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domingo, 25 de maio de 2014

E se reduzirmos a jornada de trabalho para 6 horas? (Carmém Lopez)

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Cidade sueca começa a testar ideia óbvia: e se o desenvolvimento tecnológico, esta criação humana, beneficiar a todos — e não apenas ao capital?

Por Carmém Lopez, no El Pais

O debate não é novo, mas foram os suecos que se decidiram a provar sua eficácia: Gotemburgo (a segunda cidade em importância da Suécia) fará um experimento para constatar o sucesso ou o fracasso da redução da jornada trabalhista para 6 horas diárias, segundo declarou Mats Pilhem, conselheiro da prefeitura e pertencente ao Partido da Esquerda, ao jornal sueco The Local.

A proposta do ensaio é simples: a metade dos funcionários da prefeitura manterão sua jornada habitual de quarenta horas semanais enquanto a outra metade desenvolverão uma jornada diária de 6 horas. Todos os trabalhadores ganharão o mesmo salário (é provável que os do segundo grupo estejam esfregando as mãos neste momento pensando no tamanho de sua sorte). Dentro de um ano serão avaliados os resultados do estudo para decidir que tipo de horário é mais benéfico para a sociedade de modo geral. “Esperamos que os trabalhadores de nosso modelo tenham menos dias de baixa por doença e se sintam melhor física e mentalmente após ter jornadas trabalhistas mais curtas”, explicou Pilhem.

A prova da redução da carga horária da jornada trabalhista obteve mais vezes resultados irregulares. Pilhem em suas declarações faz alusão a uma fábrica automobilística da própria cidade que obteve conclusões positivas. Seus opositores, no entanto, lembram o caso da cidade de Kiruna, que depois de dezesseis anos com a jornada reduzida decidiu voltar à jornada original por motivos econômicos e de saúde.

Seja como for, o que evidencia a decisão das autoridades suecas é a preocupação europeia com a duração das jornadas trabalhistas, que causam problemas que vão desde a conciliação trabalhista e familiar até à produtividade e eficiência das empresas. Há apenas algumas semanas, a França anunciou que engenheiros e consultores eram obrigados a desligar seus celulares e dispositivos eletrônicos corporativos durante 11 horas por dia para tentar acabar assim com as jornadas trabalhistas intermináveis. Isto é, desligar o computador e o celular do trabalho e esquecer deles até a manhã seguinte, uma ação que para muitos e muitas é inimaginável nos dias de hoje.

Na Espanha, o problema é quase maior devido aos horários que, por si só, já são estendidos, e à cultura do “presentismo” trabalhista que impera na sociedade há alguns anos e é agravada por fatores como a crise. No entanto, alguns setores começaram a criar iniciativas para que os horários de trabalho sejam moldados de modo que haja uma melhoria na vida social e familiar das pessoas. É o caso, por exemplo, da Associação para a Racionalização dos Horários Espanhóis (ARHOE) cujo manifesto defende por “uma profunda modificação dos horários na Espanha, que nos ajude a ser mais felizes, a ter mais qualidade de vida e a ser mais produtivos e competitivos.”

Um dos objetivos do manifesto é favorecer a igualdade entre o homem e a mulher, já que as jornadas trabalhistas que são maratonas afetam especialmente às mulheres. De fato, o partido político sueco Iniciativa Feminista, é um dos principais defensores do experimento da redução das horas de trabalho já que fará a vida trabalhista bem mais acessível às mulheres com filhos. Até o momento, as medidas que estavam sendo tomadas pareciam encaminhadas a adaptar a vida pessoal e familiar com o trabalho (com a extensão dos horários dos colégios, por exemplo) mas parece que as coisas começam a mudar, ao menos no resto de Europa. Do resultado do experimento de Gotemburgo pode ser que possam extrair os roteiros para avançar na direção adequada para a verdadeira conciliação.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17296)

As dez cidades menos desiguais do Brasil

SANTA MARIA DO HERVAL (RS)


Pequenas e em sua maioria gaúchas, elas têm Índice Gini semelhante ao dos países nórdicos e educação publica de qualidade para todos 
No EcoD
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A constatação é do índice de Gini, produzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o mais famoso indicador para medir distribuição de renda, no qual a Noruega.
No entanto, o Brasil tem registrado avanços nos últimos anos para diminuir sua desigualdade, mas o abismo entre os ricos e pobres ainda é gritante. Algumas cidades do país, todavia, contam com distribuição de renda mais equitativa do que as demais.
Por exemplo: entre os 4,5 mil moradores de São José do Hortêncio, no Rio Grande do Sul, não será possível encontrar nenhum bilionário ou multimilionário como aqueles que existem, em certa quantidade, em São Paulo. Mas tampouco será fácil localizar uma pessoa que não saiba ler e escrever: a taxa de analfabetismo, pouco maior que 1%, está entre as menores do Brasil.
E praticamente todos os cidadãos, com mais ou menos renda, estudam em escola pública até o ensino médio – trata-se da única opção disponível. Este cenário de pouca desigualdade garantiu à pacata cidade, junto com a também diminuta Botuverá, em Santa Catarina, o título de mais igualitária do país.
O ranking que pode ser visto a seguir é dominado por municípios do Sul e alguns poucos exemplares do Sudeste. “As cidades do Sul são menos desiguais em parte porque a população costuma ser mais educada, a desigualdade educacional costuma ser menor. São populações mais homogêneas”, afirma Rafael Osório, técnico do Ipea especialista em estudos de distribuição de renda.
A desigualdade de renda é tida como um elemento que atrapalha a coesão social, impedindo que indivíduos – sejam mais ricos ou mais pobres – sintam-se parte da mesma sociedade.
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  • 1) SÃO JOSÉ DO HORTÊNCIO (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,28
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,36
População – 4.094
Em São José do Hortêncio, os 10% mais ricos ganham 4 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 2) BOTUVERÁ (SC)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,28
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,49
População – 4.468 habitantes
Em Botuverá, os 10% mais ricos ganham 4,1 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 3) ALTO FELIZ (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,29
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,41
População – 2.917 habitantes
Em Alto Feliz, os 10% mais ricos ganham 4,2 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 4) SÃO VENDELINO (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,29
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,50
População – 1.944 habitantes
Em São Vendelino, os 10% mais ricos ganham 4,3 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 5) VALE REAL (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,29
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,36
População – 5.118 habitantes
Em Vale Real, os 10% mais ricos ganham 4,1 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 6) SANTA MARIA DO HERVAL (RS) 
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,30
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,39
População – 6.053 habitantes
Em Santa Maria do Herval, os 10% mais ricos ganham 4,4 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 7) CAMPESTRE DA SERRA (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,31
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,39
População – 3.247 habitantes
Em Campestre da Serra, os 10% mais ricos ganham 4,5 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 8) TUPANDI (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,31
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,41
População – 3.924 habitantes
Em Tupandi, os 10% mais ricos ganham 4,6 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 9) CÓRREGO FUNDO (MG)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,32
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,50
População – 5.790 habitantes
Em Córrego Fundo, os 10% mais ricos ganham 4,9 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
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  • 10) MORRO REUTER (RS)
Índice de Gini (Atlas 2013) – 0,32
Índice de Gini (Atlas 1991) – 0,38
População – 5.676 habitantes
Em Morro Reuter, os 10% mais ricos ganham 4,9 vezes mais que os 40% mais pobres. No Brasil, são 22,7 vezes mais.
Obs: O índice varia de 0 a 1. Só alcançaria zero se todo mundo em um local pesquisado tivesse exatamente a mesma renda. E exatamente um, apenas se uma pessoa concentrasse todo o dinheiro.
Na prática, portanto, o índice nunca encosta nesses extremos, só que quanto mais perto de zero, melhor. O da Noruega, por exemplo, é de 0,25. Já o do Brasil é de 0,50.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17250)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Água: Brasil vive crises que marcarão o século (Cândido Grzybowski)

