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domingo, 25 de maio de 2014

Em Busca do Orgasmo Perdido (Carla Rodrigues)

Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire
Sessão de somaterapia, uma “tropicalização” das teorias de Reich criada pelo psicanalista brasileiro Roberto Freire

O orgasmo libertário de Wilhem Reich volta a ganhar força numa era de banalização do sexo

Por Carla Rodrigues


Wilhelm Reich causou escândalo ao defender a função libertária do orgasmo, inspirou a contracultura e gerou discípulos como Roberto Freire e Gaiarsa - antes de sair de moda. Na era da banalização do sexo, suas ideias voltam a ganhar sentido e seguidores
“Relaxa e goza!”, prega o ditado popular como saída para enfrentar situações de estresse e tensão. A máxima pode ser lida como uma tradução para lá de simplificada de uma teoria psicanalítica séria que desde o início do século passado vem associando orgasmo com libertação. Para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, além de proporcionar prazer, a função do orgasmo é produzir uma carga energética poderosa capaz de dissolver a “couraça neuromuscular do caráter” de indivíduos bloqueados pelas exigências de uma sociedade hierarquizada em que a sexualidade é oprimida. Reich trabalhou com Freud nas primeiras décadas do século 20 e trocou a Europa pelos EUA em 1939, onde depois seria perseguido e preso, sobretudo por seu passado comunista.

A partir do fim dos anos 60, tornou-se uma das referências teóricas para o movimento da contracultura. Suas propostas para pensar a sexualidade como ponto central da existência humana deram origem a quatro tipos de terapias cujo denominador comum é o prefixo bio: bioenergética, a mais famosa delas, biodinâmica, biossistêmica e biossíntese. No Brasil, dois importantes autores construíram suas obras inspirados em Reich: o médico e psicanalista Roberto Freire, autor de best-sellers como Ame e dê vexame e Sem tesão não há solução, que ajudaram a popularizar o pensamento reichiano, e o psiquiatra José Angelo Gaiarsa, falecido este ano.

Satisfação genital

Em 1927, Reich publicou a primeira edição de A função do orgasmo, um dos seus títulos até hoje mais conhecidos. Reescrito e ampliado até 1942, essa última versão foi editada pela Brasiliense e lançada aqui em 1975, no auge da emergência dos movimentos alternativos, e ainda está nas livrarias, agora na sua 19ª edição. O primeiro texto de A função do orgasmo foi escrito quando Reich tinha 30 anos e havia sete militava na Sociedade de Psicanálise de Viena ao lado de Freud, de onde seria expulso pelas articulações que fazia entre psicanálise e as ideias comunistas que abraçou e pelo combate ao nazismo nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Reich fazia parte do pequeno grupo de psicanalistas que dava ouvidos aos sintomas neuróticos dos primeiros pacientes a se deitar em divãs para falar de seus problemas sexuais. Naquele momento, a libertação em relação às repressões era o principal objetivo da psicanálise. Os reflexos dessa preocupação estão na frase “problemas econômicos sexuais na energia biológica”, subtítulo de A função do orgasmo, e em toda a estrutura do livro, cujas afirmações provocaram profundas transformações na cultura sexual. Logo nas primeiras páginas do capítulo dedicado ao desenvolvimento da teoria do orgasmo, Reich escreve: “É simples e parece até vulgar, mas eu sustento que toda pessoa que tenha conseguido conservar alguma naturalidade sabe disto: os que estão psiquicamente enfermos precisam de uma só coisa – completa e repetida satisfação genital”.

Essas e outras orientações soaram escandalosas em um ambiente sexual repressor e reprimido, fortemente influenciado pela moral rígida do período vitoriano e diametralmente oposto à cena sexual contemporânea. “Não se poderia estar vivendo uma situação mais oposta àquela. O sexo hoje é tão escancarado que muitas vezes perde o valor. São duas épocas extremas e o século passado experimentou esses dois extremos fortes: da máxima repressão à liberalização total”, diz o psicoterapeuta corporal Rubens Kignel, diretor do Instituto Brasileiro de Biossíntese, estudioso de Reich e um dos que seguiram os caminhos da bioenergética pela orientação de Roberto Freire, de quem foi paciente nos anos 70.

“A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, diz o somaterapeuta João da Mata

A liberalização total banalizou o sexo na vida cotidiana. O excesso de oferta de pornografia, ao alcance de um clique do mouse, as relações sexuais descartáveis, as imagens sexualizadas onipresentes nas campanhas publicitárias e na programação de TV, no entanto, não garantem que as repressões que motivaram a obra de Reich tenham sido superadas. Apesar de a expressão “revolução sexual” (que deu título a um dos livros de Reich, escrito em 1936) ter se popularizado como sinônimo de uma mudança de valores que abriu espaço às novas formas de experimentar a sexualidade – fora da estrutura familiar, antes do casamento, em arranjos homossexuais –, a ideia de liberdade sexual é contestada por muitos autores. O sociólogo francês Michel Bozon, por exemplo, não acredita que “revolução sexual” seja um termo adequado para definir as mudanças de comportamento que começaram nos anos 60. Para ele, o que aconteceu foi a criação de um novo conjunto de normas, que podem ser tão repressoras quanto as antigas.

Essa percepção se expressa nos consultórios dos terapeutas que trabalham com bioenergética e confirmam a atualidade da obra de Reich. “Ainda há muitas dificuldades de viver a sexualidade de maneira plena. Mesmo com toda a liberdade de escolha, as repressões ainda existem e ainda há um aspecto moral que impõe à vida sexual uma série de dificuldades. Trabalhar com Reich continua muito válido”, diz Rubens Kignel. “A revolução sexual que Reich pregava ainda não houve”, defende o somaterapeuta João da Mata. Ele afirma que a banalização do sexo nada tem a ver com o pensamento de Reich, que pregava uma sexualidade plena com afetividade e amor. Embora reconheça que se vive hoje dentro de uma moldura de experiência sexual mais ampla – com arranjos afetivos mais livres que no passado –, ele acredita que a força do capitalismo em todas as formas de sociabilidade faz do sexo mais um objeto de consumo. “O corpo é cultivado para mostrar, não para gozar.”

João da Mata é discípulo de Roberto Freire, cuja produção teve Reich como influência e referência. “Freire tropicalizou a teoria de Reich”, explica Mata. Coube ao terapeuta brasileiro acrescentar ao pensamento do psicanalista austríaco uma metodologia que incorpora práticas corporais como o teatro, a capoeira e um componente libertário que define a somaterapia, a terapia anarquista criada por Freire. Com grupos em atividade permanente, a somaterapia propõe movimentos corporais que simulam os efeitos da energia sexual no corpo a partir de exercícios com o objetivo de libertar o paciente da tal “couraça neuromuscular do caráter” pensada por Reich.

O médico e o poeta

Granger Collection / Other images
Reich em seu laboratório em 1944
Reich em seu laboratório em 1944
No Brasil, o pioneiro no trabalho com essa couraça, pedra de toque da terapêutica reichiana, foi José Angelo Gaiarsa. Morto em outubro, aos 90 anos, ele deixou como legado uma ampla obra sobre libertação sexual, tema que perpassa seus cerca de 25 títulos publicados. “Seus livros foram muito importantes e se tivessem sido escritos em inglês teriam sido referência no mundo inteiro”, diz Rubens Kignel, que atribui as diferenças entre Gaiarsa e Freire ao estilo: enquanto o primeiro era mais médico e analítico, o segundo era mais poeta e romântico.

Esse romantismo fez com que Freire se autodefinisse como “filósofo do tesão”. A somaterapia, prática criada por ele há 40 anos, tem como sustentação a defesa do prazer como arma revolucionária de combate ao autoritarismo. Por tudo isso, ainda é vista como marginal pelo acento que dá ao pensamento anarquista e libertário e pelas críticas que faz às relações de poder. “A sexualidade é um dos pontos mais sensíveis da vida humana. Uma sexualidade mais livre quer dizer uma vida mais livre”, defende Mata. Esse tipo de pensamento casava com os objetivos da contracultura e com as reivindicações de liberdade, que passavam por um corpo livre para uma vida sexual plena e satisfatória.

A expectativa de liberdade levou, reconhece Rubens, a alguns exageros. Grupos terapêuticos de fim de semana com “todo mundo nu e gritando” se multiplicavam no rastro do amor livre dos hippies dos anos 70. No auge da prática, os encontros eram quinzenais e a proposta era passar por experiências radicais de liberação. “Podiam ser boas, mas também podiam ser complicadas. Porém muitas coisas eram sérias. Mesmo que fosse ficar nu, era sério, tinha um conceito em cima disso. Depois acabou virando festa”, lembra Rubens.

