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sábado, 5 de abril de 2014

Outra visão sobre Ninfomaníaca (Bruno Lorenzatto)

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Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente

Por Bruno Lorenzatto*

Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.

Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).

Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.

(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)

Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.

Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.

Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.


* Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/26/outra-visao-sobre-ninfomaniaca/)

Ninfomaníaca 2: contra normatização do desejo (José Geraldo Couto)

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Agora, Lars Von Triers deixa claras suas intenções e sugere: excesso e comedimento sexuais, pulsão e sublimação são duas faces da mesma moeda

Por José Geraldo Couto, no Blog IMS

Com a exibição do “segundo volume” de Ninfomaníaca, é possível ter uma ideia mais clara da ambição de Lars von Trier. E ela não é pequena. Visto em seu conjunto, em suas quatro horas de duração, o filme, mais que um inventário de perversões sexuais, pode ser visto como uma tragicomédia feroz sobre (ou contra) a normatização do desejo em nossa época.

A protagonista Joe (Stacy Martin/ Charlotte Gainsbourg) é uma aberração porque não se enquadra nas normas. Ao não saber onde colocar o desejo, ela o dissemina por toda parte, como uma criança às voltas com sua sexualidade polimorfa.

A segunda parte dá continuidade ao mesmo esquema narrativo da primeira: Joe, já madura, castigada pela vida, rememora sua acidentada trajetória para o solitário e casto homem que a recolheu na rua, Seligman (Stellan Skarsgard). Ao jorro de experiências dela, mostradas em flashbacks, ele tenta contrapor ensaios de ordenamento e construção de sentido, conforme escrevi aqui a propósito do “primeiro volume”.

Acúmulo e depuração

Nesta segunda metade, além de apresentar momentos importantes do percurso de Joe (a maternidade, o experimento masoquista, a tortura), von Trier passa em revista – ou melhor, arrasa – pragas de nossa época como o politicamente correto, as terapias para curar o “vício do sexo”, a paranoia com a pedofilia.

A par desse acúmulo (de histórias, de assuntos, de situações), há paradoxalmente uma depuração: fica mais claro do que nunca que Joe e Seligman são duas faces da mesma moeda – o excesso e o comedimento, pulsão e a sublimação –, ao mesmo tempo opostos e complementares em sua solidão irredutível. Dois enjeitados que não encontram lugar na sociedade “normal”. (Millôr Fernandes disse certa vez que, de todas as perversões sexuais, a mais esquisita é a abstinência. Seligman talvez seja a prova disso.)

Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, o que salta aos olhos é uma espécie de hibridismo sistemático, um jogo de contrastes perseguido conscientemente pelo diretor, como se ele quisesse a todo momento desmontar o que acabou de construir. Por exemplo: o tom de parábola, que despreza a verossimilhança e o naturalismo das situações, parece estar em contradição com a câmera instável, de documentário ou home movie, que mutila os seres e objetos e perde a todo momento o foco.

Alusões ao cinema

Outra antinomia frequente é a que se observa entre a gravidade e o humor, ou antes entre a intensidade dramática e o distanciamento irônico. Isso se evidencia, nesta segunda parte, nas inúmeras alusões ao próprio cinema.

Por exemplo: quando diz que seu conhecimento do sexo se deu unicamente pela literatura, Seligman cita três livros – Decameron, Os cantos de Canterbury e As mil e uma noites – que são justamente os que compõem a célebre “trilogia da vida” de Pasolini, cujo erotismo jubiloso é o contrário do calvário de Joe.

Em outra passagem, von Trier chega ao requinte ou desfaçatez de glosar um filme dele próprio, O anticristo, ao repetir a mesma cena do menino que se levanta do berço à noite para ver a neve, trepa na mureta do terraço e… O desfecho diferente é uma derrisória piscadela ao espectador.

E quando a protagonista, na reunião das “viciadas em sexo”, se apresenta dizendo “My name is Joe”, é impossível não pensar no filme homônimo de Ken Loach, sobre um alcoólatra em recuperação.