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca
Perspectiva de racionamento em S.Paulo e disputas pelo Rio Paraíba sugerem: políticas atuais levarão a desastre. É preciso tratar recurso como Bem Comum

Por Cândido Grzybowski*, via Carta Maior

A água bem merece um dia seu no nosso calendário, o 22 de março. Este reconhecimento só se deu em 1993, após a Eco-92. No fundo, deveríamos celebrar a água todos os dias, o dia inteiro. Mas só lembramos dela na sua falta ou no seu excesso. Quem vive em territórios áridos ou semiáridos, dada a sua relativa escassez, organiza a vida em torno à água. No Brasil, isto vale para a grande Região Nordeste, que possui 30% da população brasileira e só 3% da água. São seculares as secas no Nordeste, tanto quanto a nossa incapacidade de gerir a questão. Afinal, no nosso semiárido até chove mais do que na Argélia, por exemplo. Por que, com mais água, nosso povo sofre tanto?

Açudes, represas e poços foram feitos ao longo do tempo para estocar água, mas muito investimento acabou sendo privatizado pelo nosso secular patrimonialismo, que beneficia sistematicamente os grandes proprietários de terras. Mas, há que se reconhecer, é no Nordeste rural que, nos anos recentes, se desenvolve a experiência participativa mais promissora de gestão da água: a Articulação do Semiárido Nordestino, com a experiência de construção comunitária de cisternas familiares coletoras de águas das chuvas, já mais de 500 mil.

Nada, porém, como um verão tórrido e seco, como este de 2014, para a gente pensar na bendita água. Isto é particularmente relevante para as duas maiores regiões metropolitanas do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro. Para milhões de pessoas a água faltou nas torneiras e chuveiros. As notícias e as imagens alarmantes de represas vazias e o inevitável racionamento, especialmente em São Paulo, apavoram. A enorme estiagem significa também reservatórios hidrelétricos no limite e possibilidade de falta de eletricidade logo aí. Enfim, é a água mostrando que está nas nossas vidas mais do que a gente pensa.

Mas também esquecemos. Estamos vendo imagens de enormes inundações na Região Amazônica. Como seria bom se tanta água fosse melhor distribuída. No entanto, esquecemos que em dezembro, alguns meses atrás, as inundações foram aqui na Região Sudeste. A Baixada, na área metropolitana do Rio, foi devastada por duas enxurradas antes do Natal. O pior aconteceu no Espírito Santo, que quase virou mar. Bem: agora, a seca. Será que isto tudo são catástrofes? Ou não sabemos lidar com a água?

A água e a vida

Não existe vida sem água. E a água mal gerida por nós pode significar morte. É tão simples e trágico assim!  A água ocupa um dos lugares centrais no ciclo da vida e do conjunto de sistemas ambientais que regulam a vida, o clima e a própria integridade do planeta Terra.

A água é tão presente no nosso cotidiano que a gente só lembra dela quando falta. É como o ar que respiramos, nunca pode faltar. Mas como somos negligentes com a água! Esperamos que ela flua, venha até nós e passe, pronto. Esquecemos que sem ela não há vida, nenhuma vida. No nosso modo de vida, ainda mais em grandes metrópoles, vivemos um cotidiano sem pensar na água, como se não fosse algo relacionado a uma condição vital, que deveria estar no centro da própria organização social urbana.

Como recurso natural, a água é um estoque dado, uma quantidade na natureza de tamanho determinado: 97,5% da água forma os mares, mas só uma pequeníssima parcela da água doce restante é disponível para consumo, pois muita água está congelada ou armazenada no alto de cordilheiras e na Antártida. A água doce seria suficiente não fosse a forma predatória como a utilizamos. Ela se mantém e renova num ciclo ambiental definido: dos estoques em aquíferos, flui para nascentes, córregos, riachos, rios e deságua no mar, evapora, forma nuvens, chove, irriga a terra e alimenta os aquíferos, e o ciclo recomeça. Isto, de um modo simplificado, mostra o funcionamento de um dos sistemas mais essenciais e, ao mesmo tempo, mais ameaçados hoje em dia, que está no centro das mudanças climáticas.  A água é um sistema ambiental complexo, que afeta outros sistemas fundamentais e é por eles afetado: atmosfera e clima, biodiversidade e florestas, oceanos e evaporação. A água fresca, tão essencial, como estoque dado, precisa se renovar no seu ciclo natural.

São afetados e interagem com a água, condicionando, portanto, a vida, toda a vida, mudanças provocadas pela ação humana sobre o meio ambiente: as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, as emissões de aerosol e o buraco de ozônio, o uso da terra, a perda da biodiversidade, a composição química do meio ambiente (poluição). Hoje a humanidade é uma força que afeta o funcionamento do conjunto dos sistemas ambientais vitais, ultrapassando os umbrais do tolerável para que eles funcionem e não provoquem mudanças imprevisíveis e irreversíveis.

Tomando o exemplo da água, precisamos pensar como formamos o nosso habitat humano, os territórios em que nos organizamos como sociedade. Talvez o exemplo mais emblemático dessa distorção seja o da água mesmo. As águas, pelo seu próprio ciclo, são complexos sistemas de drenagem com suas bacias hidrográficas. Elas estão no centro natural de territórios de todo planeta. No entanto, ao longo da história, tendemos a transformar as bacias em fronteiras humanas, ao invés de sistemas naturais integradores. Quantos rios no mundo não passam de fronteiras entre países! E pior, mesmo no interior de Estados, muitos rios e baciais são fronteiras naturais entre divisões territoriais, chegando até a pequenas unidades administrativas, como os municípios entre nós.

Enfim, neste exemplo sobre a água é possível examinar a tragédia que a ação humana pode provocar. Estamos diante de uma ruptura insustentável entre humanidade e natureza — na religião, na filosofia, na economia, na política, na organização social e no conjunto de nossas práticas pela sobrevivência. Negamos a nossa própria condição de natureza e nos consideramos acima dela, feitos para dominá-la, para violar os seus segredos, segundo Bacon. Agredimos a natureza sem ética, como que negando a ela o direito de ser o que é. O desastre está na nossa porta. A ruptura entre natureza e seres humanos é a causa da insustentabilidade do modo de vida que temos. A água é o exemplo mais palpável.

A crise mundial da água

Já estamos vivendo a crise mundial da água, mas fazemos de conta que não. A humanidade é a principal causa de mudança no ciclo de água fresca, que torna possível a vida no planeta Terra. Hoje, estima-se que 80% dos rios no mundo estão em perigo e 25% deles chegam secos antes de desaguar no mar, o que se soma ao fato de já termos passado do limite natural na acidificação dos oceanos (RISILIANCE ALLIANCE,  2012). Nunca é demais lembrar aqui a tragédia do rio Jordão, no centro da guerra territorial entre Palestina e Israel, que chega seco ao mar Mediterrâneo devido ao uso intenso de suas águas para irrigação pelos israelitas. A antiga União Soviética, devido ao intenso uso agrícola, secou um imenso lago na Europa Central.

