Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha
Por Eliane Brum
Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.
Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.
Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.
A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.
A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.
Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.
Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.
Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.
Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.
Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.
Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.
Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.
É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.
Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum
(Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/28/opinion/1398692471_063651.html)
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domingo, 25 de maio de 2014
A farsa do racismo “suave” (Douglas Belchior)

Muito mais que vulgaridade publicitária, difusão do “todos somos macacos” revela tentativa de minimizar peso da discriminação racial
Por Douglas Belchior, em seu blog
A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.
Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.
A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.
Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”
Não, querido Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.
Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.
No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.
E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:
“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”
É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!
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Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!
O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!
Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.
O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.
Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.
Sou negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.
Eu como negro, não admito. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.
O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.
Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?
Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.
Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!
(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17281)
Educação: o desafio da transexualidade (Márcia Acioli)

Escolas e professores seguem pouco preparados para lidar com sexo. Incompreensão e preconceitos religiosos ampliam violência e sofrimentos. Programa pioneiro enfrenta problema
Por Márcia Acioli
A escola brasileira tem sido convocada a contribuir para o enfrentamento a diversas formas de violação de direitos. Organizações da sociedade civil cobram da escola educação em direitos humanos, acreditando, com isso, fortalecer a capacidade de fala e de participação de estudantes na conquista de direitos, e por consequência, a criação de clima favorável ao acolhimento de todos os perfis de estudantes que nela ingressam. O propósito é assegurar educação de qualidade mudando o panorama de violência, seja pelo fortalecimento dos sujeitos, seja pelo diálogo que a escola faz com a sua comunidade. Temas como trabalho infantil, exploração sexual, Estatuto da Criança e do Adolescente e diversidade entram na pauta das escolas como proposta das políticas de educação federal, estaduais, municipais e distrital.
Quando o assunto é sexo e sexualidade os desafios são maiores e os/as profissionais da educação nem sempre estão preparados/as. Raras vezes as escolas incorporam no seu dia a dia o trato com questões referentes à sexualidade ou identidade de gênero.
Mesmo na universidade a situação é difícil. Segundo Marcelo Caetano “o semestre passado (2012) foi o semestre que eu tive mais problemas com os professores em relação a isso, eu fiz sete matérias, eu tive que trancar seis, porque os professores não aceitavam [o nome social].” Revista Descolad@s, Inesc 2013.
Francisco (nome fictício), adolescente de 16 anos estuda no Distrito Federal. Seus amigos não sabem que ele nasceu com sexo feminino. Com muito respeito, seus professores o tratam pelo nome masculino. Assim mesmo ele tem muito medo de ser descoberto pelos colegas.
Já a adolescente Ana Luiza (estudante de escola particular em Fortaleza), sofreu constrangimentos por ocasião de sua identificação na prova do ENEM. Ao receber total apoio da família se fortalece para seguir seus estudos. Diferente de uma amiga que, expulsa de casa, encontrou na prostituição a única oportunidade para a sua sobrevivência.
Portanto, é impensável a escola se esquivar da responsabilidade perante temas de tamanha importância que tanto afetam estudantes quanto profissionais e familiares. A transexualidade (falta de sintonia entre o corpo biológico e a identidade de gênero) ficou abafada por muito tempo e muitas pessoas permanecem sofrendo em suas respectivas solidões. A transexualidade ainda é percebida como aberração; no mínimo, uma patologia. São ideias equivocadas, vastamente desmentidas pela comunidade acadêmica tanto das áreas de saúde, quanto humanidades.
O 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica elaborado pela coordenação de Promoção dos Direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República revela que de 2011 para 2012 há um aumento significativo de violência contra a população LGBT, sendo que o Distrito Federal lidera o ranking. Os jovens de 15 a 29 anos representam 61% das pessoas afetadas pela violência homofóbica, de onde se conclui que a maior parte ainda está na escola; provavelmente no Ensino Médio.
Diante deste cenário, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco — e o ministério da Educação incorporaram a preocupação com as diversidades na escola. No entanto, é muito difícil emplacar o tema da transexualidade numa realidade repleta de pessoas conservadoras. Um dos maiores problemas é a relação promíscua entre religião e escola, a despeito o fato de o Brasil ser um estado laico. Os materiais produzidos pelo projeto Escola sem Homofobia, por exemplo, foram condenados à fogueira pelos fundamentalistas de plantão.
O grau de preconceito e de discriminação que vivem as pessoas transgênero, transexuais e travestis as leva a esconder seus sentimentos, suas identidades ou a evadir da escola. Como aponta Berenice Bento, as pessoas trans “sofrem evasão escolar” por meio de tecnologias cotidianas de exclusão. Seja pela violência transfóbica ou homofóbica, seja pela inadequação do trato pedagógico estudantes experimentam um massacre diário para sobreviverem à escola.
Propostas da Conferência Nacional de Educação Básica em relação à diversidade sexual são simples e viáveis como: evitar discriminações de gênero e diversidade sexual em livros didáticos; ter programas de formação em sexualidade e diversidade; promover a cultura do reconhecimento da diversidade de gênero, identidade de gênero e orientação sexual no cotidiano escolar; evitar o uso de linguagem sexista, homofóbica e discriminatória em material didático-pedagógico; inserir os estudos de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.
O projeto Eu te desafio a me amar é um convite amoroso para o aprofundamento no tema com uma abordagem delicada e séria. O projeto, que consta de uma extensa programação, propõe pautar o tema pelo olhar sensível e estético da fotógrafa Diana Blok e convida adolescentes do Ensino Médio de Brasília e professores de todas as modalidades de ensino a debaterem sexualidade e identidade de gênero a partir do vídeo da mesma autora.
Enfim, a vida escolar é decisiva para a formação e o desenvolvimento da criança e pode se dar em ambiente estimulante, tedioso ou excludente. Portanto, se a escola deseja ocupar seu lugar privilegiado na promoção de cidadania de crianças e adolescentes, não pode ignorar nenhum público. Precisa acolher, incluir e garantir o desenvolvimento pleno de todos os meninos e de todas as meninas, inclusive de todos os meninos que nasceram meninas e de todas as meninas que nasceram meninos e de todos os meninos e meninas que flutuam em busca de suas identidades e jeitos de caminhar na vida.
(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-desafio-da-transexualidade/)
Eleições-2014: é possível uma pauta feminista? (Marilia Moschkovich)

Dez questões incômodas, que você pode dirigir a candidatos e candidatas, em busca de uma disputa menos conservadora
Por Marília Moschkovich, na coluna Mulher Alternativa
Então, parece que está dada a largada: a declaração do presidenciável Eduardo Campos sobre o aborto inaugura o show de horrores que assistiremos (de camarote, com bebida que pisca) durante as eleições de 2014. Se as questões de direitos humanos, em geral, costumam ser rifadas na lógica insana da disputa eleitoral, os assuntos especificamente ligados aos direitos das mulheres parecem ter cacife zero. Desde que temos figuras femininas com força na corrida, em 2010, então, isso tem sido uma constante. O fato de termos uma presidenta mulher, pelo jeito, tampouco ameniza esses ataques.
Do ponto de vista da militância feminista, o governo Dilma tem sido uma grande decepção no que tange os direitos sexuais e reprodutivos mas também em relação às políticas para mulheres. A decepção vem por uma série de pressões feitas pelo gabinete da Presidência respectiva secretaria de Politicas para as Mulheres (SPM), por alguns programas que contradizem princípios básicos do feminismo (como o tal Cegonha-qualquer-coisa) mas também pela absoluta falta de diálogo com a militância que desempenhou um papel importante na eleição da presidenta. Ao mesmo tempo em que, durante a campanha de 2010, percebemos que enfrentaríamos uma batalha após as eleições (sobretudo quando a fatídica questão sobre o aborto foi pautada), imaginamos que haveria pelo menos condições de disputar esses pontos. Na maior parte das vezes, nos últimos quatro anos, não houve. O fechamento do debate é grave e decepciona profundamente.
