Por João José Veras de Souza (doutorando do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC)
Li o Manifesto (que adiante passo a identificar com o número 1) e o texto que lhe segue como explicativo “Manifesto à Comunidade Universitária. Eleição para Reitor.” Assinado por vários professores da UFSC(2). Li também o artigo do professor Paulo C. Philippi – A crise da UFSC não está nas drogas(3) – que puxa o assunto (todos publicados na internet no blog do jornalista Moacir Pereira, do Grupo RBS), e li também um outro artigo de autoria do mesmo professor publicado na página da APUFSC, sob o titulo Democracia na UFSC (4). Entendo que o Manifesto para ser melhor compreendido deve ser lido considerando o conjunto do referidos escritos. Há laços que lhes dão unidade – nestes, os fundamentos avançam para além do jurídico – e possibilitam a sua melhor compreensão, alimento essencial para o debate.
A questão levantada é diversa e riquíssima para análise. No entanto, vou me ater a alguns dos aspectos nela contidos que no momento me chamam mais atenção. Em síntese, as manifestações estão centradas na defesa do seguinte argumento: o processo informal de escolha da lista triplice para o cargo de reitor da UFSC não está atendendo a previsão da lei 9.192/95, no seu inciso III, que estabelece peso de 70% para o voto dos docentes em relação aos discentes e servidores. Mesmo apesar de que na UFSC, desde a década de 80 e, inclusive, sob a égide da referida Lei, o voto é paritário, o Manifesto pugna pelo fim desta prática ante a sua patente ilegalidade. (cfe 1, 2, 3 e 4)
O fundamento básico contido especialmente no Manifesto é, como demonstrado, o juridico. Mas não se resume/limita a ele (cfe 2). As referidas manifestaçõs fazem um esforço argumentativo para justificar a razão de existir daquela previsão legal. Usam como principio fundamental a importância da centralidade (de poder e de saber) sob o corpo docente na Universidade. Nesse sentido, aduzem ser o professor a sua base intelectual, portanto aquele que a pensa, razão pela qual defendem caber a ele o comando/liderança maior da instituição de ensino superior e, por tais razões, o direito de definir os seus destinos. (cfe 1, 2 e 3)
No artigo Democracia na UFSC, o professor Paulo C. Philippi, nesse sentido, é claro:
“A Universidade não é uma república. No processo de escolha do Reitor em uma autarquia pública o mestre possui o mérito de ser a base intelectual da universidade (o seu ‘corpo de governo’ nas palavras de Darcy Ribeiro), no sentido que ele é quem decide para aonde deve ir a universidade em suas metas de proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, produzir e difundir conhecimento. E esta é a grande razão para que sua opinião seja privilegiada neste processo em relação à dos demais segmentos. E não só pela Lei.”(cfe 4)
Mas existem outros argumentos que, embora não estejam explicitamente expressos no corpo do Manifesto, estão bastante presentes nos outros textos especialmente naquele – A Crise da UFSC Não Está nas Drogas – que pega a carona/mote do recente evento politico-policial chamado, por uns, de “O Levante do Bosque”, e, por outros, de “A Revolução dos Maconheiros”. De fato, o conjunto de textos referidos se insurgem contra a paridade na escolha do Reitor baseado em, pelo menos, três argumentos: i) o a favor da legalidade;ii) o a favor da manutenção do poder docente e sua autoridade meritocrática-institucional, e iii) o contra um suposto poder discente – ou “cidadania universitária” – que supostamente quer transformar a UFSC numa “universidade popular”. (cfe 1, 2, 3 e 4)
Tenho para mim que todos os argumentos merecem ser problematizados tendo em conta as idéias que se possa ter de poder, de saber e de ser numa sociedade democrática.
É fato inquestionável a existência de uma Lei que, aos olhos de todos e por vontade popular (de toda a comunidade acadêmica) e também institucional, está sendo, em parte, desconsiderada – pontualmente no processo de escolha informal da lista tríplice. Na UFSC, há quase 20 anos que a paridade é a norma. Aliás, antes da lei – desde a década de 80 – que a paridade já era regra. Não se tem noticia que alguém tenha questionado judicialmente este fato. Nem as autoridades internas, nem externas, nem seus controles, nem a comunidade universitária. Aliás, este é um fato que se repete tal qual em 39 das 54 universidade púbicas brasileiras, portanto em quase 70%, delas, conforme dados levantados pela UNB em 2012 .
Este fenômeno coloca em xeque o poder da lei em relação à vontade popular e com a “conivência” das instituições. Isto é juridica e socialmente significativo. Não pode ser desprezado. Talvez esteja aqui a realização concreta da vontade – efetivamente – autônoma da comunidade universitária. Devemos pensar mais a respeito para além daquilo que possa siginificar uma conveniência pontual de grupos de poder. De um modo importante, isto coloca em questão a ideia de autonomia universitária na prática. O que, aliás, no sentido mais profundo, não revela autonomia nenhuma tendo em vista que, ao final e definitivamente, quem escolhe o reitor das universidades é o Chefe do Executivo Federal e não as suas comunidades.
Mas este não é o fundamento fonte/forte do manifesto. Como fazem questão de afirmar seus autores, não se trata especificamente de se questionar o cumprimento ou não da lei (cfe 2). O mais importante é o que a motiva e a justifica – o que a faz necessária no contexto universitário. Pelo que se pode observar, existem outras motivações que se substanciam na exata compreensão que os propositores do Manifesto – em relevo o professor Paulo C. Philippi – têm de poder, de saber e de ser no campo acadêmico institucional das universidades brasileiras. Vejamos.
O referido professor (cfe 3), aponta que há, embora minoritário, um poder estudantil em marcha dentro da UFSC – poder este voltado para a consecução de uma “universidade popular” – que está dando o ritmo à UFSC, causando, com isso, uma crise de autoridade na instituição. Para Paulo C. Philippi, o foco desse “levante” é o Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFH aonde se pratica o voto universal, regime pelo qual a vontade do discente tem o mesmo peso que a do docente. Acusa o professor que se está criando na UFSC “Uma forma de populismo que, ainda que possível de ser admitido em uma república, é extremamente nocivo em uma casa hierárquica baseada na meritocracia como é o ambiente universitário” (cfe 3).Assim, para ele, o que está em curso é “um projeto para transformar a UFSC numa ‘universidade popular’” (cfe 3). Segundo entende, não é isso que a sociedade catarinense quer. Para ele, o Estado de Santa Catarina deve à meritocracia implantada na UFSC o seu alto nível de desenvolvimento. Noutras palavras, o professor está dizendo que uma ‘universidade popular” se destata por se revelar o inverso do que a UFSC tem sido até agora. (cfe 3)
Como é posta tal ordem de entendimento, a premissa básica lançada é a de que uma “universidade popular” (o professor Paulo C. Phillip chega a afirmar que não sabe exatamente o que seja isto – cfe 3) ou pelo menos aquela que seja pautada num poder estudantil ou numa “cidadania universitária”, é contrária às ideias de competência acadêmica (mérito), de autoridade (como exercício da transmissão do “respeito ao conhecimento, à ética, aos valores humanos…” – cfe 3), e de legalidade. Segundo entende o professor, “a universidade não é uma república” (cfe 3 e 4). Aqui o argumento é claro no sentido de que há incompatibilidade frontal entre a idéia de democracia, portanto de participação na ordem do poder, com a de transmissão de saber. A universidade não seria uma coisa pública mas uma coisa do professor, aquele que detém o saber. A universidade, por essa linha de entendimento, seria um centro de saber e não de poder. Como se fosse possível tal separação e como se não houvesse poder nos sistemas de saberes e de sua produção e reprodução.
Esta questão coloca a existência de uma divergência de fundo entre aquilo que seria uma universidade baseada na meritocracia e na hierárquia em relação aquilo que seria uma universidade popular e democrática. Essa distinção traz, em si, a impossibilidade de convivência das oposições apontadas. Por este entendimento, a dupla popular/democracia é diametricamente incompatível com o par mérito/autoridade. Aqui parece residir uma espécie de preconceito diante do que seja considerado popular.O que é compreesível para quem nutre uma visão hierárquica entre saberes. Nesse sentido, a idéia de popular/democrático remete oposição ao conhecimento e à falta de hierarquia. Com isso, um poder popular – que para o professor significa uma forma de populismo (cfe 3) – na universidade representaria o fim do conhecimento, como mérito, bem como da hierarquia como método do exercício do poder. Insisto: por essa forma de compreensão, com uma universidade popular, o saber seria substituido pelo poder. Seria assim mesmo? Estaria confundindo porque é confuso ou é confuso porque se está confundindo?
Como se apresenta, o conjunto dos escritos também levam a crer que há uma politização negativa na universidade que é perniciosa ao poder (pois refuta a idéia de autoridade), ao saber (desconsidera a idéia de meritocracia) e ao ser (no que resulta a formação de indivíduos incompetentes e assim improdutivos). E essa politização negativa tem como foco de reprodução os alunos (alguns, a minoria – cfe 3) – limitados à condição de meros receptores dos conhecimentos acadêmicos – e a idéia que pregam de “universidade popular” em que seria exercida uma certa “cidadania universitária” (cfe 4).Sob tal prisma, a politização negativa – que se expressa como uma forma de “populismo” (cfe 3)- seria nociva à universidade representando, assim, o seu fim “…como centro de dominio, produção e difusão do conhecimento”. (cfe 3) Não existe saber na discência.
A contrario sensu, no outro polo, teríamos a não-politização – ou a politização positiva – que na universidade faz bem ao poder (reafirma a autoridade institucional sobretudo na figura do professor), ao saber (coloca o mérito como o meio para se alcançar o conhecimento significativo) e ao ser (forma indivíduos competentes e produtivos ). E essa não-politização tem como foco de reprodução os professores, aqueles a quem cabe pensar e fazer a universidade.
Quanto ao suposto avanço do poder estudantil em relação ao poder docente (causando uma crise de autoridade na instituição), tenho para mim que há um latente equívoco por aqui. Em última análise, a paridade não retira o poder que o corpo docente tem nas universidades federais brasileiras. Ela apenas esgarça a possibilidade da comunidade universitária – em suas categorias discente e de servidores – de participar dos processos eleitorais nos quais só – e somente só – o professor poder ser o eleito. Salvo raríssima exceção, o professor continua sendo, de fato e de direito, o único integrante da comunidade universitária a ter o direito de ocupar cargos de direção nas instituições federais de ensino, como reitorias, centros de ensino e órgãos colegidos deliberativos e executivos (nestes, integrando sempre como maioria). O que resta de alternativa para os alunos e servidores é apenas a opção de escolher entre este ou aquele professor. Muito embora se propala que a universidade se baseia numa gestão em que a sua comunidade – e não um de seus segmentos – é o ator principal. É fato que o poder hierárquico – acadêmico e administrativo – ainda se encontra nas mãos dos professores, apesar da paridade informal. É possível, diante deste contexto, pensar que tal fato venha a ofender princípios democráticos relacionados à participação na condução dos destinos da instituição em todos os sentidos.
Ademais, convenhamos, essa paridade informal é precária não só sob o ponto de vista jurídico. No pólo em que realmente interessa, posto que decisivo, ela está adstrita ao crivo formal dos 70% da representação docente do Conselho Universitário – quem dá a última palavra no sistema decisório da IFES. Em verdade, afora a força simbólica desta paridade, o seu poder político se sustenta por um triz no despenhadeiro dos interesses.
É bom lembrar, ainda, que, para aquém da condição de eleitores/votantes, os discentes e os servidores não detém qualquer poder decisório importante na estrutura institucional da universidade. As associações de servidores, centros acadêmicos e diretório central dos estudantes existem como meio-instrumento coletivo de condução de pautas, manifestação e luta por seus interesses e direitos. Suas participações nos colegiados da instituição – estes que decidem – é extremamente minoritária não oferencendo, com isso, nenhum risco de, pelo número, fazer qualquer alteração institucional. Mesmo no sistema paritário, sua força se limita a 1/3 dos votos, portanto ainda são, separadamente,a minoria no sistema eleitoral. O império dos professores continua intacto. Porque tamanho medo?
Por fim, no arcabouço das argumentaçõe dos escritos em questão, é, salvo melhor interpretação, possível se extrair – o que me parece igualmente expressivo – uma manifesta falta de consideração quanto ao papel do aluno como aquele que também pensa a universidade e contribui para o processo de construção – não só reprodução – de conhecimentos (se isto é certo nas graduações o é sobretudo nas pós-graduações). Os alunos vezes são tidos como se fossem páginas brancas disponíveis a quaisquer anotações dos seus mestres. A sua condição cidadã – que se opera fortemente quando resolve escrever e interpretar por conta própria suas páginas – é colocada como um comportamento a ser reprimido posto que subversivo às ordens professorais próprias dos sistemas hierarquicos irreflexivos e por isto autoritários. É este ser-sujeito que esta universidade pretende “formar”? Da mesma maneira, os servidores são postos à completa invisibilidade, no sistema de poder e saber, como se suas participações não fossem relevantes dentro do contexto da gestão acadêmica. A universidade não é só o professor, ela não é apenas de seu interesse – isto é o óbvio anotado sob as nossas cabeças – mas se todo o poder lhe for destinado – no caso específico de que estamos a pensar – de ser eleitor majoritário e único eleito – então é fácil concluir que o princípio da gestão democrática não passará de uma mera frase inócua. Aliás…
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sábado, 3 de maio de 2014
Pela democracia na UFSC: Resposta ao Manifesto que exige 70% de peso dos votos à categoria docente (Gabriel Martins)
Por Gabriel Martins*
Nas últimas semanas foi divulgado manifesto de servidores públicos da carreira de magistério superior da UFSC em que se exige que as eleições para reitor dessa universidade, a ocorrer em 2015, tenham os votos dos professores equivalentes a 70% dos votos totais, mesmo sendo os professores apenas 5% do total da comunidade universitária, composta também por estudantes e Técnicos-administrativos em Educação (TAEs). O documento foi divulgado na UFSC e na imprensa catarinense e responde pelos motivos dos pouco menos de 20% dos professores da UFSC terem encaminhado abaixo-assinado à Administração Central da universidade com a exigência do que interpretam ser o cumprimento das leis em torno das “eleições” para reitor na maior universidade de Santa Catarina.
No documento, assinado por 12 servidores, são expostos dois motivos centrais à exigência: (a) a legalidade e (b) o “mérito docente”. Carece o manifesto, portanto, de contextualização e, com base nessa mesma contextualização, falta ao manifesto elementos essenciais para a análise tanto da legalidade quanto do mérito, ao que me proponho aqui a examinar.
O contexto do manifesto
O abaixo-assinado foi elaborado no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos de um Grupo de Trabalho (GT) designado pelo Conselho Universitário da UFSC (CUn) para revisar as regras para a consulta informal à comunidade universitária à escolha dos próximos reitor(a) e vice-reitor(a) da Instituição.
No decorrer dos trabalhos do GT foi divulgado um texto chamando a comunidade universitária para debater as formas legais possíveis de consulta, sendo apontada a discrepância dos regramentos formais, que não atendem a critérios democráticos por considerarem que cidadãos brasileiros se distinguem quando estão na Universidade. Para esclarecer os aspectos centrais dessa questão, abordarei aqui tanto a legalidade quanto o “mérito docente”, de modo a deixar claro que não há qualquer ilegalidade em os professores não terem peso 70% nas “eleições” para reitor. Viso também deixar claro que o alegado “mérito docente”, que justificaria o fato de os professores serem os únicos capazes de escolher o reitor das universidades, não tem consistência dentro das universidades brasileiras, conforme estão regradas pela Constituição de 1988. Ou seja, ou os autores do manifesto exigem o cumprimento integral das leis e aceitam que o “mérito docente” não é condizente com os argumentos apontados, ou defendem o “mérito docente” e contrariam a lei. Mas analisemos primeiro a legislação para as “eleições” de reitor nas Instituições Federais de Ensino Superior.