A porra-louquice dos anos 70 foi-se e levou consigo alguns traços do pensamento de Reich que hoje se mostram ultrapassados. A ênfase nos aspectos biológicos do orgasmo, tônica dos textos de Reich a partir da sua mudança para os EUA; um detalhado manual do “orgasmo correto” em todas suas fases; e um ideal romântico do “gozo cósmico”, de entrega infinita, ou de uma “vida orgástica” são alguns dos pontos que mesmo os seguidores de Reich descartam hoje.

Existem outros aspectos do pensamento reichiano, no entanto, que foram revitalizados pelas neurociências. Uma de suas teses básicas é que a consciência vem da percepção do corpo. “Reich já falava disso e os exercícios de percepção do corpo que ele propõe já eram formas de chegar à consciência”, explica o psicoterapeuta Ricardo Rego, do Instituto Brasileiro de Psicologia Biodinâmica. Doutor em psicologia pela USP, Ricardo integra um grupo de dez pesquisadores que retomou a leitura de Reich, não mais à luz da contracultura, mas no ambiente acadêmico. “A contracultura produziu uma certa visão sobre Reich e até hoje os reichianos pagam um preço por isso”, diz ele.

Ricardo foi um dos alunos de Paulo Albertini, precursor nos estudos de Reich na USP. Professor do Instituto de Psicologia da universidade desde 1978, Albertini propôs em 1986 a criação de uma disciplina sobre o autor de A função do orgasmo. Seis anos depois, defendeu a primeira tese inteiramente dedicada à investigação das ideias de Reich no Brasil, e desde então, tem se dedicado a orientar pesquisas de pós-graduação sobre o psicanalista austríaco. Entre mestrados e doutorados, já são dez trabalhos voltados ao estudo do pensamento de Reich.

Almoço de domingo

Albertini acredita que ainda há muito a ser lido e pesquisado, num movimento que pode trazer à tona mais do que as ideias de Reich, tão em voga nos anos 70. Com Albertini, novos reichianos foram, a partir dos anos 90, conquistando espaço na academia, movimento que João da Mata também percebe em relação ao trabalho de Freire. “Estão surgindo alguns cursos e grupos de pesquisa”, constata Mata, ele mesmo hoje professor na Universidade Federal Fluminense.

Na USP, Albertini garante não ter passado por adversidades, mas lembra quando preencheu um formulário sobre seus temas de pesquisa e escreveu “teoria do orgasmo”. O documento voltou devidamente revisado para “teoria bioenergética”. Hoje, no ambiente universitário, a barreira a enfrentar é outra. Reich é apontado como um pensador que contribuiu para relações contemporâneas marcadas pela ausência de vínculos afetivos sólidos e para experiências de sexualidade narcísicas. “Não era nisso que ele apostava”, diz Albertini, lembrando que o espírito reichiano não era o da quantidade, mas da qualidade das relações sexuais. Ele defende que a crítica de Reich ao patriarcado foi um ponto fundamental para desmontar as estruturas hierárquicas da sociedade que sustentam a opressão sexual. Albertini recorda a afirmação de uma aluna que, nos anos 80, expressou a visão de Reich sobre as relações autoritárias: “Violento é o almoço de domingo em família”.

(Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/195/reportagens/em-busca-do-orgasmo-perdido.html)

A farsa do racismo “suave” (Douglas Belchior)

À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.
À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.

Muito mais que vulgaridade publicitária, difusão do “todos somos macacos”  revela tentativa de minimizar peso da discriminação racial

Por Douglas Belchior, em seu blog

A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.

Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.

A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.

Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”

Não, querido Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.

Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.

No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.

E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:

“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”

É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!

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Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!

O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!

Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.

O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.

Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.

Sou negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.

Eu como negro, não admito. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.

O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.

Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?

Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.

Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17281)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gata, eu quero ver você parindo! (Ligia Moreiras Sena)

Aviso 1: Contém inúmeras vezes a palavra "vagina".
Aviso 2: Contém fotos de cicatrizes. Seja forte. Coragem.

"Então eu olhei aquela foto, aquela mãe com um bebê saindo de sua vagina, feliz, radiante, olhos arregalados, boca aberta, pai eufórico, parteira amparando, mãe segurando as costas do bebê em nascimento, e pensei: 'Tem alguma coisa errada... Por que eu tenho dois filhos e nunca imaginei que isso seria possível? Por que eu não sabia que parto não precisava ser daquele jeito azul, branco, frio?"
"Cheguei na casa da minha vizinha pra levar uns livros que ela tinha me emprestado. A filha dela de 16 anos estava assistindo um parto no Youtube! Um parto parto mesmo, mulher gemendo, pernas abertas, vagina à mostra. Choquei. Eu  nunca tinha visto um parto na vida! Fiquei meio sem jeito... e achei estranho estar sem jeito. Por que eu estava sem jeito de ver uma mulher dando à luz pela vagina? Eu não tenho filho nem vou ter, mas era só uma vagina, uma mulher em diferentes posições mas uma vagina. Pedi pra menina se eu podia ver também, ela disse que sim, fiquei por ali. Aí nasce o bebê... Eu não sei como nem porquê, mas fiquei emocionada. Eu nunca tinha visto um bebê sair pela vagina, nem a reação de uma mulher num nascimento daquele. Comecei a chorar. Senti uma alegria... Foi aí que comecei a ler sobre parto, caí no seu blog, caí na blogosfera partolesca, curto muito. Minha cunhada engravidou e tenho muito orgulho de ter sido eu a orientá-la durante a gestação, porque ninguém na minha família conhecia essas coisas. Nasceu num super parto lindo, com meu irmão e eu do lado. 'Parto vaginal', eu sempre conto, porque aprendi a importância disso".
"Foi de tanto ver foto de parto bonito que percebi que tinha sofrido uma violência irreparável".
"Minha filha tem 8 anos e adora ver vídeo de parto comigo. A gente faz "Óinnn" quando o bebê chega, a gente se abraça, é lindo. Quero mostrar pra ela que parto faz parte da vida, é natural, ao contrário do que foi comigo".
"Durante a gestação dela, quando a gente contava que eu estaria junto, que iria ver meu filho nascer, que iria ajudá-la no trabalho de parto, todo mundo da família me repreendia, dizendo que era ruim, que eu não veria minha esposa mais da mesma maneira, que as partes íntimas dela estariam diferentes, enfim. Perguntavam como eu tinha coragem, que grande parte dos homens desmaiava, ou não aguentava e saía. Realmente, na minha família, quase todos os homens passaram mal nos nascimentos dos filhos, mas porque ver cesárea deve mesmo ser foda. E todo mundo teve bebê por cesárea na minha família. Não, minhas avós não, mas o pessoal novo, todo mundo. Imagina! Cortar 7 camadas de tecido, músculo, sei lá mais o que, sangue, ponto, deve ser difícil. Mas não era o nosso caso, já que o Igor ia nascer naturalmente, por via vaginal. E eu fiquei, ajudei e tal. Só não ajudei mais porque chorei que nem menino pequeno. O Igor saindo e eu chorando de alegria. Minha esposa contou depois que eu apertei tanto os joelhos dela que ela até desconcentrou da dor do expulsivo, rsrsrs. E vi meu filho sair da vagina da minha mulher. Eu realmente nunca mais a vi como antes... Sempre tive muita admiração por ela. Ter visto meu filho nascer, ali, na dura, na real, me fez olhar com ainda mais admiração, com quase reverência. Tava ali uma coisa que eu não sabia fazer e nunca saberia, e ela fazia como se sempre tivesse feito: deixar meu filho sair. Que mulher, eu pensava. Num segundo estava dizendo que doía e no outro, tendo o filho parido no braço, estava rindo às gargalhadas. Dá até uma coisa contando..."

Infelizmente, por conta do meu trabalho/pesquisa atual, vejo/leio muito mais sobre partos trash repletos de violências terríveis e sobre cesarianas desnecessárias, em tom de revanche médica e repleta de tecnologia fria e impessoal, do que eu gostaria. Vejo fotos de mulheres amarradas à maca, ou inconscientes no exato momento do nascimento do filho, ou com o bebê no braço e um choro de quem se viu violentada. Tudo isso no momento que era para ser de extrema beleza, alegria, êxtase.
Vejo e leio relatos infindáveis da mais genuína dor, de mulheres que foram enganadas, humilhadas, xingadas, ludibriadas e que perderam o parto do próprio filho e que hoje carregam cicatrizes físicas e emocionais que não foram frutos de uma escolha.