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Isso não impede, porém, que um segundo mandato de Dilma seja diferente e atenda a esse tipo de expectativa de maneira mais satisfatória. Vai de cada um e de cada uma de nós decidir o quanto acredita nessa possibilidade. As demais candidaturas também mostram, no discurso e nas práticas de seus partidos, a maneira como provavelmente abordam esses temas. Cabe a nós saber olhar bem para esse ponto específico das plataformas e debates, e conseguirmos avaliar o quanto as respostas dos candidatos e candidatas a nossas reivindicações nos satisfazem. Pensando nisso, elaborei uma listinha de dez perguntas-armadilha que podem ajudar a construir um pequeno mapa de como cada presidenciável ou candidato ao legislativo de seu interesse trata as principais pautas feministas na política.
1) Seu partido já foi presidido por uma mulher? Quantas vezes?
2) Você defende a aprovação da lei Gabriela Leite, que regulamenta o trabalho sexual, mesmo que seus termos possam ser revistos depois?
3) No caso de uma reforma política que use o sistema de listas fechadas para nossas eleições, você é a favor da alternância de gênero sistemática na lista de seu partido? E dos outros?
4) No contexto das políticas ligadas à saúde pública, o aborto deve ser legalizado, seguro e acessível para mulheres que não correm risco de morte na gravidez/parto nem foram estupradas, ainda que haja algum tipo de prazo-limite para que seja realizado?
5) É possível combater as diferenças salariais entre homens e mulheres que ocupam um mesmo cargo profissional, com exigências e horas de trabalho iguais?
6) Você é a favor de igualar os tempos de licença-maternidade e licença-paternidade?
7) Na sua opinião, é correto o Estado decidir como, quando e onde uma mulher grávida vai parir (como no caso Adelir, por exemplo), em alguma circunstância?
8) Você acha que os assédios no transporte público acontecem por que algumas mulheres se vestem de maneira inapropriada ao frequentarem esses espaços?
9) Nos trotes de faculdade e nas festas universitárias, quando as jovens denunciam abusos, seria uma boa solução que elas simplesmente não se envolvessem nesse tipo de atividade, no seu ponto de vista?
10) Para você, deveria haver uma ação do Estado regulamentando e punindo campanhas publicitárias e outros materiais de mídia que ferem princípios de direitos humanos assegurados na nossa Constituição?
(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/eleicoes-2014-e-possivel-uma-pauta-feminista/)
terça-feira, 8 de abril de 2014
Educação, o novo alvo do fundamentalismo (Cleomar Manhas)

Em nome da moral conservadora, bancadas religiosas tentam detonar, no Congresso, projeto essencial para construir ensino público de excelência
Por Cleomar Manhas
O Plano Nacional de Educação está no Congresso Nacional desde dezembro de 2010, quando o ainda presidente Lula o enviou para apreciação e processo de votação. Passados três anos e alguns meses e muita discussão, ele foi votado na Câmara e no Senado, onde sofreu alterações e voltou à Câmara que acatará ou não o que foi modificado.
As entidades defensoras da política de educação, especialmente aquelas que lutam por educação de qualidade, estão acompanhando o processo desde então. E agora, no retorno à Câmara, foram surpreendidas pela oposição de vários grupos religiosos evangélicos neopentecostais e católicos conservadores, que se intitulam Pró-Vida.
O projeto apresentado à Câmara tinha no artigo segundo, inciso III a seguinte orientação: “Superação das desigualdades educacionais”. O relator, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR), acrescentou o seguinte texto : “(..) com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. Além disso, ele inovou adotando em seu texto a linguagem de gênero em detrimento do masculino genérico. E esses dois pontos são a causa da oposição, com direito a manifestações grosseiras e pouco democráticas.
Há alguns problemas no PNE que precisam ser sanados, para que de fato se tenha uma política de educação que resolva as desigualdades e promova educação de qualidade. Como, por exemplo, o que se entende por educação pública, pois do jeito como está cabe até mesmo os tais “cheques educação”, bolsas de estudos, convênios com instituições que não são fiscalizadas. Além do comprometimento da União com a necessária complementação orçamentária aos estados e municípios com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ), composto por insumos essenciais à universalização da educação de qualidade, com a garantia da aprendizagem.
Os mecanismos CAQi E CAQ foram criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para calcular quanto custa ter escolas com insumos tais como salários dignos aos/as profissionais da educação, número adequado de alunos/as por turma, insumos infraestruturais, ou seja, bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios de ciências e informática etc. O CAQi já foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, no entanto, como a maior parte dos municípios brasileiros são pequenos e com baixíssima arrecadação, se não houver a devida complementação da União isso não se realizará e não haverá aprendizado universalizado e educação de qualidade para os próximos dez anos.
Pesquisa realizada em 2010 pelo Unicef em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação detectou que há no Brasil 8,8 milhões de estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental em risco de exclusão escolar por estarem em idade superior a recomendada para a série que frequentam. Além de já se ter 3,7 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, sendo que 1,6 milhão encontram-se na faixa etária entre 15 e 17 anos, deveriam estar no ensino médio, mas abandonaram a escola antes disso, por inúmeras razões, que podem ser explicadas pelas diferentes desigualdades existentes, tais como: racial, de gênero, regional, de renda, ou ainda por preconceitos devido à orientação sexual, ou falta de acessibilidade para pessoas com deficiência nas escolas.
O que se poderia imaginar: que a sociedade como um todo se unisse para garantir recursos para a educação pública se realizar como educação de qualidade. E que os/as excluídos/as da escola ou em risco de exclusão fossem acolhidos/as e respeitados/as para que, ou retornassem, ou não evadissem da escola. Além disso, que se conseguisse, de fato, universalizar a aprendizagem que hoje é um grande problema, especialmente, entre a população de baixa renda.
No entanto, a principal pauta desses grupos agora mobilizados é a linguagem de gênero e a frase que diz que para superar as desigualdades educacionais é preciso enfatizar a promoção da igualdade racial, de gênero e orientação sexual.
Um deputado, cuja profissão é definida como “Ministro do Evangelho”, apresentou um voto em separado dizendo que as pessoas que defendem o que eles chamam de “ideologia de gênero” (sic) são antidemocráticos por não reconhecerem a heterossexualidade normativa. De acordo com suas palavras: “sob o pretexto de valorizar minorias sistemicamente marginalizadas, grupos articulados criam um verdadeiro açodamento na consciência civil, com discurso intransigente, linguagem chula e debates violentamente promovidos com vistas à suplantar quaisquer posições divergentes. A política de gênero sob o manto da diversidade e realização dos interesses da minoria propõe insistentemente uma verdadeira ditadura influenciativa (sic), que quer impor seus valores a todo custo, em todos os extratos sociais, com especial modo de agir sobre a infância.”
Veja-se que os grupos que não reconhecem a diversidade e que a sociedade é algo mais do que dizem os manuais da tal heterossexualidade normativa distorcem os fatos para os seus/suas fiéis, dizendo que os/as defensores/as dos diretos humanos impõem seus princípios a qualquer custo, não reconhecendo que a grande questão que se apresenta, especialmente na educação, é a superação das desigualdades e a construção, de fato, do Estado Laico, que apesar de estar em todas as constituições, desde 1891, ainda não se realizou.
O que se constata é que pensamentos obscurantistas como os dos grupos que se mobilizam contra o respeito às diferenças no Plano Nacional de Educação, ou das pessoas que responderam à pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) que a forma de as mulheres se vestirem ou comportarem as fazem sujeitas à violência sexual, contribuem para que as estatísticas de violência contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais aumentem. Além de servir como antídoto à necessidade premente de se construir políticas públicas para todos e todas, sem distinção.
O que se precisa é a defesa intransigente de políticas que sigam o princípio apresentado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”
(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-novo-alvo-do-fundamentalismo/)
sábado, 5 de abril de 2014
Outra visão sobre Ninfomaníaca (Bruno Lorenzatto)

Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente
Por Bruno Lorenzatto*
Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.
Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).
Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.
(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)
Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.
Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.
Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.
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* Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio
(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/26/outra-visao-sobre-ninfomaniaca/)
quarta-feira, 2 de abril de 2014
Estupro: onde mora o perigo? (Marcos Aurélio Souza)

Percepção sobre crimes sexuais poupa família, criminaliza rua e engana. Em cada quatro casos, três ocorrem na casa das vítimas
Por Marcos Aurélio Souza
A recente pesquisa divulgada pelo IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência” teve um papel pedagógico nas discussões públicas sobre o tema da violência sexual no Brasil. Trouxe para luz do dia a obtusidade agressiva e animalesca que se esconde nos porões da consciência individual de muita gente. Detectou concepções que revelam completa incapacidade de alguns para viver em sociedades, seja qual for seu grau de educação formal.