A legislação para as “eleições” para reitor
Em primeiro momento é relevante esclarecer: não existem, legalmente, eleições para reitor nas universidades brasileiras. A lei 5.540 de 1968 – período de exceção do Estado Brasileiro, que vivenciava naquele momento um processo ditatorial que perduraria por cerca de 21 anos – aponta que o cargo de reitor é exclusivamente nomeado pela presidência da República. Com o passar dos anos os decretos que melhor instruíam essa nomeação se alteraram e hoje o que perdura afirma que a presidência nomeia a reitoria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir do quadro de professores da própria instituição e que tenham título de doutorado. Para a escolha desse nome, a universidade elabora uma lista com três nomes de sua preferência, e em ordem de preferência, no que se chama lista tríplice.
Quem elabora a lista tríplice é o órgão deliberativo máximo da universidade no caso da UFSC é o CUn. O CUn tem de encaminhar a lista tríplice a partir de determinados regramentos. Os nomes são auto-indicados, ou seja, tem de haver o compromisso do professor doutor de querer ser reitor. Os nomes auto-indicados (candidatos) são votados pelo CUn, em um processo em que cada conselheiro universitário vota em somente um nome e os três mais votados compõem, em ordem de votação, a lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação (MEC). O CUn é, por força de lei, formado pelo mínimo de 70% de professores.
Mas é possível também, por questões tanto de legalidade quanto de legitimidade, que o CUn faça uma consulta pública aos demais membros da comunidade universitária. Sem esse procedimento, seria possível o mais corrosivo mal a uma democracia: a perpetuação do poder, pois todos os professores do CUn são, por força de lei federal, indicados pelo reitor. Isso ocorre porque da mesma forma como é a presidência da República quem de fato escolhe a reitoria da universidade, é atribuição da reitoria a escolha dos diretores de centros de ensino e pró-reitores. E é atribuição dos diretores dos Centros de Ensino a escolha dos representantes docentes no Conselho Universitário. Ou seja, o reitor, por força de lei, nomeia 70% do Conselho Universitário.
Desse modo, se competir tão somente ao CUn a indicação da lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, pode facilmente ocorrer a perpetuação de poder, pois 70% do CUn é, por lei, nomeado pelo reitor e esses mesmos 70% indicam o reitor.
As consultas são, desse modo, adotadas tanto para a escolha dos nomes da lista tríplice, quanto para a designação de Diretores dos Centros de Ensino, Coordenadorias de Curso etc.
As consultas, a legalidade e a legitimidade
Com a lógica de o CUn indicar os nomes para reitor e o reitor indicar os nomes para o CUn, que é o que obriga a legislação brasileira, as chances de constituição de uma oligarquia na gestão de todas as instâncias da universidade são imensas. Apesar de legal, tal medida não é, contudo, legítima. Imaginemos o que ocorreria se atual administração da UFSC passasse a exigir a lei e nomeasse novos diretores dos Centros de Ensino e representantes docentes para o CUn. A atual reitoria teria, portanto, automaticamente 70% de todas as cadeiras do CUn, que indicaria os novos nomes, em ordem de preferência, para a reitoria a partir de 2016. E ninguém se surpreenderia com uma reeleição ou com a condução de um de seus aliados políticos para a nova gestão, que então indicaria 70% do CUn, que indicaria o novo reitor, e assim, ad eternum, até a completa degeneração das instâncias democráticas e acadêmicas. Ou até o levante da universidade.
A fim de evitar comoções ou degenerações deletérias, as universidades adotam, desde os anos 60, o processo de consulta, que se assemelha a uma eleição. As consultas, contudo, não necessariamente substituem a indicação do CUn, mas indicam o que pensa a comunidade universitária, orientando e legitimando a escolha do Conselho. Na UFSC, as consultas datam de 1991. Nos anos 70, houve colégios eleitorais, sendo o de 1976 emblematicamente composto por 21 professores, 3 estudantes e 1 representante da FIESC. Os estudantes se recusaram a votar.
Atualmente todas as IFES brasileiras realizam consulta à sua comunidade, antes da elaboração da lista tríplice, e, em curiosa proporção, 70% das IFES realiza consulta com peso de votos paritários, ou seja, 33% dos votos da consulta é relativo a cada categoria (professores, TAEs e estudantes).
As consultas formais e informais
Há, conforme orientação do MEC, duas formas de consulta: as consultas formais e as consultas informais. A palavra formal diz respeito, é importante ressaltar, ao termo forma não ao termo legítimo, como pode, por vezes, parecer. O que diferencia, portanto, as consultas formais das consultas informais não é a formalidade do ato de consultar, ou quem realiza a consulta, mas o fato de que as consultas formais têm a forma pré-estabelecida de 70% dos votos válidos serem de servidores docentes (professores) e os outros 30% entre as restantes categorias. As consultas formais podem ter como consequência a possibilidade do colegiado eleitoral responsável por elaborar os documentos de encaminhamento da lista tríplice, havendo, portanto, a delegação de uma atividade do CUn para outro fórum.
A consulta informal, por seu turno, é um processo de consulta sem forma definida (por isso, reitero, o termo informal, que quer dizer aqui, sem forma) e que, desse modo, pode ter qualquer forma, sem haver desrespeito às normas postas. A maioria das consultas informais é paritária, mas nada impossibilita ou impede a consulta universal, ou seja, a instituição de uma forma de consulta que considera que o voto de qualquer indivíduo da comunidade universitária valha o mesmo que o de outro indivíduo, independente do vínculo estabelecido.
A consulta informal pode ser organizada por qualquer órgão ou entidade, e não há restrição legal para ser organizada por colegiado por delegação do CUn, desde que, após a consulta, os resultados sejam meramente norteadores. Ou seja, após a consulta, o CUn realiza uma eleição e elabora a lista tríplice, sem delegar qualquer atividade a outro grupo, colegiado ou órgão. Dessa forma, a despeito do afirmado de que esta consulta seria obrigação do CUn e que a consulta informal seria “terceirização” das atividades daquele Conselho, o que ocorre é justamente o contrário: com a consulta formal o CUn abdica de formular a lista tríplice, e com a consulta informal, o resultado da consulta volta ao CUn, que procede a formação da lista tríplice sem estar obrigado a consentir com os resultados da consulta.
O GT Democracia UFSC e a proposta polêmica
A crítica recebida de “terceirização das atividades do CUn” ao haver a sugestão de revisão das normas da consulta informal à comunidade é infundada, pois conforme ressaltei acima, o GT instituído pelo próprio CUn em análise à legislação vigente apontou para a necessidade de o CUn, diante de sua responsabilidade de envio da lista tríplice ao MEC, realizar anterior consulta à comunidade universitária, a fim de atender aos anseios dessa mesma comunidade, em acordo com os princípios democráticos e considerando que todos os membros da comunidade universitária possuem igualdade de condições de discernir, dentre os candidatos possíveis, quais os que possuem o mais relevante mérito de formular um programa legítimo perante a comunidade que representará por quatro anos.
Há quase 221 anos atrás a França escandalizava o mundo com a regulamentação do voto universal (para homens, diga-se de passagem). No mundo todo houve inúmeras teorizações sobre o valor dos homens ricos em detrimento dos homens pobres. Julgava-se que alguém sem posses era alguém incapaz de decidir por seu próprio futuro. Em verdade o que estava em jogo era a possibilidade de tributação da riqueza, que somente seria proposta por quem não fosse parte dos mais ricos. Hoje ninguém contesta o voto universal, extensivo agora (nada mais justo) às mulheres e a todos aqueles que são considerados passiveis de responderem por seus próprios atos. Ou seja, se um indivíduo é passível de responder por seus atos, ele é também passível de responder e opinar sobre o futuro de sua comunidade. Isso só não ocorre nas ditaduras.
Na Revolução Francesa, considerou-se que o voto era um direito inalienável de todo o ser humano, sendo equiparado ao direito à vida, por ser considerado o direito de decidir livremente por sua própria vida em sociedade.
Considerando todos esses aspectos, além dos conceitos de cidadania, o GT denominado “Democracia” propôs o voto universal, pois se para escolher o Presidente da República que é quem de fato nomeia os reitores, todos os membros da comunidade universitária com mais 16 anos têm o voto de mesmo peso, porque então para escolher quem integrará a lista tríplice a ser enviada para esse mesmo presidente seria diferente?
O voto universal não coloca em xeque que quem será o reitor ou reitora será um professor de magistério superior com título de doutorado, o que quer dizer que toda a apelação para que os professores decidam (sozinhos, ou praticamente sozinhos) o futuro da universidade não tem cabimento, pois só essa categoria pode ser dirigente máximo das universidades brasileiras, conforme largamente argumentado no Relatório Final do GT Democracia UFSC, disponível na página www.gtdemocracianaufsc.wordpress.com
A argumentação em torno do que aqui chamo de “mérito docente” do manifesto redigido pelos 12 professores da UFSC utiliza-se de vasto arsenal para apontar como somente os docentes podem direcionar as universidades em um protesto que não levava em consideração que a proposição de voto universal é, infelizmente, limitada ao voto, não a quem pode se eleger. Ou seja, independente da forma de consulta, somente professores do magistério com título de doutor podem assumir o cargo de reitor.
O vasto arsenal argumentativo em defesa do “mérito docente” era, portanto, irrelevante, a não ser que se considerasse que nem mesmo votar as demais categorias seriam capazes. Apesar de desnecessário, seu uso foi além de exagerada, carregado de sérios problemas, os quais não posso me furtar de comentar.
Quem é a base intelectual da universidade
No manifesto que circulou um pouco na universidade e um pouco mais na mídia se afirma que “O professor é a base intelectual da universidade. É ele quem cria as disciplinas e os programas de graduação e pós-graduação e quem estabelece e coordena os projetos de pesquisa e extensão. É o professor o responsável pelo domínio, produção e difusão do saber e pela formação dos nossos quadros, necessários ao desenvolvimento do país”. Há aqui, no entanto, afirmações bastante imprecisas.
(I)Em primeiro momento a produção do saber humano não é responsabilidade, nem, muito menos, exclusividade da docência. O professor não fundou o saber e a humanidade produz conhecimento em muitas outras áreas que não são abrangidas pela universidade.
(II)Se a produção do conhecimento não é exclusividade dos professores universitários, o ensino também não é atividade de um único sujeito. Não existe ensino sem aprendizagem, e esse processo de ensinar em nada se assemelha a uma transmissão de conhecimentos a um sujeito desprovido de saberes. O ensino-aprendizagem é um processo mais amplo em que os estudantes são tão sujeitos quanto os docentes, ainda que com momentos predominantes distintos.
(III) Se não é exclusividade docente a produção do conhecimento e o domínio do processo de ensino-aprendizagem, tampouco lhe são exclusivas as atividades de pesquisa e extensão. Conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as atividades de ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. Ou seja, não podem as universidades desenvolver atividades exclusivamente de ensino, ou de pesquisa ou de extensão. Além disso, os projetos de pesquisa têm de visar ao desenvolvimento do conhecimento e dos saberes humanos, que retornarão ao processo de ensino-aprendizagem, e os projetos de extensão apontam para outras formas de disseminação e desenvolvimento do conhecimento, que igualmente refluem ao processo de ensino-aprendizagem.
Se são indissociáveis, todas essas atividades fazem parte de um grande processo que é a produção, sistematização e socialização dos conhecimentos humanos em quaisquer áreas, e esse grande processo tem, em seus momentos constitutivos outros sujeitos que não professores, isso significa que o professor não é a base intelectual da universidade, mas uma dessas bases. Ora, se são indissociáveis as atividades de ensino, pesquisa e extensão e existem projetos de pesquisa e projetos de extensão que são coordenados e desenvolvidos por técnicos-administrativos em Educação (TAEs), isso quer dizer que essa categoria é muito mais que um mero suporte técnico e administrativo, mas é também parte constitutiva da produção, sistematização e socialização de conhecimentos.
São inúmeros os projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos pelos TAEs da UFSC hoje, e variam de áreas técnicas, às ciências humanas, além de muitos projetos de pesquisa e extensão na área artística. Disso devem saber todos na universidade, ou ao menos todos aqueles que veem a universidade como algo mais que um grande colégio de estudantes letárgicos a receberem conhecimentos transmitidos por seres iluminados. A universidade, não somente as “boas universidade do mundo”, é um local de universalização do conhecimento, não somente no que diz respeito a quem “recebe” este conhecimento, mas em relação também a quem produz e sistematiza muito mais que disciplinas, mas saberes humanos.
* Gabriel Martins trabalha como Administrador no Centro de Ciências da Educação da UFSC, onde atua como Coordenador Administrativo desde que deixou o cargo de Coordenador de Apoio Pedagógico junto à Pró-reitoria de Graduação. Graduado e mestre em Administração pela UFSC, está no último ano do doutorado na UFRJ. É atualmente também coordenador de pesquisas aprovadas pela UFSC nas áreas de Políticas Públicas e coordena atualmente projetos de extensão nas áreas de literatura e teatro. Desde abril 2013 é conselheiro universitário e foi designado presidente do GT Democracia UFSC, cujo Relatório Final propondo o voto universal para a próxima consulta para reitor da UFSC foi entregue no dia 10 de abril de 2014.
Nas últimas semanas foi divulgado manifesto de servidores públicos da carreira de magistério superior da UFSC em que se exige que as eleições para reitor dessa universidade, a ocorrer em 2015, tenham os votos dos professores equivalentes a 70% dos votos totais, mesmo sendo os professores apenas 5% do total da comunidade universitária, composta também por estudantes e Técnicos-administrativos em Educação (TAEs). O documento foi divulgado na UFSC e na imprensa catarinense e responde pelos motivos dos pouco menos de 20% dos professores da UFSC terem encaminhado abaixo-assinado à Administração Central da universidade com a exigência do que interpretam ser o cumprimento das leis em torno das “eleições” para reitor na maior universidade de Santa Catarina.
No documento, assinado por 12 servidores, são expostos dois motivos centrais à exigência: (a) a legalidade e (b) o “mérito docente”. Carece o manifesto, portanto, de contextualização e, com base nessa mesma contextualização, falta ao manifesto elementos essenciais para a análise tanto da legalidade quanto do mérito, ao que me proponho aqui a examinar.
O contexto do manifesto
O abaixo-assinado foi elaborado no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos de um Grupo de Trabalho (GT) designado pelo Conselho Universitário da UFSC (CUn) para revisar as regras para a consulta informal à comunidade universitária à escolha dos próximos reitor(a) e vice-reitor(a) da Instituição.
No decorrer dos trabalhos do GT foi divulgado um texto chamando a comunidade universitária para debater as formas legais possíveis de consulta, sendo apontada a discrepância dos regramentos formais, que não atendem a critérios democráticos por considerarem que cidadãos brasileiros se distinguem quando estão na Universidade. Para esclarecer os aspectos centrais dessa questão, abordarei aqui tanto a legalidade quanto o “mérito docente”, de modo a deixar claro que não há qualquer ilegalidade em os professores não terem peso 70% nas “eleições” para reitor. Viso também deixar claro que o alegado “mérito docente”, que justificaria o fato de os professores serem os únicos capazes de escolher o reitor das universidades, não tem consistência dentro das universidades brasileiras, conforme estão regradas pela Constituição de 1988. Ou seja, ou os autores do manifesto exigem o cumprimento integral das leis e aceitam que o “mérito docente” não é condizente com os argumentos apontados, ou defendem o “mérito docente” e contrariam a lei. Mas analisemos primeiro a legislação para as “eleições” de reitor nas Instituições Federais de Ensino Superior.
A legislação para as “eleições” para reitor
Em primeiro momento é relevante esclarecer: não existem, legalmente, eleições para reitor nas universidades brasileiras. A lei 5.540 de 1968 – período de exceção do Estado Brasileiro, que vivenciava naquele momento um processo ditatorial que perduraria por cerca de 21 anos – aponta que o cargo de reitor é exclusivamente nomeado pela presidência da República. Com o passar dos anos os decretos que melhor instruíam essa nomeação se alteraram e hoje o que perdura afirma que a presidência nomeia a reitoria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir do quadro de professores da própria instituição e que tenham título de doutorado. Para a escolha desse nome, a universidade elabora uma lista com três nomes de sua preferência, e em ordem de preferência, no que se chama lista tríplice.