Segundo Maude Barlow, do Council of Canadians, a cada dia jogamos de esgoto e de resíduos industriais e agrícolas no sistema mundial de águas o equivalente ao peso mundial de toda a população humana (2 milhões de toneladas). A indústria de mineração no mundo deixa nos territórios, como veneno, o equivalente a cerca de 800 trilhões de litros, a cada ano. Estima-se que  um terço de todo o fluxo de água é usado hoje para a produção de agroenergia, água suficiente para satisfazer a necessidade de toda a população mundial. Por isto, a água é uma das maiores ameaças ecológicas para a humanidade. A água contaminada mata mais crianças por dia do que HIV-AIDS, malária e as guerras juntas (BARLOW, 2010).

Não falta água, nós é que criamos a escassez de água pelo modo com que a usamos. Devido à escassez criada, a água se transformou num negócio global. Por que? Para que? Nada mais emblemático do absurdo do negócio da água do que o trágico acidente no grande túnel de passagem entre Itália e França no Mont Blanc, anos atrás. O acidente foi provocado por dois caminhões… carregados de água, um da Itália para a França e outro da França para a Itália!

Estamos diante de um iminente risco da água virar mais uma commodity, de ser transformada em um produto comercializável, que se adquire pelo preço determinado de quem a explora. Aliás, isto é precisamente o que está sendo proposto sob o belo nome de economia verde e sustentável, que estende o domínio do capitalismo e dos mercados a toda a natureza e seus chamados “serviços”. Está em jogo o próprio direito de viver. Cobrar taxa para que a água jorre na torneira de casa, um direito fundamental, já é discutível. Mas ter que pagar pelo monopólio privado da água é estar submetido a uma violação absurda de um direito básico.

A gradativa escassez gerada e a mercantilização da água afetam tudo na vida humana e na natureza: a diversidade de culturas humanas, a biodiversidade natural, o alimento, a segurança ecológica e o funcionamento dos sistemas ambientais, que vão do sequestro de carbono da atmosfera, da resiliência dos sistemas aquáticos e terrestres, à regulação do clima. A água, num certo sentido, resume nela a crise do desenvolvimento que temos, que produz luxo e lixo ao mesmo tempo, tudo em nome da acumulação de riquezas.


As lutas pela água

Neste final de verão e início de outono, entre tantas questões que alimentam as inquietações do nosso cotidiano, surgiu a questão do uso das águas do rio Paraíba do Sul. Com nascentes em São Paulo, mas correndo em direção ao Nordeste, sendo o principal rio e atravessando todo o Estado do Rio de Janeiro, suas águas viraram uma controvérsia federativa. Com falta de água, São Paulo quer interligar a bacia do Paraíba do Sul ao sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, hoje sob ameaça de “estresse” hídrico. Sem entrar nos meandros técnicos, o fato soa como uma ameaça,  uma guerra federativa. Por que? Não desenvolvemos uma cultura de gerir nossas águas como um bem comum.

A água já está no centro de importantes conflitos sociais pelo mundo. A lista de exemplos é longa. Basta lembrar alguns. Além da disputa do rio Jordão entre Palestina e Israel, importa lembrar aqui a questão do Tibet, ocupado militarmente pela China por causa exatamente da água, pois os dois grandes rios chineses são abastecidos naturalmente pelo degelo das montanhas do Himalaia. Em 2000, devido à tentativa de privatização do abastecimento de água em Cochabamba, na Bolívia, explodiu a guerra popular pela água, obrigando o governo a rever a sua decisão. Na Índia, alastrou-se um grande movimento contra a Coca-Cola, devido ao crescente controle dessa multinacional de refrigerantes de fontes naturais de água fresca, logo num país onde a água não é exatamente abundante. Cabe lembrar que a Coca-Cola usava 3 litros de água fresca para produzir 1 litro de seu refrigerante. Foi em Mumbai, na Índia, em 2004, durante o Fórum Social Mundial, que a comercialização da Coca-Cola foi proibida no espaço de realização do evento. Talvez isto tenha ajudado a empresa a adotar práticas um pouquinho mais responsáveis, pois em 2009, conforme publicação da própria empresa, se consumia 2,04 litros de água para cada litro de produto (COCA-COLA, sd).

Mas a água não é só disputada pelo seu consumo imediato. Ela representa complexos sistemas, que muitas vezes são agredidos em nome do desenvolvimento. No momento, é possível ver isto na questão que envolve a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, e de Belo Monte, no Xingu.  O uso da água para gerar energia elétrica é uma forma de extrativismo agressivo social e ambientalmente, apesar de ser contabilizada como energia limpa nas estatísticas do país. Para construir hidrelétricas é preciso agredir o rio e o que ele significa para a população que vê no rio agredido uma parte fundamental de seu território e seu modo de vida. Na bacia do Xingu vivem importantes povos indígenas, com seu direito ao território reconhecido em nossa constituição democrática.

Interessante lembrar aqui o caso de Itaipu, hidrelétrica construída pela ditadura nos anos 70 do século passado. O Rio Paraná, em Itaipu, é fronteira entre Paraguai e Brasil. Para usá-lo na produção de energia foi importante um acordo que divide ao meio, entre os dois países, a energia produzida. Mas como ficou a população a ser “inundada”? Eram milhares de pequenos produtores familiares só do lado brasileiro. O processo de exclusão da área foi feito à força, com indenizações que não garantiam a reprodução das mesmas condições de vida em outro lugar. Surgiu, então, o movimento dos atingidos por barragens e, dado que havia sem-terra, o MST tem uma da origens por lá. Acontece que ninguém pensou nos índios Guaranis, ocupantes ancestrais de todo o território. Só depois, muito depois, é que a questão mereceu atenção e foram cedidos territórios específicos para os Guaranis. Mas o interessante é como a questão da água do rio mudou no decurso do tempo. Usina hidrelétrica depende de água como qualquer ser vivo. O Oeste do Paraná é uma das áreas de maior intensidade de exploração agrícola e pecuária intensiva. O assoreamento do lago de Itaipu avançava espantosamente.

Foi por iniciativa da própria Itaipu que, desde 2003, se desenvolve o exemplar programa “Cultivando Água Boa”, de sustentabilidade das águas e do modo de vida dos municípios brasileiros do entorno. Á água, ontem agredida e usada como mero recurso, hoje é cuidada, das microbacias dos rios, que alimentam o lago, ao alimento orgânico produzido para as escolas da região.

Enfim, existem conflitos sociais porque a água é de algum modo ameaçada como bem comum, que está aí no centro de toda a vida. O aprisionamento da água para o seu uso privado, para a sua mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de disputa. Na verdade, hoje em dia, todos os conflitos de água se referem a territórios específicos, territórios entendidos como as condições dadas, as naturais e as criadas pela ação humana passada, e os modos de vida atuais que os organizam. Aí a água pode ser tratada como um mero recurso natural, na visão de empresas e, muitas vezes, governos, ou como um bem essencial à própria vida de quem aí vive. A disputa, simplificadamente, é entre tais visões diametralmente opostas.

