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sábado, 17 de agosto de 2013

Esperança em tempos fraturados (Por Rogério Ferreira de Souza* e Carlos Eduardo Rebuá Oliveira**)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/esperanca-em-tempos-fraturados/)

Desencantamento com Fúria
Estreou há pouco no Brasil o instigante filme do diretor francês Olivier Assayas, “Depois de Maio”. A obra tratou de pôr em tela toda efervescência juvenil do pós-1968, capturando, inicialmente, toda a explosão cultural e os inúmeros caminhos de possibilidades libertárias e democráticas que a juventude francesa (e mundial) acreditara atingir. Era a promessa de uma nova década, de um novo milênio e de uma nova sociedade mundial. Em defesa desses ideais estes jovens não se furtaram à luta, ao enfrentamento sempre em situações desiguais com o aparato policial militar. Todavia, isso pouco importava. A causa da luta era maior! O diretor, no entanto, vai além do clichê revolucionário e apresenta um desvanecer lento e melancólico, onde sonho e realidade concreta entram em rota de colisão levando os jovens protagonistas ao desencanto anestesiador. São engolidos pelo mar da cotidianidade em que necessidades materiais se pautam prementes ao mundo capitalista. Emprego, carreira, status, situação financeira, enfim: cai-se o véu e o mundo os engole. Iniciara o que os teóricos sociais ulteriores classificariam como juventude alienada, como uma fração social desinteressada, desmotivada, despolitizada. Uma juventude sedenta por individualização narcísica e fugaz, uma juventude neoliberal.

O filme de Assayas, trazido aqui como introdução, permite-nos, ao contrário da proposta do desencanto, do olhar lacrimal da esperança perdida e do que ficou benjaminianamente retido na aura dos movimentos de 1968, refletir sobre as inúmeras manifestações públicas promovidas e lideradas por jovens em nossa sociedade. Destarte, propõem-se dois pontos de reflexão: primeiro, pensar no que eles têm a dizer quando se manifestam violentamente pode ser um caminho aberto para entender a nossa sociedade e o “legado” de encantamento propagado pelos megaeventos? E, além disso, como e por que o dito Estado Democrático de Direito lança mão de práticas do Estado de Exceção para lidar com as mobilizações públicas promovidas pelos jovens?

Nas franjas do processo
Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de valor
é o que permanece no dia seguinte, ou como
nossa vida cotidiana é modificada.
(Slavoj Zizek)

A advertência que o filósofo esloveno faz às manifestações populares no mundo contemporâneo são sérias e de profunda reflexão. No entanto, só poderão ser apreendidas em sua totalidade em outro momento, em um pós-processo. Cabe-nos,mesmo que epidermicamente captar o momento, perceber diferenças e continuidades.

Parafraseando a afirmativa que Karl Marx e Friedrich Engels fizeram na abertura do Manifesto do Partido Comunista, há mais de 150 anos atrás – “Um Espectro ronda a Europa” – pode-se dizer que um espectro hoje também está a rondar. Um espectro que já se materializou nas ruas, nas praças, nas avenidas das grandes metrópoles mundiais.

Um espectro que assim como o movimento comunista do século XIX, descrito por Marx e Engels, vem questionando e tensionando os poderes estabelecidos do status quo capitalista. A juventude contemporânea vem assumindo um papel de protagonista nas manifestações e levantes populares dos últimos anos e trazendo para a arena pública questões candentes às toda a população. Queremos democracia diziam os jovens egípcios na Praça Tahrir! Queremos nossos empregos e salários, bradavam os jovens gregos! Queremos um novo tipo de capitalismo, “Main Street, not Wall Street” argumentavam os norte-americanos no movimento Occupy Wall Street! Queremos vida digna e o fim da corrupção no governo, em coro gritavam os “Indignados” na Espanha! Queremos um transporte digno, cidadão e público, protesta o Movimento Passe Livre nas capitais do Brasil!

Do ponto de vista dos enunciados proferidos pelos jovens manifestantes mundo afora, diferentemente do que foi a década de 1980, como demonstrado por Manuel Castells, esses novos movimentos e manifestações públicas não se fragmentam em lutas isoladas por identidades, etnias, de gênero etc. Eles lutam e reivindicam causas comuns, ou seja, são contra o modelo econômico capitalista financeiro e contra a forma de democracia representativa. Seja nos EUA, seja nos países europeus, seja na América Latina, a insatisfação contra um sistema político e econômico é a tônica desses novos movimentos, dessas manifestações públicas e desses enfrentamentos com poder policial. A ocupação de praças, avenidas, prédios e espaços públicos carregados de significados torna-se expressão máxima da indignação contra o modelo hegemônico que centralizou grande parte das discussões/questões políticas, sociais e econômicas das últimas quatro décadas.