Em meio a essa teia de referências (que incluem a música e as artes plásticas), von Trier encontra espaço para produzir momentos de potente poesia, dos quais o mais significativo talvez seja a cena em que Joe encontra a “sua árvore”, uma árvore “bela, áspera e intratável” como o cacto do poema de Manuel Bandeira. Ou como a sexualidade de Joe.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/ninfomaniaca-2-contra-a-normatizacao-do-desejo/)

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ex isto: E se Descartes tivesse vindo ao Brasil? (Bruno Lorenzatto)

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Inspirado em Paulo Lemniski, filme de Cao Guimarães imagina filósofo inebriado por natureza e calor, despido de roupas e lógica racionalista, corpo que pensa a si mesmo

Por Bruno Lorenzatto*

Ex isto (2011) é o título do filme de Cao Guimarães, inspirado no livro de Paulo Leminski – Catatau (1975) –, possivelmente a obra mais experimental produzida pelo poeta. O tema: René Descartes, matemático e filósofo francês, pensador incontornável do racionalismo e da tradição filosófica, vem ao Brasil quando da missão holandesa comandada por Maurício de Nassau, no século XVII. Descartes de fato se alistou no exército holandês na época de Nassau, embora nunca tenha vindo ao Brasil.

Mas é do impossível e da irrealidade também de que se trata a arte, isto é, da invenção de outras realidades. Questão política, poder-se-ia dizer. A arte é capaz de produzir o deslocamento da percepção que se tem da própria realidade. Em outras palavras, a arte desordena a aparente ordem do real.

É do atravassamento do outro como experiência transformadora do sujeito de que fala o filme de Cao Guimarães (e o livro de Leminski), mas também de um questionamento da colonização. Catatau e Ex isto como máquina de guerra (estética e política) contra a lógica da colonização.

Durante todo o filme, as imagens do filósofo, percorrendo rios, praias, florestas, cidades, deslizam na tela, sem que em nenhum momento seja mostrado Descartes falando. E, no entanto, escuta-se a sua voz, que se mescla às imagens (suplementando o que se vê, por vezes em disjunção com a imagem), como se fosse seu pensamento – fragmentos extraídos do monólogo caótico do filósofo em Catatau. Esta voz vem de fora, não é Descartes quem fala. Tudo se passa como se seu pensamento viesse do exterior, viesse do outro. Não é mais o eu que pensa. O pensamento atravessa como um invasor, um intruso, a estrutura tranquila do sujeito. De modo que é possível dizer: a abordagem de Cao Guimarães em Ex isto atesta uma crítica ao modo de reflexão cartesiana. Porém há mais: o próprio Descartes no interior da ficcção parece refutar a si mesmo.

Ex isto mostra Descartes experimentando seu corpo e problematizando seu pensamento numa terra  que o transforma: jogado ao mar ou em êxtase na areia da praia; dançando uma “estranha” música ou comendo frutas desconhecidas, fumando ervas alucinóginas. Um improvável Descartes louco, drogado, nu na praia, que se deleita e se angustia com as sensações, os prazeres, os excessos e os limites do corpo – o eu se espalha pela superfície da pele e dos sentidos. A ordem lógica do pensamento precipita-se em gagueira ou afasia. “Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira” (P. 19). O corpo do filósofo já não fala a mesma língua de suas convicções. O Tupi-guarani contra o francês ou latim.  A lógica racionalista caduca e cede lugar à ordem do desejo proveniente do inesperado. A racionalidade pura encontra o afeto, para se tornar substância indissociável.

No sistema cartesiano, o eu é estabelecido como verdade definitiva e fundamental. Mas quando a alteridade dos trópicos atravessa o corpo de Descates, em Catatau e Ex isto, o filósofo francês já não sabe dizer como antes: Cogito, ergo sum (penso, logo existo). “Claro que já não creio no que penso (…) Duvido se existo, quem sou eu se este tamanduá existe?” (P. 20), diz o Descartes de Leminski.

É que a lógica cartesiana não dá conta deste outro impensável: o calor asfixiante do Recife, a mata com sua fauna e flora “exóticas”, a geografia e o estranho mapa da terra, a cultura –  os costumes, os hábitos alimentares e os habitantes, a música e a dança inimagináveis e, por fim, o próprio corpo de Descartes (que já não é o mesmo) atravessado por essa alteridade. O ato de pensar e o eu se encontram em crise: “Um papagaio pegou meu pensamento, amola palavras em polaco (…) Bestas grandes no mais aceso fogo do dia… Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas do pensar” (P. 17).