Um dado importante da pesquisa, dentre outros igualmente fundamentais para entender ou estimar em que ponto está a percepção do brasileiro sobre as condições de violência contra mulher, diz respeito à ideia de que a culpa pela violência sexual sofrida pela mulher reside nela mesma, em particular pelo modo como se veste.
Ao serem perguntados se mulheres que usam roupa mostrando o corpo merecem ser atacadas, nada menos que 65,1% dos entrevistados afirmaram que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Mais ainda. Para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria menos estupros.
Os números ganharam repercussão nas redes sociais e um movimento #NãoMereçoSerEstuprada iniciado pela jornalista Nana Queiroz ajudou a disseminar o debate, nem sempre com opiniões razoáveis. Segundo Nana, “amanheci de uma noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua, mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada”. Nana, no entanto, ganhou reforço de peso na sua luta corajosa. A presidenta Dilma Roussef usou seu twitter para apoiá-la. E mais recentemente personagens como Daniela Mercury emprestaram sua imagem em um nítido apoio ao movimento.
Ao mesmo tempo em que a pesquisa do IPEA ganhou tanta repercussão, uma nota técnica1 também do instituto, e que infelizmente não ganhou a mesma visibilidade, divulga números essenciais para evidenciar que a percepção da culpabilidade feminina pela agressão sexual sofrida é apenas isso, uma percepção, e está anos luz da brutal realidade, em termos de violência sexual, de fato vivenciada pelas mulheres. O submundo de abusos mostrado por essa nota é bem mais alarmante.
O estudo foi produzido a partir dos dados do Sinan (Sistema de Agravos de Notificação) base gerenciada pelo Departamento de análise de Situação de Saúde, vinculado ao Ministério da Saúde. Em 2011, as notificações tratando de violência doméstica e sexual foram incorporadas ao sistema. Apoiando-se nelas, os pesquisadores debruçaram-se para trazer à tona um diagnóstico que foge do senso comum sobre a violência sexual praticada contra a mulher.
Como já esperado, a quase totalidade das vítimas de abusos sexuais é mulher, sendo 88,5%. Entretanto, um dado valioso, diz respeito à faixa etária. Nada menos que metade das vítimas são crianças até 13 anos de idade. Se somados com jovens e adolescentes de 14 a 17 anos (19,4% do total) crianças e adolescentes perfazem o total de pouco mais de 70% das vítimas. Bem, o que não surpreende é que quase 100% dos agressores sejam homens.
Se 70% dos agredidos são crianças, jovens e adolescentes, cabe uma questão. Onde essa violência ocorre? Se você fez essa pergunta, provavelmente já tem a resposta. É no lar. Dentro de casa. São 79% dos casos entre crianças; 67%, entre adolescentes e 65% dos casos entre adultos. E se você chegou até aqui, saiba que poderá se assustar um pouco mais. Entre crianças, apenas 12,6% dos casos de violência são praticados por desconhecidos. Isso mesmo. Os atos de violência sexual praticados contra criança acontecem na inviolabilidade do lar, por pessoas conhecidas ou muito próximas das vítimas. Os números se distribuem do seguinte modo: em 11,8% dos casos, o agressor é o pai; 12,3%, o padrasto; 7,1%, namorado; por fim, 32,2% amigo.
Ou seja, o perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa. Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas.
Naturalmente, não se pode dizer que crianças se vistam de um modo provocativo ou tenham comportamento sedutor a tal ponto que leve as pessoas mais próximas a elas a distúrbios emocionais que resultem em um impulso para a prática de violência sexual. Tudo isso se torna estarrecedor, porque essas vítimas podem sofrer violência durante anos a fio, sem a possibilidade de manifestação do seu martírio.
Isso significa que a resposta positiva dos brasileiros sobre roupas ou comportamentos como determinantes do estupro está calcada numa terrível ignorância que, se por um lado esconde a realidade tal como é, também serve de conveniente sonífero. Sua função é evitar que nossa sociedade se depare com uma visão terrível: há um mundo de mutilação física e psicológica acontecendo debaixo de nossos tetos, envolvendo maridos, ex-maridos, amantes, amigos, conhecidos, e não sabemos absolutamente o que fazer. Parodiando Zé Geraldo, tudo isso acontecendo e a gente aqui na praça dando milho aos pombos.
O estudo conclui com outro dado igualmente assustador. Estima-se que mais de meio milhão de pessoas são estupradas no Brasil anualmente. Dessas, apenas 10% dos casos chegam à polícia. As razões para isso devem ser evidentes, dado que o aparato policial não está preparado para lidar de forma humana com essas mulheres. Os números desse estudo deveriam ser mais aprofundados e deveriam articular entes públicos e a sociedade para enfrentar e quebrar, de forma corajosa, esse pacto de silêncio que insiste em vitimizar todos nós.
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1Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf
(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/estupro-onde-mora-o-perigo/)
Venezuela: a verdade sobre o “desabastecimento” (Pedro Silva Barros)

Políticas públicas duplicaram acesso da população a alimentos básicos e carne. Produção agrícola ainda não acompanhou tendência. Governo amplia importações
Por Pedro Silva Barros, em Carta Maior
Na última sexta-feira (23), o ministro da Alimentação da Venezuela, Félix Osorio, anunciou medidas importantes que estimulam uma discussão mais geral sobre a segurança alimentar, as distorções de uma economia em transição e as relações comerciais da Venezuela, particularmente com o Brasil.
O governo venezuelano comprará, utilizando acordos de cooperação internacional, US$ 4,3 bilhões em alimentos em 2014, privilegiando os países do Mercosul e do Caribe. Do Brasil serão compradas 429 mil toneladas ao custo de quase US$ 1,8 bilhão; da Argentina, outros US$ 715 milhões. O Plano 2014-2016 para alimentação prevê mais de 1.000 novos pontos de distribuição de alimentos do governo, incluindo 22 hipermercados. As medidas consolidam o Estado como principal importador da Venezuela, responsável pelas compras de 55% de tudo que vem do exterior. Na semana anterior, havia sido anunciado um sistema biométrico para registrar os compradores desses mercados e evitar a revenda e o contrabando, principalmente para a Colômbia.
A política de garantia de alimentos é um dos maiores êxitos do chavismo e contrasta com a escassez e as filas para buscar determinados produtos.
O programas de alimentação criados como resposta ao locaute que tentou derrubar o governo Chávez entre 2002 e 2003 distribuiu, na última década, mais de 15 milhões de toneladas de produtos alimentícios, diretamente pela rede pública ou repassados à rede privada para serem vendidos a preços tabelados.
Eram apenas 45 mil toneladas em 2003 e passaram a 4 milhões de toneladas em 2013. Uma média superior a meia tonelada por habitante considerando toda a década. Ou a mais de um quilo diário por família, de alimentos fortemente subsidiados, se consideramos apenas o ano passado.
O consumo per capita de arroz passou de 13,4 Kg por pessoa por ano em 1998 para 25,1 Kg em 2012, o de carne bovina de 16,0 Kg para 25,1 Kg, o de frango de 20,9 Kg para 42,5. A disponibilidade energética, que havia caído na década anterior a Chávez, passou de 2.127 para 3.182 calorias por dia por habitante.
Hoje 96,2% dos venezuelanos comem ao menos 3 vezes por dia, 97,3% dos venezuelanos consomem proteína animal e 98% das crianças tomam leite diariamente.
A produção venezuelana não acompanhou o ritmo da expansão da demanda. O consumo cresceu enormemente devido aos subsídios (que chegam a 80% dos produtos básicos nos aproximadamente 15 mil pontos de venda da rede Mercal) e a outras políticas distributivas e de emprego (a formalização do trabalho na Venezuela superou pela primeira vez em janeiro de 2014 a barreira dos 13 milhões, equivalente a 61% dos postos de trabalho do país; durante a década de 1990 o índice de formalização havia caído de cerca de 50% para cerca de 40%). A conta do acesso aos alimentos fecha pelo aumento das importações, amparadas tanto pelo aumento do preço do petróleo como pela maior apropriação por parte do governo dos excedentes deste setor. Em outras palavras, houve uma democratização do renda petroleira.
