeta, para as gerações vindouras. E, como enfatiza Nordhaus – talvez não tanto quanto alguns gostariam –, quando falamos em mudanças climáticas a incerteza leva ao aumento, e não ao enfraquecimento da necessidade de ação imediata.

No entanto, embora a incerteza não possa ser banida da questão do aquecimento global, podemos e devemos fazer as melhores previsões possíveis. Acompanhando seu estudo sobre as energias futuras, Nordhaus tornou-se pioneiro no desenvolvimento de “modelos de avaliação integrada”, que tentam reunir o que conhecemos sobre dois sistemas – a economia e o clima –, mapeando a interação entre eles na tentativa de analisar a relação custo-benefício de políticas alternativas (2). Por um lado, The Climate Casino é um esforço para popularizar os resultados dos IAMs e de suas implicações. Mas é também, claro, um convite à ação. Vou perguntar adiante, nesta resenha, se esse convite tem alguma chance de sucesso.

2.

Estilisticamente, The Climate Casino deve ser lido mais como cartilha do que como manifesto – algo que certamente frustrará muitos ativistas climáticos.

Trata-se, é bom lembrar, de uma posição característica de Nordhaus: na comunidade de pessoas razoáveis, que aceitam a realidade do aquecimento global e a necessidade de fazer algo a respeito, ele tem assumido o papel de desmistificador, criticando afirmações muito fortes, que não acredita serem justificáveis por teorias ou evidências. Ele levantou bandeiras de relativo otimismo sobre nossa capacidade de adaptação ao aquecimento global moderado. Criticou duramente o estudo de Nicholas Stern, amplamente divulgado, sobre a economia das mudanças climáticas, argumentando que não deveríamos pensar nos custos impostos às futuras gerações devido ao consumo de combustíveis fósseis nas gerações atuais (3). E assumiu uma postura cética em relação aos argumentos de Martin Weitzman, de Harvard, de ampla circulação, de que o risco de efeitos climáticos catastróficos justifica ações muito rápidas e agressivas para limitar emissões de gases do efeito estufa (4).

Como eu dizia, a participação de Nordhaus nessas controvérsias frustrou alguns ativistas do clima, até porque adversários de todo e qualquer tipo de ação contra as mudanças climáticas usaram seus trabalhos para apoiar a posição deles. Dito isto, é importante notar que The Climate Casino não é, de modo algum, o trabalho de alguém cético sobre a realidade do aquecimento global e a necessidade de agir imediatamente. Ele meio que ridiculariza afirmativas de que as mudanças climáticas não estão acontecendo ou não são resultado da atividade humana. E conclama à ação agressiva: sua melhor estimativa sobre o que deveríamos estar fazendo envolve impor um imposto substancial e imediato sobre a emissão de carbono, de tal forma a aumentar bruscamente o preço atual do carvão, e elevá-la gradualmente até mais que o dobro em 2030.

Talvez alguns até considerem essa política inadequada, mas é muito mais do que existe atualmente na agenda política. Portanto, na prática, Nordhaus e os ativistas climáticos mais agressivos estão do mesmo lado. [...]

Então, o que ele diz neste livro? Primeiro, ele revisa a ciência climática básica. Ao queimar quantidades colossais de combustíveis fósseis, aumentamos enormemente a concentração de dióxido de carbono na atmosfera – e certamente a elevaremos muito mais nas próximas décadas. O problema é que o CO2 é um gás de efeito estufa (assim como muitos outros gases também liberados em consequência da industrialização): ele retém calor, elevando a temperatura do planeta.

De que nível de elevação estamos falando? Nordhaus segue o consenso científico do último relatório do Painel Intergovernamental da Mudança Climática (IPCC), que coloca o provável aumento entre 1,8 e 4 graus centígrados em 2100. Na verdade, Nordhaus aponta para o máximo deste intervalo, com a elevação da temperatura em até aproximadamente 6ºC em 2200. Ele observa também a possibilidade de haver surpresas desagradáveis. Por exemplo, se o aquecimento levar à liberação de quantidades substanciais de metano – um poderoso gás de efeito estufa – provenientes do descongelamento da tundra.