A Água como bem comum

Aqui é essencial destacar a água como bem comum fundamental da vida, de toda vida. Os bens comuns, ou simplesmente comuns, são parte intrínseca da integridade das condições de vida de todos e todas. São bens comuns: o próprio planeta Terra,  a atmosfera (o ar e o clima), o espaço sideral (órbitas geoestacionárias) e o espectro de ondas (para frequências de comunicação), a biodiversidade, as terras férteis, as montanhas, os oceanos, os rios, as águas….Bens que existem em um estoque dado. São também comuns bens produzidos como a língua e a cultura, o conhecimento, a informação, a internet… , todos bens que se multiplicam e se enriquecem com o seu uso humano. A cidade, como um conjunto coletivo, é um bem comum, convivendo com propriedades privadas  de casas, apartamentos, casas comerciais e de serviços, indústrias, em seu interior. Nenhum bem é comum por si, torna-se comum, faz-se comum pelas relações sociais (ver: VIEIRA, 2012; HELFRICH et alii, 2009; GRZYBOWSKI, 2011).

O que faz um bem ser comum é o indispensável compartilhamento e o necessário cuidado. A percepção da necessidade de compartilhar e cuidar de certos bens leva os grupos humanos a se organizar e a tratá-los como comuns. Por isto é que socialmente se criam bens comuns. Voltar a tornar comum o que foi privatizado está no centro de muitas indignações e insurgências pelo mundo. O caso da água é um dos mais evidentes e emergentes hoje em dia. A água só é garantida de fato quando tratada como bem comum. No Fórum Social Mundial, ainda na primeira edição em 2001, em Porto Alegre, começou a se formar a rede mundial do direito à água como bem comum, uma das maiores redes de cidadania no mundo. Na luta contra a privatização e pela volta a formas de tratar a água como bem comum vale lembrar aqui os casos de Roma e de Paris, hoje com o abastecimento de água sob a gestão da municipalidade e sob controle direto cidadão.

Ser comum é ser um direito coletivo. Não é uma questão de propriedade. Não é “de ninguém”, mas de todos. Não é só ser público que garante ser de todos. O ar é comum porque é de todos, mas é difícil imaginá-lo público ou, ainda mais difícil, privado.  A rua é comum porque pública, também de todos, mas temos experiências de sobra sobre a sua privatização, com cancelas e guardas armados. A água é um direito coletivo porque comum, só que pode ser privatizada na medida em que pode ser aprisionada. Não é automático que a gestão pública da água a trate como um bem comum, mas estar sobre gestão pública muda a natureza do conflito pelo direito coletivo à água.

O privado é o que é controlado privadamente, segundo interesses particulares. O que é público, controlado ou não pelo Estado, deve atender a interesses coletivos, de todas e todos. Mas para isto necessariamente precisa ser visto e tratado como um comum, um direito igual de todos e todas da coletividade. Só a cidadania em ação pode garantir o caráter comum de um bem.  A água merece ser mais do que uma tragédia, por sua falta ou excesso. Está no hora de instituirmos publicamente a água como um bem comum. Não esqueçamos que somos gestores de 12% da água doce do mundo!

Para finalizar

Toda a minha análise sobre a água tem como referência o indispensável tratamento que devemos a ela como um bem comum vital. Devemos trazê-la para a agenda pública, para o centro da ação cidadã. Não vamos conseguir enfrentar nossos problemas de justiça social e ambiental sem resgatar a água do seu aprisionamento como recurso na produção e como mercadoria rara por agressivas forças privatizantes. Mas não vamos progredir muito sem lutar para que o Estado garanta o caráter comum da água, como bem a ser compartilhado entre todos e todas, sem discriminações e exclusões.

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(*) Sociólogo, diretor do Ibase

(**) Este artigo é uma adaptação e atualização de palestra do autor no Seminário “Sustentabilidade – Múltiplos Olhares: Água e Saneamento & Resíduos Sólidos”, organizado pelo Museu Ciência e Vida, Fundação CECIERJ, Duque de Caxias, 07/11/2012.

Referências

• BARLOW, Maude. “Every now and then in history, the race takes a collective step forward in ist evolution”. On the Commons. 2010 (Disponível em: <http://onthecommons.org-commons-future-already-here>. Acesso em 15 out 2012)

• COCA-COLA Brasil. Guia de Sustentabilidade. sd

• GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos para a biocivilização. Rio de Janeiro, Ibase, 2011 (Disponível em <http://www.ibase.br/pt/wp-content/uploads/2011/08/Caminhos-descaminhos.pdf>

• HELFRICH, Silke et alii. Biens Communs – La prospérité par le partage. Berlin, Heinrich Böll Stiftung, 2009.

• O GLOBO. Amanhã. Rio de Janeiro, 11/03/2014

• RESILIENCE ALLIANCE. Planetary Boundaries: exploring the safe operatin space for humanity. Ecology and Society. London, v.14 (Disponível em <www.ecologyandsociety.org/vol14/art32> Acesso em 15 out 2012)

• VIEIRA, Miguel Said. Bens comuns intelectuais e bens comuns globais: uma breve revisão crítica. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2012.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17002)

PIB, conceito ultrapassado (Ladislau Dowbor)