Quem elabora a lista tríplice é o órgão deliberativo máximo da universidade no caso da UFSC é o CUn. O CUn tem de encaminhar a lista tríplice a partir de determinados regramentos. Os nomes são auto-indicados, ou seja, tem de haver o compromisso do professor doutor de querer ser reitor. Os nomes auto-indicados (candidatos) são votados pelo CUn, em um processo em que cada conselheiro universitário vota em somente um nome e os três mais votados compõem, em ordem de votação, a lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação (MEC). O CUn é, por força de lei, formado pelo mínimo de 70% de professores.
Mas é possível também, por questões tanto de legalidade quanto de legitimidade, que o CUn faça uma consulta pública aos demais membros da comunidade universitária. Sem esse procedimento, seria possível o mais corrosivo mal a uma democracia: a perpetuação do poder, pois todos os professores do CUn são, por força de lei federal, indicados pelo reitor. Isso ocorre porque da mesma forma como é a presidência da República quem de fato escolhe a reitoria da universidade, é atribuição da reitoria a escolha dos diretores de centros de ensino e pró-reitores. E é atribuição dos diretores dos Centros de Ensino a escolha dos representantes docentes no Conselho Universitário. Ou seja, o reitor, por força de lei, nomeia 70% do Conselho Universitário.
Desse modo, se competir tão somente ao CUn a indicação da lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, pode facilmente ocorrer a perpetuação de poder, pois 70% do CUn é, por lei, nomeado pelo reitor e esses mesmos 70% indicam o reitor.
As consultas são, desse modo, adotadas tanto para a escolha dos nomes da lista tríplice, quanto para a designação de Diretores dos Centros de Ensino, Coordenadorias de Curso etc.
As consultas, a legalidade e a legitimidade
Com a lógica de o CUn indicar os nomes para reitor e o reitor indicar os nomes para o CUn, que é o que obriga a legislação brasileira, as chances de constituição de uma oligarquia na gestão de todas as instâncias da universidade são imensas. Apesar de legal, tal medida não é, contudo, legítima. Imaginemos o que ocorreria se atual administração da UFSC passasse a exigir a lei e nomeasse novos diretores dos Centros de Ensino e representantes docentes para o CUn. A atual reitoria teria, portanto, automaticamente 70% de todas as cadeiras do CUn, que indicaria os novos nomes, em ordem de preferência, para a reitoria a partir de 2016. E ninguém se surpreenderia com uma reeleição ou com a condução de um de seus aliados políticos para a nova gestão, que então indicaria 70% do CUn, que indicaria o novo reitor, e assim, ad eternum, até a completa degeneração das instâncias democráticas e acadêmicas. Ou até o levante da universidade.
A fim de evitar comoções ou degenerações deletérias, as universidades adotam, desde os anos 60, o processo de consulta, que se assemelha a uma eleição. As consultas, contudo, não necessariamente substituem a indicação do CUn, mas indicam o que pensa a comunidade universitária, orientando e legitimando a escolha do Conselho. Na UFSC, as consultas datam de 1991. Nos anos 70, houve colégios eleitorais, sendo o de 1976 emblematicamente composto por 21 professores, 3 estudantes e 1 representante da FIESC. Os estudantes se recusaram a votar.
Atualmente todas as IFES brasileiras realizam consulta à sua comunidade, antes da elaboração da lista tríplice, e, em curiosa proporção, 70% das IFES realiza consulta com peso de votos paritários, ou seja, 33% dos votos da consulta é relativo a cada categoria (professores, TAEs e estudantes).
As consultas formais e informais
Há, conforme orientação do MEC, duas formas de consulta: as consultas formais e as consultas informais. A palavra formal diz respeito, é importante ressaltar, ao termo forma não ao termo legítimo, como pode, por vezes, parecer. O que diferencia, portanto, as consultas formais das consultas informais não é a formalidade do ato de consultar, ou quem realiza a consulta, mas o fato de que as consultas formais têm a forma pré-estabelecida de 70% dos votos válidos serem de servidores docentes (professores) e os outros 30% entre as restantes categorias. As consultas formais podem ter como consequência a possibilidade do colegiado eleitoral responsável por elaborar os documentos de encaminhamento da lista tríplice, havendo, portanto, a delegação de uma atividade do CUn para outro fórum.
A consulta informal, por seu turno, é um processo de consulta sem forma definida (por isso, reitero, o termo informal, que quer dizer aqui, sem forma) e que, desse modo, pode ter qualquer forma, sem haver desrespeito às normas postas. A maioria das consultas informais é paritária, mas nada impossibilita ou impede a consulta universal, ou seja, a instituição de uma forma de consulta que considera que o voto de qualquer indivíduo da comunidade universitária valha o mesmo que o de outro indivíduo, independente do vínculo estabelecido.
A consulta informal pode ser organizada por qualquer órgão ou entidade, e não há restrição legal para ser organizada por colegiado por delegação do CUn, desde que, após a consulta, os resultados sejam meramente norteadores. Ou seja, após a consulta, o CUn realiza uma eleição e elabora a lista tríplice, sem delegar qualquer atividade a outro grupo, colegiado ou órgão. Dessa forma, a despeito do afirmado de que esta consulta seria obrigação do CUn e que a consulta informal seria “terceirização” das atividades daquele Conselho, o que ocorre é justamente o contrário: com a consulta formal o CUn abdica de formular a lista tríplice, e com a consulta informal, o resultado da consulta volta ao CUn, que procede a formação da lista tríplice sem estar obrigado a consentir com os resultados da consulta.
O GT Democracia UFSC e a proposta polêmica
A crítica recebida de “terceirização das atividades do CUn” ao haver a sugestão de revisão das normas da consulta informal à comunidade é infundada, pois conforme ressaltei acima, o GT instituído pelo próprio CUn em análise à legislação vigente apontou para a necessidade de o CUn, diante de sua responsabilidade de envio da lista tríplice ao MEC, realizar anterior consulta à comunidade universitária, a fim de atender aos anseios dessa mesma comunidade, em acordo com os princípios democráticos e considerando que todos os membros da comunidade universitária possuem igualdade de condições de discernir, dentre os candidatos possíveis, quais os que possuem o mais relevante mérito de formular um programa legítimo perante a comunidade que representará por quatro anos.
Há quase 221 anos atrás a França escandalizava o mundo com a regulamentação do voto universal (para homens, diga-se de passagem). No mundo todo houve inúmeras teorizações sobre o valor dos homens ricos em detrimento dos homens pobres. Julgava-se que alguém sem posses era alguém incapaz de decidir por seu próprio futuro. Em verdade o que estava em jogo era a possibilidade de tributação da riqueza, que somente seria proposta por quem não fosse parte dos mais ricos. Hoje ninguém contesta o voto universal, extensivo agora (nada mais justo) às mulheres e a todos aqueles que são considerados passiveis de responderem por seus próprios atos. Ou seja, se um indivíduo é passível de responder por seus atos, ele é também passível de responder e opinar sobre o futuro de sua comunidade. Isso só não ocorre nas ditaduras.
Na Revolução Francesa, considerou-se que o voto era um direito inalienável de todo o ser humano, sendo equiparado ao direito à vida, por ser considerado o direito de decidir livremente por sua própria vida em sociedade.
Considerando todos esses aspectos, além dos conceitos de cidadania, o GT denominado “Democracia” propôs o voto universal, pois se para escolher o Presidente da República que é quem de fato nomeia os reitores, todos os membros da comunidade universitária com mais 16 anos têm o voto de mesmo peso, porque então para escolher quem integrará a lista tríplice a ser enviada para esse mesmo presidente seria diferente?
O voto universal não coloca em xeque que quem será o reitor ou reitora será um professor de magistério superior com título de doutorado, o que quer dizer que toda a apelação para que os professores decidam (sozinhos, ou praticamente sozinhos) o futuro da universidade não tem cabimento, pois só essa categoria pode ser dirigente máximo das universidades brasileiras, conforme largamente argumentado no Relatório Final do GT Democracia UFSC, disponível na página www.gtdemocracianaufsc.wordpress.com
A argumentação em torno do que aqui chamo de “mérito docente” do manifesto redigido pelos 12 professores da UFSC utiliza-se de vasto arsenal para apontar como somente os docentes podem direcionar as universidades em um protesto que não levava em consideração que a proposição de voto universal é, infelizmente, limitada ao voto, não a quem pode se eleger. Ou seja, independente da forma de consulta, somente professores do magistério com título de doutor podem assumir o cargo de reitor.
O vasto arsenal argumentativo em defesa do “mérito docente” era, portanto, irrelevante, a não ser que se considerasse que nem mesmo votar as demais categorias seriam capazes. Apesar de desnecessário, seu uso foi além de exagerada, carregado de sérios problemas, os quais não posso me furtar de comentar.
Quem é a base intelectual da universidade
No manifesto que circulou um pouco na universidade e um pouco mais na mídia se afirma que “O professor é a base intelectual da universidade. É ele quem cria as disciplinas e os programas de graduação e pós-graduação e quem estabelece e coordena os projetos de pesquisa e extensão. É o professor o responsável pelo domínio, produção e difusão do saber e pela formação dos nossos quadros, necessários ao desenvolvimento do país”. Há aqui, no entanto, afirmações bastante imprecisas.
(I)Em primeiro momento a produção do saber humano não é responsabilidade, nem, muito menos, exclusividade da docência. O professor não fundou o saber e a humanidade produz conhecimento em muitas outras áreas que não são abrangidas pela universidade.
(II)Se a produção do conhecimento não é exclusividade dos professores universitários, o ensino também não é atividade de um único sujeito. Não existe ensino sem aprendizagem, e esse processo de ensinar em nada se assemelha a uma transmissão de conhecimentos a um sujeito desprovido de saberes. O ensino-aprendizagem é um processo mais amplo em que os estudantes são tão sujeitos quanto os docentes, ainda que com momentos predominantes distintos.
(III) Se não é exclusividade docente a produção do conhecimento e o domínio do processo de ensino-aprendizagem, tampouco lhe são exclusivas as atividades de pesquisa e extensão. Conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as atividades de ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. Ou seja, não podem as universidades desenvolver atividades exclusivamente de ensino, ou de pesquisa ou de extensão. Além disso, os projetos de pesquisa têm de visar ao desenvolvimento do conhecimento e dos saberes humanos, que retornarão ao processo de ensino-aprendizagem, e os projetos de extensão apontam para outras formas de disseminação e desenvolvimento do conhecimento, que igualmente refluem ao processo de ensino-aprendizagem.
Se são indissociáveis, todas essas atividades fazem parte de um grande processo que é a produção, sistematização e socialização dos conhecimentos humanos em quaisquer áreas, e esse grande processo tem, em seus momentos constitutivos outros sujeitos que não professores, isso significa que o professor não é a base intelectual da universidade, mas uma dessas bases. Ora, se são indissociáveis as atividades de ensino, pesquisa e extensão e existem projetos de pesquisa e projetos de extensão que são coordenados e desenvolvidos por técnicos-administrativos em Educação (TAEs), isso quer dizer que essa categoria é muito mais que um mero suporte técnico e administrativo, mas é também parte constitutiva da produção, sistematização e socialização de conhecimentos.
São inúmeros os projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos pelos TAEs da UFSC hoje, e variam de áreas técnicas, às ciências humanas, além de muitos projetos de pesquisa e extensão na área artística. Disso devem saber todos na universidade, ou ao menos todos aqueles que veem a universidade como algo mais que um grande colégio de estudantes letárgicos a receberem conhecimentos transmitidos por seres iluminados. A universidade, não somente as “boas universidade do mundo”, é um local de universalização do conhecimento, não somente no que diz respeito a quem “recebe” este conhecimento, mas em relação também a quem produz e sistematiza muito mais que disciplinas, mas saberes humanos.
* Gabriel Martins trabalha como Administrador no Centro de Ciências da Educação da UFSC, onde atua como Coordenador Administrativo desde que deixou o cargo de Coordenador de Apoio Pedagógico junto à Pró-reitoria de Graduação. Graduado e mestre em Administração pela UFSC, está no último ano do doutorado na UFRJ. É atualmente também coordenador de pesquisas aprovadas pela UFSC nas áreas de Políticas Públicas e coordena atualmente projetos de extensão nas áreas de literatura e teatro. Desde abril 2013 é conselheiro universitário e foi designado presidente do GT Democracia UFSC, cujo Relatório Final propondo o voto universal para a próxima consulta para reitor da UFSC foi entregue no dia 10 de abril de 2014.
sábado, 23 de novembro de 2013
Universidade, entre agroecologia e agronegócio (Luciana Jacob)

Por Luciana Jacob | Fotografia: Jorge Luiz Campos
Como instituição social que é, a universidade expressa a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade, em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão e em sua gestão. Assim, tal qual a sociedade, a universidade é constituída não só por diferentes visões de mundo, como principalmente por visões conflitantes: a produção de conhecimento e sua incorporação nos currículos universitários são processos atravessados por relações de poder.
A articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a formação de profissionais para as demandas explícitas do mercado. Isto fica evidente nas formas curriculares, na escolha de quais conhecimentos devem fazer parte da formação e tornar-se objetos de pesquisa e, principalmente, nas ausências que denunciam o descaso legado a projetos contra-hegemônicos. As atividades universitárias foram atingidas por forças que amplificaram sua condição de dependência à globalização neoliberal, afastando-se das demandas sociais necessárias para um projeto democrático de país. Elas têm se aproximado do mundo empresarial, relegando a segundo plano o interesse público.
Social e historicamente construídos, os saberes produzidos pela universidade são eleitos por determinados grupos sociais como legítimos, credíveis e merecedores de serem reproduzidos a determinados grupos sociais.
Que saberes e grupos sociais são incluídos e quais são excluídos da universidade e, em decorrência, quais divisões sociais são produzidas e reforçadas? Qual o significado da ausência de determinados saberes na universidade? É um silêncio genuíno ou fruto de um silenciamento, ou seja, de uma imposição epistemológica?
A degradação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais muito graves da crise do mundo globalizado. Na agricultura, assistimos à perda da soberania alimentar, à fome, à violência no campo, à perda de diversidade genética e dos solos, ao avanço da concentração de terras, ao desmatamento, ao envenenamento por agrotóxicos. Paralelamente, temos assistido a uma ofensiva aterradora de setores conservadores do Congresso Nacional sobre os direitos fundamentais de indígenas, contra o Código Florestal e a Lei de Biossegurança. Presenciamos a aprovação indiscriminada de transgênicos, sem os estudos necessários e a devida responsabilidade social e científica.
De modo predominante, a universidade contribui para a manutenção do paradigma hegemônico, formando pessoas aptas a lhe dar continuidade e produzir conhecimento que alimenta e fortalece seus preceitos. Na área de Ciências Agrárias, as atividades acadêmicas geralmente se articulam em torno do paradigma do agronegócio como cânone de desenvolvimento do país. E, como sabemos, a razão que permeia o agronegócio tem como características o capitalismo e a globalização neoliberal; a total dependência de insumos finitos e externos ao sistema agrícola; a simplificação genética; a concentração de terras e riquezas; entre outros – aspectos completamente avessos à sustentabilidade socioambiental.
A organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou recentemente o Relatório de 2013 sobre Comércio e Meio Ambiente, intitulado “Acorde antes que seja tarde demais: torne a agricultura verdadeiramente sustentável agora para a segurança alimentar em um clima em mudança” (em tradução livre do inglês). O relatório, para além de alertar sobre os danos do paradigma hegemônico de produção agrícola, aponta a adoção da agroecologia como fundamental para evitar o agravamento da crise socioambiental e prováveis crises alimentares futuras – exatamente o oposto do que vem sendo desenvolvido pela grande parte das universidades brasileiras.