Dizem nas ruas que antes de Chávez havia muitos produtos nas prateleiras, mas poucos tinham dinheiro para compra-los; agora todos tem meios para consumir, mas não é raro haver dificuldades para encontrar alguns produtos nas prateleiras.
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Como a oscilação no abastecimento tem ocorrido há dez anos, é comum que as pessoas estoquem grandes quantidades de produtos básicos, como leite em pó e frango congelado, o que gera uma grande ineficiência. Recordo de novembro do ano passado: quando articulistas de todo o mundo se deleitavam com a escassez de papel higiênico na Venezuela, a farmácia mais próxima ao meu escritório recebia 40 pessoas em fila, todas elas com o limite de 24 rolos em seus carrinhos de compras.
A forte e crescente política de subsídios gera distorções e necessita ajustes. A gasolina, cujo preço, simbólico, é de US$ 0,01 o litro, consome 8% do PIB, segundo o FMI. A carne brasileira em Santa Elena de Uairén chega a custar 10 vezes menos do que em Pacaraima (as duas cidades formam fronteira entre Venezuela e Brasil), considerando o mercado cambial informal da região. Pacaraima tem apenas 6 mil habitantes e o estado de Roraima tem 480 mil residentes e é bastante distante de outros centro consumidores do Brasil, cujo controle pode ser feito em uma única estrada, a BR 174. O impacto desse comércio informal é pequeno nas contas venezuelanas. O mesmo não se pode dizer da fronteira com Cúcuta, cuja população, considerando seu entorno, chega a quase um milhão de habitantes. Isso sem contar as outras cidades fronteiriças e os múltiplos caminhos para atingir os mais de 45 milhões de colombianos (ver “Contrabando agrava crise de alimentos na Venezuela”).
O governo tem realizado mudanças para centralizar e hierarquizar as importações de produtos básicos e ao mesmo tempo regulamentar e oficializar mecanismos complementares de acesso à divisas para produtos não essenciais ao setor privado. Não é à toa que os protestos que se desencadearam em 2014 começaram na região de fronteira. Não é à toa que no período que coincidiu com o anúncio e o início das operações do Sicad 2 (sistema complementar livre de acesso a divisas) o preço do dólar paralelo caiu 35%.
Os dados do comércio indicam que na última década o Brasil ganhou espaço na Venezuela. Se no biênio 2002-2003 as exportações brasileiras para a Venezuela foram de US$ 1,4 bilhão, no último biênio, 2012-2013, atingiram US$ 10 bilhões. O Brasil aumentou seu peso relativo particularmente no fornecimento de alimentos. As exportações de manufaturados, que haviam crescido muito entre 2003 e o início da crise internacional de 2008, tem enfrentado forte concorrência de produtos chineses. Independente das diferenças setoriais, a Venezuela tem se mantido entre os três principais superávits comerciais do Brasil desde 2007, esse não é um dado qualquer no momento em que a situação de nossa balança comercial já não é tão confortável.
O desafio colocado para a Venezuela é aumentar a produção interna de alimentos, aprimorar seu sistema de distribuição e diminuir a dependência petroleira. Para o Brasil, o aumento das exportações de manufaturados, que tem na América Latina seu principal mercado consumidor, só é sustentável se houver integração produtiva e desenvolvimento articulado com os países vizinhos.
Um passo seria a organização de projetos conjuntos na região de fronteira, entre os estados de Bolívar e de Roraima. A Venezuela poderia fornecer insumos importantes, como ureia e cal dolomítica, cujos altos preços no cerrado roraimense inviabilizam a competitividade da agricultura local. Assim como houve disposição do governo venezuelano para privilegiar o Brasil como fornecedor de alimentos, poderá haver do Brasil para privilegiar a Venezuela no fornecimento de tecnologia e formação técnica para a produção agrícola. Isso garantirá não só mais estabilidade e segurança alimentar no país vizinho e no extremo norte do Brasil como também mercado para a exportação de tecnologia e equipamentos agrícolas brasileiros.
(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17043)
domingo, 30 de março de 2014
Santa Catarina: por que Universidade Federal está ocupada (Caio Teixeira)

No Crítica da Espécie
Quando tomei conhecimento da invasão da Universidade Federal de Santa Catarina terça-feira (25/3) por policiais federais não identificados, já imaginei o teor das notícias da mídia no dia seguinte tentando dividir os atores em os que são a favor da maconha e os contra. Afinal, uma das formas mais comuns de manipular informações é desviar o foco do principal para uma falsa polêmica e esta mídia é a mesma que apoiou o golpe militar em 64. Vamos reler os fatos.
Em primeiro lugar os policiais que iniciaram a ação, não se identificaram como tal, tampouco tinham ordem judicial para prender gente. Sem se identificar, não estão efetuando uma prisão, estão realizando sequestro exatamente como os que são lembrados às vésperas do aniversário de 50 anos da ditadura militar. Nem o carro em que estavam era identificado. São práticas típicas da polícia política da ditadura. Como saber se o estudante estava sendo preso ou sequestrado? Quem sabe até por narcotraficantes? Além do mais qualquer operação policial dentro de uma Universidade Federal deve ser comunicada à Reitoria antes e negociada de comum acordo. Ninguém pode invadir uma Universidade e sequestrar estudantes. Isto acontecia, repito, na ditadura quando tínhamos um Estado sem leis e os direitos individuais estavam suspensos.
E também vamos parar com o moralismo de tratar maconha como se fosse pior que drogas legais, tipo cigarro, que mata e ninguém se importa. É que o tabaco enche os cofres de multinacionais que o exploram diretamente e da indústria de medicamentos e equipamentos médicos usados para tratar da epidemia de câncer provocada por esta droga.
Polícia que não se identifica está agindo como bandido, fora da lei, e foi tratada como bandido pelos estudantes até descobrirem do que se tratava. Ouvi o tal delegado no rádio dizendo-se ofendido pela nota da Reitoria que repudia a invasão, chamando a reitora de irresponsável e acusando-a de querer transformar a UFSC numa “república de maconheiros”. Disse quase a mesma coisa no Jornal Nacional (está ficando famoso). Exatamente o mesmo discurso da imprensa comercial. Aqui vale uma observação. O delegado Cassiano é muito jovem, deve ter passado nesses últimos concursos que são disputados por uma nova categoria chamada de concurseiros.

Nada posso afirmar do delegado pois não o conheço. Mas conheço muitos outros. Estas pessoas são na maioria jovens que, tão logo recebem o diploma, se ocupam unicamente de estudar e viajar pelo Brasil fazendo concursos, em geral, às expensas da família já que, para tanta atividade, não é possível trabalhar. Um dia são aprovados e passam a ser um juiz, um procurador, um delegado, investidos de autoridade de Estado sem que tenham experimentado a vida real. Muitos desses conhecem o mundo pelas páginas da Veja, assinada pelos pais. Quanto ao delegado, espera-se que o Ministro da Justiça e o Ministério Público Federal abram inquérito e processem este delegado por desacato e total despreparo emocional para o exercício da função. A Polícia Federal há muito tempo é um órgão sério empenhado como poucos no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco e não merece ser julgada por atos despropositados e preconceituosos como este. Irresponsável ao extremo é o delegado que mandou lançar gás lacrimogênio e outros artefatos do gênero contra estudantes desarmados na hora da saída das crianças do Colégio Aplicação, que fica a uns cinquenta metros do Centro de Ciências Humanas onde se deu o triste episódio.