Então, quando abro a rede social e dou de cara com umavagina parindo, sinto uma puta alegria. Quando, nos grupos maternos, alguém posta a foto do nascimento ou escreve: "Eu pari!", é como se uma pequena dose do antídoto necessário pra dar conta do tranco de estudar a violência no parto me fosse dada.
Por tudo isso, tenho a exata noção das coisas: sei exatamente qual dessas circunstâncias - parto violento x vaginaparindo com moça sorrindo - representa a visão do inferno, e não é a segunda alternativa. Nunca pensei na vagina como uma visão do inferno... Por que eu pensaria isso sobre a minha própria vagina, uai?! Gosto dela. Tenho carinho por ela. Somos amigas, puxa vida. Amigas muito íntimas. E entendo a amizade das outras mulheres com as próprias vaginas. A vagina alheia não é uma inimiga para mim. E seria ótimo se todo mundo vivesse essa love story vaginal. Talvez houvesse muito mais respeito por aí. Além, claro, de evitar coisas como isso que aconteceu, de chegarmos ao ponto de alguém publicar, num jornal de grande circulação, aos quatro ventos, o seu ódio pela vagina alheia. 

Li o texto da Tati Bernardi publicado na Folha de São Paulo com o título de "Gata, eu não quero ver a sua xota" e depois vi uma foto em que ela aparecia abraçada em um pênis de pelúcia (escrever "pênis de pelúcia" me dá uma super vontade de rir, acho que é a sonoridade da expressão). A primeira coisa que pensei, assim de cara, foi: "Caraca... Qual será o problema dela com a vagina, gente?!".
Aí fui ler o texto de novo.
E ela não usa a palavra VAGINA uma única vez!
Usa: xota; xoxota; xuranha; prexeca sofrida; ximbica e xereca.
Zero vagina.
Vagina zero (parece até o nome de um movimento... Imagina: '''Vagina Zero - Movimento de Valorização da Direita no Brasil").

Então eu vim aqui apenas para fazer um pedido: GATAS, EU QUERO VER VOCÊS PARINDO! 
Tá, eu sei que não sou ninguém, não publico em jornal de grande circulação e tal. Mas por favor, gatas, eu quero ver vocês parindo!
Não liguem para a Tati Bernardi. Alguma coisa lá não tá legal. Compaixão, minha gente!

Muita gente que está hoje na luta pela humanização do parto - alheio ou próprio, vagina sua ou vagina 
alheia - está nessa justamente por um dia ter visto uma foto de parto, um vídeo de parto, onde - olha que surpresa! - tinha umavagina parindo. Como as pessoas dos relatos que abrem esse texto. Não é surpreendente que encontremos vaginas em partos ainda hoje?! Muito surpreendente. Principalmente em um país onde os hospitais (aqueles lá mesmo que ela mencionou, os que "poderiam estar num guia de hotéis três estrelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu confio: com salão de beleza e "concerto de piano" na recepção") batem os 98% de cesarianas. 
Ver um parto vaginal é, mesmo, um evento em extinção. E eu, como bióloga que sou, tenho uma queda por salvar o que está em extinção. 
Então, repito: gatas, não escondam suas vaginas parindo! Nós queremos ver!
Postem suas fotos, subam seus vídeos, mostrem seus partos!
Marquem o tio Miltinho de Passos de Itu! Deem um print na alegria que a vó Carminha de Serra Negra manifestou na timeline dela por ver que você deu a luz como ela! 
Libertem suas vaginas paridas!

E, moça, você que é uma escritora pop, por favor: deixe em paz a vagina alheia! Ela não te fez nada...

Ah, sim. Antes de finalizar. Ver vaginas parindo na rede social, em um país tão moralista quanto o nosso, de mentalidade tão misógina, onde mulheres são constrangidas por amamentar em público, onde dar à luz naturalmente é ainda, muito infelizmente, um privilégio, é um grande avanço. Mostra que - sim! - estamos no caminho certo. Principalmente quando lembramos que cada foto de vagina parindo que vemos é uma cicatriz a menos. Especialmente aquelas que não foram desejadas.




Disponível em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2014/04/gata-eu-quero-ver-voce-parindo.html

sábado, 5 de abril de 2014

Ninfomaníaca 2: contra normatização do desejo (José Geraldo Couto)

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Agora, Lars Von Triers deixa claras suas intenções e sugere: excesso e comedimento sexuais, pulsão e sublimação são duas faces da mesma moeda

Por José Geraldo Couto, no Blog IMS

Com a exibição do “segundo volume” de Ninfomaníaca, é possível ter uma ideia mais clara da ambição de Lars von Trier. E ela não é pequena. Visto em seu conjunto, em suas quatro horas de duração, o filme, mais que um inventário de perversões sexuais, pode ser visto como uma tragicomédia feroz sobre (ou contra) a normatização do desejo em nossa época.

A protagonista Joe (Stacy Martin/ Charlotte Gainsbourg) é uma aberração porque não se enquadra nas normas. Ao não saber onde colocar o desejo, ela o dissemina por toda parte, como uma criança às voltas com sua sexualidade polimorfa.

A segunda parte dá continuidade ao mesmo esquema narrativo da primeira: Joe, já madura, castigada pela vida, rememora sua acidentada trajetória para o solitário e casto homem que a recolheu na rua, Seligman (Stellan Skarsgard). Ao jorro de experiências dela, mostradas em flashbacks, ele tenta contrapor ensaios de ordenamento e construção de sentido, conforme escrevi aqui a propósito do “primeiro volume”.

Acúmulo e depuração

Nesta segunda metade, além de apresentar momentos importantes do percurso de Joe (a maternidade, o experimento masoquista, a tortura), von Trier passa em revista – ou melhor, arrasa – pragas de nossa época como o politicamente correto, as terapias para curar o “vício do sexo”, a paranoia com a pedofilia.

A par desse acúmulo (de histórias, de assuntos, de situações), há paradoxalmente uma depuração: fica mais claro do que nunca que Joe e Seligman são duas faces da mesma moeda – o excesso e o comedimento, pulsão e a sublimação –, ao mesmo tempo opostos e complementares em sua solidão irredutível. Dois enjeitados que não encontram lugar na sociedade “normal”. (Millôr Fernandes disse certa vez que, de todas as perversões sexuais, a mais esquisita é a abstinência. Seligman talvez seja a prova disso.)

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, o que salta aos olhos é uma espécie de hibridismo sistemático, um jogo de contrastes perseguido conscientemente pelo diretor, como se ele quisesse a todo momento desmontar o que acabou de construir. Por exemplo: o tom de parábola, que despreza a verossimilhança e o naturalismo das situações, parece estar em contradição com a câmera instável, de documentário ou home movie, que mutila os seres e objetos e perde a todo momento o foco.

Alusões ao cinema

Outra antinomia frequente é a que se observa entre a gravidade e o humor, ou antes entre a intensidade dramática e o distanciamento irônico. Isso se evidencia, nesta segunda parte, nas inúmeras alusões ao próprio cinema.

Por exemplo: quando diz que seu conhecimento do sexo se deu unicamente pela literatura, Seligman cita três livros – Decameron, Os cantos de Canterbury e As mil e uma noites – que são justamente os que compõem a célebre “trilogia da vida” de Pasolini, cujo erotismo jubiloso é o contrário do calvário de Joe.

Em outra passagem, von Trier chega ao requinte ou desfaçatez de glosar um filme dele próprio, O anticristo, ao repetir a mesma cena do menino que se levanta do berço à noite para ver a neve, trepa na mureta do terraço e… O desfecho diferente é uma derrisória piscadela ao espectador.

E quando a protagonista, na reunião das “viciadas em sexo”, se apresenta dizendo “My name is Joe”, é impossível não pensar no filme homônimo de Ken Loach, sobre um alcoólatra em recuperação.

Em meio a essa teia de referências (que incluem a música e as artes plásticas), von Trier encontra espaço para produzir momentos de potente poesia, dos quais o mais significativo talvez seja a cena em que Joe encontra a “sua árvore”, uma árvore “bela, áspera e intratável” como o cacto do poema de Manuel Bandeira. Ou como a sexualidade de Joe.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/ninfomaniaca-2-contra-a-normatizacao-do-desejo/)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Para romper a masmorra do individualismo (Katia Marko)

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell

O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.

Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.

Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”

Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”

A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.

Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.

Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.

No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”

Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”

No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”

O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.

Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”

Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/para-romper-a-masmorra-do-individualismo/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Conversa fiada, hábito conservador (Katia Marko)

Pintura moderna a óleo sobre tela: Silêncio

Como hábito de falar incessantemente reproduz valores e reforça competição. Por que diálogos terapêuticos, ou silêncio, podem ser alternativas

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: Fabiano Millani, Silêncio



Após quase três meses de ausência, resolvi retomar a coluna Outro Viver tratando justamente disso, o silêncio. Em um mundo cada dia mais frenético, cheio de palavras, imagens, manuais e aplicativos, qual o valor do vazio? Pra tudo temos opiniões, explicações, justificativas, conceitos. Nossa mente não para nunca. Nem um segundo de descanso. Mas o que desses tantos pensamentos me pertence realmente?