A construção de uma racionalidade ambiental para o enfrentamento destes problemas – em oposição à racionalidade econômica – exige a elaboração de novos saberes e, principalmente, a participação dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade na construção destes saberes. No espaço da universidade, isto implica a internalização das discussões socioambientais nas atividades de ensino e pesquisa, a abertura do diálogo com outras formas de saber e o repensar do papel da extensão universitária na perspectiva que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia de saberes.
Assento esta ideia em três pressupostos. A abundância de conhecimento no mundo é muito superior ao o conhecimento disponível em um currículo de determinada área. Além disso, a escolha de quais conhecimentos são legítimos e válidos é feita pelos grupos sociais dominantes e que assim o são pois historicamente oprimiram os grupos sociais hoje excluídos. Por fim, esta relação de poder guarda em si a força da hierarquização: os saberes que não passam nesse crivo são considerados alternativos, lendas, crenças, locais, ou seja, são descredibilizados.
Como avançar na construção de conhecimento socioambiental destinado à transformação social, quando a cultura e os saberes de camponeses e camponesas foram marginalizados e deslegitimados? Como dissolver o muro que tem separado a universidade das lutas sociais de modo geral e, especificamente, da agroecologia e soberania alimentar?
Proponho três alternativas que, se não completas e definitivas, se configuram como desafios para estas transformações.
Primeiro: mudanças nas prioridades da universidade – o que, como e para quem pesquisar e ensinar – não se operam de forma desconectada das estruturas sociais. Embora possa ser espaço de resistência, questionamento e promoção de transformação social, a universidade é sobretudo reprodutora de paradigmas mais amplos e funciona de acordo com dinâmicas sociais que por vezes a transcendem. Assim, não há possibilidade de se construir conhecimento contra-hegemônico de forma descolada dos grupos que mais sofrem as violências do conhecimento hegemônico nem à revelia de outros setores da sociedade. Há a necessidade de se avançar para uma ecologia de saberes que, segundo Boaventura, é o confrontamento da monocultura do saber e do rigor científico pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em práticas sociais.
O segundo é que as mudanças não podem ser implementadas apenas por alguns, mas é pela força de alguns poucos que elas ganharão projeção institucional. Sua promoção faz sentido em contextos específicos, com lutas conectadas com a história de cada instituição, apesar de fortalecerem e serem fortalecidas por lutas mais amplas, de outros grupos sociais, de outros lugares, de outros movimentos, de outras escalas e outras identidades culturais – ou seja, inserida em uma globalização contra-hegemônica.
O terceiro é que não há possibilidade de se pensar a inclusão de saberes socioambientais na universidade sem que isto seja tratado em termos epistemológicos e metodológicos. Epistemológicos porque promover o debate sobre sustentabilidade na universidade requer uma ecologia de saberes que luta contra a injustiça cognitiva. E metodológicos, uma vez que a inserção deste saber, pela sua própria complexidade, está imbricado também no questionamento crítico acerca dos métodos e estruturas em que se pauta atualmente o ensino superior.
(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/universidade-entre-agroecologia-e-agronegocio/)
sábado, 24 de agosto de 2013
A terceirização da ética
"370 anos antes de Cristo (a.C), Hipócrates deixou como herança um juramento que serve de modelo até hoje, pra todo profissional da medicina, quando da diplomação.
Juramento de Hipócrates:
“Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.”
Em 1957, orador da turma, foi em cima desse ensinamento que ousei falar, ousei pregar, sob o título “A Função Social do Médico e os Imperativos da Hora Presente”.
Os anos passam, mas as verdades permanecem.
Pouco importa os desvios e os descaminhos dos que não honraram seu juramento, muitos, mais vítimas do que réus do sistema.
Todos nós sabemos que a Economia e a Ética nem sempre andam juntas.
Daí compreender que o economista Ministro da Educação, de maneira autoritária, não ouça os que praticam e ensinam a medicina no Brasil e ouse mudar currículos, determinar regras, estabelecer critérios, de maneira autoritária e interesseira, própria dos politiqueiros tradicionais desse país.
Data vênia, não é natural que o Ministro da Educação Mercadante, mercadeje com a dignidade da medicina brasileira.
Cousa pior faz o médico Padilha, juramentado com Hipócrates, terceirizando a mão-de-obra médica sob a alegação, sempre esperta e malandra de atender o interesse público.
Parabéns ao Ministério Público do Trabalho que atento, percebeu as contradições de um Governo que perdeu o respeito pela sua própria história.
Pouco importa que a mercantilização na medicina tenha acontecido, que a indústria farmacêutica tenha corrompido profissionais, fazendo da saúde um negócio.
Pouco importa que os erros médicos nesse país não sejam punidos como deveriam.
Pouco importa que não tenham planejado como Governo, a falta de profissionais médicos e paramédicos.
Pouco importa que tenham preferido estádios à hospitais.
Marx, Hegel, Bobbio, Adam Smith, Gramsci, pensaram muito sobre o problema da “mais valia”, tema atual até hoje.
Comprar mão-de-obra barata de maneira oficial entre governos, que serão remuneradas à critério dos patrões, é inacreditável.
O Brasil já vive a vergonha do aluguel do seu esporte preferido aos quadrilheiros da FIFA que além de suspenderem temporariamente a legislação brasileira, determinam regras até mesmo para os catadores de lixo e baianas vendedoras de acarajé, com a complacência inaceitável, dos que se dizem socialistas.
É a Economia sem Ética da “mais valia”, praticada pelos que tinham que ter mais consciência.
Em tempo, recebamos nossos médicos cubanos com solidariedade.
Que a saga trágica do povo cubano, que nós reverenciamos na juventude, na figura libertária de Che Guevara, seja respeitada.
Que os “médicos da família” que para aqui vêm, impedidos de trazer as suas próprias, protegidas como reféns, mereçam nossa acolhida e conforto.
Manipular necessidades sociais com uma visão oportunista e sacana, com medidas improvisadas, desagregando categorias profissionais, dividindo a sociedade, próprio de bandoleiros, exige coragem para serem denunciadas.
Escusas,
Saudações Democráticas.
JAISON BARRETO"
Juramento de Hipócrates:
“Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.”
Em 1957, orador da turma, foi em cima desse ensinamento que ousei falar, ousei pregar, sob o título “A Função Social do Médico e os Imperativos da Hora Presente”.
Os anos passam, mas as verdades permanecem.
Pouco importa os desvios e os descaminhos dos que não honraram seu juramento, muitos, mais vítimas do que réus do sistema.
Todos nós sabemos que a Economia e a Ética nem sempre andam juntas.
Daí compreender que o economista Ministro da Educação, de maneira autoritária, não ouça os que praticam e ensinam a medicina no Brasil e ouse mudar currículos, determinar regras, estabelecer critérios, de maneira autoritária e interesseira, própria dos politiqueiros tradicionais desse país.
Data vênia, não é natural que o Ministro da Educação Mercadante, mercadeje com a dignidade da medicina brasileira.
Cousa pior faz o médico Padilha, juramentado com Hipócrates, terceirizando a mão-de-obra médica sob a alegação, sempre esperta e malandra de atender o interesse público.
Parabéns ao Ministério Público do Trabalho que atento, percebeu as contradições de um Governo que perdeu o respeito pela sua própria história.
Pouco importa que a mercantilização na medicina tenha acontecido, que a indústria farmacêutica tenha corrompido profissionais, fazendo da saúde um negócio.
Pouco importa que os erros médicos nesse país não sejam punidos como deveriam.
Pouco importa que não tenham planejado como Governo, a falta de profissionais médicos e paramédicos.
Pouco importa que tenham preferido estádios à hospitais.
Marx, Hegel, Bobbio, Adam Smith, Gramsci, pensaram muito sobre o problema da “mais valia”, tema atual até hoje.
Comprar mão-de-obra barata de maneira oficial entre governos, que serão remuneradas à critério dos patrões, é inacreditável.
O Brasil já vive a vergonha do aluguel do seu esporte preferido aos quadrilheiros da FIFA que além de suspenderem temporariamente a legislação brasileira, determinam regras até mesmo para os catadores de lixo e baianas vendedoras de acarajé, com a complacência inaceitável, dos que se dizem socialistas.
É a Economia sem Ética da “mais valia”, praticada pelos que tinham que ter mais consciência.
Em tempo, recebamos nossos médicos cubanos com solidariedade.
Que a saga trágica do povo cubano, que nós reverenciamos na juventude, na figura libertária de Che Guevara, seja respeitada.
Que os “médicos da família” que para aqui vêm, impedidos de trazer as suas próprias, protegidas como reféns, mereçam nossa acolhida e conforto.
Manipular necessidades sociais com uma visão oportunista e sacana, com medidas improvisadas, desagregando categorias profissionais, dividindo a sociedade, próprio de bandoleiros, exige coragem para serem denunciadas.
Escusas,
Saudações Democráticas.
JAISON BARRETO"
domingo, 21 de julho de 2013
Médicos: as falsas polêmicas e o xis do problema (Lilian Terra)
Nota do blog: este é o texto melhor desenvolvido até agora como crítica ao Programa Mais Médicos do governo federal que já li até hoje. Honestamente, deu vontade de chorar, tamanha a satisfação da escritora em traduzir com perfeição tudo aquilo que sei e sinto sobre o tema.
Por Lilian Terra*
O anúncio do programa Mais Médicos pelo governo federal gerou uma forte reação da classe médica, que ainda não foi compreendida pela maioria. A polêmica medida foi adotada pelo governo como resposta a uma das demandas colocadas nas manifestações de junho: saúde pública de qualidade.
O programa consiste basicamente nas seguintes medidas:
• Estende o curso de medicina por mais dois anos de prestação de serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) antes que o médico receba a licença definitiva para clinicar . A formação médica, neste caso, passa a ter oito anos de duração.
• Amplia o número de vagas de residência médica.
• Amplia o número de vagas em medicina nas universidades federais até 2017, sendo 1.815 nos cursos já existentes e 1.800 em novos cursos.
• Prevê a contratação de milhares de médicos para suprir a carência destes profissionais em vários municípios do interior do país. Isso se dará via oferta de bolsa, e não contrato de trabalho. Caso as vagas não sejam preenchidas por médicos brasileiros, serão abertas a profissionais estrangeiros sem necessidade de validação do diploma da faculdade de origem.
As entidades representativas da classe médica, como Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira, Federação Nacional dos Médicos e Associação Brasileira de Educação Médica mostraram-se revoltadas com as medidas anunciadas, principalmente quanto à importação de médicos sem validação do diploma e à instituição de dois anos de serviço obrigatório no SUS. Com isto, deu-se início a um embate entre governo e médicos que tomou conta da imprensa e das redes sociais, sem no entanto aprofundar o debate de um tema tão caro à população.
Não há como negar os avanços do SUS nos últimos dez anos. Houve um aumento de 31,89% na cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), isto é, de 35,7% da população coberta em 2003 para 54,12% em 2013. Em 2003, 4.488 municípios brasileiros contavam com equipes de PSF. Hoje são 5.280 municípios, restando apenas 70 para se atingir a totalidade dos municípios do país.
O programa de Agentes Comunitários de Saúde, que nasceu em 1991 e deu origem ao PSF, foi ampliado em 13.2% e hoje atende 65,04% da população.
A mortalidade infantil atingiu as metas dos Objetivos Do Milênio – estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) — cinco anos antes do prazo. Passamos de 23,3 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, em 2003, para 16, já em 2010.
Houve o Lançamento do Programa Farmácia Popular, que, entre 2003 e 2005, aumentou em 75% o volume de recursos para compra e distribuição gratuita de medicamentos no SUS. Hoje existem 558 farmácias populares administradas pelo governo federal em funcionamento no país, e mais de 20 mil unidades privadas conveniadas ao programa. Desde a sua criação, o programa já beneficiou mais de 18 milhões de brasileiros. Além disso, o ministério da Saúde elevou os investimentos nos laboratórios oficiais, para produção de medicamentos, de R$ 20,7 milhões no período 2001/2002 para R$ 80 milhões em 2004.
Mas não só de avanços vive a saúde pública do Brasil. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Enquanto isso, o Uruguai investiu US$ 817,8, e a Argentina, US$ 869,4. O Reino Unido cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência pelo governo, gastou quase seis vezes mais: US$ 2.747.
Além disso, segundo dados do IPEA, entre 2003 e 2011 o gasto tributário em saúde cresceu de R$7 bilhões para quase R$16 bi. Ocorre que, entre 2003 e 2011, o equivalente a 26% do gasto público federal em saúde por ano, em média, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado. Em 2011, por exemplo, metade do que o governo deixou de arrecadar de empresas ligadas à saúde deveu-se a isenções fiscais concedidas a planos de saúde — o equivalente a R$ 7,7 milhões. O crescimento dessa renúncia fiscal superou, entre 2003 e 2009, o gasto do governo em saúde pública, o que demonstra uma tendência de se privatizar a saúde no Brasil nos moldes do sistema estadunidense, considerado caro e ineficiente. Não é a toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.
No entanto, não é este o debate que se vê na grande imprensa ou nas redes sociais. O governo sabiamente aproveitou a imagem do médico mercantilista e desumano que grande parte da população tem – e a tem porque de fato existem médicos assim – e passou a explorar o médico como o responsável pela falência do SUS. O que a população não tem enxergado, porque não tem acesso a esse tipo de informação, é que quem trabalha pelo SUS, hoje, o faz mais por idealismo que por dinheiro, porque recebe muito menos que no setor privado (que também explora, diga-se de passagem). Portanto, os médicos mais humanos que o ministro da saúde pretende formar já existem, e já são empregados do governo. O que eles desejam são condições de trabalho dignas. Muito do que uma equipe de saúde do SUS faz hoje em dia, no sistema como está, seria prerrogativa do SUAS – Sistema Único de Assistência Social – que na prática não existe. A equipe de saúde muitas vezes cuida até mesmo de transporte, alimentação e moradia de seus pacientes. Há casos em Centros de Assistência Psico-Social, os CAPS, em que a equipe administra até o dinheiro daqueles que não têm condição de fazê-lo mas não conseguem um curador.
Segundo as palavras do ministro Alexandre Padilha, uma das medidas do programa Mais Médicos, os dois anos de serviço prestado no SUS ao final do curso de medicina, serviriam para formar, “médicos especializados em gente”. Porém, os quatro últimos anos do curso de medicina já são em atendimento direto ao SUS, diariamente. São cursados em hospitais, ambulatórios e centros de saúde do Sistema Público de Saúde, inclusive em pequenas cidades sem infra-estrutura. Portanto, ainda na faculdade aprende-se o que é a vida da maior parte da população brasileira, aquela que não tem condições de pagar por saúde privada. Os estudantes que têm empatia por essa situação há muito tempo pregam mais distribuição de renda e menos desigualdade social. Há sempre os que não têm empatia e se voltam contra a “gente pobre” e contra o SUS. Há todo tipo de excrescência na sociedade e na medicina não seria diferente, infelizmente.
O contato com a realidade do país, dessa gente que precisa mais, não transforma todos. É pouco provável que mais dois anos de tal prática “humanizem” esses médicos. Talvez um acompanhamento psicológico ao longo do curso fosse mais proveitoso nesse sentido. Há quem afirme que os recém-formados precisam acostumar-se com o SUS e aprender a atuar dentro do sistema. É importante, porém, frisar que ninguém deve acostumar-se à realidade precária do SUS, porque não é isso que os brasileiros almejam: medicina de pobre e medicina de rico. A exigência expressa nos cartazes das ruas de junho deve ser mantida. Eles diziam; “Queremos saúde padrão FIFA”. Muitos médicos querem trabalhar em uma unidade básica de saúde que seja bela e equipada como o Hospital Sírio Libanês. E querem que a população tenha acesso a esse tipo de sistema. Afinal, quem vai querer sistema privado de saúde se o público for excelente?
A medida, todavia, não é somente inócua, é danosa. Caso sejam instituídos os dois anos de serviço na atenção básica, as equipes de saúde terão um novo médico a cada dois anos. Em se tratando de Saúde da Família, essa medida é muito prejudicial. Ser médico de família é justamente conhecer a fundo a saúde daquela população, de modo a, mais que atuar de forma curativa, poder aplicar medidas preventivas reais — o objetivo maior da saúde pública. Quando o estudante começar a se familiarizar com a cidade e sua população, seus dois anos de serviços estarão no final e ele voltará a sua cidade para se formar e fazer residência. Será necessário criar, do zero, novo vínculo com o estudante que chegar.