Li no jornal que o delegado está substituindo o superintendente – presumivelmente em férias. Dá a impressão de que aproveitou a ausência do titular e da momentânea investidura no Poder para buscar seu minuto de fama armando uma operação espetacular. Para que? Para capturar os donos do tráfico? Não. Para vasculhar a praia de Jurerê Internacional, onde foram presos magnatas do tráfico há pouco tempo pela própria Polícia Federal? Não. Para pegar os traficantes que abastecem de crack os morros de Florianópolis? Também não. A operação desastrosa tinha por objetivo pegar “perigosos” estudantes de Ciências Humanas que fumavam um baseado sem colocar em risco a vida de ninguém!Para isso o delegado foi responsável pela invasão de um campus universitário, cheio de jovens estudantes, por soldados armados! Ainda bem que os estudantes também estavam armados com suas câmeras. O vídeo abaixo mostra o poder de fogo de uma lente afiada.
O delegado Cassiano, no entanto não tinha nenhum interesse em combater o tráfico na raiz, como deveria ser sua atribuição. Se tivesse esta intenção, o último lugar provável para encontrar alguma conexão seria a Universidade. Ele atuou com abuso de poder, que é crime, pois não tinha mandado para invadir uma universidade federal. Atuou aparentemente para atender interesse particular e não público (fama momentânea e espaço na mídia, sabe-se lá com que outras intenções) o que pode configurar, se apurado, crime de prevaricação. Efetuou prisão de forma clandestina pois não se identificou como polícia, o que também é crime. Somente quando a confusão foi formada os policiais se apresentaram como tal, de acordo com todos os depoimentos de professores e estudantes que presenciaram o fato.
O delegado, que talvez se sentisse melhor trabalhando no DOI-CODI do regime golpista, realizou uma “operação” pirotécnica ilegal em conluio com a Polícia de Choque, que evidentemente estava a par e a postos para o assalto e operações dessa natureza não se realizam sem preparação logística prévia. O governador, que comanda a Polícia Militar, está devendo explicações embora a autointitulada “imprensa profissional” tenha esquecido de fazer esta ligação, colocando como centro do problema não os atos abusivos do delegado e da polícia, mas reduzindo-a a uma simples questão de ser a favor ou contra a maconha. Uma das formas mais comuns de manipulação da informação pela imprensa comercial é desviar o foco da atenção do principal para um problema secundário de ordem moral sobre o qual as pessoas já tem opinião formada. Dessa forma, o debate fica resumido a uma briga de torcidas de times de futebol na qual ninguém vai abrir mão do seu time. Enquanto isso, o que deveria ser debatido, fica fora da pauta.
Por fim, uma última observação. Não deixa de ser curioso que o delegado tenha escolhido para sua operação ilegal justamente o momento em que os saudosos da ditadura se assanham, incentivadas por Veja, Rede Globo e outros veículos de comunicação que apoiaram o golpe militar. Assistimos há alguns dias até mesmo a tentativa de realização de uma patética marcha, com cartazes pedindo expressamente a volta da ditadura. A ação isolada deste delegado despreparado deve ser veementemente repudiada por toda a sociedade catarinense e principalmente pelos seus próprios colegas que tem prestado, via de regra, excelentes serviços ao país.
Quando você, que está lendo este texto, se posicionar sobre a invasão da UFSC, preocupe-se em dizer se é a favor ou contra uma polícia que age fora da lei e dos limites impostos ao Estado pela Constituição, para proteger os cidadãos. Esta é a questão principal deste debate. Os cinco cigarros de maconha só estão ai para desviar sua atenção. Não fique chapado com as interpretações da “imprensa profissional”. Ela é muito mais poderosa que a maconha para confundir sua percepção da realidade.
Inúmeras manifestações contra a ditadura estão sendo organizadas em todo o país. Elas tem por objetivo repudiar qualquer tentativa de assaltar o poder para atender interesses particulares de pessoas ou grupos minoritários. As que vão ocorrer em Florianópolis são a melhor oportunidade que temos para dizer não ao autoritarismo e repudiarmos qualquer forma de ataque à democracia, como o que ocorreu na UFSC. Muita gente prefere que fiquemos discutindo a maconha em vez de lembrarmos nosso passado para evitar que ele volte. Que nos encontremos todos na rua, dia primeiro de abril às 17 horas.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/santa-cataria-por-que-universidade-federal-esta-ocupada/)
sexta-feira, 14 de março de 2014
O Cartaz no Elevador
Hoje cheguei ao edifício onde moro e tive (mais) um desgosto de passar pela área comum até chegar em meu apartamento. Explico.
Estava no elevador um cartaz, com título "MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS II - O RETORNO" e nele descrito uma manifestação em frente à Brigada Militar, solicitando intervenção dos militares na política brasileira, para retirar o PT do poder.
Não me controlei e escrevi dois bilhetes em post-it. Em um deles: "Que tal começarmos uma NOVA POLÍTICA em nosso próprio condomínio, em nossa comunidade? A corrupção, as intrigas, a inoperância e a TIRANIA nascem mais próximas a nós do que imaginamos." Em outro: "Tirem suas bundas de suas camas/cadeiras e vão TRABALHAR por um novo Brasil. Deveriam se envergonhar de exaltar um GOLPE ANTIDEMOCRÁTICO."
Estou inquieto até agora. Já não gosto de morar em meio a tanto dinossauro da elite brasileira (esse é mais um preço que se paga por morar em um bairro nobre, além dos altos impostos), todavia enquanto ficavam em suas cavernas eu ao menos podia ignorar esse fato. Questão é que resolveram sair (fora das reuniões de condomínio, onde já demonstravam seu anacronismo e velharia) para mostrar suas garras nefastas, as garras da velha elite colonialista brasileira, a qual sempre esteve atrelada ao braço militar, por meios escusos de articulação e ação.
Devemos combater a ignorância, o preconceito e a tirania de certos movimentos que estão se fortalecendo em nossa sociedade. E, como ocorre comigo, eles podem estar brotando na porta ao lado. Não podemos ficar calados. Devemos defender nosso bem maior, a democracia, e sobretudo os avanços que já conquistamos na sociedade brasileira.
Não sou PT, mas não sou de uma oposição conservadora e desleal, que ignora valores fundamentais de nossa sociedade para tentar alcançar seus fins elitistas e deploráveis. E, se em algum momento for necessário, irei à rua defender com meu sangue esses baluartes. Por enquanto, me restrinjo à luta no campo intelectual e político, pois mais que isso seria exagero e contraprodutivo no momento atual.
Hoje não vou dormir em paz. A bem da verdade, já não durmo em paz há muito tempo, já que há muita miséria e desolação - sintomas de um sistema hegemônico selvagem e desumano, o capitalismo - para combater. Estão a nossa volta, e muitos fingem não existir, ou não se sentem responsáveis, ou, pior, sabem que da fome, do suor e da lágrima do outro forja seu banquete de farturas e coisas supérfluas.
Que essa minha falta de paz seja minha força-motriz para defender sempre aqueles desassistidos. E que meu grito não seja solitário. A luta é nossa, da humanidade, para banir aquilo que nos prende ao passado de tirania e de iniquidades, no vislumbre de uma nova sociedade, a qual garanta a todos seu direito legítimo e básico à humanidade.
Estava no elevador um cartaz, com título "MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS II - O RETORNO" e nele descrito uma manifestação em frente à Brigada Militar, solicitando intervenção dos militares na política brasileira, para retirar o PT do poder.
Não me controlei e escrevi dois bilhetes em post-it. Em um deles: "Que tal começarmos uma NOVA POLÍTICA em nosso próprio condomínio, em nossa comunidade? A corrupção, as intrigas, a inoperância e a TIRANIA nascem mais próximas a nós do que imaginamos." Em outro: "Tirem suas bundas de suas camas/cadeiras e vão TRABALHAR por um novo Brasil. Deveriam se envergonhar de exaltar um GOLPE ANTIDEMOCRÁTICO."
Estou inquieto até agora. Já não gosto de morar em meio a tanto dinossauro da elite brasileira (esse é mais um preço que se paga por morar em um bairro nobre, além dos altos impostos), todavia enquanto ficavam em suas cavernas eu ao menos podia ignorar esse fato. Questão é que resolveram sair (fora das reuniões de condomínio, onde já demonstravam seu anacronismo e velharia) para mostrar suas garras nefastas, as garras da velha elite colonialista brasileira, a qual sempre esteve atrelada ao braço militar, por meios escusos de articulação e ação.