“Acredito que 4/5 da conversa humana, de todos, no mundo todo, o tempo todo, é conversa fiada, o passatempo fundamental da humanidade.” Ao ler esta frase do psicanalista José Angelo Gaiarsa, no livro Reich – 1980, logo busquei inúmeros contrapontos. Mas acabei cedendo e compreendendo como utilizamos a fala para resistir às mudanças. Quando me proponho a observar mais profundamente o meu sistema de defesa, percebo que ao desobedecer meus velhos padrões de comportamento, o meu ego logo se inflama e faz todo o possível para sabotar minhas iniciativas e fazer com que eu volte ao normal dizendo: “mamãe tinha razão”.

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Segundo Gaiarsa, a conversa fiada existe para impedir a veracidade, a intimidade, a emoção, o individual, o sentir. “Só é meu o aqui-agora, só nele posso fazer, acontecer, existir, preparar. Se perco meus momentos, muitos deles, no papo vazio, estou irrealizando-me o tempo todo e deixando o sistema se reforçar cada vez mais, em mim e no meu inteligente interlocutor. Não raro, estamos os dois falando como mudar o sistema, sem perceber que esta discussão é parte-legítima do sistema.”

O escritor explica, de forma bastante direta e clara, que a conversa fiada se compõe de exibição de excelência, de delírio jurídico e de fofoca. “As pessoas falam muito de quanto são boas, capazes, bem sucedidas, espertas, inteligentes, cumpridoras de seus deveres. Entram quase todas e quase sempre na exibição de poderio. Quem é melhor do que quem? Eu ou você? Meu time ou seu time? Minha casa ou sua casa? Meu carro ou seu carro? E este fenômeno independe de regime social ou econômico. Gosto de pensar que a única maneira capaz de impedir a luta de cada um contra todos (e o domínio dos poderosos) é a cooperação. Não se trata de ser bom, generoso, compreensivo. Se trata de aprender a cooperar, a trabalhar/funcionar juntos. O papo vazio serve demais à divisão, à oposição e à luta de cada um contra cada um e ao enfraquecimento de todos.”

Sobre o delírio jurídico da humanidade, Gaiarsa diz que ele responde, com certeza, por mais um tempo grande do papo vazio. As pessoas ficam, para fora (com o outro), ou para dentro (consigo mesmas), tentando explicar, justificar e provar que seus motivos e razões são legítimos – e que legitimam o que fazem. Legitimam, principalmente, tudo o que não fazem. Eu sei que devia, mas… O complemento desta interminável arenga jurídica, pela qual me protejo de sanções sociais hipotéticas e ameaçadoras, é o constante procurar provar/dizer quem é o culpado e quem é que devia.

“A busca do culpado é nosso machado de pedra cultural. A busca do bode expiatório é tática para não resolver. Como parte mais do que importante do delírio jurídico da humanidade, presente no papo vazio, temos as queixas, queixumes, lamentos, protestos e críticas, acusações e denúncias. Tudo o que sofri para ser, ou para continuar sendo, um cidadão honesto e respeitável, e tudo o que eu não recebi de volta por ser um bom filho, bom pai/mãe, bom profissional. A vítima é muito atuante em um número considerável de pessoas.”

Mas ainda tem uma outra fração importante do tempo do papo vazio: a fofoca nossa de cada dia. Se até aqui você ainda não se identificou, duvido que nunca tenha praticado o falar de tudo o que o outro é, e que não devia ser, a crítica a todo transgressor das normas que se têm como estabelecidas, nos pequenos grupos onde cada um vive. Na verdade, na visão de Gaiarsa, esta é uma agressão ao outro que faz de jeito diferente do meu. “Em termos familiares, esta fração de conversa vazia é relato de projeções que cada um faz, no outro, de todas aquelas características pessoais que, em seu pequeno mundo, não se deve ter. Entre a exibição de muitas virtudes pessoais, e a condenação dos vícios dos outros existe, como é fácil imaginar, uma secreta harmonia e uma profunda complementação. Projetar quer dizer: acreditar que o outro é capaz de fazer aquilo que secreta ou conscientemente eu também gostaria de ser capaz de fazer”.

O cardápio apresentado por Gaiarsa não parece nada apetitoso. Segundo ele, sobra um tanto, 10%, de conversas funcionais, ligadas à ação, influindo e sendo influídas por ela, pensadas com presença e atenção ao objeto da conversa, com cuidado na escolha das palavras, na construção de frases e no modo de dizê-las. “Toda conversa deste tipo é terapêutica, faz bem a ambos (ou a vários). A conversa é a maior e mais comum, das resistências ao diálogo, dentre os meios que usamos a fim de evitar o encontro, o pessoal, o emocional, o íntimo, o desejado, o temido…”

Quantidades enormes de conversa do mundo são sem sentido, porque as pessoas estão falando do que acham que “devia ser” e não do que experimentaram. A educação familiar é um bom exemplo. Até os 18 anos o filho deve ser obediente. Aos 19 ele precisa ter iniciativa e responsabilidade. Porém, não se dá à criança nem ao jovem a menor oportunidade de experimentar (de errar, de se machucar), de aprender a ter iniciativa e liberdade de ação. Acabam todos papagaios paralíticos que se distraem de sua paralisia falando, falando, falando… sobre como as coisas deviam ser!

Aprender a silenciar a mente e ter maior consciência da nossa fala não é fácil, mas garanto que tem um poder curador muito potente. Na Comunidade Osho Rachana, onde moro há 5 anos, praticamos meditações ativas, criadas pelo mestre indiano Osho. São técnicas criadas justamente para o ocidente que possibilitam primeiro limpar as emoções estagnadas e o tagarelar mental para, então, conseguir entrar em estado meditativo.

Normalmente, quando falamos em meditação, associamos com pensar, refletir. Mas não tem nada a ver com isso. Pelo contrário, meditar é silenciar a mente. É a observação dos pensamentos. Isso acontece quando há uma profunda conexão consigo mesmo. Às vezes, conseguimos por um segundo. Nestes pequenos momentos, é possível sentir toda a beleza do ser humano, conectar consigo mesmo e com a existência.

Neste ano de 2014, que promete ser bem ruidoso, o meu maior desejo é estar bem presente e centrada em mim para não me perder por aí.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/conversa-fiada-habito-conservador/)

domingo, 26 de janeiro de 2014

ZYGMUNT BAUMAN: “NOS HAN IMPUESTO QUE ERES MÁS FELIZ CUANTO MÁS CONSUMES Y MÁS COMPITES”

¿Están sexo y amor convirtiéndose en una hipoteca para la sociedad occidental?

Todos estamos hechos para amar y ser amados y no nos sentimos plenos salvo que tengamos esa persona para amar y ser amados, y también en el plano de las amistades, de las relaciones interpersonales. Cuando hablo de este término hipoteca me refiero a que para poder amar se necesitan ciertas obligaciones, un compromiso a largo plazo que puede implicar sacrificio para cuidar a la otra persona y de algún modo hipotecar tu futuro, arriesgarse. Y lo que ocurre en esta sociedad es que sobre todo los jóvenes están siendo animados a evitar un compromiso a largo plazo. La gente se junta para ver si funciona, pero si lo haces así, el más mínimo desacuerdo se convierte en un gran problema. Y esto también se refleja en las amistades, relaciones interpersonales, vecinos… Es parte también de la crisis.


¿En qué medida?

Es tremendamente importante para el futuro de la humanidad. El problema real es reemplazar las lecciones de cómo vivir que nos han sido impuestas: primero, se nos ha enseñado que para ser más feliz hay que consumir más, tener el último iPad o el último modelo de teléfono o de camiseta. En segundo lugar nos han dicho que hay que ser mejor que el otro, que hay que competir constantemente. Y estos dos caminos son dos de las causas de la crisis actual.


¿Qué caminos serían más deseables?

Buscar un sentido conjunto y unos objetivos comunes de las personas, compartiendo y debatiendo, discrepando -lo cual también da mucha felicidad-, pero estamos demasiado ocupados intentando competir. Vamos a encontrar vías todos juntos, y no sólo escuchando lo que una persona mayor como yo pueda decir. Pero sí puedo decir que una de las claves es entender que lo que da felicidad no es consumir, sino producir. Ese es el regalo.


¿En la actual sociedad de Internet seguimos siendo lo que escribimos?

Le diré que una persona adicta a Facebook puede hacer más de 200 amigos en un día. Yo en 87 años no pude hacer más de 500 amigos, y no me estoy refiriendo a ese tipo de amigos que pueden llenarte de felicidad. Los amigos de Internet no son más que amigos de red, y puedes perderlos también en un día y no estarán allí cuando los necesites. La amistad y el amor no son una cuestión de tecnología; necesitas una dedicación espiritual.


¿Está Europa hundida? ¿Va a ganar la economía la batalla frente a los valores y los derechos?