Se este outro impensável –  impossível de ser sistematizado em termos racionais –, de fato, existe, e Descartes o experimenta (como o avesso de si mesmo), a sólida existência do eu – a lógica eurocêntrica – já não pode se afirmar como antes. Em Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, Robinson Crusoe, isolado numa ilha, levanta a questão que poderia ser a de Descartes no Brasil: “Existir, o que isso quer dizer? Quer dizer estar fora, sistere ex. O que está no exterior existe. O que está no interior não existe. Minhas ideias, minhas imagens, meus sonhos não existem (…) O que vem a complicar tudo é o fato de que aquilo que não existe se obstina a fazer acreditar o contrário. Há uma grande e comum aspiração do inexistente em direção ao existente. Como uma força centrífuga que empurraria para fora tudo o que se move em mim, imagens, devaneios, projetos, fantasias, desejos, obsessões. O que não ex-iste in-siste. Insiste para existir. Todo esse pequeno mundo se empurra à porta do grande, do verdadeiro mundo. E é o outro que tem a chave” (grifos meus)*.

De forma que se conclui que não é do eu que deriva o outro, mas sim o oposto – a existência do outro é que possiblita a existência do eu. O primado do outro sobre o eu – toda uma reformulação estético-política.

Radical deslocamento que questiona a lógica do colonizador (que submete o Outro – colonizado – ao domínio do Eu – colonizador): “Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor… emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico” (P. 212), diz Leminski.

A contrapartida da colonização ou o efeito não calculado da colonização sobre o colonizador. A terra (o outro) mapeada, territorializada é a mesma que desterritorializa o pretenso fundador (o eu). A colonização do colonizador pela terra colonizada. O Homem, Branco, Europeu, Racional, em uma palavra – a Pureza – é corrompida pela terra impensável, pela experiência radical do outro, que o sujeito se permite (ou é obrigado) a experimentar e, no caso de Descartes, a pensar sobre essa experiência e sobre a experiência do pensamento.

A impossibilidade do ato de conhecer (antes assegurado pela certeza da existência do eu) é colocada em questão. O abalo das certezas conduz o filósofo a eximir-se de seus postulados anteriores e devanear: “o nada é o maior espetáculo da Terra”, afirma Descartes em uma cena do filme.

Ex isto e Catatau como a colonização de Descartes pela experiência do corpo, que é a experiência de uma outra terra, de uma outra cultura. De tal forma que as manchas, as rasuras marcadas em sua carne são capazes de fraturar seu pensamento.

A tradicional dualidade que a filosofia não cessou de operar por séculos, entre espírito e corpo já não faz mais sentido. Descartes, no Brasil,  é pura matéria, corpo que pensa a si mesmo e  a  existência através do corpo.

O paradoxo: Descartes duvida de sua própria existência. Descartes, o outro, pode ver a si mesmo e a vida com “outros olhos e com os olhos dos outros”

*trecho de Sexta-feira ou os limbos do pacífico extraído do blog:
http://jevousdefenestre.blogspot.com.br/search/label/Michel%20Tournier

Link para o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=rxl9SkNIKmY
Link para o filme completo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=iJJGhOTkz14
site do diretor: http://www.caoguimaraes.com/


*Bruno Lorenzatto é licenciado em história e mestre em filosofia pela PUC-Rio

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Dois filmes e um obscuro outono europeu (Ricardo Cavalcanti-Schiel)

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Tanto Ninfomaníca, apenas aparentemente erótico, quanto La Grande Bellezza, cínico e exagerado, sugerem: há imenso cansaço no berço do Ocidente

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel

O último 25 de dezembro foi o dia da estréia mundial do polemicamente aguardado filme do diretor dinamarquês Lars von Trier, Ninfomaníaca. A polêmica é, senão puro marketing, em larga medida gratuita e moralista. Cenas de sexo explícito rompendo as fronteiras industrialmente demarcadas por Hollywood – entre atores de imagem pudica (o que fez Nicole Kidman fugir do elenco) e o gueto do “entretenimento adulto” – já não é mais nenhuma ousadia autoral pecaminosa, a não ser para aquelas mesmas classificações industriais. Erótico? O sexo em Ninfomaníaca, desde sua primeira cena, é duro, ritualístico e mecânico, esterilizado por números, transformado em quantificação formalista, em metáfora zoológica. Erótico talvez para rapazotes de quinze anos (que evidentemente não poderão entrar no cinema), para quem, graças aos irremediáveis transbordamentos hormonais, a mera carnalidade avulsa já basta como descoberta erótica. Ninfomaníaca é, desde a sua primeira cena, sombrio. E é disso que se trata.