Outro ponto que sempre se discute é que os médicos formados em escolas públicas devem uma contrapartida à sociedade. Mas o que se esquece é que educação também é dever do Estado, como está explícito na Constituição de 1988. Portanto, é o Estado que deve a muitos destes estudantes os anos de ensino privado pelos quais pagaram, e deve a todos os outros que não tiveram acesso ao ensino superior público a culpa pela falta de igualdade de condições na luta pelas poucas vagas em universidade públicas. Se todos tivessem acesso a boas escolas públicas, do ensino básico ao superior, essa discussão sequer seria necessária. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em junho deste ano, indica que o investimento em educação no Brasil aumentou de 3,5% para 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2010, alcançando assim a média de investimento dos países da organização, que é de 5,4%. Porém, a forma como têm sido feitos estes gastos mantém a desigualdade no acesso ao ensino. Em 2010, a educação superior recebeu a maior parcela de gastos no Brasil ─ US$ 13.137 por estudante, mais que a média dos países da OCDE, enquanto os investimentos brasileiros em educação primária e secundária foram muito inferiores aos dos países ricos ─ US$ 2.653 por estudante, comparado com US$ 8.412 nos países da OCDE e US$ 11.859 nos EUA. Fica claro que o governo investe mais em educação superior pública, que atende principalmente aos mais abastados, em detrimento do ensino básico. Se a responsabilidade na divisão dos gastos é somente do governo, não faz sentido exigir contra-partida dos egressos das escolas públicas.
Não obstante o mérito inegável de haver médicos estrangeiros ou estudantes supervisionados, onde antes não havia médico algum, o governo considera essa medida a única resposta possível para uma suposta crise da saúde. Não há, porém, crise alguma, uma vez que os indicadores de saúde melhoraram nos últimos anos. O que há é um problema crônico, consequência de anos de subfinanciamento e má-distribuição de gastos. A falta de médicos também já poderia ter sido sanada de forma mais democrática, sem necessidade de obrigatoriedade de serviço para estudantes ou importação de médicos cuja qualidade não será comprovada por meio de exame. Em 2009, as entidades de classe fizeram uma proposta que ainda está em tramitação no Congresso. A categoria sugeriu a instituição da carreira de Estado para médicos, por meio da PEC 454/09. Caso houvesse sido aprovada na ocasião, a falta de médicos sequer estaria em discussão, pois não seria mais realidade no Brasil. Se o governo visasse uma medida mais definitiva, optaria por este meio, ao invés de Medida Provisória enviada às pressas para o Congresso.
Caso o SUS fosse financiado com 10% da arrecadação do Estado, como pedem os médicos, e não se transferisse tanto dinheiro para o sistema privado, tal medida seria perfeitamente possível. Com isto, esse médico e essa equipe de saúde com carreira de Estado lutariam por melhores condições onde trabalham, pois teriam mais vínculo em seu local de atuação. Essa seria a melhor medida que o governo poderia tomar: valorizar o médico, colocá-lo ao lado dos setores financeiramente empobrecidos, para que lutassem juntos por uma saúde de qualidade. Ninguém ganha em uma briga que opõe aqueles que atuam diretamente no atendimento à saúde da população e os que formulam as políticas de saúde pública.
*Lilian Terra é médica formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua na atenção básica do SUS de Campinas- SP, onde faz parte de uma equipe de saúde da família (PSF). É apaixonada pelo projeto do SUS e pela saúde pública e espera que um dia o sistema de saúde brasileiro seja de fato universal e não haja necessidade de se recorrer a Planos de Saúde ou serviços privados.
Por Lilian Terra*
O anúncio do programa Mais Médicos pelo governo federal gerou uma forte reação da classe médica, que ainda não foi compreendida pela maioria. A polêmica medida foi adotada pelo governo como resposta a uma das demandas colocadas nas manifestações de junho: saúde pública de qualidade.
O programa consiste basicamente nas seguintes medidas:
• Estende o curso de medicina por mais dois anos de prestação de serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) antes que o médico receba a licença definitiva para clinicar . A formação médica, neste caso, passa a ter oito anos de duração.
• Amplia o número de vagas de residência médica.
• Amplia o número de vagas em medicina nas universidades federais até 2017, sendo 1.815 nos cursos já existentes e 1.800 em novos cursos.
• Prevê a contratação de milhares de médicos para suprir a carência destes profissionais em vários municípios do interior do país. Isso se dará via oferta de bolsa, e não contrato de trabalho. Caso as vagas não sejam preenchidas por médicos brasileiros, serão abertas a profissionais estrangeiros sem necessidade de validação do diploma da faculdade de origem.
As entidades representativas da classe médica, como Conselho Federal de Medicina, Associação Médica Brasileira, Federação Nacional dos Médicos e Associação Brasileira de Educação Médica mostraram-se revoltadas com as medidas anunciadas, principalmente quanto à importação de médicos sem validação do diploma e à instituição de dois anos de serviço obrigatório no SUS. Com isto, deu-se início a um embate entre governo e médicos que tomou conta da imprensa e das redes sociais, sem no entanto aprofundar o debate de um tema tão caro à população.
Não há como negar os avanços do SUS nos últimos dez anos. Houve um aumento de 31,89% na cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), isto é, de 35,7% da população coberta em 2003 para 54,12% em 2013. Em 2003, 4.488 municípios brasileiros contavam com equipes de PSF. Hoje são 5.280 municípios, restando apenas 70 para se atingir a totalidade dos municípios do país.
O programa de Agentes Comunitários de Saúde, que nasceu em 1991 e deu origem ao PSF, foi ampliado em 13.2% e hoje atende 65,04% da população.
A mortalidade infantil atingiu as metas dos Objetivos Do Milênio – estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) — cinco anos antes do prazo. Passamos de 23,3 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, em 2003, para 16, já em 2010.
Houve o Lançamento do Programa Farmácia Popular, que, entre 2003 e 2005, aumentou em 75% o volume de recursos para compra e distribuição gratuita de medicamentos no SUS. Hoje existem 558 farmácias populares administradas pelo governo federal em funcionamento no país, e mais de 20 mil unidades privadas conveniadas ao programa. Desde a sua criação, o programa já beneficiou mais de 18 milhões de brasileiros. Além disso, o ministério da Saúde elevou os investimentos nos laboratórios oficiais, para produção de medicamentos, de R$ 20,7 milhões no período 2001/2002 para R$ 80 milhões em 2004.
Mas não só de avanços vive a saúde pública do Brasil. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Enquanto isso, o Uruguai investiu US$ 817,8, e a Argentina, US$ 869,4. O Reino Unido cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência pelo governo, gastou quase seis vezes mais: US$ 2.747.
Além disso, segundo dados do IPEA, entre 2003 e 2011 o gasto tributário em saúde cresceu de R$7 bilhões para quase R$16 bi. Ocorre que, entre 2003 e 2011, o equivalente a 26% do gasto público federal em saúde por ano, em média, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado. Em 2011, por exemplo, metade do que o governo deixou de arrecadar de empresas ligadas à saúde deveu-se a isenções fiscais concedidas a planos de saúde — o equivalente a R$ 7,7 milhões. O crescimento dessa renúncia fiscal superou, entre 2003 e 2009, o gasto do governo em saúde pública, o que demonstra uma tendência de se privatizar a saúde no Brasil nos moldes do sistema estadunidense, considerado caro e ineficiente. Não é a toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.
No entanto, não é este o debate que se vê na grande imprensa ou nas redes sociais. O governo sabiamente aproveitou a imagem do médico mercantilista e desumano que grande parte da população tem – e a tem porque de fato existem médicos assim – e passou a explorar o médico como o responsável pela falência do SUS. O que a população não tem enxergado, porque não tem acesso a esse tipo de informação, é que quem trabalha pelo SUS, hoje, o faz mais por idealismo que por dinheiro, porque recebe muito menos que no setor privado (que também explora, diga-se de passagem). Portanto, os médicos mais humanos que o ministro da saúde pretende formar já existem, e já são empregados do governo. O que eles desejam são condições de trabalho dignas. Muito do que uma equipe de saúde do SUS faz hoje em dia, no sistema como está, seria prerrogativa do SUAS – Sistema Único de Assistência Social – que na prática não existe. A equipe de saúde muitas vezes cuida até mesmo de transporte, alimentação e moradia de seus pacientes. Há casos em Centros de Assistência Psico-Social, os CAPS, em que a equipe administra até o dinheiro daqueles que não têm condição de fazê-lo mas não conseguem um curador.
Segundo as palavras do ministro Alexandre Padilha, uma das medidas do programa Mais Médicos, os dois anos de serviço prestado no SUS ao final do curso de medicina, serviriam para formar, “médicos especializados em gente”. Porém, os quatro últimos anos do curso de medicina já são em atendimento direto ao SUS, diariamente. São cursados em hospitais, ambulatórios e centros de saúde do Sistema Público de Saúde, inclusive em pequenas cidades sem infra-estrutura. Portanto, ainda na faculdade aprende-se o que é a vida da maior parte da população brasileira, aquela que não tem condições de pagar por saúde privada. Os estudantes que têm empatia por essa situação há muito tempo pregam mais distribuição de renda e menos desigualdade social. Há sempre os que não têm empatia e se voltam contra a “gente pobre” e contra o SUS. Há todo tipo de excrescência na sociedade e na medicina não seria diferente, infelizmente.
O contato com a realidade do país, dessa gente que precisa mais, não transforma todos. É pouco provável que mais dois anos de tal prática “humanizem” esses médicos. Talvez um acompanhamento psicológico ao longo do curso fosse mais proveitoso nesse sentido. Há quem afirme que os recém-formados precisam acostumar-se com o SUS e aprender a atuar dentro do sistema. É importante, porém, frisar que ninguém deve acostumar-se à realidade precária do SUS, porque não é isso que os brasileiros almejam: medicina de pobre e medicina de rico. A exigência expressa nos cartazes das ruas de junho deve ser mantida. Eles diziam; “Queremos saúde padrão FIFA”. Muitos médicos querem trabalhar em uma unidade básica de saúde que seja bela e equipada como o Hospital Sírio Libanês. E querem que a população tenha acesso a esse tipo de sistema. Afinal, quem vai querer sistema privado de saúde se o público for excelente?
A medida, todavia, não é somente inócua, é danosa. Caso sejam instituídos os dois anos de serviço na atenção básica, as equipes de saúde terão um novo médico a cada dois anos. Em se tratando de Saúde da Família, essa medida é muito prejudicial. Ser médico de família é justamente conhecer a fundo a saúde daquela população, de modo a, mais que atuar de forma curativa, poder aplicar medidas preventivas reais — o objetivo maior da saúde pública. Quando o estudante começar a se familiarizar com a cidade e sua população, seus dois anos de serviços estarão no final e ele voltará a sua cidade para se formar e fazer residência. Será necessário criar, do zero, novo vínculo com o estudante que chegar.
Outro ponto que sempre se discute é que os médicos formados em escolas públicas devem uma contrapartida à sociedade. Mas o que se esquece é que educação também é dever do Estado, como está explícito na Constituição de 1988. Portanto, é o Estado que deve a muitos destes estudantes os anos de ensino privado pelos quais pagaram, e deve a todos os outros que não tiveram acesso ao ensino superior público a culpa pela falta de igualdade de condições na luta pelas poucas vagas em universidade públicas. Se todos tivessem acesso a boas escolas públicas, do ensino básico ao superior, essa discussão sequer seria necessária. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em junho deste ano, indica que o investimento em educação no Brasil aumentou de 3,5% para 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2010, alcançando assim a média de investimento dos países da organização, que é de 5,4%. Porém, a forma como têm sido feitos estes gastos mantém a desigualdade no acesso ao ensino. Em 2010, a educação superior recebeu a maior parcela de gastos no Brasil ─ US$ 13.137 por estudante, mais que a média dos países da OCDE, enquanto os investimentos brasileiros em educação primária e secundária foram muito inferiores aos dos países ricos ─ US$ 2.653 por estudante, comparado com US$ 8.412 nos países da OCDE e US$ 11.859 nos EUA. Fica claro que o governo investe mais em educação superior pública, que atende principalmente aos mais abastados, em detrimento do ensino básico. Se a responsabilidade na divisão dos gastos é somente do governo, não faz sentido exigir contra-partida dos egressos das escolas públicas.
Não obstante o mérito inegável de haver médicos estrangeiros ou estudantes supervisionados, onde antes não havia médico algum, o governo considera essa medida a única resposta possível para uma suposta crise da saúde. Não há, porém, crise alguma, uma vez que os indicadores de saúde melhoraram nos últimos anos. O que há é um problema crônico, consequência de anos de subfinanciamento e má-distribuição de gastos. A falta de médicos também já poderia ter sido sanada de forma mais democrática, sem necessidade de obrigatoriedade de serviço para estudantes ou importação de médicos cuja qualidade não será comprovada por meio de exame. Em 2009, as entidades de classe fizeram uma proposta que ainda está em tramitação no Congresso. A categoria sugeriu a instituição da carreira de Estado para médicos, por meio da PEC 454/09. Caso houvesse sido aprovada na ocasião, a falta de médicos sequer estaria em discussão, pois não seria mais realidade no Brasil. Se o governo visasse uma medida mais definitiva, optaria por este meio, ao invés de Medida Provisória enviada às pressas para o Congresso.
Caso o SUS fosse financiado com 10% da arrecadação do Estado, como pedem os médicos, e não se transferisse tanto dinheiro para o sistema privado, tal medida seria perfeitamente possível. Com isto, esse médico e essa equipe de saúde com carreira de Estado lutariam por melhores condições onde trabalham, pois teriam mais vínculo em seu local de atuação. Essa seria a melhor medida que o governo poderia tomar: valorizar o médico, colocá-lo ao lado dos setores financeiramente empobrecidos, para que lutassem juntos por uma saúde de qualidade. Ninguém ganha em uma briga que opõe aqueles que atuam diretamente no atendimento à saúde da população e os que formulam as políticas de saúde pública.
*Lilian Terra é médica formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua na atenção básica do SUS de Campinas- SP, onde faz parte de uma equipe de saúde da família (PSF). É apaixonada pelo projeto do SUS e pela saúde pública e espera que um dia o sistema de saúde brasileiro seja de fato universal e não haja necessidade de se recorrer a Planos de Saúde ou serviços privados.
sexta-feira, 19 de julho de 2013
Marina Silva e o “Rede Sustentabilidade”: um projeto supranacional (Leonildo Trombela Junior)
Nota do Blog: claramente sou apoiador da Marina Silva e da Rede Sustentabilidade. Este texto é uma crítica à Marina e eu o publico com tranquilidade, pois de todas as críticas que li até agora, esta é uma das únicas que possui algum fundamento. Serve grandiosamente para reflexão, sobretudo político-ideológica.
Disponível em: http://www.midiasemmascara.org/artigos/globalismo/14268-marina-silva-e-o-rede-sustentabilidade-um-projeto-supranacional.html
Ela foi cabocla no seringal do estado do Acre e hoje é a queridinha dos globalistas (aqueles cuja crença é de que a Velha Ordem que preza pela soberania das nações é um modelo ultrapassado que deve ser substituído por um governo global supranacional). Ela é membro do Inter-american Dialogue, think-thank que conta com um grupo de ex-presidentes das três Américas, além de banqueiros, empresários e outros integrantes da nata social e financeira deste continente. Também faz parte da lista dos Defensores das Metas do Milênio da ONU (Organização das Nações Unidas) – lista essa que também inclui o bilionário empresário Ted Turner, o famoso fundador da CNN. Recebeu também o prêmio “Champions of the Earth” da ONU – um dos maiores prêmios da área. É chamada de “lendária ativista ambiental” pelos ativistas da iniciativa Carta da Terra (1) e por aí vai…
A apresentação de uma fração do currículo internacional de Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima é para que não nos enganemos. Embora tenha a saúde frágil por conta de uma contaminação por mercúrio na juventude, essa senhora evangélica de 55 anos e aparência frágil possui uma vasta influência entre bilionários e ecologistas mundo afora. Em 2010 emplacou uma candidatura à Presidência da República concorrendo pelo Partido Verde com seu vice sendo o empresário bilionário Guilherme Leal. Obteve quase 20 milhões de votos.