No soy un profeta, pero puedo mirar a mi alrededor y veo pocas señales de que estemos en el camino para salir de la crisis. Este colapso del crédito ha sido al final una redistribución de riqueza que ha dado más a unos pocos ricos y ha hecho más pobres a los pobres, especialmente a los jóvenes. Un 52 % de los jóvenes está sin empleo en España y eso es muy grave, no pasaba algo así desde la Segunda Guerra Mundial. Y eso los frustra, porque les quita su dignidad haciéndoles sentir que nadie les quiere, que no sirven para nada. Se está quitando riqueza a los más débiles y eso es muy peligroso; y los gobiernos sienten la presión de los bancos, de las instituciones. Y ante esto no hay caminos intermedios: o te rindes a lo que te piden los bancos y la economía, haciendo más fácil la vida a los bancos y penalizando a los débiles; o por el contrario defiendes los intereses de tu población.


¿Por qué ha venido al foro social de un festival reggae?

Creo que este tipo de puntos de encuentro con intereses comunes son muy importantes; compartiendo no sólo una música, sino también intercambiando y haciendo relaciones interpersonales. Yo he sacrificado para venir aquí, porque creo que es importante, ya que en Benicàssim hace mucho calor y soy una persona que lo pasa ciertamente mal con el calor, pero aquí estoy porque creo que es importante.


¿Qué mensaje va a trasladar a los jóvenes que van a escucharle en el foro social y que buscan respuestas, guías para salir de esta crisis, para cambiar las cosas?

Tú puedes hornear o amasar tu futuro. Es solamente tu elección, y no hay certeza, pero simplemente es una cuestión de compromiso con tu sociedad. ¿Usted conoce a un filósofo italiano que se llama Gramsci? Gramsci dijo que el único modo de predecir el futuro es organizarse y hacer que eso que quieres ocurra.


Entrevista publicada en Laprovincia.es por Nacho Martín

sábado, 16 de novembro de 2013

A melancolia fora de lugar (Arlindenor Pedro)

Gravura "Mellancolia", de Albrecht Dürer

Num mundo racional, em que tudo é previsível, melancolia é tratada como doença. Deve a humanidade reagir a esse desígnio, traçado por um sistema sem sujeitos?

Por Arlindenor Pedro | Imagem: Albrecht Dürer, Melancolia

Refletir, pensar, saber o porquê: eis uma das características marcantes dos seres humanos – que se acentua em alguns, noutros menos.

Sentir, provar, viver intensamente o que se apresenta, eis outra característica que também se acentua em uns, em outros não tanto.

Ser melancólico e saber o que é melancolia, creio, sempre acompanhou o homem em sua trajetória pela terra. Melancolia, então, tornou- se um grande enigma: por uns vivido, por outros pretensamente desvendado.

Embora presente em todas as culturas, foi entre os gregos da Antiguidade que se destacou a sua racionalização, ou seja, a real compreensão do que poderia ser. Em Aristóteles conseguimos ter sua sistematizacão, que chegou até nós após ter influenciado várias sociedades. Ele faz uma clara associação entre melancolia e criatividade.

“Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem (…)?” (Aristóteles, “O Problema XXX”).

Talvez guiados por essa pergunta, artistas procuraram retratar tal comportamento, cientistas buscaram suas causas e, naturalmente, melancólicos trataram de vivê-la na sua intensidade, como na Renascença e no Romantismo, quando era “doença bem-vinda”, pois enriquecia a alma.

Provavelmente a gravura Mellancolia, de Albrecht Dürer, produzida nesse período, seja a obra mais conhecida sobre o tema, atravessando os tempos e nos colocando frente a frente com tal enigma.

No nascimento da era industrial, com o texto Luto e Melancolia, de Freud, parece que nos aproximamos mais do momento de desvendá-la. Para Freud, a melancolia é um estado emocional semelhante ao processo de luto – semelhante, não igual, pois não há a perda que o caracteriza. A melancolia pode ocorrer sem causa definida (sic).

Mas, na sociedade moderna, principalmente na contemporaneidade, constatamos que a melancolia não é mais bem-vinda, pois se choca com o espírito hedonista necessário a um “bem-viver” e a uma padronização normótica.

No início do século XX, Edward Bernays, sobrinho de Freud que vivia nos Estados Unidos, apropriou-se dos estudos do renomado cientista – que via no interior da mente humana áreas ainda não conhecidas, a que chamou de inconsciente, onde existiriam forças que moldavam seu comportamento. Observou, então, que essas forças podiam ser controladas e desenvolveu, através de técnicas da psicanálise e de conselhos de seu tio, mecanismos que pudessem induzir ao consumo de bens, mesmo que desnecessários ao pretenso consumidor.

Em Bernays vemos a gênese do que foram as técnicas de propaganda e controle da mente que deram à humanidade tanto as grandes ações de propaganda do nazi-fascismo e do “socialismo real” da terceira internacional, quanto o desenvolvimento das campanhas de massa do agressivo capitalismo norte-americano. Aquilo que Guy Debord chamou de “espetáculo concentrado”, contido nas sociedades totalitárias e no “espetáculo difuso das sociedades ditas democráticas (“A Sociedade do Espetáculo”).

Após apropriar-se da força de trabalho do homem o capital parte, então, através das técnicas de propaganda (das quais Bernays é pioneiro), para o controle e a manipulação do que poderiam ser seus gostos, sentimentos, desejos… enfim: da sua alma.

É por demais conhecido o estudo de caso da campanha de marketing criada por Bernays no início do século passado, que levou as mulheres americanas a fumar em público (coisa até então inimaginável) .

Ocorre, então, que a melancolia se apresenta como necessária de ser controlada, por todos os meios disponíveis criados pela psicologia, pela psicanálise e pela psiquiatria.
No mundo racional, em que tudo é previsível, a melancolia não tem lugar. Tem que ser substituída por atitudes que todos julguem ter sob controle. As emoções serão então contidas, dando lugar a relações humanas totalmente reificadas.

Mas será que esse controle se dá na sua totalidade? Ou, deve a humanidade reagir a tal desígnio, traçado por um sistema sem sujeitos? Mais ainda: a melancolia deve ser extirpada e tratada como uma doença hostil ao homem?

Na ação concreta da obra de arte, o artista exercita claramente a sua liberdade livrando-se das amarras a ele impostas. A obra que apresenta ao mundo, e que a partir daí não mais lhe pertencerá, torna-se um instrumento de libertação, que cada um viverá de acordo com seu senso estético, suas considerações. Tocar a sensibilidade, chegar até a alma – eis aí o caminho do artista.

No filme Melancolia, o cineasta dinamarquês Lars Von Trier nos coloca diante da temática da euforia e do sofrimento através de um filme em que não existe saída, e o final não é feliz. Tenta dessa forma tocar a nossa alma com um tema sobre o qual, no passado, debruçaram-se tantos pensadores.

Trata-se de um filme de atmosfera especial, cheio de simbolismos. O espectador escolherá sua identificação com os personagens, numa situação-limite de fim próximo – não o fim de um ser, individualmente, mas da totalidade do mundo onde vivemos, com suas cidades, florestas, animais etc.

Vemos então o embate entre os diversos personagens, com sua postura perante o mundo, destacando-se a relação entre duas irmãs com visões diametralmente opostas perante a vida e o fim que se aproxima.

Para horror de muitos, Von Trier nos faz refletir sobre a morte (no sentido da extinção da espécie) e o sofrimento, que tanto queremos afastar de nós. Apresenta-nos um planeta com uma trajetória de colisão determinada, sem possibilidade de mudanças: o que fazer em um momento que não há nada a fazer?

Diante do desespero de sua irmã, Justine, a personagem afetada pela melancolia, vê como perfeitamente lógico o desfechar trágico de suas vidas. Como se fosse o esperado: afinal, não fará nenhuma diferença no Universo!

Trazendo este tema para reflexão, Von Trier nos mostra a sensibilidade dos melancólicos e o seu desajuste em relação ao mundo real. E ao mesmo tempo a necessidade de equilibrar razão e sentimento, em um mundo onde o deus da razão reina absoluto, afastando os sentimentos dionisíacos da humanidade.

Talvez não estejam errados os que veem no planeta, denominado Melancolia no filme, e que irá chocar-se com a Terra, uma alusão aos perigos que rondam a nossa e outras espécies em um mundo erigido pelo capitalismo, com sua devastação ambiental. Salta aos olhos de todos que o planeta está em perigo. E, nesse sentido, os melancólicos são mais conhecedores do perigo que corremos .