Provavelmente não combine bem com o verão brasileiro em que será lançado (e à sua maneira digerido). Aqui na Europa faz tanto frio lá fora (do cinema) quanto na rua onde mora o cripto-analista vivido pelo personagem Seligman, o (ironicamente) “homem feliz” que abriga a mulher dura e machucada que vai lhe contar a história de sua vida. A ambientação histórico-biográfica dessa primeira parte de Ninfomaníaca é a Grã-Bretanha dos anos 60 e 70, mas o tempo presente da narradora Joe é o de um inverno onde se vê, pela janela da austera e encardida habitação de Seligman, a neve caindo lá fora.

Talvez a primeira reação de um cinéfilo para digerir Ninfomaníaca seja a de esquematizá-lo como uma espécie de cruzamento bastardo entre “Drowning by Numbers” (de Peter Greenway) e o último Kubrick (“Eyes Wide Shut” – “De olhos bem fechados”). Mas não tem nem a leveza surrealista dos voos de Greenway nem a afetação escapista do filme de Kubrick. Para além das primeiras aparências temáticas, o que é posto ao rés do chão é a impossibilidade de sentir. Na sua versão compulsiva e sufocante, à la Trier.

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Mas não estamos no campo da psicopatia, porque a impossibilidade afetiva, no caso “em tela”, é exatamente o que sustenta e justifica um outro sentimento, elevado à condição de critério axiológico transcendente, e que, nessa condição, move a narrativa de Joe dentro da narrativa de Trier: a culpa. Sim, muito cristão isso! ou para ser mais preciso, muito protestante. E o diretor? toma partido? Seu personagem dialógico, o “homem feliz” é o retrato da racionalidade tolerante e compreensiva; nem tanto uma racionalidade feita empatia (a racionalidade etnográfica com que os antropólogos nos entretemos), mas sim ao revés: a empatia racionalizada (a medida da “felicidade” dinamarquesa). Seligman é quase como uma espécie de arauto sóbrio da semiótica na sua versão morfodinâmica (e matemática): a forma emerge da substância – diante da sua interlocutora, que é pura substância. Até onde foi esta primeira parte de Ninfomaníaca recém lançado, não dá pra saber conclusivamente que partido toma o diretor. Mas a última fala do (meio) filme parece lapidar, senão oracular, e é até aí onde podemos por enquanto ir, como também perguntar-nos: não seria o “homem feliz” feliz apenas por que também não “sente”?

A culpa protestante de Joe é a culpa ontológica do indivíduo, esse super-herói romântico, vaidoso e onanista. A culpa é o limite do hedonismo; é a sua consciência obscura. E consumir compulsivamente homens pode ser como consumir compulsivamente qualquer outra coisa. O fundo da desmedida hedonista é um poço. Os primeiros minutos de Ninfomaníaca são apenas a escuridão da tela com algum ruído de fundo. Estamos quase que no extremo oposto do emblemático plano fixo de três minutos sobre a cara do Che morto na Bolívia, na última cena do antológico (mesmo que panfletário) “La hora de los hornos” (1968), de Pino Solanas e Octavio Getino. Não se trata mais de deixar o tempo fílmico em suspenso, para uma possível consciência meta-textual do mundo atinar que se deve olhar ao redor. Aqui se trata de olhar apenas para dentro. E só o que se vê é o poço.