O aquecimento, por sua vez, tem várias consequências para além da simples elevação das temperaturas. O nível dos mares vai aumentar, tanto pela própria expansão da água quanto pelo derretimento do gelo. Aqui, também há a possibilidade de haver surpresas desagradáveis – por exemplo, o derretimento da camada de gelo da Groenlândia, que, por sua vez, causaria mais derretimento. Furacões ficarão mais intensos, pois são “alimentados” por águas mornas. Climas locais podem mudar drasticamente, com áreas úmidas tornando-se ainda mais úmidas ou tornando-se secas.

Há também uma importante consequência do aumento dos níveis de CO2, que não está diretamente relacionada ao aquecimento: os oceanos tornam-se mais ácidos, com efeitos adversos na vida marítima. Efeitos devastadores em recifes de coral já são provavelmente inevitáveis.

Quanto prejuízo isso provocará? Nordhaus desenha um contraste entre o que ele chama de “sistemas gerenciados” – como a agricultura e a saúde pública, atividades humanas basicamente afetadas pelo clima – e “sistemas não gerenciáveis”, tais como nível dos mares, acidificação dos oceanos e desaparecimento de espécies. Comparado a alguns autores, Nordhaus é relativamente otimista sobre o impacto da elevação das temperaturas nos sistemas gerenciados. Na verdade, ele resume estudos que sugerem um provável pequeno aumento das colheitas agrícolas graças a um ou dois graus de aquecimento, e declara: “É impressionante como este resumo das evidências científicas contrasta com a retórica popular.” Ele também vê os impactos na saúde como modestos, ao menos com o aquecimento provável neste século, com avaliação “similar à da agricultura”.

Os maiores custos, argumenta Nordhaus, vêm dos sistemas não gerenciáveis: elevação dos oceanos, furacões mais intensos, perda na diversidade de espécies, oceanos cada vez mais ácidos. O problema é como colocar um número nesses custos – o que ele precisa fazer, pois, como já apontei, seu objetivo é fazer uma análise da relação custo-benefício.

No fim, e apesar da desmistificação, Nordhaus conclui que haverá custos crescentes conforme a elevação da temperatura vá além dos 2°C – e um aumento de no mínimo tal grandeza parece, a esta altura, quase impossível de evitar. Quando se leva em conta o risco de aumentos surpreendentes na temperatura, surge um impulso incontrolável de agir para limitar a mudança climática. O problema, então, é qual o tamanho da ação e que forma ela deveria tomar.

3.

Existe uma facção no debate sobre o clima que reconhece a realidade do aquecimento global e seus custos, mas rejeita a noção de tentar limitar a emissão de gases causadores do efeito estufa – seja porque considera seus custos muito caros, ou (suspeita-se) porque limitar os impactos humanos no meio ambiente faz com que algumas pessoas imaginem que isso seja coisa de “hippie”. Assim, essa facção clama por uma geoengenharia: ao invés de limitar os impactos humanos, nós deveríamos compensá-los com outros impactos na direção contrária.

Muitos ambientalistas rejeitam a ideia da geoengenharia. Nordhaus não; ele sugere que esquemas como o bombeamento de aerosóis refletivos na alta atmosfera poderia livrar o aquecimento global dos gases de efeito estufa a um preço relativamente barato. Mesmo assim, como ele aponta, a geoengenharia não iria de fato reverter os efeitos dos gases, apenas servir para desencadear outros efeitos e isso, apenas em níveis globais. A acidificação do oceano, por exemplo, iria continuar; e mesmo se a média da temperatura global pudesse ser estabilizada, poderiam ocorrer enormes variações em climas e temperaturas locais.