Foto do Movimento Passe Livre em São Paulo: ação política não apenas nas redes sociais
Mas quem são esses jovens? O que pensam e o que desejam? Seriam eles a antítese do movimento proletariado que nos anos de 1980, com as greves do ABC paulista, apresentava ao país as alternativas para um estado democrático e mais justo? Seriam eles o início de um novo partido político, ou de uma nova concepção política?

Talvez seja cedo e precipitado para apresentarmos uma radiografia exata da composição orgânica dessa juventude; porque talvez, esta mesma consciência do que eles sejam, do que pensam e do que idealizam não esteja clara na própria juventude. O que é claro e significativo, e isso não resta dúvida, é a motivação voluntária que esses jovens, organizadores e participantes dos movimentos e manifestações expressam na arena pública. São estudantes universitários em sua maioria, sensíveis aos problemas sociais que atravessam toda a sociedade, principalmente os mais frágeis e vulneráveis. Por isso seu caráter emergencial. Querem produzir ruídos. Querem ser ouvidos e levados a sério. Por isso estão no dissenso. Política para os debaixo não se faz no consenso. Faz-se na luta, no grito, no se fazer presente.

O que estamos acompanhando recentemente no Brasil, com o Movimento Passe Livre, olhando retrospectivamente, vem sendo um movimento com forte participação dos jovens desde as manifestações anti-globalização nos anos de 1990. O que se pode perceber é um continuum do processo. Pensando por esse ponto de vista, o que hoje parece tomar de assalto os governantes e a as camadas conservadoras da sociedade, como algo isolado de “baderna e vandalismo”, faz eco a um processo muito maior de insatisfação social a nível mundial. A juventude brasileira que se manifesta pelas grandes avenidas das cidades não estão “atrasadas” em relação às lutas e manifestações mundiais. Estão inseridas em um sincronismo dialógico com as grandes demandas sociais. O que se mostra estar na contramão, em um profundo diacronismo em relação às conquistas e avanços políticos no âmbito das democracias são os governos, seus mandatários e seus aparelhos repressores. Como será visto a seguir.

Estado de Exceção na contemporaneidade e a relação força-consenso


E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória

A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue
(Canción por la unidad latinoamericana,
Chico Buarque e Pablo Milanés)

Há exatos 35 anos, em junho de 1978, ocorria na Argentina a 11ª Copa do Mundo de Futebol da Fifa, durante um dos seis governos oriundos de golpes civil-militares ocorridos naquele país no século XX. Este, o mais brutal deles (1976-1983), responsável pela morte/desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas, soube utilizar o megaevento futebolístico como propaganda do regime e propulsor do ufanismo, coroado com o primeiro título em Copas do Mundo daquele país. Do outro lado, a juventude, militantes da esquerda, movimentos sociais, parentes de vítimas, jornalistas engajados, identificavam naquele evento uma oportunidade para, através das agências de notícia internacionais, romperem o silêncio imposto e denunciarem o terrorismo de Estado apoiado e financiado por Washington. O mundo tomaria conhecimento do período de “amnésia obrigatória”, como diz Eduardo Galeano (1), e a Copa argentina teria seu “efeito colateral”: a divulgação detalhada do Estado de Exceção no país.

Hoje, às vésperas da Copa das Confederações da Fifa, a ante-sala da Copa de 2014, inúmeras manifestações – capitaneadas pela juventude — ocorrem nas grandes capitais brasileiras, tendo como pauta as mais variadas reivindicações, notadamente a diminuição/supressão do preço das passagens de ônibus. A reação do chamado Estado de Direito brasileiro tem sido imediata e violenta (como em tantos outros episódios), reprimindo com vigor aqueles que no discurso da grande mídia são taxados como “marginais”, “arruaceiros” e “bárbaros”.