Algumas semanas antes de Ninfomaníaca entrou em cartaz (na Europa e EUA) um filme que, em lugar de uma estratégia de marketing polêmico, preferiu o caminho convencional de um largo percurso por festivais europeus (e foi considerado por alguns o grande injustiçado em Cannes), La grande bellezza, de Paolo Sorrentino. Em lugar do inverno nórdico, Roma em pleno verão. Em lugar da culpa, o cinismo corrosivo de um bon-vivant que faz do personagem de Marcello Mastroianni em La dolce vita um pobre e não mais que nostálgico naïf. Se Joe, de Ninfomaníaca, tenta se aferrar a uma narrativa causal sobre a própria vida, como se isso fosse tudo o que lhe restasse, o personagem de Sorrentino, o playboy sexagenário Jep Gambardella, escritor de um livro só e jornalista de costumes, contenta-se em flanar, para um dia, quem sabe, casualmente, talvez por puro milagre, topar-se com algo que lhe restitua um sentido de obra. Só que isso, no fundo, ele desdenha, em nome de um realismo vulgar, ou antes, de uma vulgaridade “realista”, acomodada e luxuosa, hipócrita e cafona. O que filia Sorrentino à tradição lírica do cinema italiano é conferir a esse desdém uma nota de melancolia adocicada, como se nos convidasse, malgré tout, a tomar um bellini no fim da tarde à beira do Mediterrâneo, pois se a grande beleza não parece mais encontrável, isso pode ser tudo o que restou dela.

Apesar de todas as diferenças, a mensagem íntima que parece ficar desses dois filmes europeus emblemáticos de 2013 é que de alguma forma chegou-se a um ponto de exaustão. A velha Europa está mais do que cansada. Consumir o mundo para lhe alimentar um ego narcísico parece ter chegado ao paroxismo; o paroxismo de exaurir-se. O que sugere a continuação dessa história (porque ter chegado até aqui é prova de que a história não acabou, como queria Fukuyama), ninguém sabe. Mas provavelmente, o melhor cenário em que cabe não é nem o inverno ao qual Trier se antecipa nem o verão ao qual Sorrentino se agarra, mas um outono desluzido do qual não se sabe se virá chuva ou se virá neve.

Por casualidade, é também um contraponto de imagem etária que marca as personagens principais de ambos os filmes (ao menos no caso dessa primeira parte de Ninfomaníaca). Em um caso, o velhote feioso, elegante e sedutor vivido por Toni Servillo. Em outro, a bela, magricela e distante Stacy Martin, uma espécie de antípoda à exuberância de uma Scarlett Johansson em “Match point” por exemplo, mas que é provável que, exatamente por anacronismo, acabe se tornando o símbolo sexual de um talvez longo e incerto outono. Foi-se há muito a primavera em que Jean Seberg passeava gritando pela Champs-Élysées: “– New York Herald Tribune!”.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/dois-filmes-e-um-obscuro-outono-europeu/)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ernst Bloch: “Viver o futuro no presente” (Arlindenor Pedro)

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Filósofo alemão do século XX é indispensável para compreender conceito contemporâneo de utopia: o “vir-a-ser” que convida a “astuciar o mundo”

Por Arlindenor Pedro

Às vezes me pego pensando no porquê de a língua alemã ter produzido uma gama tão grande de pensadores, artistas, e filósofos que contribuíram de forma tão expressiva para história da humanidade.

Desnecessário seria citar os nomes de Schiller, Kant, Hegel, Beethoven, Schopenhauer, Nietzsche, Marx,  Weber, Horkheimer, Adorno, Erich Fromm, Habermas, Walter Benjamim, e agora uma nova geração de marxistas como Robert Kurz, Anselm Jappe e tantos outros — gigantes nos seus objetos de estudo.

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Alguém argumentou que isto se dá devido à estrutura da língua alemã, que se apresenta como extremamente prática e precisa na tradução de um pensamento, sendo para muitos uma ferramenta decisiva na criação e na “arte de filosofar”; concepção que tornou célebre a frase do filósofo Heidegger, quando disse que a filosofia só poderia ser escrita em duas línguas: o grego e o alemão.

Exageros à parte, pois sabemos que a produção cultural, artística e filosófica da humanidade vai muito além do que nos legaram os gregos e também o povo alemão, não deixo de me encantar com as ideias oriundas dos filósofos germânicos, notadamente  com o pensamento original do professor Ernst Bloch. Nascido em 1885, em Ludwigshafen, viveu 92 anos , encerrando sua vida em 4 de agosto de 1977, em Tubingen. Considerado um dos mais importantes pensadores marxistas alemães do século XX,  sua obra vastíssima incursionou por um vasto leque temas de relevantes.