Devemos combater a ignorância, o preconceito e a tirania de certos movimentos que estão se fortalecendo em nossa sociedade. E, como ocorre comigo, eles podem estar brotando na porta ao lado. Não podemos ficar calados. Devemos defender nosso bem maior, a democracia, e sobretudo os avanços que já conquistamos na sociedade brasileira.
Não sou PT, mas não sou de uma oposição conservadora e desleal, que ignora valores fundamentais de nossa sociedade para tentar alcançar seus fins elitistas e deploráveis. E, se em algum momento for necessário, irei à rua defender com meu sangue esses baluartes. Por enquanto, me restrinjo à luta no campo intelectual e político, pois mais que isso seria exagero e contraprodutivo no momento atual.
Hoje não vou dormir em paz. A bem da verdade, já não durmo em paz há muito tempo, já que há muita miséria e desolação - sintomas de um sistema hegemônico selvagem e desumano, o capitalismo - para combater. Estão a nossa volta, e muitos fingem não existir, ou não se sentem responsáveis, ou, pior, sabem que da fome, do suor e da lágrima do outro forja seu banquete de farturas e coisas supérfluas.
Que essa minha falta de paz seja minha força-motriz para defender sempre aqueles desassistidos. E que meu grito não seja solitário. A luta é nossa, da humanidade, para banir aquilo que nos prende ao passado de tirania e de iniquidades, no vislumbre de uma nova sociedade, a qual garanta a todos seu direito legítimo e básico à humanidade.
segunda-feira, 10 de março de 2014
Um 8 de março para homens (Marília Moschkovich)

Não dê rosas, nem presentes: não é celebração comercial. Leia, assista a filmes, reflita. Participe de uma experiência de inversão
Por Marília Moschkovich
Há alguns anos nós, feministas que militamos na internet (sobretudo em blogs), reforçamos a máxima de que aquela rosa que muita gente distribui no dia 8 de março pode ficar pra vocês. Um bom texto que não sai de moda, nesta época, é o “Dispenso esta rosa”, da Marjorie Rodrigues (leia aqui). Muito confusos com essa recusa, alguns leitores têm me escrito desde a semana passada, tentando entender: afinal de contas, se dar parabéns junto a flores ou presentes não é bacana no dia 8 de março, o que podemos fazer para que não passe em branco?
Pra inventarmos maneiras de viver o 8 de março sem sermos machistas, precisamos entender o que é esse dia. Ao contrário do que dizemos no dia-a-dia, o 8 de março não é “Dia Internacional da Mulher”, mas sim o “Dia Internacional de Luta Pelos Direitos das Mulheres”. Dá pra sacar a diferença?
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8 de março não é uma data comercial como o dia das mães, dia dos pais, dia das crianças. Não foi definida por associações comerciais para vender mais rosas em março e alavancar vendas que sem a data talvez ficassem um pouco lentas (já repararam como os dias das mães, pais e crianças são estrategicamente distribuídos no calendário? pois é).
A data de 8 de março foi reivindicada com muita luta, ao longo de muitas décadas, como dia de luta pelos direitos das mulheres. É neste dia que celebramos as conquistas da luta feminista através dos séculos. Essa celebração nos lembra que nem sempre as coisas foram como hoje, e também que podemos perder esses avanços, dependendo das disputas políticas de nosso tempo. Ao mesmo tempo, refletimos sobre outras transformações que ainda estão por vir, que desejamos que venham, e pensamos sobre como podemos promovê-las. O 8 de março é um dia de informação, reflexão e luta política.
No auge da minha criatividade de quem passou o carnaval descansando e longe da folia, listei algumas ideias de coisas bacanas pra fazer no dia 8 de março. Certamente todas elas são mais produtivas para os direitos das mulheres do que dar parabéns e oferecer rosas, e definitivamente alguma delas é possível de ser feita por você.
Por e-mail (marilia@mariliamoscou.com.br) ou Twitter (@MariliaMoscou), peço que me contem também, a partir do domingo, o que foi que fizeram no dia 8. Pretendo traçar uma pequena coletânea de atitudes dos homens em prol da luta das mulheres na semana que vem! Vamos à lista:
1. Participar de alguma marcha ou manifestação de 8 de março
Como homem, é importante que você possa mostrar que entende que esse é um dia de luta e que apoia publicamente essa luta. As marchas costumam ser bem tranquilas, com grupos diferentes e bandeiras bem diversificadas. É uma experiência legal pra quem anda com alguma curiosidade sobre qual é a cara do feminismo nos dias de hoje, que reivindicações são feitas, etc. Dando uma busca por “Ato 8 de março 2014″ no Google, é possível encontrar informações sobre as marchas programadas para diferentes lugares.
2. Ler (ou começar a ler) um livro de uma escritora feminista
Não precisa chafurdar na teoria e encarar logo O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir, claro. As escritoras de literatura são excelentes para se começar. Por meio da literatura muitas questões sobre os direitos e as vidas de mulheres em várias épocas são muito bem trabalhadas. Meus livros preferidos pra esse começo são os seguintes:
- Três Vidas (Gertrude Stein)
- O Conto da Aia (Margaret Atwood)
- Um teto todo seu (Virginia Woolf)
- Persépolis (MarjaneSatrapi) [quadrinho]
- O País das Mulheres (Gioconda Belli)
- As boas mulheres da china (Xinran)
- Barragem contra o Pacífico (Marguerite Duras)
- A casa dos espíritos (Isabel Allende)
- Flor da Neve e o leque secreto (Lisa See)
3. Assistir filmes que tragam uma perspectiva feminista sobre as mulheres
Faça uma panelada de pipoca, ajeite uma bebida maneira e vamos lá. Eu indico aqui alguns filmes bacanas, de ficção ou não, mas há realmente muitos filmes feministas bons por aí. Alguns deles que você talvez nem imaginasse que fossem feministas! Se você jogar “filmes feministas” no Google, ele retorna boas listas pelas quais você pode se pautar, também. Minhas sugestões:
- Que bom te ver viva (Lúcia Murat, 1989)
- A excêntrica família de Antônia (MarleenGorris, 1995)
- Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991)
- Tomboy (CélineSciamma, 2011)
- XXY (Lucía Puenzo, 2007)
- Pequena Miss Sunshine (Jonathan Dayton & Valerie Faris, 2006)
- A Vida Secreta das Abelhas (Gina Prince-Bythewood, 2008)
- A Cor Púrpura (Steven Spielberg, 1985)
- Além do bem e do mal (Liliana Cavani, 1977)
- Philomena (Stephen Frears, 2013)
- Em nome de Deus (Peter Mullan, 2002)
- As horas (Stephen Daldry)
4. Participar de alguma outra atividade proposta para o dia, que envolva informação, reflexão e debate
Na cidade de São Paulo, a prefeitura lançou uma listinha muito bacana cheia de atividades interessantes para o 8 de março. Nessas atividades, muitos aspectos do “ser mulher” serão debatidos, apresentados, pensados. Vale a pena conferir a programação extensa e escolher uma atividadezinha pra participar (veja a lista aqui). Eu mesma vou dar um workshop curto voltado para homens nesse dia, também em Sampa (inscrições e informações aqui).
Se você não está em Sampa, uma busca no Google por “8 de março atividades” vai retornar diversas possibilidades; adicionando o nome de sua cidade à busca dá pra ter uma ideia de eventos próximos. Se nada disso funcionar, procure por coletivos feministas e setoriais de mulheres de partidos de esquerda, que esses grupos sempre têm ideias legais de atividades para a data. As ONGs ligadas aos direitos das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e direitos humanos também costumam propor encontros e debates legais no dia. Fique atento!
5. Faça um experimento de inversão
Essa proposta é muito mais ousada do que os outros itens da lista, claro. A ideia é viver como se fosse mulher, em algum aspecto do teu cotidiano, durante um dia. Você pode passar o dia usando sapato de salto alto, por exemplo. Fazer maquiagem feminina, tentar fazer as unhas, fazer depilação com cera nas pernas, usar vestido, ou trocar as tarefas diárias com uma mulher que conviva com você (mãe, irmã, esposa, namorada, amiga, etc). Seja criativo e depois me conte como foi! O lado mais bacana dessa experiência, porém, é discuti-la com as próprias mulheres dos teus círculos sociais. Escute o que elas tem a dizer sobre a experiência delas cotidianamente fazendo o que você fez por um dia.