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Indicador alternativo desafia ideia essencial ao capitalismo, ao sugerir que riqueza monetária não equivale a bem-estar. Novos critérios produzem resultados surpreendentes
Por Ladislau Dowbor | Imagem: Paul Gauguin, Três Haitianos (1899)
A divulgação da pesquisa sobre Indicadores de Progresso Social 2014 (IPS) [leia orelatório principal, o resumo e a metodologia] vem agregar peso à transformação de como calculamos os resultados econômicos e o desenvolvimento. Sem ser economistas ou entender de contas nacionais, muitos já se perguntam há tempos como casam no Brasil os imensos avanços sociais e econômicos que vivemos, além um desemprego que é o menor da história, com taxas modestas de crescimento PIB, tão atacado como “pibinho”. É que a cifra que tanto encanta a mídia, o PIB, simplesmente não mede o que queremos medir, que é o progresso, ou em todo caso o reflete de maneira muito parcial.
A iniciativa da ONG Social Progress Imperative é um refresco, ao medir o que importa, ao fazê-lo de maneira sistemática, com metodologia clara e que permite comparabilidade. Depois da edição experimental e limitada de 2013, a de 2014 cobre 132 países, com correções e ajustes. Publicada em dois volumes, um de resultados e análises por país, e outro de metodologia, a pesquisa constitui um aporte significativo para a compreensão das transformações que vivemos.
É verdade que esta iniciava vem apenas reforçar metodologias como o Happy Planet Index, o Genuine Savings Indicators, o FIB (Felicidade Interna Bruta) e sobretudo o movimento Beyond GDP na União Européia. Mas a contribuição de nomes como Michael Porter, da Universidade de Harvard e de outras instituições de peso, vai materializando a nossa lenta evolução para medidas que façam sentido. O apelo mundial para irmos além do PIB, lançado neste sentido há alguns anos por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, dos quais os autores do IPS se declaram devedores, está dando frutos.
O teórico da iniciativa, Patrick O’Sullivan, vai direto ao assunto: “É realmente indefensável continuar a usar o PIB como se de alguma forma medisse o bem estar, e é confortante se dar conta que o próprio Kuznets, o pai fundador da medição sistemática do PIB, já nos tenha alertado que “o bem-estar de uma nação dificilmente pode ser inferido da medida da renda nacional” (Met.26) Este ponto de partida define a filosofia do esforço empreendido.
“Tornou-se cada vez mais evidente que um modelo de desenvolvimento baseado apenas no desenvolvimento econômico é incompleto. Uma sociedade que deixa de assegurar as necessidades básicas, de equipar os cidadãos para que possam melhorar a sua qualidade de vida, que gera a erosão do meio ambiente, e limita as oportunidades dos seus cidadãos não é um caso de sucesso. O crescimento econômico sem progresso social resulta na falta de inclusão, descontentamento, e instabilidade social. Um modelo mais amplo e mais inclusivo de desenvolvimento requer novas medições, com as quais os que gerem as políticas e os cidadãos possam avaliar a performance nacional. Temos de ir além de simplesmente medir o Produto Interno Bruto per capita, e tornar a medição social e ambiental parte integrante de como medimos os resultados”.(11)
Este enfoque permite organizar os indicadores em torno aos interesses reais das pessoas. O índice, no seu conjunto, busca responder a três questões: (26)
  1. O país assegura as necessidades mais essenciais da sua população?
  2. Os fundamentos básicos que permitam aos indivíduos e às comunidades alcançar e sustentar o seu bem estar estão assegurados?
  3. Há oportunidades para todos os indivíduos alcançarem os seus plenos potenciais?
Para nós no Brasil este enfoque menos centrado no crescimento econômico e diretamente dirigido ao bem estar da população é de uma grande ajuda. Em torno a estes três grandes eixos, o IPS apresenta indicadores básicos, quatro por eixo, que são por sua vez desdobrados em 54 indicadores mais detalhados. Conseguiram cifras razoavelmente confiáveis para 132 países, o que torna o IPS um complemento útil inclusive para o sistema básico das Nações Unidas, os Indicadores do Desenvolvimento Humano (IDH), que acrescenta aos dados tradicionais da renda indicadores de educação e de saúde.
Um outro elemento metodológico importante é que o IPS busca indicadores de resultados, não de insumos (outcome index, not inputs). Ou seja, um país que investe muito em saúde construindo hospitais de luxo e priorizando a saúde curativa, em termos de investimentos está realizando um grande esforço (inputs), mas os resultados (outcomes) serão pífios em termos de população saudável. E se trata de medir este último objetivo.(Met.5) A cidade de São Paulo gastou rios de dinheiro em viadutos, túneis, elevados e automóveis particulares com o resultado de paralisar a cidade. Esta paralisia, ao gerar mais custos para todos (inputs), aumenta o nosso PIB. Seguramente não o outcome queremos, que é a mobilidade urbana. Medir pelo enfoque dos resultados é muito importante.
Em termos metodológicos ainda, é natural que haja discussões sobre a objetividade na escolha dos indicadores. Patrick O’Sullivan (Universidade de Grenoble e de Varsóvia) apresenta aqui, no volume de Metodologia, um excelente artigo teórico sobre os indicadores e os seus limites. Os vieses são honestamente assumidos: “Vamos assumir abertamente que esta posição (do relatório) apoia-se em fundamentos que constituem certos juízos de valor normativos, que deixaremos explícitos e transparentes, e mostraremos, por mais chocante que este uso explícito de um discurso normativo possa parecer, a pesquisadores de ciências humanas orientados para o positivismo, que na realidade toda ciência humana é irremediavelmente carregada de valores de qualquer modo.” (Met. 25)
No Brasil, este realismo quanto aos valores implícitos, apoiado nas visões de Gunnar Myrdal, nos ajudaria bastante, frente à deformação sistemática das análises sobre os avanços do país na mídia comercial. Mas este alerta deve ser observado inclusive para os dados do IPS: por exemplo, os dados relativos à propriedade privada são, neste relatório baseados na fonte da Heritage Foundation, um Think Tank da velha direita norte-americana, que seguramente consideraria a nosso Constituição, com a sua visão da função social da propriedade, como subversiva. O enfoque adotado, por exemplo, permite jogar para baixo o IPS da China, que é o país que de longe tirou mais pessoas da pobreza no planeta – cerca de dois terços da redução mundial. Aqui a carga de valores é realmente explícita.(106)
Os resultados da pesquisa
Na parte da análise dos resultados, uma das tendências mais interessantes mostra uma forte correlação entre o aumento do PIB e a melhoria na área das necessidades básicas, (no caso nutrição, água e saneamento, habitação e segurança) mas apenas para os mais pobres: “As necessidades humanas básicas melhoram rapidamente quando o PIB per capita aumenta, nos níveis baixos de renda, mas depois (a tendência) se torna mais horizontal (flattens out) à medida que a renda continua a aumentar”. (54)
Para nós isto é muito importante, pois mostra que o aumento de renda nos extratos mais pobres melhora radicalmente o progresso social em geral. Em outros termos, o dinheiro que vai para a base da sociedade é muito mais produtivo em termos de resultados para a sociedade, o que bate plenamente com as pesquisas do IPEA sobre a produtividade dos recursos. As pesquisas da ONU sobre o IDH chegam à mesma conclusão: “Rendimentos mais elevados têm uma contribuição declinante para o desenvolvimento humano”. O New Economics Foundation (NEF) de Londres chega à mesma conclusão, ao analisar o “retorno social sobre o investimento” (SROI – Social Return On Investment), e considera que a adoção desta metodologia “é particularmente oportuna quando as organizações estão buscando tornar cada libra render o máximo possível”. (NEF, 2009) Estamos aqui no centro do problema da baixa produtividade econômica gerada pela concentração de renda, confirmando os efeitos multiplicadores que gera a redistribuição, inclusive para o próprio PIB.
Centrar-se no progresso social, ou seja, no resultado que queremos efetivamente para a nossa vida, e não no PIB, permite por sua vez evitar deformações flagrantes que o IDH atenua apenas em parte. Assim países exportadores de petróleo, como a Arábia Saudita, o Kuait e Angola, que pela exportação de recursos naturais aparecem com uma renda per capita elevada, mas não asseguram o bem estar que estes recursos deveriam gerar para a população, são aqui avaliados de maneira diferenciada, comounder-performers, ou seja, países com um crescimento distorcido. Por outro lado, constata-se a alta correlação entre o PIB e o indicador de acesso à informação e comunicação, “amplamente baseado no fato que o acesso à telefonia móvel e à internet está ligada à capacidade aquisitiva do consumidor”.(59)
Para nós esta dimensão é importante para pensar e contabilizar a contribuição das exportações primárias: qual é a sua produtividade social real, em termos de geração de empregos, de impactos ambientais, de retenção ou expulsão de mão de obra para as cidades como por exemplo no caso da pecuária extensiva? A visão geral do relatório é que “de modo geral, países ricos em recursos têm mais propensão a ter uma baixa performance em termos de progresso social, relativamente ao seu PIB per capita”.(53)
Na análise igualmente, o texto apresenta uma forte correlação entre os indicadores IPS e outras pesquisas baseadas em avaliações de percepção de qualidade de vida pelas pessoas: “Há uma relação altamente positiva e significativa entre a satisfação com a vida e o progresso social, e em particular na dimensão de Oportunidades.” (69) Outro dado significativo é que “o indicador de sustentabilidade ambiental é o que menos está relacionado com o PIB.” Os indicadores médios indicam uma forma de “U”, sugerindo que os pobres ainda não afetam o meio ambiente, enquanto os países na fase média de avanço econômico tendem a deteriorá-lo, passando a buscar a sua recuperação ao alcançar níveis de renda mais elevados. (59)
O Brasil na pesquisa
O Brasil aparece bem na foto. Importante lembrar que se trata apenas de uma foto, pois o índice é novo e não permite comparação no tempo, ou seja, a dinâmica da mudança. De qualquer forma, vale a pena dar uma olhada nos dados.
O Brasil ocupa o 46º lugar entre 132 países, com um índice médio geral de 69,957. A Colômbia ocupa o 52º lugar, México 54º. O PIB per capita brasileiro utilizado na pesquisa é de 10.264 dólares em valores de 2012. Os dados sintéticos para o Brasil são os seguintes:

Dados Sintéticos
Brasil (46º)
EUA (16º)
Argentina (42º)
PIB per capita (US$)
10.264
45.336
11.658
Score médio geral
69,957
82,77
70,59
Necessidades básicas
71,09
89,82
77,77
Fundamentos do Bem-estar
75,78
75,96
70,62
Oportunidades
63,03
85,54
63,38

Para ter uma referência, os Estados Unidos ocupam o 16º lugar, com um PIB de 45.336 dólares, e um índice médio geral de 82,77. Os dados sintéticos norte-americanos são muito desiguais, com respectivamente 89,82 para necessidades básicas, 75,96 para fundamentos de bem estar (praticamente iguais ao Brasil), fruto dos últimos trinta anos de neoliberalismo naquele país, e 85,54 em termos de oportunidades – índice puxado em particular pela expansão do acesso à educação superior, onde o Brasil é, pelo contrário, muito fraco. A Argentina, por sua vez, que ocupa o 42º lugar, tem um score geral de 70,59, um PIB per capita de 11.658 dólares, e apresenta no geral índices parecidos com os do Brasil. Detalhando um pouco para os 12 principais grupos de indicadores, temos a situação seguinte:
Nível dos 12 principais indicadores
Brasil
EUA
Argentina
Nutrição e cuidados básicos de saúde
92,02
97,82
94,62
Água e saneamento básico
81,64
95,77
95,65
Habitação
73,20
87,99
60,75
Segurança pessoal
37,50
77,70
60,07
Acesso ao conhecimento
95,43
95,10
94,53
Acesso à informação e comunicação
67,69
81,33
69,54
Saúde e bem estar
76,05
73,61
70,56
Sustentabilidade
63,94
53,78
47,83
Direitos da pessoa
74,94
82,28
66,55
Liberdade pessoal
69,38
84,29
73,61
Tolerância e inclusão
61,77
74,22
64,53
Acesso à educação superior
38,09
89,37
48,83
Impressionante os Estados Unidos, com um PIB quatro vezes e meia maior do que o Brasil, terem um indicador de saúde e de bem estar (esperança de vida, morte por doenças entre 30 e 70, taxas de obesidade, mortes por poluição do ar, taxa de suicídios) significativamente pior do que o Brasil. Situação pior ainda em sustentabilidade, devido em particular à massa de emissões de gazes de efeito de estufa, uso da água além das reservas e redução de biodiversidade e habitat natural. A Argentina, aliás, fica pior ainda neste quesito. Os itens críticos para o Brasil, naturalmente, são os de segurança, com 37,50 pontos, e de acesso à educação superior, com 38,09 pontos.
Na análise dos autores, “entre os países dos BRICS, o Brasil apresenta o perfil de progresso social mais forte e mais “equilibrado” (the strongest and most “balanced”). Apresenta alguma fraqueza em Necessidades Humanas Básicas (puxada pelo score muito baixo de 37,50 para Segurança Pessoal), mas apresenta uma performance consistentemente boa em todos os componentes tanto dos Fundamentos de Bem Estar como de Oportunidades, com exceção de Educação Superior (38,09, 76º).”(50)
Comparando com o conjunto dos BRICS, o relatório considera que “quatro dos cinco BRICS fazem parte do quarto nível, inclusive Brasil (46º) com um score de 69,97, África do Sul (69º) com 62,96, Rússia (80º) com 60,79, e China (90º) com 58,67. A Índia fica fora dos 100 primeiros em termos de progresso social, com um score mal superando 50. Os países da América latina estão bem representados no quarto grupo. Argentina 42º, Brasil 46º, e Colômbia, México e Peru colocados nos lugares 52º, 54º e 55º respectivamente”.(45)
No plano propositivo, ao comentar o Brasil, a análise sugere que “apesar do Brasil apresentar uma performance relativamente boa no componente Sustentabilidade do Ecossistema, precisa enfrentar questões ambientais urgentes, tais como a redução do desmatamento essencialmente frutos da especulação sobre o solo, da pecuária irregular, e de projetos de infraestruturas; o controle dos gases das emissões de gases de efeito estufa pelo setor industrial; e o acesso à eletricidade com tecnologias eficientes em termos de custos e ambientalmente amigáveis. |O Brasil tem cerca de um terço das florestas tropicais do planeta e pelo menos 20 por cento da biodiversidade do planeta. #Progresso Social Brasil tem focado os seus esforços iniciais na região amazônica.”(36)
Os dados completos por país estão nas páginas 85 e seguintes do relatório principal. Vejam a tabela geral dos indicadores utilizados, disponível na p. 28 do relatório principal:
140408-TabelaLadislau

Notas
: No texto acima, colocamos entre parênteses as páginas do relatório principal, e quando se trata do volume sobre metodologia, colocamos o número da página com a menção “Met.” Os links dos documentos originais estão abaixo. Para se documentar quanto às novas metodologias veja no blog http://dowbor.org o artigoO Debate sobre o PIB.
NEF – New Economic Foundation, “Social Return on Investment”http://www.neweconomics.org/blog/entry/a-turning-point-for-new-indicators-of-progress

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/pib-conceito-ultrapassado/)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Venezuela: a verdade sobre o “desabastecimento” (Pedro Silva Barros)

140401-Mercal

Políticas públicas duplicaram acesso da população a alimentos básicos e carne. Produção agrícola ainda não acompanhou tendência. Governo amplia importações

Por Pedro Silva Barros, em Carta Maior

Na última sexta-feira (23), o ministro da Alimentação da Venezuela, Félix Osorio, anunciou medidas importantes que estimulam uma discussão mais geral sobre a segurança alimentar, as distorções de uma economia em transição e as relações comerciais da Venezuela, particularmente com o Brasil.

O governo venezuelano comprará, utilizando acordos de cooperação internacional, US$ 4,3 bilhões em alimentos em 2014, privilegiando os países do Mercosul e do Caribe. Do Brasil serão compradas 429 mil toneladas ao custo de quase US$ 1,8 bilhão; da Argentina, outros US$ 715 milhões. O Plano 2014-2016 para alimentação prevê mais de 1.000 novos pontos de distribuição de alimentos do governo, incluindo 22 hipermercados. As medidas consolidam o Estado como principal importador da Venezuela, responsável pelas compras de 55% de tudo que vem do exterior. Na semana anterior, havia sido anunciado um sistema biométrico para registrar os compradores desses mercados e evitar a revenda e o contrabando, principalmente para a Colômbia.