Marina é sem dúvida benquista por vários grupos ambientalistas e globalistas. Para Luis Dufaur, autor de publicações no exterior e do blog “Verde: a cor nova do comunismo” – que denuncia os estratagemas dos movimentos ambientalistas e globalistas -, as origens amazônicas de Marina, sua militância no Partido Revolucionário Comunista (PRC – ala radical que estava sob a égide petista no Acre) e sua luta junto de Chico Mendes e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são “atributos” que fazem dela o perfil ideal para ser a imagem “popular” que os ambientalistas e globalistas pretendem projetar.
“Ela encarna bem o figurino imaginado pela Teologia da Libertação que segue a linha de Frei Beto e Dom Casaldáliga, portanto comuno-tribalista e ambientalista. Quer dizer, uma mulher do povo que sofreu pobreza e doenças tropicais, e sai da floresta para contestar a ordem social brasileira acusada de ‘capitalista’ e ‘exploradora’. Esta imagem a meu ver inclui muitos exageros propagandísticos imaginados por marqueteiros”, diz Dufaur.
Aproveitando-se dessa grande influência e poder que lhe foi concedido, Marina Silva já aplaina o terreno para a candidatura em 2014. Com seu novo partido, o “REDE Sustentabilidade”, ela quer, segundo palavras próprias, nada menos que “mudar a cultura política do país”. Marina diz que seu partido não é de esquerda e nem de direita, mas é “à frente”. Além do apoio de Leal, Marina também conta com Maria Alice Setúbal, uma das herdeiras do Itaú.
Mas será que Marina realmente vem com uma proposta diferente? Segundo o economista e mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), Nivaldo Cordeiro, “Estamos diante de uma ação típica das esquerdas recomendadas por Lênin. [...] a famosa estratégia das tesouras”.
Essa estratégia das tesouras é uma forma de se referir à metodologia dialética marxista-leninista, cuja metáfora da tesoura fala das duas lâminas que são opostas (como neste caso, a aparente oposição de Marina Silva ao atual establishment político), mas que no final das contas fazem parte do mesmo corpo; e sendo do mesmo corpo, quando essas duas lâminas convergirem — isso acontece fatalmente na política —, deceparão aqueles que estiverem no caminho delas. O termo foi muito usado para se referir à aparente oposição que existe há muito entre os governos russo e chinês (desde os tempos comunistas até hoje).
O filósofo Olavo de Carvalho no artigo “A mão de Stálin está sobre nós” diz que, através da estratégia das tesouras, “a oposição tradicional de direita e esquerda é então substituída pela divisão interna da esquerda, de modo que a completa homogeneização socialista da opinião pública é obtida sem nenhuma ruptura aparente da normalidade. A discussão da esquerda com a própria esquerda, sendo a única que resta, torna-se um simulacro verossímil da competição democrática e é exibida como prova de que tudo está na mais perfeita ordem.” (isso já acontece no Brasil, onde partidos como PT, PSDB, PSB e o futuro partido da Marina dominam completamente as ações políticas, deixando espaço apenas para divergências dentro da própria esquerda ou para partidos governistas como o PMDB).
Outro bom exemplo dessa estratégia das tesouras leninista são as denúncias feitas pelos partidos de extrema esquerda, como se pode ver no site do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), que por meio de uma extensa matéria mostra alguns dos “esqueletos” que Marina tem no armário (ver matéria no link: pstu.org.br/conteudo/rede-de-marina-silva). O site do Partido Comunista do Brasil (PC do B) também não se esquiva de reproduzir ou redigir textos com fortes críticas ao projeto de Marina Silva, como se pode ver nos links: vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=206125&id_secao=1 e vermelho.org.br/editorial.php?id_editorial=1170&id_secao=16.
Apesar das ferrenhas críticas recebidas pela “esquerda da esquerda”, sempre quando indagada sobre os presidentes Lula ou Dilma, aliados do mesmo PC do B, Marina prefere adotar um tom amistoso, demonstrando discordâncias apenas em pontos específicos, como é o caso da política ambiental. Segundo Nivaldo Cordeiro, “a turma da Marina Silva sempre foi PT de coração”. A longa lista de serviços que Marina prestou ao PT desde quando era uma jovem militante no PRC até chegar ao Ministério do Meio Ambiente – cargo que ocupou desde a posse de Lula, em 2003, até 2008 – é algo que ela faz questão de lembrar sempre em suas entrevistas.
Desenvolvimento sustentável e religião
O termo “desenvolvimento sustentável” surgiu pela primeira vez nas discussões da ONU na década de 1980. Ele foi cunhado para condensar um ideal que já havia sido exposto desde a Conferência de Estocolmo em 1972. Junta – a seu modo – as idéias de desenvolvimento econômico e político com a preservação da natureza, com a justificativa de que devemos deixar um “mundo melhor” para as gerações futuras. Deste modo, esse ideal acaba por atuar nas frentes econômica, política, ecológica e cultural. As partes ética e religiosa restantes são cobertas pela anteriormente citada Carta da Terra, que segundo um de seus maiores promotores, Mikhail Gorbachev, aspira a ser nada menos que uma nova versão dos Dez Mandamentos (2).
A culminação do que entendemos por “desenvolvimento sustentável” foi o documento “Agenda 21”, apresentado na Conferência Eco-92, no Rio de Janeiro. Esse documento contém 21 diretrizes elaboradas pela ONU para servirem de “instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis” (ver neste link: http://sustainabledevelopment.un.org/).
A idéia de desenvolvimento sustentável é, basicamente, aplicar leis supranacionais cujo conteúdo é aquilo que a ONU acha que é melhor para o mundo, independentemente do que as populações locais venham a achar. Aqui no Brasil, muito desses ideais supranacionais da “Agenda 21” (que, por conseguinte, são óbvias afrontas à soberania de um país) foram bem encaminhados na gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente.
Mesmo quando não são diretamente aplicadas, essas medidas supranacionais acabam por ter grande influência na legislação, como foi o caso do Código Florestal aprovado em 2012, que levou em conta várias “propostas utópicas e quiméricas da ONU”, nas palavras de Luis Dufaur. Segundo Dufaur, esses documentos “sinalizam os rumos das transformações legais presentes e futuras que o PT e seus amigos ambientalistas promovem no país”.
Notas:
(1) A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais cujo intuito é “construir uma sociedade global justa e sustentável para o século XXI”; para isso basta que se dê poder ilimitado a eles. Tem o endosso de gente do quilate do ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev e da ex-Rainha e atual Princesa Beatrix da Holanda.
(2) v. Lee Penn. False Dawn: The United Religions Initiative, globalism, and the quest for a one-world religion. p.16
Publicado no site da revista Vila Nova.
Leonildo Trombela Júnior é jornalista e tradutor.
Disponível em: http://www.midiasemmascara.org/artigos/globalismo/14268-marina-silva-e-o-rede-sustentabilidade-um-projeto-supranacional.html
Ela foi cabocla no seringal do estado do Acre e hoje é a queridinha dos globalistas (aqueles cuja crença é de que a Velha Ordem que preza pela soberania das nações é um modelo ultrapassado que deve ser substituído por um governo global supranacional). Ela é membro do Inter-american Dialogue, think-thank que conta com um grupo de ex-presidentes das três Américas, além de banqueiros, empresários e outros integrantes da nata social e financeira deste continente. Também faz parte da lista dos Defensores das Metas do Milênio da ONU (Organização das Nações Unidas) – lista essa que também inclui o bilionário empresário Ted Turner, o famoso fundador da CNN. Recebeu também o prêmio “Champions of the Earth” da ONU – um dos maiores prêmios da área. É chamada de “lendária ativista ambiental” pelos ativistas da iniciativa Carta da Terra (1) e por aí vai…
A apresentação de uma fração do currículo internacional de Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima é para que não nos enganemos. Embora tenha a saúde frágil por conta de uma contaminação por mercúrio na juventude, essa senhora evangélica de 55 anos e aparência frágil possui uma vasta influência entre bilionários e ecologistas mundo afora. Em 2010 emplacou uma candidatura à Presidência da República concorrendo pelo Partido Verde com seu vice sendo o empresário bilionário Guilherme Leal. Obteve quase 20 milhões de votos.
Marina é sem dúvida benquista por vários grupos ambientalistas e globalistas. Para Luis Dufaur, autor de publicações no exterior e do blog “Verde: a cor nova do comunismo” – que denuncia os estratagemas dos movimentos ambientalistas e globalistas -, as origens amazônicas de Marina, sua militância no Partido Revolucionário Comunista (PRC – ala radical que estava sob a égide petista no Acre) e sua luta junto de Chico Mendes e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são “atributos” que fazem dela o perfil ideal para ser a imagem “popular” que os ambientalistas e globalistas pretendem projetar.
“Ela encarna bem o figurino imaginado pela Teologia da Libertação que segue a linha de Frei Beto e Dom Casaldáliga, portanto comuno-tribalista e ambientalista. Quer dizer, uma mulher do povo que sofreu pobreza e doenças tropicais, e sai da floresta para contestar a ordem social brasileira acusada de ‘capitalista’ e ‘exploradora’. Esta imagem a meu ver inclui muitos exageros propagandísticos imaginados por marqueteiros”, diz Dufaur.
Aproveitando-se dessa grande influência e poder que lhe foi concedido, Marina Silva já aplaina o terreno para a candidatura em 2014. Com seu novo partido, o “REDE Sustentabilidade”, ela quer, segundo palavras próprias, nada menos que “mudar a cultura política do país”. Marina diz que seu partido não é de esquerda e nem de direita, mas é “à frente”. Além do apoio de Leal, Marina também conta com Maria Alice Setúbal, uma das herdeiras do Itaú.
Mas será que Marina realmente vem com uma proposta diferente? Segundo o economista e mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), Nivaldo Cordeiro, “Estamos diante de uma ação típica das esquerdas recomendadas por Lênin. [...] a famosa estratégia das tesouras”.
Essa estratégia das tesouras é uma forma de se referir à metodologia dialética marxista-leninista, cuja metáfora da tesoura fala das duas lâminas que são opostas (como neste caso, a aparente oposição de Marina Silva ao atual establishment político), mas que no final das contas fazem parte do mesmo corpo; e sendo do mesmo corpo, quando essas duas lâminas convergirem — isso acontece fatalmente na política —, deceparão aqueles que estiverem no caminho delas. O termo foi muito usado para se referir à aparente oposição que existe há muito entre os governos russo e chinês (desde os tempos comunistas até hoje).
O filósofo Olavo de Carvalho no artigo “A mão de Stálin está sobre nós” diz que, através da estratégia das tesouras, “a oposição tradicional de direita e esquerda é então substituída pela divisão interna da esquerda, de modo que a completa homogeneização socialista da opinião pública é obtida sem nenhuma ruptura aparente da normalidade. A discussão da esquerda com a própria esquerda, sendo a única que resta, torna-se um simulacro verossímil da competição democrática e é exibida como prova de que tudo está na mais perfeita ordem.” (isso já acontece no Brasil, onde partidos como PT, PSDB, PSB e o futuro partido da Marina dominam completamente as ações políticas, deixando espaço apenas para divergências dentro da própria esquerda ou para partidos governistas como o PMDB).
Outro bom exemplo dessa estratégia das tesouras leninista são as denúncias feitas pelos partidos de extrema esquerda, como se pode ver no site do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), que por meio de uma extensa matéria mostra alguns dos “esqueletos” que Marina tem no armário (ver matéria no link: pstu.org.br/conteudo/rede-de-marina-silva). O site do Partido Comunista do Brasil (PC do B) também não se esquiva de reproduzir ou redigir textos com fortes críticas ao projeto de Marina Silva, como se pode ver nos links: vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=206125&id_secao=1 e vermelho.org.br/editorial.php?id_editorial=1170&id_secao=16.
Apesar das ferrenhas críticas recebidas pela “esquerda da esquerda”, sempre quando indagada sobre os presidentes Lula ou Dilma, aliados do mesmo PC do B, Marina prefere adotar um tom amistoso, demonstrando discordâncias apenas em pontos específicos, como é o caso da política ambiental. Segundo Nivaldo Cordeiro, “a turma da Marina Silva sempre foi PT de coração”. A longa lista de serviços que Marina prestou ao PT desde quando era uma jovem militante no PRC até chegar ao Ministério do Meio Ambiente – cargo que ocupou desde a posse de Lula, em 2003, até 2008 – é algo que ela faz questão de lembrar sempre em suas entrevistas.
Desenvolvimento sustentável e religião
O termo “desenvolvimento sustentável” surgiu pela primeira vez nas discussões da ONU na década de 1980. Ele foi cunhado para condensar um ideal que já havia sido exposto desde a Conferência de Estocolmo em 1972. Junta – a seu modo – as idéias de desenvolvimento econômico e político com a preservação da natureza, com a justificativa de que devemos deixar um “mundo melhor” para as gerações futuras. Deste modo, esse ideal acaba por atuar nas frentes econômica, política, ecológica e cultural. As partes ética e religiosa restantes são cobertas pela anteriormente citada Carta da Terra, que segundo um de seus maiores promotores, Mikhail Gorbachev, aspira a ser nada menos que uma nova versão dos Dez Mandamentos (2).
A culminação do que entendemos por “desenvolvimento sustentável” foi o documento “Agenda 21”, apresentado na Conferência Eco-92, no Rio de Janeiro. Esse documento contém 21 diretrizes elaboradas pela ONU para servirem de “instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis” (ver neste link: http://sustainabledevelopment.un.org/).
A idéia de desenvolvimento sustentável é, basicamente, aplicar leis supranacionais cujo conteúdo é aquilo que a ONU acha que é melhor para o mundo, independentemente do que as populações locais venham a achar. Aqui no Brasil, muito desses ideais supranacionais da “Agenda 21” (que, por conseguinte, são óbvias afrontas à soberania de um país) foram bem encaminhados na gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente.
Mesmo quando não são diretamente aplicadas, essas medidas supranacionais acabam por ter grande influência na legislação, como foi o caso do Código Florestal aprovado em 2012, que levou em conta várias “propostas utópicas e quiméricas da ONU”, nas palavras de Luis Dufaur. Segundo Dufaur, esses documentos “sinalizam os rumos das transformações legais presentes e futuras que o PT e seus amigos ambientalistas promovem no país”.
Notas:
(1) A Carta da Terra é uma declaração de princípios éticos fundamentais cujo intuito é “construir uma sociedade global justa e sustentável para o século XXI”; para isso basta que se dê poder ilimitado a eles. Tem o endosso de gente do quilate do ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev e da ex-Rainha e atual Princesa Beatrix da Holanda.
(2) v. Lee Penn. False Dawn: The United Religions Initiative, globalism, and the quest for a one-world religion. p.16
Publicado no site da revista Vila Nova.
Leonildo Trombela Júnior é jornalista e tradutor.
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Das revoltas a uma nova política - Antonio Negri e Michael Hardt
Por Antonio Negri e Michael Hardt | Tradução: Daniela Frabasile
Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.
Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.
Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.
Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.
A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.
Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.
Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.
No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.
Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.
De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?
Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.
Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.
Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.
Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.
Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.
Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.
A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.
Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.
Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.
No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.
Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.
De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?
Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.
Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.
quinta-feira, 20 de junho de 2013
O Estado Laico e a Democracia, de Victor Mauricio Fiorito Pereira
A Constituição brasileira de 1824 estabelecia em seu artigo 5º:. “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”.