(Disponível em: http://outraspalavras.net/uncategorized/um-8-de-marco-para-homens/)
Cocaína e crack: diferença é classe social de quem consome (Cynara Menezes)
“Vício imediato” é mito absurdo. Craqueiros são mais vulneráveis devido a sua condição social. Exatamente por isso, é preciso apoiá-los
Por Cynara Menezes, em seu blog
A iniciativa da prefeitura de São Paulo de experimentar outra abordagem contra o crack, hospedando em hotéis e pagando 15 reais por dia a viciados para que varram ruas me deixou muito otimista. É hora de os governantes brasileiros passarem a combater as drogas de maneira menos hipócrita e higienista – como fazem o PSDB e o DEM, que sempre preferiram simplesmente expulsar os viciados do centro ou interná-los em instituições mentais, para bem longe da vista dos “cidadãos de bem”. Obviamente os obtusos da direita (pleonasmo?) já atacaram a ideia do prefeito Fernando Haddad. Para que tentar dar uma chance a essas pessoas se é possível varrê-las para debaixo do tapete? “Pessoas? E usuário de crack é gente?”, perguntam-se os defensores dos “humanos direitos”.
Os histéricos da droga normalmente preferem nem se informar a fundo sobre o assunto, como se a mera proximidade com estudos científicos os contaminasse. Mas como a guerra às drogas que inventaram resultou apenas em crime, degradação e violência, outro tipo de pensamento começa a se impor no mundo. Não é à toa que países como Uruguai e mesmo os EUA mudaram sua visão em relação à maconha. Os EUA, aliás, estão cada vez mais liberais com a cannabis, como demonstra uma pesquisa divulgada no início do mês: hoje em dia, 55% dos norte-americanos aprovam a legalização da maconha. E só 35% deles acham que fumar baseados é “moralmente condenável” (veja aqui). Exatamente o oposto da direita ignorante (pleonasmo?) brasileira, que se recusa a aceitar a falência de seu modelo arcaico na solução de dilemas contemporâneos.
Um fato pouco divulgado sobre o crack é que ele não é uma droga tão diferente das outras, tão mais viciante que as demais. Sabia? Na verdade, existe bem pouca diferença entre o crack e a cocaína, quimicamente falando. A única diferença é a remoção do cloridrato, o que torna possível fumá-lo. É como se a cocaína fosse açúcar refinado, e o crack, rapadura. O que torna o crack mais potente é a forma de consumi-lo: fumar leva a droga rapidamente aos pulmões, fazendo com que o efeito seja mais rápido e mais intenso do que cheirar pó (veja mais mitos sobre o crack aqui). Para piorar, a pedra de crack é barata – custa 10 reais, enquanto o grama de cocaína é vendido a 50 reais. Ou seja, o crack, ao contrário da cocaína, é acessível aos miseráveis.
Saber disso nos abre os olhos a uma problemática fundamental em relação ao crack, que é a vulnerabilidade social de quem está exposto à droga morando nas ruas. É exatamente este aspecto que a prefeitura de SP pretende combater ao tentar reintegrar o viciado à sociedade, dando-lhe perspectivas. Sem oferecer-lhes perspectiva de futuro, esperança, não adianta desintoxicá-los. Ao sair da clínica, eles voltam para o vício, até porque, vivendo à margem, não têm mais o que fazer. Enquanto isso, os cocainômanos e viciados em crack das classes mais abastadas são enviados ao rehab, às clínica chiques, e a gente nem sequer chega a tomar conhecimento deles. Quem está na rua, não, “incomoda”, integra a “gente diferenciada” para a qual muitos torcem o nariz e têm medo.
Dois anos atrás, o ator Charlie Sheen, bem conhecido de todos como o “doidão” de Hollywood, causou polêmica nos EUA ao declarar em uma entrevista que alguns amigos seus usam crack “socialmente”, assim como fazem tantos endinheirados com a cocaína. Parece absurdo? Não é. A partir das declarações de Sheen, a jornalista Maia Szalavitz, da revista Time, escreveu um artigo demonstrando que somente 15 a 20% das pessoas que experimentam crack ficam viciados. Mais: que 75,6% dos que provaram crack entre 2004 e 2006 tinham abandonado o cachimbo dois anos depois; outros 15% passaram a usar ocasionalmente; e só 9,2% ficaram viciadas.
Uma realidade bem distante do que pensávamos pouco tempo atrás, quando se costumava dizer que basta uma baforada para a pessoa ficar viciada. É possível, sim, entrar no crack e sair. Assustar os jovens em relação às drogas pode ser eficiente, mas eu acho que é muito mais importante dizer a verdade, conscientizá-los com base na ciência. “O crack não é mais tóxico que a cocaína. O que acontece é: quem toma crack? Os negros mais ferrados dos EUA. Os adolescentes com menos perspectivas profissionais”, defende um dos maiores especialistas do mundo em drogas, o espanhol Antonio Escohotado. No Brasil é a mesma coisa. Embora atinja várias classes sociais, o vício em crack é devastador sobretudo para os jovens e adultos em situação de rua.
Quanto mais leio e me informo, mais fico convencida de que não existem drogas “perigosas”. Todas elas são e não são ao mesmo tempo. O que existe é a pessoa por trás da droga e a circunstância em que vive. Se o ser humano que busca as drogas está em condição de risco – psicológico ou econômico – obviamente estará mais sujeito à adicção. Assim é com tudo que entra pela boca do homem: comida, álcool, remédios ou drogas ilícitas. A droga jamais pode estar relacionada à fuga da realidade, mas às experiências sensoriais. Quem vive na rua, dormindo na calçada ou em buracos, com certeza não está usando a droga “recreativamente”.
Se não fôssemos dominados por um pensamento tacanho e estivéssemos usando, como em muitos países civilizados, a maconha com fins terapêuticos (a exemplo dos EUA, que a direita brasileira adora macaquear, mas não nas iniciativas boas), a próxima etapa do programa da prefeitura de São Paulo deveria ser ministrar baseados como política de redução de danos do vício em crack. Vários estudos científicos comprovam que fumar maconha diminui a “fissura” entre viciados que desejam deixar a pedra, ajuda na hora de enfrentar a síndrome de abstinência. É uma possibilidade no tratamento. Os hipócritas iriam permitir? Imagina. Interessa a eles, de certa forma, que existam viciados em crack perambulando pelas ruas para que seu irracional discurso anti-drogas e anti-crime continue a ter eficiência sobre os incautos.
(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/cocaina-e-crack-diferenca-e-classe-social-de-quem-consome/)
domingo, 26 de janeiro de 2014
Dependência de drogas: o problema é a gaiola (Cauê Seignermartin Ameni)
Em quadrinhos, o experimento científico que derrubou o mito segundo a qual substâncias psicoativas são por natureza nocivas e viciantes
Por Cauê Seignermartin Ameni
Ao estampar em sua capa, na última quinta-feira (16/1), a imagem de uma paciente do novo programa para usuários de drogas de S.Paulo fumando crack após o trabalho, a Folha de S.Paulo praticou um atentado à privacidade da pessoa em tratamento médico, desencadeando crise de choro e revolta. E foi além. Na tentativa de “demonstrar” uma tese conservadora (a de que as terapias humanizadas são ineficazes para dependentes de drogas), ele ignorou um experimento científico realizado há mais de trinta anos. Já no final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou que a socialização é, claramente, o melhor caminho (se não o único) para enfrentar a dependência química. Sua pesquisa, que passou a influenciar profissionais de saúde em todo o mundo, está descrita até em formato de quadrinhos – inclusive traduzidos para o português (veja-os ao fim deste post). O fato de prevalecer até hoje, entre os velhos jornais brasileiros, a velha crença em métodos de punição e encarceramento só demonstra o atraso destas publicações.
Alexander, que trabalhava na Universidade Simon Fraser, questionou o pensamento predominante em sua época, segundo o qual as substâncias psicoativas produziam dependência, por sua natureza – e por isso deveriam ser proibidas. Para tanto, precisou enfrentar um problema. Em favor da crença comumente aceita, havia dezenas de experimentos “científicos”, geralmente realizados com ratos, e sempre com resultados semelhantes. “Demonstravam” que, uma vez em contato com drogas, os animais tornavam-se incapazes de viver sem elas.