Com Gramsci, entendemos que tais manifestações são, na grande maioria, de caráter econômico-corporativo (redução do preço das tarifas do transporte urbano), com alguns “ensaios” de reivindicações mais “políticas”. Pelo menos até aqui. Os participantes de tais atos são em sua maioria jovens estudantes e trabalhadores, mas o caráter heterogêneo (e as redes sociais, instrumentos importantes na divulgação/organização de diversas manifestações em todo o mundo, contribuem para essa diversidade) e “aberto” do movimento não permite rotulações, enquadramentos teóricos. Ao mesmo tempo em que produz ações espontaneístas, reúne grupos com pautas políticas mais sólidas, mais organizados (sobretudo oriundos dos setores médios); da mesma forma que quem quebra uma vidraça pode ser um trabalhador  indignado, também pode ser um representante de algum grupo mais radicalizado. Todavia, como de praxe, os atos violentos, independente de como e por quem foram praticados, são fundamentais para a pasteurização ideológica realizada pela imprensa burguesa, que homogeneíza os manifestantes (todos são violentos!) ao mesmo tempo em que deslegitima sua luta, dando seu aval para o uso indiscriminado da força por parte do Estado. É fundamental frisar que não estamos condenando ações mais radicalizadas e seus significados: a quebra de máquinas do ludismo do XIX tem seus equivalentes no presente, quando, por exemplo, um ônibus é depredado, pois materializa/simboliza o capital das empresas de transporte coletivo.

É imprescindível dizer que a violência pré-megaeventos não começou nesta semana e não se resume ao enfrentamento nas/das ruas. Já há algum tempo, as cidades sede da Copa de 2014 têm sido o palco das chamadas “limpezas urbanas” (“modernizações” no discurso oficial) já há algum tempo, em que remoção de pessoas à força de suas casas, proibição do direito de greve durante os eventos, destruição de centros de cultura, privatização do espaço público, dentre outras ações, têm provocado enfrentamentos entre o poder estatal – sob a égide do grande capital (imobiliário, financeiro, industrial, etc.), “dono” dos megaeventos em associação com o poder político federal, estadual e municipal – e a sociedade civil.

A partir de Agamben entendemos que o Estado de Exceção não se restringe aos períodos de ditaduras civil-militares, mas representa um modus operandi, um recurso “sempre à mão” dos governos das sociedades atuais, ditos democráticos:

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o
estado de exceção tende sempre mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e
excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente – e, de
fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se,
nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo (AGAMBEN, 2004, p. 13).

A concepção do filósofo italiano coaduna com a perspectiva de um clássico conterrâneo seu: Antonio Gramsci. Para Gramsci, o Estado é o somatório dialético da sociedade política (aparato burocrático-repressivo) com a sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia), ou seja, hegemonia revestida de coerção, força e consenso, orquestrados magistralmente pelo establishment burguês. Segundo ele, a força nunca pode “pesar” demais sobre o consenso e deve se apoiar na aprovação da maioria, expressa por intermédio dos canais de opinião pública, os quais se destacam os meios de comunicação e a escola/universidade, por exemplo. Da mesma forma, o consenso, a adesão a uma agenda, a uma ordem social, somente são garantidos se a iminência do uso da força estiver sempre presente. Em suma, para o intelectual marxista a supremacia de um grupo social se manifesta de duas formas: pela força e pelo consenso. Por mais que o domínio de uma classe seja consensual, tal classe não pode nunca prescindir da força, e de maneira dialética, o uso exclusivo da força não garante o poder de uma classe e suas frações sobre as demais.

Com o desquite cada vez maior entre capitalismo e democracia – como afirma Zizek (2) - e com o acirramento da luta de classes em várias regiões do mundo (destaque para a Primavera Árabe em 2010, o Occupy Wall Street em 2011 e os atuais movimentos em Espanha, Portugal, Grécia, etc.), o Estado de Exceção, o uso da força como garantia da hegemonia tem se tonado “regra” em diversos países, como pudemos ver há semanas nas grandes capitais brasileiras. No campo do consenso, é quase imediata a ação do partido-mídia – na ascepção gramsciana – e seus porta-vozes da sociedade civil, que criminalizam qualquer forma de intervenção política mais incisiva e negam cinicamente as demandas sociais, políticas, econômicas destes indivíduos/grupos que se manifestam, quando não negam sua própria existência: Quem são eles? O que querem? De onde vêm?, esbraveja a grande mídia.