A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu artigo 19, I o seguinte: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Com base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado como laico, palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo de leigo e antônimo de clérigo (sacerdote católico), pessoa que faz parte da própria estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado leigo se difere de Estado religioso, no qual a religião faz parte da própria constituição do Estado. São exemplos de Estados religiosos o Vaticano, os Estados islâmicos e as vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas constituições dispõem, respectivamente: “Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico Apostólico Romano” – “Art. 3. Religion Oficial – El Estado reconoce y sostiene la religion Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante concordados y acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”
Atualmente, o termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como fundamento para a insurgência contra a instituição de feriados nacionais para comemorações de datas religiosas, a instituição de monumentos com conotação religiosa em logradouros públicos e contra o uso de símbolos religiosos em repartições públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição da República vem sendo alvo de questionamentos.
É importante ressaltar que o conceito de Estado laico não deve se confundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e seus assemelhados também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o direito de não ter uma religião conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença” (Comentários à Constituição de 1967).
Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta crença (ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a Carta Magna.
A Constituição da República apesar do disposto em seu artigo 19, inciso I protege a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e o faz da seguinte forma:
Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 213 - Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas
Art. 226 § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Além das formas de colaboração estatal especificadas no texto constitucional, o próprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica, que no caso de interesse público, havendo lei, os entes estatais podem colaborar com os cultos religiosos ou igrejas, bem como não pode embaraçar-lhes o funcionamento.
Por estas razões, muito mais adequado do que chamar a República Federativa do Brasil de Estado laico, seria chamá-la de Estado plurireligioso, que aceita todas as crenças religiosas, sem qualquer discriminação, inclusive a não crença.
No entanto, conforme já aduzido, questão interessante surge na concepção de Estado plurireligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em certas ocasiões, de optar pelo culto de determinada crença religiosa, quando isso implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa uma estátua do Cristo, e não a do Buda? Por inaugurar um logradouro público com o nome de Praça da Bíblia e não Praça do Alcorão? E porque não deixar de construir um monumento com conotação religiosa, com o fim de não ofender a consciência dos não crentes e a dos crentes de outras seitas?
Somos de opinião que este impasse deve ser resolvido através da interpretação sistemática do texto constitucional.
Assim dispõe a Constituição da República em seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito(...)Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Afirma a doutrina que o princípio da maioria, juntamente com os princípios da igualdade e da liberdade, é princípio fundamental da democracia. Aristóteles já dizia que a democracia é o governo onde domina o número.
Destas considerações, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar tratamento igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem livremente, com base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for, por determinada crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de construir um monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus seja louvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homoafetiva.
É importante frisar que tal posicionamento não visa beneficiar a Igreja Católica, cuja predominância no Brasil se deve às razões culturais e históricas decorrentes do processo de colonização que deu origem ao povo brasileiro maciçamente composto por descendentes de europeus católicos, além do fato de já ter sido religião oficial do país por mais de trezentos anos. Em vista disto, é perfeitamente natural que, sendo a maioria da população brasileira católica, como afirmam, que o culto católico tenha maior atenção estatal que os demais. Vale ressaltar que o que determina a preferência estatal por determinado credo é a vontade majoritária popular, que não obstante às razões históricas, pode se modificar, mormente como se vê nos tempos atuais em que as seitas evangélicas vêm ganhando força política, importando até mesmo na eleição de representantes. Ressalte-se ainda que a preferência da ação estatal por determinada religião não se situa apenas em âmbito nacional, mas também regional, sendo um exemplo a Constituição do Estado da Bahia, na qual o artigo 275 e incisos privilegiam a religião afro-brasileira, presumindo ser esta a preferência do povo baiano.
Embora o Estado deva respeitar e proteger os não crentes e os crentes de outros cultos, não nos parece adequado que o Estado deva suprimir de seu ofício qualquer alusão a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este por causa de uma minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade, constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crença ou não crença, com o fim de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que defendam seus interesses perante o Estado.
Por fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso I da Constituição, é vedado ao Estado embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos. Tal informação tem grande relevância, principalmente em face de situações concretas em que se postula ao Poder Judiciário pretensões no sentido fazer com que determinada religião haja em desconformidade com a sua doutrina, na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é pretender que a Igreja Católica realize casamento de pessoas divorciadas, o que vai de encontro com a sua doutrina que não reconhece o divórcio e veda a duplicidade de casamentos. Da mesma forma seria incabível a imputação do delito previsto no artigo 235 do Código Penal, no caso de religiões que permitam a prática da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao âmbito da religião, sendo que estes casamentos não deverão produzir efeitos para o direito civil pátrio, por afrontar os princípios constitucionais que tratam da família. Nos demais casos, a intervenção estatal nos cultos religiosos deve se reger, como já foi aduzido, através de uma interpretação sistemática e harmônica do texto constitucional.
Conclusões
1 – O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituição, deve dispensar tratamento igualitário a todas as crenças religiosas, incluindo a não crença, sem adotar nenhuma delas como sua religião oficial;
2 – A inexistência de religião oficial no Estado não significa que o Estado seja partidário da não crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no princípio da liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais religiões, não podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial;
3 – Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados que adotam religião oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população prefira outra;
4 – Não há qualquer inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado, construir um monumento em logradouro público, fazer referências a Deus, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expressão da livre vontade popular, que pode se modificar em favor de outra crença religiosa, sem que isto implique em modificação constitucional.
5 – Com base no artigo 19, inciso I da Constituição da República, o Estado não pode intervir nas religiões de forma a compelir que ajam em desconformidade com a sua doutrina, sendo que, qualquer cerceamento à liberdade de culto, deve ser feita com base na interpretação sistemática da Constituição da República, de forma a harmonizar as suas disposições.
Victor Mauricio Fiorito Pereira
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu artigo 19, I o seguinte: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Com base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado como laico, palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo de leigo e antônimo de clérigo (sacerdote católico), pessoa que faz parte da própria estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado leigo se difere de Estado religioso, no qual a religião faz parte da própria constituição do Estado. São exemplos de Estados religiosos o Vaticano, os Estados islâmicos e as vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas constituições dispõem, respectivamente: “Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico Apostólico Romano” – “Art. 3. Religion Oficial – El Estado reconoce y sostiene la religion Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante concordados y acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”
Atualmente, o termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como fundamento para a insurgência contra a instituição de feriados nacionais para comemorações de datas religiosas, a instituição de monumentos com conotação religiosa em logradouros públicos e contra o uso de símbolos religiosos em repartições públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição da República vem sendo alvo de questionamentos.
É importante ressaltar que o conceito de Estado laico não deve se confundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e seus assemelhados também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o direito de não ter uma religião conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença” (Comentários à Constituição de 1967).
Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta crença (ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a Carta Magna.
A Constituição da República apesar do disposto em seu artigo 19, inciso I protege a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e o faz da seguinte forma:
Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 213 - Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas
Art. 226 § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Além das formas de colaboração estatal especificadas no texto constitucional, o próprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica, que no caso de interesse público, havendo lei, os entes estatais podem colaborar com os cultos religiosos ou igrejas, bem como não pode embaraçar-lhes o funcionamento.
Por estas razões, muito mais adequado do que chamar a República Federativa do Brasil de Estado laico, seria chamá-la de Estado plurireligioso, que aceita todas as crenças religiosas, sem qualquer discriminação, inclusive a não crença.
No entanto, conforme já aduzido, questão interessante surge na concepção de Estado plurireligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em certas ocasiões, de optar pelo culto de determinada crença religiosa, quando isso implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa uma estátua do Cristo, e não a do Buda? Por inaugurar um logradouro público com o nome de Praça da Bíblia e não Praça do Alcorão? E porque não deixar de construir um monumento com conotação religiosa, com o fim de não ofender a consciência dos não crentes e a dos crentes de outras seitas?
Somos de opinião que este impasse deve ser resolvido através da interpretação sistemática do texto constitucional.
Assim dispõe a Constituição da República em seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito(...)Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Afirma a doutrina que o princípio da maioria, juntamente com os princípios da igualdade e da liberdade, é princípio fundamental da democracia. Aristóteles já dizia que a democracia é o governo onde domina o número.
Destas considerações, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar tratamento igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem livremente, com base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for, por determinada crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de construir um monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus seja louvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homoafetiva.
É importante frisar que tal posicionamento não visa beneficiar a Igreja Católica, cuja predominância no Brasil se deve às razões culturais e históricas decorrentes do processo de colonização que deu origem ao povo brasileiro maciçamente composto por descendentes de europeus católicos, além do fato de já ter sido religião oficial do país por mais de trezentos anos. Em vista disto, é perfeitamente natural que, sendo a maioria da população brasileira católica, como afirmam, que o culto católico tenha maior atenção estatal que os demais. Vale ressaltar que o que determina a preferência estatal por determinado credo é a vontade majoritária popular, que não obstante às razões históricas, pode se modificar, mormente como se vê nos tempos atuais em que as seitas evangélicas vêm ganhando força política, importando até mesmo na eleição de representantes. Ressalte-se ainda que a preferência da ação estatal por determinada religião não se situa apenas em âmbito nacional, mas também regional, sendo um exemplo a Constituição do Estado da Bahia, na qual o artigo 275 e incisos privilegiam a religião afro-brasileira, presumindo ser esta a preferência do povo baiano.
Embora o Estado deva respeitar e proteger os não crentes e os crentes de outros cultos, não nos parece adequado que o Estado deva suprimir de seu ofício qualquer alusão a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este por causa de uma minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade, constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crença ou não crença, com o fim de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que defendam seus interesses perante o Estado.
Por fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso I da Constituição, é vedado ao Estado embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos. Tal informação tem grande relevância, principalmente em face de situações concretas em que se postula ao Poder Judiciário pretensões no sentido fazer com que determinada religião haja em desconformidade com a sua doutrina, na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é pretender que a Igreja Católica realize casamento de pessoas divorciadas, o que vai de encontro com a sua doutrina que não reconhece o divórcio e veda a duplicidade de casamentos. Da mesma forma seria incabível a imputação do delito previsto no artigo 235 do Código Penal, no caso de religiões que permitam a prática da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao âmbito da religião, sendo que estes casamentos não deverão produzir efeitos para o direito civil pátrio, por afrontar os princípios constitucionais que tratam da família. Nos demais casos, a intervenção estatal nos cultos religiosos deve se reger, como já foi aduzido, através de uma interpretação sistemática e harmônica do texto constitucional.
Conclusões
1 – O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituição, deve dispensar tratamento igualitário a todas as crenças religiosas, incluindo a não crença, sem adotar nenhuma delas como sua religião oficial;
2 – A inexistência de religião oficial no Estado não significa que o Estado seja partidário da não crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no princípio da liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais religiões, não podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial;
3 – Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados que adotam religião oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população prefira outra;
4 – Não há qualquer inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado, construir um monumento em logradouro público, fazer referências a Deus, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expressão da livre vontade popular, que pode se modificar em favor de outra crença religiosa, sem que isto implique em modificação constitucional.
5 – Com base no artigo 19, inciso I da Constituição da República, o Estado não pode intervir nas religiões de forma a compelir que ajam em desconformidade com a sua doutrina, sendo que, qualquer cerceamento à liberdade de culto, deve ser feita com base na interpretação sistemática da Constituição da República, de forma a harmonizar as suas disposições.
Victor Mauricio Fiorito Pereira
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
quinta-feira, 30 de maio de 2013
A saúde não pode ser importada
No início de maio deste ano, foi divulgada
nos meios de comunicação a notícia de que o governo brasileiro importará
médicos – cubanos (aproximadamente 6000), portugueses e espanhóis – para trabalharem
no interior do Brasil. A opinião popular aprovou a medida: nada mais do que já
era esperado, visto que na política de nosso País a maior parte do que se faz é
cautelosamente arquitetada com vistas à próxima eleição, já considerando a
aprovação do eleitor, e não em um real e consolidado projeto de Nação. Por
outro lado, grupos sociais se opuseram a essa política de governo: ícones de uma
direita populista falaram em “revolução comunista”, “contaminação ideológica”,
etc. no interior brasileiro; as entidades médicas se posicionaram contra
argumentando principalmente em torno do REVALIDA (exame para admissão de médicos
estrangeiros) e do plano de carreira para a categoria. Entretanto há algo muito
mais importante que tudo isso (politicagem eleitoreira, corporativismo) que poucos
estão considerando: o subfinanciamento do sistema único de saúde – o SUS.
Segundo dados da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do IBGE, enquanto quase 50%
do orçamento do governo federal são voltados para o pagamento de juros e
amortização da dívida e aproximadamente 20% para a previdência social, menos de
4% do orçamento é investido em saúde, o que – junto aos investimentos
municipais e estaduais – faz o gasto público arcar com somente 40% da despesa
total em saúde. Esses números, tão abstratos quanto parece ser a realidade da
saúde pública brasileira, são pífios perante os que se referem a outros países,
inclusive àqueles nos quais não se defende um sistema universal e público, como
o brasileiro. Para esconder essa realidade em véspera de eleição, o governo
propôs essa política de importação de médicos.
Para a população em geral, médico
é saúde, logo: mais médicos, melhor a saúde. No entanto, primeiro há de se
destacar que o conceito de saúde vai muito além da ausência de doença –
conforme consta em nossa Constituição Cidadã -, pois ele se refere mais ao
bem-estar resultante de várias condicionantes: acesso ao serviço de saúde,
educação de qualidade, saneamento básico, moradia digna, condições de trabalho
justas, meio ambiente, etc. – questões muito além do papel do médico e que levam
o debate a outro nível, muito mais complexo e abrangente inclusive, mas que não
devem ser ignoradas ou esquecidas, muito embora não sejam o foco deste artigo. Em
um segundo ponto: de que vale um médico sem condições de trabalho? E não se
trata aqui tão somente de salário digno a esse trabalhador, mas sobretudo de
uma ambiência que envolva: infraestrutura adequada, acesso a materiais para a
realização de procedimentos, disponibilidade de exames complementares, formação
de equipe multiprofissional (agente comunitário de saúde, técnico de
enfermagem, enfermeiro, farmacêutico, psicólogo, entre outros). Mesmo assim, o
governo prefere investir em médicos estrangeiros – inclusive ofertando-os cursos,
conforme noticiado recentemente -, tão somente focado em atingir os “níveis de
cobertura”, valiosos em períodos eleitorais, e sem considerar a importância da longitudinalidade
(em linhas gerais: acompanhamento do usuário ao longo do tempo pela equipe de
saúde), como tentou fazer com o Programa de Valorização ao Profissional da
Atenção Básica (PROVAB), que basicamente é uma política de interiorização (não
tão) voluntária – garantindo benefícios na seleção para a residência médica – dos
recém-formados estudantes de Medicina, os quais – assim como os médicos
estrangeiros que virão – têm de trabalhar nas condições supracitadas, neste
caso ainda com o agravante de serem médicos com pouca experiência profissional
e com uma educação médica deficitária.
Aliás, eis o último ponto deste
artigo: uma educação médica abandonada. Se, de fato, fosse prioridade deste
governo atual a saúde de qualidade, o dinheiro que está sendo gasto para
importar e formar médicos estrangeiros (e para tantos outros investimentos
questionáveis) seria investido, pois, na educação dos futuros médicos de nossa própria
Nação. E não se fala aqui de abrir mais escolas médicas, mas de oferecer cursos
de qualidade – avaliados longitudinalmente e de acordo com as Diretrizes
Curriculares Nacionais, como o Teste de Progresso da ABEM, de que em nada se
apropria o exame do CREMESP ou o próprio ENADE -, voltados para a formação de
médicos generalistas para a atenção básica no SUS, o que realmente irá
revolucionar a saúde pública no País.
Portanto, fica claro que não é
possível considerar séria e honesta – desvinculada de mitos e tão somente
interesses eleitoreiros - uma política que não considere a saúde pública como
uma construção interna e consolidada do País – pautada na valorização do
profissional da saúde, da ambiência e da educação médica, fornecendo a ela um
financiamento adequado para isso -, pois, diferente do que nossos governantes
estão tentando tratar: a saúde não pode ser importada.