Não restam dúvidas de que o homem contemporâneo, aprisionado por um sistema que não lhe permite ver a totalidade do mundo em que vive, tornou-se limitado e regrediu na sua capacidade de observar e sentir a realidade. Muito por ter combatido e afastado a melancolia de sua existência, tornou pobre a sua alma – ao contrário do homem da Renascença e do Romantismo, este um ser mais completo por não temer essa forma de ser.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-melancolia-fora-de-lugar/)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Educar para o trabalho ou para o convívio?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/educar-para-o-trabalho-ou-para-o-convivio/)

Criada há nove anos, comunidade em Porto Alegre repensa agora formação de suas crianças, para valorizar singularidades e superar concepções produtivistas

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: Cândido Portinari, Cambalhota (1958)

A Comunidade Osho Rachana comemora nove anos de existência este mês. Durante este tempo, experimentamos diferentes formas de conviver. Algumas pessoas que ajudaram a construir o projeto já não estão mais; outras, chegaram. Crianças nasceram. Novos sonhos foram despertados. Um deles vem sendo gestado há alguns anos: a possibilidade de uma outra educação para nossos filhos.

A primeira vez que a bailarina Ana Thomaz esteve conosco foi há três anos. Na época, a semente da ideia da desescolarização foi plantada. No início do mês, ela retornou com suas duas filhas e criou um turbilhão em nossas mentes e corações. Sua simplicidade, autenticidade e paixão nos tocaram profundamente. Foi uma semana de muito debate, descobertas e reavaliações.

Ana vem aplicando a desescolarização com seus filhos, sem a pretensão de criar um movimento ou convencer multidões da sua verdade. Mas ao observar a doçura, inteligência e solidariedade de suas meninas, comprova-se a veracidade da sua prática. Segundo ela, o princípio da desescolarização é a valorização das singularidades. “É na singularidade que aceitamos a diferença e nos unimos verdadeiramente, sem interesses, muletas, especulações. É na diferença que a vida acontece de modo potente”, explica.

Uma das principais críticas que Ana Thomaz faz à escola é a constituição de corpos impotentes. Crianças que vão perdendo a vitalidade e a alegria, sentadas em classes escolares que não despertam sua criatividade. “Um corpo desequilibrado, descoordenado, impotente, cria uma cultura desequilibrada, descoordenada e impotente. Enquanto não reorganizarmos nossa condição biológica, enquanto não colarmos nossa existência à sua força criadora, todas as mudanças em nossa cultura serão só a melhora do que está ruim, e continuaremos a nos destruir, a perder a grande possibilidade da vida plena e potente.”

Inspirada na teoria do biólogo chileno Humberto Maturana, Ana defende que o corpo é a potência. “Não esse corpo que estamos acostumados a pensar, mas um corpo que é o todo, e como sabemos, o todo é mais do que a soma de suas partes. As partes são muitas, pois não temos ideia do que pode um corpo.” Para exemplificar, ela cita: físico, emocional, cognitivo, energético, anímico, espiritual, instinto, intuição, mente, intelecto, consciente, inconsciente, subconsciente, percepção sensorial, percepção cinestésica, e muitas outras “partes” inseparáveis que formam o todo, o corpo.

Segundo ela, se não temos todas as partes ativas, vivas, acordadas, não somos o todo. “Os bebês, as crianças pequenas, mesmo sem saberem de nada, estão inteiras em seus corpos. Em nossa cultura, vamos desinvestindo partes do nosso todo, e assim crescemos pela metade. E se não temos o todo ativado, não temos corpo, só partes dele. Nos tornamos impotentes, e por isso buscamos o poder.”

Instigada pelas ideias apresentadas, fui pesquisar mais sobre a visão do biólogo. Encontrei um artigo de Adriano J.H. Vieira, “Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento”. O autor explica que, acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e nos desafia a buscar uma educação que resgate a biocentralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.

Na visão de Maturana, um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim. “A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar”. Para Maturana isso se dá de forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas relações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões.”

Estas foram algumas das questões apresentadas por Ana. Ao compartilhar sua vivência, práticas e conhecimentos, muitas lacunas foram abertas, e ainda mais possibilidades. Muito do que ela expôs já faz parte da nossa realidade e busca, em nossas práticas terapêuticas e meditativas. Mas, com certeza, precisamos avançar bastante na relação com as crianças. Afinal, como também defendia Jung, “quem não se envolve, não se desenvolve”. E o medo ou as barreiras que nos impedem de nos envolvermos mais verdadeiramente com nossos filhos nos dizem muito de nós mesmos.

sábado, 17 de agosto de 2013

A mobilização que você faz dentro de si (Por Katia Marko)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-mobilizacao-que-voce-faz-dentro-de-si/)

“Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém”. Essa pequena frase da música Berimbau, do poetinha Vinícius de Moraes, tem me feito refletir muito. Principalmente nestes tempos de ressignificação da vida e busca de maior liberdade. Acredito que o mundo está em transformação, mas o que será ainda não dá para saber. Porém, podemos capturar algumas experiências e ir arriscando palpites.

Quando decidi morar em uma comunidade, o maior conflito era abandonar o “eu”, ou seja, a minha casa, o meu carro, os meus interesses, o meu umbigo. E continua sendo, de alguma forma, pois não é fácil soltar condicionamentos. Vivemos em uma cultura narcisista, na qual a imagem é mais importante do que a realidade. A idéia de rendição e entrega é muito impopular, pois consideramos a vida uma luta, uma batalha. O objetivo é vencer, obter conquistas, algum sucesso. O fazer é mais importante do que o ser. O sucesso proporciona auto-estima, mas somente porque inflaciona o ego. Já o fracasso surte o efeito oposto. Nesse cenário, os termos rendição e entrega, equivalem a ser derrotado, mas, na realidade, é apenas a derrota do ego narcisista. E sem essa rendição, é difícil entregar-se ao amor.

Leonardo Boff defende que o grande desafio atual é conferir centralidade ao que é mais ancestral em nós, o afeto e a sensibilidade. “Numa palavra, importa resgatar o coração. Nele está nosso centro, nossa capacidade de sentir em profundidade, a sede dos afetos e o nicho dos valores.” Arrisco enveredar por um caminho não muito fácil, para afirmar que iniciativas cá e acolá me fazem acreditar que estamos resgatando a confiança no ser humano. Bem, na minha visão, é isso que significa as novas formas de viver que estão pipocando pelo mundo.

Notícias como a que “1200 catalães praticam a autogestão com moeda, educação e saúde próprias”, com a expansão para a França e a Itália, ou de que a  “Crise na Grécia estimula criação de comunidades sustentáveis”, ou ainda a experiência vivida pelos jovens organizados nas casas do Fora do Eixo, no Brasil, demonstram que formas alternativas estão sendo buscadas. Claro que existem problemas, contradições e insatisfeitos. E isso acontece em qualquer ação. Mas o importante é que existem pessoas que querem furar o “esquema”.

“Jamais a humanidade dispôs de tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas (…) Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade”. Essas são as primeiras frases do Manifesto do Convivialismo, outra descoberta que fiz recentemente.

O seu idealizador é Alain Caillé, sociólogo fundador do MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), que conseguiu reunir e fazer trabalhar junto um grupo de 64 pesquisadores e universitários procedentes do mundo inteiro, de sensibilidade altermundista, ecologista, ou oriundos do cristianismo social, como Edgar Morin, Susan George, Patrick Viveret, Serge Latouche, Elena Lassida, Jean Baptiste de Foucauld, Jean Pierre Dupuy, Jean Claude Guillebaud, entre outros. O resultado é a elaboração de uma nova base doutrinal filosófica, o convivialismo, para responder às quatro grandes crises – moral, política, econômica e ecológica – vividas pelas nossas sociedades nesse início do século XXI.

Segundo o manifesto, para além do liberalismo, do socialismo ou do comunismo, devemos inventar um convivialismo, uma convivialidade, dito em outras palavras, a arte de viver juntos mesmo nos opondo, mas sem nos massacrarmos e levando em conta a finitude e a fragilidade do mundo.

É claro que tenho a noção de que são iniciativas ínfimas, mas são passos na direção da invenção do novo. Voltando ao Leonardo Boff, vou reproduzir dez pontos cruciais, apontados no livro “Cuidar da Terra, proteger a Vida, como evitar o fim do mundo”. Segundo ele, representam experiências humanas que não podem ser desperdiçadas, pois incorporam valores que poderão alimentar novos sonhos, nutrir nossa imaginário e, principalmente, fomentar práticas alternativas.

O primeiro é reconhecer que a Terra é Mãe (Magna Mater, Pacha Mama), um superorganismo vivo, chamado Gaia, que combina todos os elementos físicos, químicos e biológicos para manter-se apta a produzir e reproduzir, mas que é finito, com recursos escassos.

O segundo é resgatar o princípio da re-ligação: todos os seres, especialmente, os vivos, são interdependentes e são expressão da vitalidade do Todo que é o sistema-Terra. Por isso todos temos um destino compartilhado e comum.