A política de garantia de alimentos é um dos maiores êxitos do chavismo e contrasta com a escassez e  as filas para buscar determinados produtos.

O programas de alimentação criados como resposta ao locaute que tentou derrubar o governo Chávez entre 2002 e 2003 distribuiu, na última década, mais de 15 milhões de toneladas de produtos alimentícios, diretamente pela rede pública ou repassados à rede privada para serem vendidos a preços tabelados.

Eram apenas 45 mil toneladas em 2003 e passaram a 4 milhões de toneladas em 2013. Uma média superior a meia tonelada por habitante considerando toda a década. Ou a mais de um quilo diário por família, de alimentos fortemente subsidiados, se consideramos apenas o ano passado.

O consumo per capita de arroz passou de 13,4 Kg por pessoa por ano em 1998 para 25,1 Kg em 2012, o de carne bovina de 16,0 Kg para 25,1 Kg, o de frango de 20,9 Kg para 42,5. A disponibilidade energética, que havia caído na década anterior a Chávez, passou de 2.127 para 3.182 calorias por dia por habitante.

Hoje 96,2% dos venezuelanos comem ao menos 3 vezes por dia, 97,3% dos venezuelanos consomem proteína animal e 98% das crianças tomam leite diariamente.

A produção venezuelana não acompanhou o ritmo da expansão da demanda. O consumo cresceu enormemente devido aos subsídios (que chegam a 80% dos produtos básicos nos aproximadamente 15 mil pontos de venda da rede Mercal) e a outras políticas distributivas e de emprego (a formalização do trabalho na Venezuela superou pela primeira vez em janeiro de 2014 a barreira dos 13 milhões, equivalente a 61% dos postos de trabalho do país; durante a década de 1990 o índice de formalização havia caído de cerca de 50% para cerca de 40%). A conta do acesso aos alimentos fecha pelo aumento das importações, amparadas tanto pelo aumento do preço do petróleo como pela maior apropriação por parte do governo dos excedentes deste setor. Em outras palavras, houve uma democratização do renda petroleira.

Dizem nas ruas que antes de Chávez havia muitos produtos nas prateleiras, mas poucos tinham dinheiro para compra-los; agora todos tem meios para consumir, mas não é raro haver dificuldades para encontrar alguns produtos nas prateleiras.

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Como a oscilação no abastecimento tem ocorrido há dez anos, é comum que as pessoas estoquem grandes quantidades de produtos básicos, como leite em pó e frango congelado, o que gera uma grande ineficiência. Recordo de novembro do ano passado: quando articulistas de todo o mundo se deleitavam com a escassez de papel higiênico na Venezuela, a farmácia mais próxima ao meu escritório recebia 40 pessoas em fila, todas elas com o limite de 24 rolos em seus carrinhos de compras.

A forte e crescente política de subsídios gera distorções e necessita ajustes. A gasolina, cujo preço, simbólico, é de US$ 0,01 o litro, consome 8% do PIB, segundo o FMI. A carne brasileira em Santa Elena de Uairén chega a custar 10 vezes menos do que em Pacaraima (as duas cidades formam fronteira entre Venezuela e Brasil), considerando o mercado cambial informal da região. Pacaraima tem apenas 6 mil habitantes e o estado de Roraima tem 480 mil residentes e é bastante distante de outros centro consumidores do Brasil, cujo controle pode ser feito em uma única estrada, a BR 174. O impacto desse comércio informal é pequeno nas contas venezuelanas. O mesmo não se pode dizer da fronteira com Cúcuta, cuja população, considerando seu entorno, chega a quase um milhão de habitantes. Isso sem contar as outras cidades fronteiriças e os múltiplos caminhos para atingir os mais de 45 milhões de colombianos (ver “Contrabando agrava crise de alimentos na Venezuela”).

O governo tem realizado mudanças para centralizar e hierarquizar as importações de produtos básicos e ao mesmo tempo regulamentar e oficializar mecanismos complementares de acesso à divisas para produtos não essenciais ao setor privado. Não é à toa que os protestos que se desencadearam em 2014 começaram na região de fronteira. Não é à toa que no período que coincidiu com o anúncio e o início das operações do Sicad 2 (sistema complementar livre de acesso a divisas) o preço do dólar paralelo caiu 35%.

Os dados do comércio indicam que na última década o Brasil ganhou espaço na Venezuela. Se no biênio 2002-2003 as exportações brasileiras para a Venezuela foram de US$ 1,4 bilhão, no último biênio, 2012-2013, atingiram US$ 10 bilhões. O Brasil aumentou seu peso relativo particularmente no fornecimento de alimentos. As exportações de manufaturados, que haviam crescido muito entre 2003 e o início da crise internacional de 2008, tem enfrentado forte concorrência de produtos chineses. Independente das diferenças setoriais, a Venezuela tem se mantido entre os três principais superávits comerciais do Brasil desde 2007, esse não é um dado qualquer no momento em que a situação de nossa balança comercial já não é tão confortável.

O desafio colocado para a Venezuela é aumentar a produção interna de alimentos, aprimorar seu sistema de distribuição e diminuir a dependência petroleira. Para o Brasil, o aumento das exportações de manufaturados, que tem na América Latina seu principal mercado consumidor, só é sustentável se houver integração produtiva e desenvolvimento articulado com os países vizinhos.

Um passo seria a organização de projetos conjuntos na região de fronteira, entre os estados de Bolívar e de Roraima. A Venezuela poderia fornecer insumos importantes, como ureia e cal dolomítica, cujos altos preços no cerrado roraimense inviabilizam a competitividade da agricultura local. Assim como houve disposição do governo venezuelano para privilegiar o Brasil como fornecedor de alimentos, poderá haver do Brasil para privilegiar a Venezuela no fornecimento de tecnologia e formação técnica para a produção agrícola. Isso garantirá não só mais estabilidade e segurança alimentar no país vizinho e no extremo norte do Brasil como também mercado para a exportação de tecnologia e equipamentos agrícolas brasileiros.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17043)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

“Estado ineficiente”, mito medíocre

Matt Kenyon on political lies


Há trinta anos, mídia martela suposta superioridade da iniciativa privada. Vale examinar bases desta crença (e interesses por trás dela)…

Por Rafael Azzi | Imagem: Matt Kenyon

A ideologia liberal defende a ideia de que a iniciativa privada é capaz de produzir bens e serviços de forma eficiente e barata; enquanto o Estado, considerado ineficiente e corrupto, seria simplesmente um obstáculo ao bom funcionamento do mercado. Trata-se de uma ideologia maniqueísta, pregando sempre a dicotomia Estado ruim versus mercado bom. Em muitos casos, tal percepção discriminatória se mostra de acordo com a realidade e, quando posta em prática por um determinado governo, torna-se uma profecia autorrealizável.

Segundo a mesma lógica, os funcionários públicos são considerados ineficientes e preguiçosos. Trata-se de um preconceito comum e persistente, mesmo diante do fato de que existem funcionários exemplares nos mais variados setores públicos, e de que, em instituições privadas, há empregados que, adaptados à cultura empresarial, conseguem ser premiados mesmo se esquivando do trabalho ou usando de formas pouco éticas.