Bloch conviveu com os maiores pensadores do século passado sendo por eles influenciado e certamente influenciando-os, por meio dos inúmeros estudos  que publicou: Entre estes, estão Lukács — com quem manteve uma relação de amizade, marcada por altos e baixos –, Simmel e Max Weber — os três participaram juntos de círculos de reflexão — e, mais tarde, Adorno, Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Bertolt Brecht, Hans Eisler, Kurt Weil e Otto Klemperer.

Durante sua vida, em vários momentos teve que se tornar refugiado, ora para fugir do alistamento militar na I Guerra Mundial, ora para fugir do nazismo, às vésperas da II Guerra,  ou mesmo para escapar, já no pós-guerra, escapar ao estalinismo da Alemanha Oriental, onde exercia importante cátedra  na  Universidade Karl Marx. Conheceu, portanto, picos de prestígio por seu valor acadêmico e o desprezo da intelectualidade do comunismo oficial, que o perseguiu por suas posições pouco ortodoxas no campo do marxismo.

O fato é que Ernst Bloch pouco se afinou com a visão economicista do marxismo oficial, desenvolvendo estudos em áreas por ela desprezadas , como a psicologia , arte e filosofia. Priorizou a visão de totalidade dos escritos  de Marx , colocada no esquecimento pela ortodoxia da Terceira Internacional. Para Bloch, a ação revolucionária, objetivo do marxismo, é justamente captar esses conteúdos e acioná-los em favor da liberdade. Vanguardas, para ele, são movimentos que conseguem explorar esses conteúdos, expressando-os antes que eles sejam confinados ao senso comum — tornando possível, assim, o exame  da ação adequada. Por isso é que, para ele, a utopia  é tão importante para o marxismo.

Nesse campo, sem dúvidas, sua obra mais importante é o  enciclopédico Príncipio Esperança, escrito em seu exílio nos Estados Unidos e publicado em 1956, quando já retornara à Alemanha.

Hoje, é impossível entendemos  o conceito moderno de utopia se não levarmos em consideração os estudos feitos nesta área por Ernst Bloch e  seu contemporâneo , o húngaro Karl Mannheim, notadamente com o clássico Ideologia e Utopia, onde se debruça sobre esses conceitos, tão presentes na vida moderna .

Mannheim entende que “as ideologias são idéias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de fato a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente à  pratica, são, na maior parte, deformados.

A ideia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece, sob uma sociedade fundada na servidão, irrealizável. Nesse sentido, é uma ideia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa fé, um motivo de conduta do indivíduo. E impossível viver harmoniosamente, à luz do amor fraterno cristão, em uma sociedade que não se acha organizada sob o mesmo princípio. O individuo se vê, em sua conduta pessoal, sempre forçado — à medida em que não ocorre a ruptura da estrutura social existente — a renunciar a seus motivos nobres.”  (in Ideologia e Utopia).

Devido a seu papel de incongruência — isto é, dissonância com a ordem estabelecida — as utopias passam então  a ter um relevante papel como motor do processo histórico, isto é, da busca por mudanças. Estariam elas, entendo, no campo das pulsões, conceito presente nas obras de Ernst Bloch principalmente em Principio Esperança.

Ali, ele nos propõe a visão da existência de um nexo entre as potencialidades “ainda-não-manifestas” e a atividade criadora da “consciência antecipadora”. Isto é, podemos equacionar problemas atuais em sintonia com as linhas que antecipam o futuro. O conceito blochiano de superação “do que-já-se-efetivou” pela esperança “do que ainda-não-veio-a-ser”, torna-se um importante elemento para entendermos o papel das utopias no desenvolvimento das sociedades.

O “ainda-não-ser” — categoria fundamental da filosofia blochiana da práxis — baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para futuro. Imaginando, os sujeitos “astuciam o mundo”. O futuro deixa de ser insondável para vincular-se à realidade como expectativa de libertação e desalienação.

Bloch nos diz que, ao contrário do que a psicanálise freudiana procura ensinar, não está no passado o único elemento de entendimento do comportamento humano no “presente-vivido”. Na verdade, no presente, o individuo vive já o futuro, que está presente nas suas ações e comportamentos — isto é, suas utopias. Quanto menos se tem utopias, menos se vive o futuro no presente, vivendo-se apenas no campo das ideologias, formatadas pela realidade social que nos cerca.