Como exemplos do discurso dos grupos dominantes, podemos citar o chefe da casa civil da Prefeitura Rio de Janeiro (gestão Eduardo Paes), Régis Fichtner (3), e o cientista político Fernando Luis Schüller (4), diretor do IBMEC/RJ. Ambos defenderam  na mídia televisiva, nos últimos dias, que as manifestações se referem a “questões ideológicas/políticas”, ou seja, não representam demandas materiais, reais dos trabalhadores/estudantes. Schüller chega a afirmar que tais manifestações reúnem “pessoas que querem aparecer” e “pessoas/movimentos marginais do sistema político tradicional”.


Tropa de choque da polícia de São Paulo “fecham” a Rua Augusta impedindo passagem de manifestantes: choque de ordem é a ordem do choque
Obviamente, não quisemos igualar a ditadura argentina dos anos 1970/80 com o Brasil de hoje, tampouco afirmar que tais manifestações foram previamente planejadas para ocorrerem na conjuntura dos megaeventos. Ainda que não se possa afirmar categoricamente que há uma vinculação, também não se pode negar o uso político disso por parte dos manifestantes/movimentos. Nossa intenção foi provocar reflexões acerca da necessidade de um Estado de Exceção mesmo em regimes caracterizados como democráticos, bem como instigar no leitor o esforço de construção de uma análise de conjuntura, que seja capaz de enxergar as dinâmicas/necessidades atuais do capital, onde os megaeventos – direta ou indiretamente – afetam a vida das populações, seja com os pesados investimentos direcionados para as obras (em detrimento de inversões na saúde, educação, transportes, habitação, etc.), seja com o não-beneficiamento das cidades-sede com obras de mobilidade urbana, infraestrutura, etc., agravando ainda mais o atual estado de coisas, que não está “bem” nem nas lentes da tevê e seu espetáculo.

Tais questões não são apenas circunstanciais ao calor da hora, ao “the Day after” da forte repressão policial às manifestações populares, ocorridas em junho de 2013, em várias cidades do país. Essas questões são imprescindíveis ao debate político, acadêmico e social que esta juventude nos traz ao imprimir no espaço público a urgência da mudança em nossos “tempos fraturados (5) ”.



*Rogério Ferreira de Souza – Economista, Doutor em Ciências Sociais pela UERJ e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro –  IUPERJ/RJ

**Carlos Eduardo Rebuá Oliveira – Historiador, Doutorando em Educação pela UFF e professor da graduação bilíngue em Pedagogia do Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES/RJ

(1) Extraído de: http://www.dhnet.org.br/desejos/sentidos/delirio/ddelirio.htm Acesso em 14 de junho de 2013.

(2) Extraído de: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18669 Acesso em 14 de junho de 2013.

(3) Extraído de: http://www.espbr.com/noticias/copa-vai-ocorrer-relacao-manifestacoes-diz-ministro-esporte

(4) Tal afirmação ocorreu no programa do canal Globo News, Entre Aspas, no dia 13 de junho de 2013, no debate com o professor da PUC-SP e cientista político Lúcio Flávio de Almeida. O debate/entrevista, na íntegra, está disponível em: http://globotv.globo.com/globo-news/entre-aspas/v/especialistas-discutem-osmotivos-e-efeitos-das-manifestacoes-em-sao-paulo-e-rio/2633797/ Acesso em 14 de junho de 2013.

(5) Obra póstuma do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, lançada este ano (2013).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. In: A era da Informática: Economia, Sociedade e Cultura. Volume 2. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX. Cia das Letras: São Paulo, 2013.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.
QUINO. Toda Mafalda. Rio de Janeiro: Martins Fontes Editora, 2002.
ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Boitempo: São Paulo, 2012.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Visão Ampla, Horizonte Amplo