A base da argumentação, para quem defende esse ponto de vista maniqueísta, se refere à questão da estabilidade. Por lei, funcionários públicos têm direito a estabilidade no emprego após passar por um período de avaliação probatória durante três anos. Tal fato justificaria o senso comum de que eles trabalham menos do que aqueles que se empregam em empresas privadas. Essa explicação se baseia na premissa de que a principal motivação para a eficiência no trabalho é o medo da demissão. Na verdade, estudos modernos demonstram que essa ideia não está correta. Há diferentes motivações para o trabalho. Os principais estímulos motivacionais, tais como a percepção de realizar uma tarefa significativa, o reconhecimento dos outros e a possibilidade de progresso podem existir ou faltar tanto na iniciativa privada quanto no funcionalismo público.

O argumento do mercado mais eficiente também não se sustenta em diversos casos. Na realidade, em alguns setores a lógica mercadológica parece atuar de forma contrária à eficiência. No que se refere à saúde, por exemplo, é possível comparar dois sistemas situados em pólos opostos: EUA e Cuba. Os índices de expectativa de vida e de mortalidade infantil da ilha caribenha são praticamente os mesmos dos EUA. Entretanto, os gastos anuais dos EUA em saúde, por pessoa, são de U$ 5.711, enquanto Cuba gasta apenas U$ 251. Dessa forma, o Estado cubano tem um custo pelo menos vinte vezes menor para obter um resultado equivalente ao da iniciativa privada americana.

Isso ocorre porque o Estado pode investir diretamente nas causas dos problemas e, assim, conduzir o atendimento médico a quem mais precisa. Em 2001, uma comissão do Parlamento Britânico visitou a ilha e relatou que o êxito da sua política de saúde é devido à forte ênfase na prevenção das doenças e ao compromisso com a prática de medicina voltada para a comunidade. Tal procedimento gera melhores resultados com menos recursos. O mercado sempre segue cegamente a lógica da maximização do lucro, que nem sempre se mostra a mais eficaz para lidar com problemas sociais; ou, nos termos de Bill Gates: “capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que sobre doenças como a malária.”

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No caso da ideologia liberal no governo, diversas vezes o que ocorre é uma profecia autorrealizável. Parte-se do princípio de que o Estado é ineficiente e corrupto, isso leva o Estado a investir pouco, pagar mal funcionários e sucatear os serviços públicos. O pouco reconhecimento e as más condições de trabalho geram insatisfação e greves. As paralisações tornam-se mais um argumento para afirmar que o serviço público é inerentemente ruim.

É o caso, por exemplo, do sistema carcerário brasileiro. Os governos recentes pouco investiram na área e não se interessaram pela renovação do sistema prisional medieval do país. Assim, ao invés de o Estado efetivamente tomar as rédeas da situação, surge uma solução de efeito rápido que agrada a todos: a iniciativa privada aparece para poder finalmente resolver a questão, sendo contratada pelo Estado para construir e administrar presídios. Muitos ganham com isso, menos a sociedade: os políticos que terceirizaram o problema, e os empresários que receberão dinheiro diretamente do governo.

Outro caso a ser citado é o que se refere ao tratamento de viciados em drogas. Enquanto muitos Centros de Atenção Psicossocial públicos (Caps) são negligenciados, o governo propõe como solução a internação em comunidades terapêuticas privadas. Observa-se que, nesses casos, não existe nem uma “lógica de mercado” propriamente dita operando na forma de competição e livre mercado. Presos e viciados não podem escolher o melhor serviço e são levados às prisões e às comunidades terapêuticas de forma compulsória. A competição por custos também inexiste, pois o serviço é subsidiado pelo governo.

Assim, pode-se observar que o mercado pode também trabalhar de forma contrária ao interesse coletivo. As instituições privadas de carceragem e de tratamento de drogados têm interesse em obter o maior o número possível de internações, sem que isso signifique a melhoria dos serviços oferecidos. Dessa forma, a dinâmica de interesses gera pressão do setor para que o governo endureça as leis de restrição de liberdade e incentive à internação compulsória por uso de drogas. Além disso, a reincidência de presos e de drogados também é benéfica para o mercado e prejudicial para a sociedade. Estudos afirmam que, no caso de internação, a reincidência de drogados é superior a 90% dos casos.

O argumento de que a terceirização pode desonerar o Estado também pode se mostrar falso. Em uma instituição pública, seja uma prisão ou um Caps, o Estado é responsável direto pelo salário dos funcionários e pela manutenção dos serviços. No caso das comunidades terapêuticas e das unidades de detenção privadas, o governo paga um subsídio pelo número de presos e de pacientes. Neste subsídio deve constar, para além dos custos fixos de salários e manutenção, uma certa margem de lucro para que a iniciativa privada se interesse em oferecer tais serviços.

É preciso analisar pontualmente as situações em que o Estado tem mais gastos ao oferecer diretamente serviços públicos. Na maior parte das situações, os maiores custos advêm de ações de transparência pública. Servidores devem ter a qualificação necessária e precisam ser contratados através de concursos públicos, e os gastos públicos são justificados e controlados através de processos de licitação e prestação de contas. Essa transparência tem como objetivo evitar atos indevidos e arbitrários, sendo condição necessária para o controle de práticas desonestas e antiéticas. Nas instituições privadas prestadoras de serviços, os profissionais são escolhidos pela empresa e o uso do dinheiro do governo não é controlado da mesma forma rígida utilizada na esfera pública para monitoramento de gastos.

Soluções possíveis para tal problemática seriam o controle e a fiscalização rígida, exercidos pelo Estado, nas empresas contratadas para executar serviços da esfera pública. No entanto, chega-se a uma contradição. Para que haja uma boa fiscalização por parte do Estado, o governo deverá ter mais infra-estrutura, pagar mais funcionários, ter mais custos com manutenção, dentre outros investimentos. Além disso, se a convicção liberal é a de um Estado intrinsecamente ineficiente e corrupto, de que adiantaria monitorá-lo? Essa é uma contradição do discurso liberal. Na verdade, em muitos casos, ao invés de o Estado se tornar mais eficiente ele se transforma no melhor parceiro que a iniciativa privada poderia ter.

A noção de Estado como local privilegiado de corrupção é sustentada igualmente por preconceitos ideológicos. Na verdade, pode-se afirmar que o Estado pode ser eficiente e o mercado corrupto, não havendo qualquer relação obrigatória entre esses termos. A corrupção do Estado é um problema real que deve ser combatido através de ações de transparência pública e da prestação de contas à sociedade. De acordo com um relatório produzido pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), o Brasil perde de R$ 50,8 bilhões a R$ 84,5 bilhões por ano com corrupção governamental. Entretanto, a corrupção não é exclusividade do Estado. No que se refere a processos de sonegação fiscal, classificado como corrupção privada, uma pesquisa da organização britânica Tax Justice Network aponta perdas muito maiores para o país: 280,1 bilhões de dólares por ano.

Assim, o mito do governo ineficiente e corrupto é um discurso amplamente disseminado porque auxilia muitos grupos, inclusive aqueles que lucram à custa do próprio Estado. É preciso determinar políticas públicas de acordo com o que seja melhor para a sociedade como um todo, sem a interferência indevida de ideologias e de preconceitos criados e corroborados pelo senso comum.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/estado-ineficiente-mito-mediocre/)
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