No fim, Nordhaus faz uma bela análise de por que a geoengenharia deveria ser estudada e, consequentemente, guardada como carta na manga, da mesma maneira como médicos estudam e guardam em suas mentes tratamentos perigosos mas poderosos, a serem utilizados apenas, e só apenas, quando todo o resto falha. A primeira linha de defesa deveria ser um esforço para limitar o aquecimento global limitando as emissões de gases. Como isso pode ser feito?

No texto introdutório ao capítulo de Economia do livro, ele fala sobre o conceito de “externalidades negativas” – custos que as pessoas impõem aos outros através de ações, sem serem responsabilizadas por isso. Poluição e congestionamento no trânsito são dois exemplos clássicos – e emissão de gases é, em nível conceitual, apenas um tipo de poluição. É verdade, existem aspectos incomuns nesses gases: o mal que eles causam é global, não local; os prejuízos estendem-se para um futuro longínquo, ao invés de se manifestarem esporadicamente, e existe o risco de essas emissões causarem, além de prejuízos, uma catástrofe na civilização.

Contudo, apesar dos aspectos incomuns, muitas análises do livro deveriam ser aplicadas. E o que Nordhaus diz é que a melhor maneira de controlar a poluição é colocar um preço nas emissões, para que os indivíduos e empresas tenham um incentivo financeiro para reduzi-los. [...]

Por que tributar o carbono é melhor do que regular diretamente as emissões? Todo economista conhece os argumentos: medidas para reduzir emissões podem acontecer em muitas “margens”, e nós deveríamos dar às pessoas incentivo para explorar essas margens. Deveriam os próprios consumidores tentar usar menos energia? Eles deveriam mudar seu consumo para produtos que usam menos energia ao ser fabricados? Deveríamos tentar produzir energia a partir de fontes com menores níveis de emissão (gás natural) ou sem emissão alguma (eólica)? Deveríamos tentar remover o dióxido de carbono (CO2) após o carbono ter sido queimado, ou seja, por captura e sequestro em complexos de energia? A resposta é: todas acima. E colocar um preço no carbono, na verdade, dá às pessoas um incentivo para realizar todas elas.

Por outro lado, seria muito difícil estabelecer regras para conseguir cumprir todas essas metas; na realidade, apenas conseguir comparar as emissões para fazer uma simples escolha, seja dirigir um carro ou voar até uma cidade distante, não é nada fácil. Por isso, estabelecer preços para carbono é o caminho a ser seguido. [...]

4.

Gostei de The Climate Casino, e aprendi muito com ele. Mesmo assim, enquanto o lia, não pude deixar de me perguntar para quem, exatamente, o livro foi escrito. Ele adota um tratamento calmo e fundamentado, ordenando o que há de melhor em evidências econômicas e científicas em favor de uma abordagem pragmática da política. E este é o ponto: quase todo mundo que responde a esse tipo de argumento já é favorável a uma forte ação contra a mudança climática. O problema são os outros.

Claro que Nordhaus está ciente disso, mas creio que ele minimiza quão ruim está o cenário. […] O ponto é: há poderes reais por trás da oposição a qualquer tipo de ação climática – poderes que desvirtuam o debate, tanto negando a ciência climática quanto exagerando os custos para reduzir a poluição. E esse não é o tipo de poder que pode ser afastado com argumentos tranquilos e racionais.

Por que alguns indivíduos poderosos e grandes organizações se opõem tão fortemente à ação, diante de perigo tão claro e presente? Parte da resposta é pura e simplesmente interesse próprio. Enfrentar o aquecimento global envolveria eliminar o uso de carvão, exceto na medida em que o CO2 puder ser recapturado após o consumo; envolveria redução do consumo de combustíveis fósseis; e preços substancialmente mais altos para a eletricidade. Para alguns tipos de negócio, isso significaria bilhões de dólares perdidos, e para os donos desses negócios, subsidiar a negação climática tem sido um investimento altamente lucrativo.