Visão Ampla, Horizonte Amplo


Introdução e Método
A partir de uma pesquisa no Scielo, no intuito de identificar cinco artigos que contenham a perspectiva antropológica, desenvolvi este ensaio tendo por objetivo estabelecer as relações existentes entre saúde, medicamentos e cultura - para isso, ainda procurei abordar conceitos antropológicos e estabeler reflexões, fruto de meu aprendizado na disciplina. São estes os artigos que identifiquei:
1) CARVALHO, Fernanda; JUNIOR, Rodolpho Telarolli; MACHADO, José Cândido Monteiro da Silva. Uma investigação antropológica na terceira idade: concepções sobre a hipertensão arterial. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 14,  n. 3, Julho 1998.
2) GONCALVES, Helen et al . Adesão à terapêutica da tuberculose em Pelotas, Rio Grande do Sul: na perspectiva do paciente. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 15,  n. 4, Outubro  1999.
3) FIRMO, Josélia Oliveira Araújo; LIMA-COSTA, Maria Fernanda; UCHÔA, Elizabeth. Projeto Bambuí: maneiras de pensar e agir de idosos hipertensos. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 20,  n. 4, Agosto  2004.
4) FILHO, Antônio I. de Loyola; LIMA-COSTA, Maria Fernanda; UCHÔA, Elizabeth. Bambuí Project: a qualitative approach to self-medication. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 20,  n. 6, Dezembro  2004.
5) NASCIMENTO, Marilene Cabral do. Medicamentos, comunicação e cultura. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  2010.
Abordarei com profundidade a perspectiva antropológica acerca dos artigos quatro e cinco, contudo o que pude identificar em todos foi não o método antropológico (presente somente em um deles) – o qual consiste no ouvir, olhar e escrever da observação participante e etnografia (OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. 1998. “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever", em O trabalho do antropólogo. São Paulo/Brasília: Unesp/Paralelo 15.) -, mas exatamente a percepção de aspectos sociais e culturais no âmbito da saúde, com uma análise predominantemente qualitativa. Isso em si já evidencia um caráter da Antropologia, em ampliar os conceitos além da biologia e do senso comum, para uma visão abrangente dos processos saúde-doença, e sem julgamento de valor. Por exemplo, no artigo de número “1”, enumeram-se os objetivos em seu abstract: “a) identificar as concepções da população idosa do município de Araraquara, SP, quanto à etiologia da hipertensão arterial e a relevância dos diferentes sinais e sintomas que acompanham a doença”. “Identificar as concepções” é realizar uma pesquisa não só qualitativa, mas também cultural e social. No resumo do artigo “2”, a partir da pesquisa etnográfica, a “abordagem possibilitou compreender as concepções de doença, as dinâmicas sociais entre os diversos protagonistas envolvidos no processo da doença e seu tratamento.”, ou seja, um estudo com total método, conteúdo e argumentação antropológica. No “3”, em que “As maneiras de pensar e de agir de idosos frente à hipertensão arterial foram investigadas, utilizando-se uma abordagem antropológica baseada no modelo de Signos, Significados e Ações”, também é notada a perspectiva da Antropologia. O uso para o desenvolvimento deste trabalho dos artigos “4” e “5” foram propositais. Enquanto este ultimo, o qual relaciona saúde, cultura e comunicação, dá a base - no sentido de buscar explicações para pensamentos e ações na saúde a partir da mídia -, o anterior aplica a pesquisa qualitativa numa situação específica, a qual é a automedicação, objeto de estudo do Projeto Bambuí, que melhor é compreendida analisando ambos os artigos.