O psicólogo canadense observou, porém, que talvez a causa destes resultados recorrentes não estivesse na correção da hipótese que eles supostamente “comprovavam” — mas num erro metodológico comum a todos os experimentos. Em todo os casos, os ratos testados eram confinados em gaiolas. Tinham um canudo implantado cirurgicamente no sistema circulatório. Eram treinados a movimentar uma alavanca e receber, diretamente no sangue, doses de morfina, heroína ou cocaína. Ao final de algum tempo, preferiam a droga aos alimentos ou à própria água, sendo levados à morte. “Concluía-se cientificamente” que as substâncias eram nocivas e altamente perigosas, e deveriam ser proibidas para humanos. As pesquisas foram um poderoso reforço ao proibicionismo e, mais tarde, à chamada “Guerra contra drogas”, em curso até hoje.
Bruce Alexander resolveu testar outra hipótese. Ao invés confinar os ratos em gaiolas minúsculas e solitárias, construiu para eles um parque 200 vezes maior com túneis, perfumes, cores. Mais importante, colocou outros ratos para interação. A experiência ficara conhecida como Rat Park – algo como Ratolândia em português. Para completar a “festa”, os roedores tinham acesso a duas fontes jorrando, incessantemente, água e morfina. Nestas novas condições, que reproduzem muito melhor a vida real, os resultados foram impressionantes. Percebeu-se, entre outros fatos, que os ratos livres consumiam 19 vezes menos psicoativos que seus iguais enjaulados.
Hoje, com avanço da ciência, há um maior entendimento sobre o funcionamento químico cerebral. O jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro O Fim da Guerra, explica como se dá essa relação: ”O centro da questão é um químico chamado dopamina, o principal neurotransmissor do nosso sistema de recompensa. Quando animais sociais ficam isolados e sem estímulos, seus cérebros secam de dopamina. Resultado: um apetite enorme e insaciável pela substância. Drogas – todas elas – têm o poder de aumentar os níveis de dopamina no cérebro, aliviando essa fissura. O nome disso é dependência. Ou seja, não é a droga que causa dependência – é a combinação da droga com uma predisposição. E o único jeito de curar dependência é curar essa predisposição: dando a esse sujeito uma vida melhor, como Bruce Alexander fez com os ratinhos do Rat Park.”
O paralelo com a situação brasileira é evidente. As políticas tradicionais tratam o usuário de drogas como pária a ser afastado do convívio social. Esta posição é radicalizada por autoridades e profissionais de saúde mais conservadores — para quem é preciso internar de forma compulsória os dependentes. Em contrapartida, a nova atitude adotada em São Paulo oferece a eles alojamento digno e ocupação e volta ao convívio social.
Por que são tão fortes e persistentes as teorias retrógradas, mesmo quando descoladas totalmente da realidade? O neurocientista Carl Hart, professor neurocientista da Columbia University, entrevistado recentemente pela New York Times respondeu a essa questão: “Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos. Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que teremos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”. Bruce Alexnder e Carl Hart são duas incômodas exceções. Enquanto ao resto, a industria farmacêutica e bélica agradecem o proibicionismo.
Por Cauê Seignermartin Ameni
Ao estampar em sua capa, na última quinta-feira (16/1), a imagem de uma paciente do novo programa para usuários de drogas de S.Paulo fumando crack após o trabalho, a Folha de S.Paulo praticou um atentado à privacidade da pessoa em tratamento médico, desencadeando crise de choro e revolta. E foi além. Na tentativa de “demonstrar” uma tese conservadora (a de que as terapias humanizadas são ineficazes para dependentes de drogas), ele ignorou um experimento científico realizado há mais de trinta anos. Já no final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou que a socialização é, claramente, o melhor caminho (se não o único) para enfrentar a dependência química. Sua pesquisa, que passou a influenciar profissionais de saúde em todo o mundo, está descrita até em formato de quadrinhos – inclusive traduzidos para o português (veja-os ao fim deste post). O fato de prevalecer até hoje, entre os velhos jornais brasileiros, a velha crença em métodos de punição e encarceramento só demonstra o atraso destas publicações.
Alexander, que trabalhava na Universidade Simon Fraser, questionou o pensamento predominante em sua época, segundo o qual as substâncias psicoativas produziam dependência, por sua natureza – e por isso deveriam ser proibidas. Para tanto, precisou enfrentar um problema. Em favor da crença comumente aceita, havia dezenas de experimentos “científicos”, geralmente realizados com ratos, e sempre com resultados semelhantes. “Demonstravam” que, uma vez em contato com drogas, os animais tornavam-se incapazes de viver sem elas.
O psicólogo canadense observou, porém, que talvez a causa destes resultados recorrentes não estivesse na correção da hipótese que eles supostamente “comprovavam” — mas num erro metodológico comum a todos os experimentos. Em todo os casos, os ratos testados eram confinados em gaiolas. Tinham um canudo implantado cirurgicamente no sistema circulatório. Eram treinados a movimentar uma alavanca e receber, diretamente no sangue, doses de morfina, heroína ou cocaína. Ao final de algum tempo, preferiam a droga aos alimentos ou à própria água, sendo levados à morte. “Concluía-se cientificamente” que as substâncias eram nocivas e altamente perigosas, e deveriam ser proibidas para humanos. As pesquisas foram um poderoso reforço ao proibicionismo e, mais tarde, à chamada “Guerra contra drogas”, em curso até hoje.
Bruce Alexander resolveu testar outra hipótese. Ao invés confinar os ratos em gaiolas minúsculas e solitárias, construiu para eles um parque 200 vezes maior com túneis, perfumes, cores. Mais importante, colocou outros ratos para interação. A experiência ficara conhecida como Rat Park – algo como Ratolândia em português. Para completar a “festa”, os roedores tinham acesso a duas fontes jorrando, incessantemente, água e morfina. Nestas novas condições, que reproduzem muito melhor a vida real, os resultados foram impressionantes. Percebeu-se, entre outros fatos, que os ratos livres consumiam 19 vezes menos psicoativos que seus iguais enjaulados.
Hoje, com avanço da ciência, há um maior entendimento sobre o funcionamento químico cerebral. O jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro O Fim da Guerra, explica como se dá essa relação: ”O centro da questão é um químico chamado dopamina, o principal neurotransmissor do nosso sistema de recompensa. Quando animais sociais ficam isolados e sem estímulos, seus cérebros secam de dopamina. Resultado: um apetite enorme e insaciável pela substância. Drogas – todas elas – têm o poder de aumentar os níveis de dopamina no cérebro, aliviando essa fissura. O nome disso é dependência. Ou seja, não é a droga que causa dependência – é a combinação da droga com uma predisposição. E o único jeito de curar dependência é curar essa predisposição: dando a esse sujeito uma vida melhor, como Bruce Alexander fez com os ratinhos do Rat Park.”
O paralelo com a situação brasileira é evidente. As políticas tradicionais tratam o usuário de drogas como pária a ser afastado do convívio social. Esta posição é radicalizada por autoridades e profissionais de saúde mais conservadores — para quem é preciso internar de forma compulsória os dependentes. Em contrapartida, a nova atitude adotada em São Paulo oferece a eles alojamento digno e ocupação e volta ao convívio social.
Por que são tão fortes e persistentes as teorias retrógradas, mesmo quando descoladas totalmente da realidade? O neurocientista Carl Hart, professor neurocientista da Columbia University, entrevistado recentemente pela New York Times respondeu a essa questão: “Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos. Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que teremos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”. Bruce Alexnder e Carl Hart são duas incômodas exceções. Enquanto ao resto, a industria farmacêutica e bélica agradecem o proibicionismo.







































Sobre Caue Seigne Ameni
Estudante de Ciências Sociais da PUC-SP, pesquisador do NEAMP, editor do Outras Palavras e um dos operadores da loja virtual Outros Livros
(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/01/21/dependencia-de-drogas-o-problema-e-a-gaiola)
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