No início de maio deste ano, foi divulgada
nos meios de comunicação a notícia de que o governo brasileiro importará
médicos – cubanos (aproximadamente 6000), portugueses e espanhóis – para trabalharem
no interior do Brasil. A opinião popular aprovou a medida: nada mais do que já
era esperado, visto que na política de nosso País a maior parte do que se faz é
cautelosamente arquitetada com vistas à próxima eleição, já considerando a
aprovação do eleitor, e não em um real e consolidado projeto de Nação. Por
outro lado, grupos sociais se opuseram a essa política de governo: ícones de uma
direita populista falaram em “revolução comunista”, “contaminação ideológica”,
etc. no interior brasileiro; as entidades médicas se posicionaram contra
argumentando principalmente em torno do REVALIDA (exame para admissão de médicos
estrangeiros) e do plano de carreira para a categoria. Entretanto há algo muito
mais importante que tudo isso (politicagem eleitoreira, corporativismo) que poucos
estão considerando: o subfinanciamento do sistema único de saúde – o SUS.
Segundo dados da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do IBGE, enquanto quase 50%
do orçamento do governo federal são voltados para o pagamento de juros e
amortização da dívida e aproximadamente 20% para a previdência social, menos de
4% do orçamento é investido em saúde, o que – junto aos investimentos
municipais e estaduais – faz o gasto público arcar com somente 40% da despesa
total em saúde. Esses números, tão abstratos quanto parece ser a realidade da
saúde pública brasileira, são pífios perante os que se referem a outros países,
inclusive àqueles nos quais não se defende um sistema universal e público, como
o brasileiro. Para esconder essa realidade em véspera de eleição, o governo
propôs essa política de importação de médicos.
Para a população em geral, médico
é saúde, logo: mais médicos, melhor a saúde. No entanto, primeiro há de se
destacar que o conceito de saúde vai muito além da ausência de doença –
conforme consta em nossa Constituição Cidadã -, pois ele se refere mais ao
bem-estar resultante de várias condicionantes: acesso ao serviço de saúde,
educação de qualidade, saneamento básico, moradia digna, condições de trabalho
justas, meio ambiente, etc. – questões muito além do papel do médico e que levam
o debate a outro nível, muito mais complexo e abrangente inclusive, mas que não
devem ser ignoradas ou esquecidas, muito embora não sejam o foco deste artigo. Em
um segundo ponto: de que vale um médico sem condições de trabalho? E não se
trata aqui tão somente de salário digno a esse trabalhador, mas sobretudo de
uma ambiência que envolva: infraestrutura adequada, acesso a materiais para a
realização de procedimentos, disponibilidade de exames complementares, formação
de equipe multiprofissional (agente comunitário de saúde, técnico de
enfermagem, enfermeiro, farmacêutico, psicólogo, entre outros). Mesmo assim, o
governo prefere investir em médicos estrangeiros – inclusive ofertando-os cursos,
conforme noticiado recentemente -, tão somente focado em atingir os “níveis de
cobertura”, valiosos em períodos eleitorais, e sem considerar a importância da longitudinalidade
(em linhas gerais: acompanhamento do usuário ao longo do tempo pela equipe de
saúde), como tentou fazer com o Programa de Valorização ao Profissional da
Atenção Básica (PROVAB), que basicamente é uma política de interiorização (não
tão) voluntária – garantindo benefícios na seleção para a residência médica – dos
recém-formados estudantes de Medicina, os quais – assim como os médicos
estrangeiros que virão – têm de trabalhar nas condições supracitadas, neste
caso ainda com o agravante de serem médicos com pouca experiência profissional
e com uma educação médica deficitária.
Aliás, eis o último ponto deste
artigo: uma educação médica abandonada. Se, de fato, fosse prioridade deste
governo atual a saúde de qualidade, o dinheiro que está sendo gasto para
importar e formar médicos estrangeiros (e para tantos outros investimentos
questionáveis) seria investido, pois, na educação dos futuros médicos de nossa própria
Nação. E não se fala aqui de abrir mais escolas médicas, mas de oferecer cursos
de qualidade – avaliados longitudinalmente e de acordo com as Diretrizes
Curriculares Nacionais, como o Teste de Progresso da ABEM, de que em nada se
apropria o exame do CREMESP ou o próprio ENADE -, voltados para a formação de
médicos generalistas para a atenção básica no SUS, o que realmente irá
revolucionar a saúde pública no País.
Portanto, fica claro que não é
possível considerar séria e honesta – desvinculada de mitos e tão somente
interesses eleitoreiros - uma política que não considere a saúde pública como
uma construção interna e consolidada do País – pautada na valorização do
profissional da saúde, da ambiência e da educação médica, fornecendo a ela um
financiamento adequado para isso -, pois, diferente do que nossos governantes
estão tentando tratar: a saúde não pode ser importada.
*Lucas Cardoso da Silva é estudante de Medicina na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Vice Coordenador Discente da
Regional Sul 2 da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e articulador
da Rede Sustentabilidade em Santa Catarina.