O terceiro é entender que a sustentabilidade global só será garantida mediante o respeito aos ciclos naturais, consumindo com racionalidade os recursos não renováveis e dar tempo à natureza para regenerar os renováveis.

O quarto é o valor da biodiversidade, pois é ela que garante a vida como um todo, pois propicia a cooperação de todos com todos em vista da sobrevivência comum.

O quinto é o valor das diferenças culturais, pois todas elas mostram a versatilidade da essência humana e nos enriquecem a todos, pois tudo no humano é complementar.

O sexto é exigir que a ciência se faça com consciência e seja submetida a critérios éticos para que suas conquistas beneficiam mais à vida e à humanidade que ao mercado.

O sétimo é superar o pensamento único da ciência e valorizar os saberes cotidianos, das culturas originárias e do mundo agrário porque ajudam na busca de soluções globais.

O oitavo é valorizar as virtualidades contidas no pequeno e no que vem de baixo, pois nelas podem estar contidas soluções globais, bem explicadas pelo efeito borboleta.

O nono é dar centralidade à equidade e ao bem comum, pois as conquistas humanas devem beneficiar a todos e não como atualmente, a apenas 18% da humanidade.

O décimo, o mais importante, é resgatar os direitos do coração, os afetos e a razão cordial que foram relegados pelo modelo racionalista e é onde reside o nicho dos valores.

Esperança em tempos fraturados (Por Rogério Ferreira de Souza* e Carlos Eduardo Rebuá Oliveira**)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/esperanca-em-tempos-fraturados/)

Desencantamento com Fúria
Estreou há pouco no Brasil o instigante filme do diretor francês Olivier Assayas, “Depois de Maio”. A obra tratou de pôr em tela toda efervescência juvenil do pós-1968, capturando, inicialmente, toda a explosão cultural e os inúmeros caminhos de possibilidades libertárias e democráticas que a juventude francesa (e mundial) acreditara atingir. Era a promessa de uma nova década, de um novo milênio e de uma nova sociedade mundial. Em defesa desses ideais estes jovens não se furtaram à luta, ao enfrentamento sempre em situações desiguais com o aparato policial militar. Todavia, isso pouco importava. A causa da luta era maior! O diretor, no entanto, vai além do clichê revolucionário e apresenta um desvanecer lento e melancólico, onde sonho e realidade concreta entram em rota de colisão levando os jovens protagonistas ao desencanto anestesiador. São engolidos pelo mar da cotidianidade em que necessidades materiais se pautam prementes ao mundo capitalista. Emprego, carreira, status, situação financeira, enfim: cai-se o véu e o mundo os engole. Iniciara o que os teóricos sociais ulteriores classificariam como juventude alienada, como uma fração social desinteressada, desmotivada, despolitizada. Uma juventude sedenta por individualização narcísica e fugaz, uma juventude neoliberal.

O filme de Assayas, trazido aqui como introdução, permite-nos, ao contrário da proposta do desencanto, do olhar lacrimal da esperança perdida e do que ficou benjaminianamente retido na aura dos movimentos de 1968, refletir sobre as inúmeras manifestações públicas promovidas e lideradas por jovens em nossa sociedade. Destarte, propõem-se dois pontos de reflexão: primeiro, pensar no que eles têm a dizer quando se manifestam violentamente pode ser um caminho aberto para entender a nossa sociedade e o “legado” de encantamento propagado pelos megaeventos? E, além disso, como e por que o dito Estado Democrático de Direito lança mão de práticas do Estado de Exceção para lidar com as mobilizações públicas promovidas pelos jovens?

Nas franjas do processo
Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de valor
é o que permanece no dia seguinte, ou como
nossa vida cotidiana é modificada.
(Slavoj Zizek)

A advertência que o filósofo esloveno faz às manifestações populares no mundo contemporâneo são sérias e de profunda reflexão. No entanto, só poderão ser apreendidas em sua totalidade em outro momento, em um pós-processo. Cabe-nos,mesmo que epidermicamente captar o momento, perceber diferenças e continuidades.

Parafraseando a afirmativa que Karl Marx e Friedrich Engels fizeram na abertura do Manifesto do Partido Comunista, há mais de 150 anos atrás – “Um Espectro ronda a Europa” – pode-se dizer que um espectro hoje também está a rondar. Um espectro que já se materializou nas ruas, nas praças, nas avenidas das grandes metrópoles mundiais.

Um espectro que assim como o movimento comunista do século XIX, descrito por Marx e Engels, vem questionando e tensionando os poderes estabelecidos do status quo capitalista. A juventude contemporânea vem assumindo um papel de protagonista nas manifestações e levantes populares dos últimos anos e trazendo para a arena pública questões candentes às toda a população. Queremos democracia diziam os jovens egípcios na Praça Tahrir! Queremos nossos empregos e salários, bradavam os jovens gregos! Queremos um novo tipo de capitalismo, “Main Street, not Wall Street” argumentavam os norte-americanos no movimento Occupy Wall Street! Queremos vida digna e o fim da corrupção no governo, em coro gritavam os “Indignados” na Espanha! Queremos um transporte digno, cidadão e público, protesta o Movimento Passe Livre nas capitais do Brasil!

Do ponto de vista dos enunciados proferidos pelos jovens manifestantes mundo afora, diferentemente do que foi a década de 1980, como demonstrado por Manuel Castells, esses novos movimentos e manifestações públicas não se fragmentam em lutas isoladas por identidades, etnias, de gênero etc. Eles lutam e reivindicam causas comuns, ou seja, são contra o modelo econômico capitalista financeiro e contra a forma de democracia representativa. Seja nos EUA, seja nos países europeus, seja na América Latina, a insatisfação contra um sistema político e econômico é a tônica desses novos movimentos, dessas manifestações públicas e desses enfrentamentos com poder policial. A ocupação de praças, avenidas, prédios e espaços públicos carregados de significados torna-se expressão máxima da indignação contra o modelo hegemônico que centralizou grande parte das discussões/questões políticas, sociais e econômicas das últimas quatro décadas.


Foto do Movimento Passe Livre em São Paulo: ação política não apenas nas redes sociais
Mas quem são esses jovens? O que pensam e o que desejam? Seriam eles a antítese do movimento proletariado que nos anos de 1980, com as greves do ABC paulista, apresentava ao país as alternativas para um estado democrático e mais justo? Seriam eles o início de um novo partido político, ou de uma nova concepção política?

Talvez seja cedo e precipitado para apresentarmos uma radiografia exata da composição orgânica dessa juventude; porque talvez, esta mesma consciência do que eles sejam, do que pensam e do que idealizam não esteja clara na própria juventude. O que é claro e significativo, e isso não resta dúvida, é a motivação voluntária que esses jovens, organizadores e participantes dos movimentos e manifestações expressam na arena pública. São estudantes universitários em sua maioria, sensíveis aos problemas sociais que atravessam toda a sociedade, principalmente os mais frágeis e vulneráveis. Por isso seu caráter emergencial. Querem produzir ruídos. Querem ser ouvidos e levados a sério. Por isso estão no dissenso. Política para os debaixo não se faz no consenso. Faz-se na luta, no grito, no se fazer presente.

O que estamos acompanhando recentemente no Brasil, com o Movimento Passe Livre, olhando retrospectivamente, vem sendo um movimento com forte participação dos jovens desde as manifestações anti-globalização nos anos de 1990. O que se pode perceber é um continuum do processo. Pensando por esse ponto de vista, o que hoje parece tomar de assalto os governantes e a as camadas conservadoras da sociedade, como algo isolado de “baderna e vandalismo”, faz eco a um processo muito maior de insatisfação social a nível mundial. A juventude brasileira que se manifesta pelas grandes avenidas das cidades não estão “atrasadas” em relação às lutas e manifestações mundiais. Estão inseridas em um sincronismo dialógico com as grandes demandas sociais. O que se mostra estar na contramão, em um profundo diacronismo em relação às conquistas e avanços políticos no âmbito das democracias são os governos, seus mandatários e seus aparelhos repressores. Como será visto a seguir.

Estado de Exceção na contemporaneidade e a relação força-consenso


E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória

A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
(Canción por la unidad latinoamericana,
Chico Buarque e Pablo Milanés)

Há exatos 35 anos, em junho de 1978, ocorria na Argentina a 11ª Copa do Mundo de Futebol da Fifa, durante um dos seis governos oriundos de golpes civil-militares ocorridos naquele país no século XX. Este, o mais brutal deles (1976-1983), responsável pela morte/desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas, soube utilizar o megaevento futebolístico como propaganda do regime e propulsor do ufanismo, coroado com o primeiro título em Copas do Mundo daquele país. Do outro lado, a juventude, militantes da esquerda, movimentos sociais, parentes de vítimas, jornalistas engajados, identificavam naquele evento uma oportunidade para, através das agências de notícia internacionais, romperem o silêncio imposto e denunciarem o terrorismo de Estado apoiado e financiado por Washington. O mundo tomaria conhecimento do período de “amnésia obrigatória”, como diz Eduardo Galeano (1), e a Copa argentina teria seu “efeito colateral”: a divulgação detalhada do Estado de Exceção no país.