*Lucas Cardoso da Silva é estudante de Medicina na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Vice Coordenador Discente da
Regional Sul 2 da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e articulador
da Rede Sustentabilidade em Santa Catarina.
domingo, 27 de janeiro de 2013
O Crime e a Sociedade
Amigos, em meio a tanto denuncismo que rola no facebook, eu gostaria de fazer o relato de um roubo que me ocorreu hoje e refletir um pouco sobre a Polícia Militar e a Segurança Pública. Desculpa se ficou grande, mas creio que a leitura será interessante e reflexiva.
O ocorrido:
Hoje, às 19h20, na rua Bocaiúva, saindo do trabalho, fui roubado a caminho da minha casa. O indivíduo levou meu celular e dinheiro. Tentei evitar ser roubado, mas não foi possível por estar com um amigo na hora - o qual ficou nervoso e não soube reagir -, fiquei com medo de o ocorrido tomar proporções maiores e colocar em risco eu e ele.
Logo após o roubo, fui ao meu prédio, entrei em contato com a Central Telefônica da Polícia - 190 - e passei os dados do rapaz. Em seguida, fui à Unidade Móvel da PM, que fica na Beira Mar, e comuniquei pessoalmente o ocorrido. Eu estava indo atravessar a rua para retornar à minha casa quando o policial me chamou. Haviam encontrado o ladrão.
Trouxeram-no até a Unidade Móvel e eu o reconheci. Por sorte, estava com meus pertences.
Fomos encaminhados à DP Civil no centro e lá prestamos depoimentos e meus pertences foram devolvidos. O ladrão estava muito incomodado, eu evitei o olhar dele. No entanto, quando passei por ele, falou assim "Poxa, cara... não precisava fazer B.O." - creio que, fantasiado em sua mente, ele se achava meu "camarada", por ter, durante o roubo, não ter pego minha carteira - mas só o dinheiro -, e nem meu chip - só o celular. Foi o que ele falou na hora do roubo.
Isso motivou este post.
Algumas considerações:
Em primeiro lugar, agradeço a D-us por ele olhar por mim, proteger meu corpo e também os bens que consegui pelo suor do trabalho, meu e de minha família.
Em segundo, presto meu agradecimento à Polícia Militar e Civil, que cumpriu seu dever com eficiência e profissionalismo. Deram a mim toda a atenção, ajudaram-me, aconselharam-me. Agradeço sinceramente
Em terceiro, agradeço ao meu amigo que esteve presente em todo o processo de aguardar o ladrão ser pego, identificá-lo, ir à DP, etc.
Quarto, conforme falei, minha vontade na hora era de reagir. Estávamos mano a mano - ele, embora tentasse parecer armado, visivelmente não portava nada. No entanto, preservei o meu amigo, que estava nervoso e poderia reagir de uma forma negativa, causando ainda mais problemas e piorando a situação. Em 2011, fui assaltado e evitei a perda do meu celular - o mesmo, por sinal - reagindo ao assalto, mas fiquei com bastantes escoriações pelo corpo - guardo algumas pequenas cicatrizes ainda - e o assaltante não foi localizado.
Reflexões sobre o ocorrido:
O mesmo motivo que me fez reagir a um assalto em 2011 é o de agora, que me fez encaminhar o ladrão à prisão: em um Estado de Direito, democrático, NÃO PODEMOS SER IMPUNES. Não abro mão de meus direitos e de minha liberdade. Não abaixo minha cabeça ao crime e à desordem. Se arrisco minha vida, faço com a certeza de que posso estar salvando muitas outras e, inclusive, a do próprio criminoso. Não é meu celular, não é meu dinheiro, não são meus bens materiais. Mas a perpetuação do crime, que leva medo às famílias honestas e de bem, pune o trabalhador e que em nada muda o sistema - real culpado pelo criminoso estar preso nesse círculo do crime.
Pensa alguém, agora, que eu não sinto pelo criminoso? Claro, não nego meu "eu" sadista que pensa "HAHAHA, ele foi preso", não. Mas acima disso está meu "eu" solidário, que questiona "por que ele fez isso?" "será que posso ajudá-lo?". Mas eu, sozinho, numa situação como aquela, em nada poderia ajudar! Oras, que faria? Perguntaria a ele isso que me questionei? Colocaria a mão no ombro dele e falaria sobre meu desejo de coisas boas em sua vida? Isso nada mudaria! Mesmo assim, minha única certeza é: não fazer nada é não fazer nada! Perco meu celular, meu dinheiro, ele continua roubando, continua no círculo do crime e da droga, eu perco minha liberdade, me afundo em medo e - no fim - todos sofremos.
Sei que o sistema penal e penitenciário que dispomos é falho. Mas, se eu não denunciar, ele continuará sendo falho e ninguém saberá disso! Se o criminoso vai sofrer por isso? Vai, eu sei! Mas ele errou, independente das circunstâncias, ele errou! E se o Estado não é correto e eficaz em corrigi-lo, POR ISSO ESTOU AQUI ESCREVENDO ESTE TEXTO!
Eu estaria errado se simplesmente permitisse que o criminoso fosse preso e fechasse meus olhos a tudo isso que estou questionando e denunciando. Não.
Não fecho meus olhos para o crime e nem bato no peito a hipocrisia do não-materialismo. Eu quero uma sociedade melhor.
Quem me conhece, sabe: eu não me calo perante as injustiças. Posso até estar errado em minhas ideias, mas eu denuncio o que me parece injusto. Trabalho para que seja mudado. E busco sempre ter mente aberta para mudar quando eu estou enganado.
Por isso, também não fecho meus olhos para a raiz do crime: a inequidade, inerente à sociedade capitalista em que vivemos. Poucos são os que roubam e matam por satisfação de seus desejos íntimos. A maioria faz por estar sozinha e abandonada por uma sociedade que a acusa de "drogada", "malandra", "vagabunda" - enquanto a ela fornece a droga, impede o acesso à educação e ao emprego, e lhe dá como único sustento da "sobrevida" o crime.
Meu desejo real a esse jovem de 19 anos, usuário de drogas, que me roubou no dia de hoje: que ele seja tratado pela dependência de entorpecentes; que ele tenha um círculo de amigos e entes queridos forte; que ele possa ter acesso à educação de qualidade, para conseguir um bom emprego e ter consciência crítica sobre sua situação; e, por fim, que ele possa ser feliz. Desejo tudo isso, e que ele tenha tanto espaço na sociedade quanto eu tive para que possa conseguir seus bens e dinheiro pelo suor, e não pelo roubo e/ou agressão ao seu semelhante.
O que farei por isso? Continuarei defendendo e trabalhando pela NÃO-IMPUNIDADE, pelo SOCIALISMO e JUSTIÇA SOCIAL, e por uma vida justa, honesta e ética, pela qual me pauto.
O ocorrido:
Hoje, às 19h20, na rua Bocaiúva, saindo do trabalho, fui roubado a caminho da minha casa. O indivíduo levou meu celular e dinheiro. Tentei evitar ser roubado, mas não foi possível por estar com um amigo na hora - o qual ficou nervoso e não soube reagir -, fiquei com medo de o ocorrido tomar proporções maiores e colocar em risco eu e ele.
Logo após o roubo, fui ao meu prédio, entrei em contato com a Central Telefônica da Polícia - 190 - e passei os dados do rapaz. Em seguida, fui à Unidade Móvel da PM, que fica na Beira Mar, e comuniquei pessoalmente o ocorrido. Eu estava indo atravessar a rua para retornar à minha casa quando o policial me chamou. Haviam encontrado o ladrão.
Trouxeram-no até a Unidade Móvel e eu o reconheci. Por sorte, estava com meus pertences.
Fomos encaminhados à DP Civil no centro e lá prestamos depoimentos e meus pertences foram devolvidos. O ladrão estava muito incomodado, eu evitei o olhar dele. No entanto, quando passei por ele, falou assim "Poxa, cara... não precisava fazer B.O." - creio que, fantasiado em sua mente, ele se achava meu "camarada", por ter, durante o roubo, não ter pego minha carteira - mas só o dinheiro -, e nem meu chip - só o celular. Foi o que ele falou na hora do roubo.
Isso motivou este post.
Algumas considerações:
Em primeiro lugar, agradeço a D-us por ele olhar por mim, proteger meu corpo e também os bens que consegui pelo suor do trabalho, meu e de minha família.
Em segundo, presto meu agradecimento à Polícia Militar e Civil, que cumpriu seu dever com eficiência e profissionalismo. Deram a mim toda a atenção, ajudaram-me, aconselharam-me. Agradeço sinceramente
Em terceiro, agradeço ao meu amigo que esteve presente em todo o processo de aguardar o ladrão ser pego, identificá-lo, ir à DP, etc.
Quarto, conforme falei, minha vontade na hora era de reagir. Estávamos mano a mano - ele, embora tentasse parecer armado, visivelmente não portava nada. No entanto, preservei o meu amigo, que estava nervoso e poderia reagir de uma forma negativa, causando ainda mais problemas e piorando a situação. Em 2011, fui assaltado e evitei a perda do meu celular - o mesmo, por sinal - reagindo ao assalto, mas fiquei com bastantes escoriações pelo corpo - guardo algumas pequenas cicatrizes ainda - e o assaltante não foi localizado.
Reflexões sobre o ocorrido:
O mesmo motivo que me fez reagir a um assalto em 2011 é o de agora, que me fez encaminhar o ladrão à prisão: em um Estado de Direito, democrático, NÃO PODEMOS SER IMPUNES. Não abro mão de meus direitos e de minha liberdade. Não abaixo minha cabeça ao crime e à desordem. Se arrisco minha vida, faço com a certeza de que posso estar salvando muitas outras e, inclusive, a do próprio criminoso. Não é meu celular, não é meu dinheiro, não são meus bens materiais. Mas a perpetuação do crime, que leva medo às famílias honestas e de bem, pune o trabalhador e que em nada muda o sistema - real culpado pelo criminoso estar preso nesse círculo do crime.
Pensa alguém, agora, que eu não sinto pelo criminoso? Claro, não nego meu "eu" sadista que pensa "HAHAHA, ele foi preso", não. Mas acima disso está meu "eu" solidário, que questiona "por que ele fez isso?" "será que posso ajudá-lo?". Mas eu, sozinho, numa situação como aquela, em nada poderia ajudar! Oras, que faria? Perguntaria a ele isso que me questionei? Colocaria a mão no ombro dele e falaria sobre meu desejo de coisas boas em sua vida? Isso nada mudaria! Mesmo assim, minha única certeza é: não fazer nada é não fazer nada! Perco meu celular, meu dinheiro, ele continua roubando, continua no círculo do crime e da droga, eu perco minha liberdade, me afundo em medo e - no fim - todos sofremos.
Sei que o sistema penal e penitenciário que dispomos é falho. Mas, se eu não denunciar, ele continuará sendo falho e ninguém saberá disso! Se o criminoso vai sofrer por isso? Vai, eu sei! Mas ele errou, independente das circunstâncias, ele errou! E se o Estado não é correto e eficaz em corrigi-lo, POR ISSO ESTOU AQUI ESCREVENDO ESTE TEXTO!
Eu estaria errado se simplesmente permitisse que o criminoso fosse preso e fechasse meus olhos a tudo isso que estou questionando e denunciando. Não.
Não fecho meus olhos para o crime e nem bato no peito a hipocrisia do não-materialismo. Eu quero uma sociedade melhor.
Quem me conhece, sabe: eu não me calo perante as injustiças. Posso até estar errado em minhas ideias, mas eu denuncio o que me parece injusto. Trabalho para que seja mudado. E busco sempre ter mente aberta para mudar quando eu estou enganado.
Por isso, também não fecho meus olhos para a raiz do crime: a inequidade, inerente à sociedade capitalista em que vivemos. Poucos são os que roubam e matam por satisfação de seus desejos íntimos. A maioria faz por estar sozinha e abandonada por uma sociedade que a acusa de "drogada", "malandra", "vagabunda" - enquanto a ela fornece a droga, impede o acesso à educação e ao emprego, e lhe dá como único sustento da "sobrevida" o crime.
Meu desejo real a esse jovem de 19 anos, usuário de drogas, que me roubou no dia de hoje: que ele seja tratado pela dependência de entorpecentes; que ele tenha um círculo de amigos e entes queridos forte; que ele possa ter acesso à educação de qualidade, para conseguir um bom emprego e ter consciência crítica sobre sua situação; e, por fim, que ele possa ser feliz. Desejo tudo isso, e que ele tenha tanto espaço na sociedade quanto eu tive para que possa conseguir seus bens e dinheiro pelo suor, e não pelo roubo e/ou agressão ao seu semelhante.
O que farei por isso? Continuarei defendendo e trabalhando pela NÃO-IMPUNIDADE, pelo SOCIALISMO e JUSTIÇA SOCIAL, e por uma vida justa, honesta e ética, pela qual me pauto.
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Espiritismo e Medicina
Surgiu o tema de espiritismo (ou espiritualismo?) na lista de vegetarianismo que eu frequento. Primeiro, achei confuso a mistura de temas, segundo a abordagem do e-mail.
Falava-se no reconhecimento da "influência espiritual" como uma doença reconhecida pela Medicina e distinguível de outras com sintomas semelhantes, como as doenças mentais.
Resolvi compartilhar minha opinião sobre o assunto, como coloco a seguir.
"Primeiramente, o conceito de saúde da OMS é mundialmente criticado pelos profissionais da saúde devido à falta de clareza sobre o que de fato esse conceito representa. Ora, "completo" "bem-estar". O que é completo; o que caracteriza um bem-estar? É possível observar um completo bem-estar?
Falava-se no reconhecimento da "influência espiritual" como uma doença reconhecida pela Medicina e distinguível de outras com sintomas semelhantes, como as doenças mentais.
Resolvi compartilhar minha opinião sobre o assunto, como coloco a seguir.
"Primeiramente, o conceito de saúde da OMS é mundialmente criticado pelos profissionais da saúde devido à falta de clareza sobre o que de fato esse conceito representa. Ora, "completo" "bem-estar". O que é completo; o que caracteriza um bem-estar? É possível observar um completo bem-estar?
Segundo, o aspecto espiritual foi incluído, pois atualmente ocorre uma aproximação das ciências biológicas, nas quais a Medicina se apoiou principalmente no século passado, das humanas, buscando o conceito integral de saúde, inclusive valorizado pelas novas diretrizes do SUS.
No entanto, a integralidade no atendimento aos pacientes não representa tratar, tampouco diagnosticar, o espiritual com métodos espirituais - isso porque Medicina é uma ciência (quem sabe uma arte também), e não uma filosofia de vida ou religião. É importante separar esses dois aspectos.
Percebam que o que há de mais moderno na prática clínica é a Medicina baseada em evidências, na qual a pesquisa se torna fator central das decisões médicas. Diante disso, é impossível que se considere dessa forma apontada a "influência espiritual", já que não existem estudos conclusivos que apontem a veracidade e a natureza dessa patologia, tampouco intervenções e outros aspectos já bem desenhados pela pesquisa médica.
Então, como compactuar a integralidade do ser humano nesse sistema? Compreendendo, pois, as vivências daquele doente que busca o amparo na ciência médica e se utilizando delas para obter sua cura, sem mistério, charlatanismo ou uma mistura equivocada de ciência e aspectos religiosos. Medicina é ciência.
Historicamente, principalmente relatado na Medicina baseada em narrativas, o empirismo e a praticidade principalmente desenvolvida com anos de prática clínica induz o médico a aceitar esse tipo de situação e trabalhar com ela visando o melhor para o paciente. O que iria ao encontro do que foi tratado neste e-mail que estou a responder. No entanto, é complicado o médico trabalhar com algo que desconhece e utilizar crenças e artefatos que se distanciam daquilo já devidamente comprovado e suficientemente esclarecido.
O médico possui uma responsabilidade social perante a ciência: as pessoas buscam conforto - bem-estar - na medicina, mas sob o ponto de vista científico, e não outro. Pode-se adaptar a prática clínica para esses outros aspectos, mas com cuidado sempre para que não se transcenda o limite do próprio conhecimento existente. Até na questão da ética médica isso é importante."
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