Resultado
No século XX, com a descoberta do antibiótico, estabelece-se um marco inicial do desenvolvimento da farmacologia moderna. Do tratamento de infecções, no início em grande parte provenientes dos efeitos das guerras, a indústria farmacêutica forma a base da construção da hegemonia farmacológica. A partir daí, popularizam-se nas populações a iatrogenia médica e dos fármacos, a medicalização social, e formam-se os questionamentos desse modelo: multiplicação de similares; propaganda intensiva e omissa ou enganosa; apresentação científica inadequada de efeitos indesejados e contraindicações; aumentos abusivos nos preços; etc. (NASCIMENTO, 2010)
Conclui, Nascimento, que a mídia exerce papel fundamental no processo de massificar pensamentos, talvez se referindo a dita opinião comum, tendo como base o recurso científico como “fonte e instância legitimadora de informações”, e utilizando-se da simbolização como a “capacidade de intervir na subjetividade coletiva, dando lugar a procedimentos e modos de vida quase sempre sustentados no consumo de mercadorias”. Nesse sentido, seu artigo remete o aspecto cultural na saúde e nos medicamentos, pois liga seu consumo a elementos culturais, entre eles destacados por ela o misticismo, os símbolos, as metáforas e as alegorias utilizadas no meio de propaganda para “vender” o medicamento. Essa é a base de informação necessária para compreender melhor a automedicação, analisada por Loyola Filho et al a partir do Projeto Bambuí.
Nesse artigo, os autores identificam a partir de uma análise qualitativa, mesmo que se utilizando do método da entrevista – apontado pela médica Furlanetto (FURLANETTO, Letícia Maria. 1999. “Método da observação participante: relato sobre um esquadrão de vôo”. In: Cadernos IPUB 15. Rio: Inst. Psiquiatria.) como não tão eficiente quanto a observação participante -, elementos culturais e sociais os quais estão envolvidos na automedicação: recomendação do atendente da farmácia ou do farmacêutico; autorização pelos médicos do controle pelo paciente do uso medicamentoso (relacionando o uso com a evolução da doença e/ou dos sintomas); conselho de familiares, amigos ou vizinhos; experiência pessoal com o medicamento e com a doença; análise do paciente a respeito da eficácia do medicamento; e o custo. Capta a ideia geral de que a automedicação é voltada para problemas de saúde ou sintomas comuns, ou menos perigosos; representa uma substituição dos serviços de saúde ineficazes (principalmente considerando o modelo brasileiro) e de atendimento médico precário. Por fim, de maneira interessante, encontra o pensamento comum de que o desaparecimento dos sintomas é interpretado como sinal de normalidade ou cura, e reconhece, mesmo que o conhecimento e competência médica seja respeitada, que a automedicação envolve a ideia de que o médico não é o único quem sabe qual e como prescrever medicamentos.

Discussão e Conclusão
Num mundo globalizado e em que parte da população tem amplo acesso à informação e a outra vive a ausência da medicina “institucional”, a automedicação me parece ser inevitável, principalmente quando o doente encontra em meios e pessoas alternativas certeza na prescrição. No entanto, a visão ampla, possível de se obter a partir do conhecimento antropológico – de considerar cultura e sociedade como interferentes no processo saúde-doença -, pode fazer transformar essas relações médico-paciente. Primeiro dando ao paciente um atendimento individualizado, considerando seu contexto sociocultural; e segundo pela identificação pelos médicos das reais necessidades da população. Quando o médico incorporar em sua prática essa visão (digamos, antropológica), talvez consiga recuperar seu espaço na prescrição de medicamentos – apontado como fato pelo estudo Bambuí -, ou mesmo reconhecer que existem outros agentes nesse processo capazes realmente de prover essa indicação. E é a isso que remete Langdon em suas aulas, quando fala do doente como não-passivo (ou paciente) nessas relações, bem como de sua família, amigos e, no caso do artigo cinco, profissionais da drogaria.
A perspectiva antropológica também me traz a visão de que não existe correto ou errado na automedicação, mas tão-somente uma constatação: ela existe. Ao profissional da saúde cabe reagir acerca disso: no caso de condenar, apresentar meios de coibi-la; no caso de aceitar, prover de métodos para que ela não seja prejudicial ao paciente.
Por fim, gostaria de destacar dois aspectos apresentados por Loyola Filho et al. Primeiro, a constatação do uso de medicamentos psicoativos sem prescrição médica – em parte em consonância com os dados obtidos pela Sônia Maluf (MALUF SONIA 2010. Gênero, Saúde e aflição: Políticas Públicas, ativismo e experiências sócias. IN:  MALUF, S.; TORNQUIST, CA.S. Gênero Saúde e Aflição. Abordagens antroplógicas. Florianópolis, Letras Contemporâneas, 2010, PP. 21-67.) -, denotando também a importância cultural que o doente dá ao remédio, como se ele fosse um instrumento de controle do próprio corpo, ou como maneira de transpassar a realidade em que se encontra, o que também é objeto de conclusão no artigo sobre comunicação e saúde. Segundo, pela “consciência” tanto dos adeptos da automedicação quanto dos não-adeptos de que é uma prática “errada”. Mesmo sendo “errada”, por que se automedicam? Além dos aspectos culturais, há um contexto social de busca pela agilidade, praticidade; e a maioria dos entrevistados denotou demora e ineficiência no atendimento médico.
O médico, quando ignora todos esses aspectos e volta-se para tão-somente o lado biológico do indivíduo, perde a oportunidade de compreender uma visão ampla do doente e prover a ele o atendimento e tratamento de que ele realmente necessita. Eis a importância da perspectiva antropológica para a medicina: ampliar o horizonte.
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