Hoje, às vésperas da Copa das Confederações da Fifa, a ante-sala da Copa de 2014, inúmeras manifestações – capitaneadas pela juventude — ocorrem nas grandes capitais brasileiras, tendo como pauta as mais variadas reivindicações, notadamente a diminuição/supressão do preço das passagens de ônibus. A reação do chamado Estado de Direito brasileiro tem sido imediata e violenta (como em tantos outros episódios), reprimindo com vigor aqueles que no discurso da grande mídia são taxados como “marginais”, “arruaceiros” e “bárbaros”.

Com Gramsci, entendemos que tais manifestações são, na grande maioria, de caráter econômico-corporativo (redução do preço das tarifas do transporte urbano), com alguns “ensaios” de reivindicações mais “políticas”. Pelo menos até aqui. Os participantes de tais atos são em sua maioria jovens estudantes e trabalhadores, mas o caráter heterogêneo (e as redes sociais, instrumentos importantes na divulgação/organização de diversas manifestações em todo o mundo, contribuem para essa diversidade) e “aberto” do movimento não permite rotulações, enquadramentos teóricos. Ao mesmo tempo em que produz ações espontaneístas, reúne grupos com pautas políticas mais sólidas, mais organizados (sobretudo oriundos dos setores médios); da mesma forma que quem quebra uma vidraça pode ser um trabalhador  indignado, também pode ser um representante de algum grupo mais radicalizado. Todavia, como de praxe, os atos violentos, independente de como e por quem foram praticados, são fundamentais para a pasteurização ideológica realizada pela imprensa burguesa, que homogeneíza os manifestantes (todos são violentos!) ao mesmo tempo em que deslegitima sua luta, dando seu aval para o uso indiscriminado da força por parte do Estado. É fundamental frisar que não estamos condenando ações mais radicalizadas e seus significados: a quebra de máquinas do ludismo do XIX tem seus equivalentes no presente, quando, por exemplo, um ônibus é depredado, pois materializa/simboliza o capital das empresas de transporte coletivo.

É imprescindível dizer que a violência pré-megaeventos não começou nesta semana e não se resume ao enfrentamento nas/das ruas. Já há algum tempo, as cidades sede da Copa de 2014 têm sido o palco das chamadas “limpezas urbanas” (“modernizações” no discurso oficial) já há algum tempo, em que remoção de pessoas à força de suas casas, proibição do direito de greve durante os eventos, destruição de centros de cultura, privatização do espaço público, dentre outras ações, têm provocado enfrentamentos entre o poder estatal – sob a égide do grande capital (imobiliário, financeiro, industrial, etc.), “dono” dos megaeventos em associação com o poder político federal, estadual e municipal – e a sociedade civil.

A partir de Agamben entendemos que o Estado de Exceção não se restringe aos períodos de ditaduras civil-militares, mas representa um modus operandi, um recurso “sempre à mão” dos governos das sociedades atuais, ditos democráticos:

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o
estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e
excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de
fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se,
nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo (AGAMBEN, 2004, p. 13).

A concepção do filósofo italiano coaduna com a perspectiva de um clássico conterrâneo seu: Antonio Gramsci. Para Gramsci, o Estado é o somatório dialético da sociedade política (aparato burocrático-repressivo) com a sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia), ou seja, hegemonia revestida de coerção, força e consenso, orquestrados magistralmente pelo establishment burguês. Segundo ele, a força nunca pode “pesar” demais sobre o consenso e deve se apoiar na aprovação da maioria, expressa por intermédio dos canais de opinião pública, os quais se destacam os meios de comunicação e a escola/universidade, por exemplo. Da mesma forma, o consenso, a adesão a uma agenda, a uma ordem social, somente são garantidos se a iminência do uso da força estiver sempre presente. Em suma, para o intelectual marxista a supremacia de um grupo social se manifesta de duas formas: pela força e pelo consenso. Por mais que o domínio de uma classe seja consensual, tal classe não pode nunca prescindir da força, e de maneira dialética, o uso exclusivo da força não garante o poder de uma classe e suas frações sobre as demais.

Com o desquite cada vez maior entre capitalismo e democracia – como afirma Zizek (2) - e com o acirramento da luta de classes em várias regiões do mundo (destaque para a Primavera Árabe em 2010, o Occupy Wall Street em 2011 e os atuais movimentos em Espanha, Portugal, Grécia, etc.), o Estado de Exceção, o uso da força como garantia da hegemonia tem se tonado “regra” em diversos países, como pudemos ver há semanas nas grandes capitais brasileiras. No campo do consenso, é quase imediata a ação do partido-mídia – na ascepção gramsciana – e seus porta-vozes da sociedade civil, que criminalizam qualquer forma de intervenção política mais incisiva e negam cinicamente as demandas sociais, políticas, econômicas destes indivíduos/grupos que se manifestam, quando não negam sua própria existência: Quem são eles? O que querem? De onde vêm?, esbraveja a grande mídia.

Como exemplos do discurso dos grupos dominantes, podemos citar o chefe da casa civil da Prefeitura Rio de Janeiro (gestão Eduardo Paes), Régis Fichtner (3), e o cientista político Fernando Luis Schüller (4), diretor do IBMEC/RJ. Ambos defenderam  na mídia televisiva, nos últimos dias, que as manifestações se referem a “questões ideológicas/políticas”, ou seja, não representam demandas materiais, reais dos trabalhadores/estudantes. Schüller chega a afirmar que tais manifestações reúnem “pessoas que querem aparecer” e “pessoas/movimentos marginais do sistema político tradicional”.


Tropa de choque da polícia de São Paulo “fecham” a Rua Augusta impedindo passagem de manifestantes: choque de ordem é a ordem do choque
Obviamente, não quisemos igualar a ditadura argentina dos anos 1970/80 com o Brasil de hoje, tampouco afirmar que tais manifestações foram previamente planejadas para ocorrerem na conjuntura dos megaeventos. Ainda que não se possa afirmar categoricamente que há uma vinculação, também não se pode negar o uso político disso por parte dos manifestantes/movimentos. Nossa intenção foi provocar reflexões acerca da necessidade de um Estado de Exceção mesmo em regimes caracterizados como democráticos, bem como instigar no leitor o esforço de construção de uma análise de conjuntura, que seja capaz de enxergar as dinâmicas/necessidades atuais do capital, onde os megaeventos – direta ou indiretamente – afetam a vida das populações, seja com os pesados investimentos direcionados para as obras (em detrimento de inversões na saúde, educação, transportes, habitação, etc.), seja com o não-beneficiamento das cidades-sede com obras de mobilidade urbana, infraestrutura, etc., agravando ainda mais o atual estado de coisas, que não está “bem” nem nas lentes da tevê e seu espetáculo.

Tais questões não são apenas circunstanciais ao calor da hora, ao “the Day after” da forte repressão policial às manifestações populares, ocorridas em junho de 2013, em várias cidades do país. Essas questões são imprescindíveis ao debate político, acadêmico e social que esta juventude nos traz ao imprimir no espaço público a urgência da mudança em nossos “tempos fraturados (5) ”.



*Rogério Ferreira de Souza – Economista, Doutor em Ciências Sociais pela UERJ e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro –  IUPERJ/RJ

**Carlos Eduardo Rebuá Oliveira – Historiador, Doutorando em Educação pela UFF e professor da graduação bilíngue em Pedagogia do Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES/RJ

(1) Extraído de: http://www.dhnet.org.br/desejos/sentidos/delirio/ddelirio.htm Acesso em 14 de junho de 2013.

(2) Extraído de: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18669 Acesso em 14 de junho de 2013.

(3) Extraído de: http://www.espbr.com/noticias/copa-vai-ocorrer-relacao-manifestacoes-diz-ministro-esporte

(4) Tal afirmação ocorreu no programa do canal Globo News, Entre Aspas, no dia 13 de junho de 2013, no debate com o professor da PUC-SP e cientista político Lúcio Flávio de Almeida. O debate/entrevista, na íntegra, está disponível em: http://globotv.globo.com/globo-news/entre-aspas/v/especialistas-discutem-osmotivos-e-efeitos-das-manifestacoes-em-sao-paulo-e-rio/2633797/ Acesso em 14 de junho de 2013.

(5) Obra póstuma do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, lançada este ano (2013).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. In: A era da Informática: Economia, Sociedade e Cultura. Volume 2. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX. Cia das Letras: São Paulo, 2013.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.
QUINO. Toda Mafalda. Rio de Janeiro: Martins Fontes Editora, 2002.
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2012.
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