Para além disso tudo está a ideologia. “Os mercados sozinhos não resolverão esse problema”, declara Nordhaus. “Não há ‘solução de livre mercado’ genuína para o aquecimento global.” Isso não é uma afirmação radical, é apenas economia básica. Contudo, é um anátema para os entusiastas do livre mercado. Se você gosta de se imaginar como personagem de um romance de Ayn Rand, e alguém diz a você que o mundo não é daquele jeito, que ele necessita intervenção do governo – não importa quão amigável ao mercado ele possa ser – sua resposta provavelmente será rejeitar a informação e se apegar a suas fantasias. E, é triste dizer, um bom número de pessoas influentes na vida pública norte-americana acredita estar atuando no Atlas Shrugged.

Finalmente, há um forte traço no conservadorismo norte-americano moderno que nega não só a ciência climática, mas também os métodos científicos em geral. Uma enquete sugere, por exemplo, que a grande maioria dos republicanos rejeita a teoria da evolução. Para pessoas com essa mentalidade, permanecer alheio ao consenso científico sobre a questão apenas sustenta e alimenta fantasias sobre conspirações malucas.

Daí minha preocupação com a utilidade de livros como The Climate Casino. Dado o estado atual da política norte-americana, a combinação de interesse próprio, ideologia e hostilidade à ciência constitui um enorme obstáculo à ação, e a argumentação racional provavelmente não ajudará. Enquanto isso, o tempo está se esgotando, à medida que a concentração de carbono continua a subir.

Ao longo deste livro, o tom de Nordhaus é um pouco cínico, mas basicamente calmo e otimista: o aquecimento global é, em última análise, um problema que deveríamos ser capazes de resolver. Só gostaria de poder compartilhar de sua aparente convicção de que essa possibilidade vai se traduzir em realidade. Ao contrário, continuo sendo assombrado por um dado que ele apresenta no início do livro, ao mostrar que temos vivido em uma era de estabilidade climática incomum – “os últimos 7.000 anos têm sido o período de clima mais estável em mais de 100 mil anos”, afirma. Como pontua Nordhaus, esta era de estabilidade coincide exatamente com a ascensão da civilização, e isso provavelmente não é uma coincidência.

Agora, este período de estabilidade está terminando – e foi a civilização que produziu isso, por meio da Revolução Industrial e da queima maciça de carvão e outros combustíveis fósseis. A industrialização, é claro, tornou-nos imensamente mais poderosos, e mais flexíveis também, mais capazes de nos adaptar a circunstâncias em transformação. A Revolução Científica que acompanhou a revolução na indústria também nos deu muito mais conhecimento sobre o mundo, inclusive a compreensão sobre o que estamos fazendo com o meio ambiente.

Mas parece que fizemos, sem saber, uma aposta tremendamente perigosa: a de que seremos capazes de usar o poder e conhecimento que adquirimos nos últimos séculos para enfrentar os riscos climáticos que desencadeamos no mesmo período. Vamos ganhar a aposta? O tempo dirá. Infelizmente, se a aposta não der certo, não teremos outra chance de jogar.



Notas

(1) Brookings Papers on Economic Activity, Vol. 3 (1973).

(2) Ver, por exemplo, William D. Nordhaus and Joseph Boyer, Warming the World: Economic Models of Global Warming (MIT Press, 2000).

(3) William D. Nordhaus, “A Review of the ‘Stern Review on the Economics of Climate Change’,”Journal of Economic Literature, Vol. 45, No. 3 (September 2007).

(4) Ver Martin L. Weitzman, “On Modeling and Interpreting the Economics of Catastrophic Climate Change,”The Review of Economics and Statistics, Vol. 91, No. 1 (2009); e William D. Nordhaus, “The Economics of Tail Events with an Application to Climate Change”,Review of Environmental Economics and Policy, Vol. 5, No. 2 (2011).


(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/krugman-a-civilizacao-no-cassino/)
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