Mas,  é importante, porém, diferenciarmos o  que é imaginação e o que é fantasia: na primeira tendemos a criar um imaginário alternativo; já na segunda nos alienamos num conjunto de imagens exóticas em que procuramos compensar uma insatisfação vaga e difusa da realidade por outra imagem irreal. A imaginação é um elemento decisivo na luta contra a opressão. O ato de imaginar aclara os rumos e acelera as utopias. Eis aí, portanto, uma visão que vai além do conceito mecanicista  de luta de classes desenvolvido pelos teóricos de plantão da Terceira Internacional.

Princípio Esperança é uma obra instigante e apaixonante. Leva ao entendimento das diferenças entre o “sonho noturno” , objeto de estudo das importantes  descobertas de Freud,  e os “sonhos diurnos” , elementos transformadores , impulsionadores da história. Em alguns momentos, a obra de Bloch assemelha-se com outro importante livro, lançada em 1959. Trata-se de Visão do Paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, de nosso Sérgio Buarque de Holanda. Aí ele analisa o imaginário das utopias, das lendas paradisíacas do século XVI na Europa, que impulsionaram subjetivamente as grandes navegações, levando-nos a fazer a pergunta: será que estes autores se conheceram? Suas obras são tão relevantes e se tocam em tantas questões!

Olhando para ambas, dificilmente deixamos de nos indagar:  não será a utopia o elemento impulsionador das navegações portuguesas? Se não assim, como entender que um país tão diminuto e frágil tenha se lançando em uma aventura de tamanha dimensão?

Fernando Pessoa  é um dos maiores poetas da língua portuguesa. Em sua obra Mensagem, onde se destaca o poema O Quinto Império, ele retrata bem o espírito português, que vê na expansão para o ultramar um momento épico da nacionalidade, que se propôs levar ao mundo uma nova civilização, com os valores extraídos dos povos celtas, românicos, mouros e visigóticos. Isto também pode ser percebido em outro grande gigante da poesia épica lusitana — Camões –, que, nos Lusíadas compreendia  a Península Ibérica como o final da terra, onde começava o grandioso e misterioso mar: “Onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões, in Lusíadas, III, 20)

Era inevitável, portanto, que surgisse naquele povo, no seu ideário, a necessidade de se lançar à mar, onde a terra terminava. Era o infinito que atraía coletivamente a todos — afinal, o que existiria além-mar?   Além dos interesses materiais envolvidos no processo de expansão, percebemos que, naquele momento, amalgamou-se no imaginário português a utopia do 5º Império que ajudou a unir o país — o povo e as elites — num sonho único, capaz de realizar tanto a nacionalidade quanto o indivíduo, dando-lhes condições para tão grandiosa empreitada. Foi um momento mágico, único. Aquele momento em que a nação como um todo é capaz de executar e tornar vitorioso um grande desafio. As pulsões do que nos fala Ernsth Bloch.

Enquanto esta utopia esteve viva — durante a dinastia de Aviz –, Portugal conseguiu unidade. Suponho, portanto,  que no período entre o início do reinado de D. João I e a morte precoce do jovem rei D. Sebastião, desenrole-se o profundo drama da nacionalidade lusitana. Referindo-se esses tempos, Oliveira Martins, na obra Os filhos de D. João I”, retrata esta dramaticidade, quando da decisão de D. João em invadir Ceuta:

“Estava o rei com os infantes em Sintra, talvez naquela pequena câmara forrada de azulejos também, que a tradição diz ter sido o lugar de D. Sebastião no Conselho decisivo na campanha de Alcacér Quibir. Nesta câmara devia ser, para que num mesmo lugar se resolvessem as duas expedições: a que abre e a que encerra o círculo mágico de nossa vida gloriosa. Desde os tempos misteriosos da Caldeia, esse berço de todas as adivinhações, o anel representado pela serpente devorando-se a si própria, foi a imagem simbólica da vida no seu ritmo fatal, voltando ao ponto de partida, acabando por onde começara…”( in Os filhos de D. João I, Oliveira Martins,1998) .

“Negar que durante os três séculos da dinastia de Avis a nação portuguesa viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento arreigado da sua coesão interna, seria um absurdo. Essa coesão que fora ganha nas lutas e campanhas da primeira dinastia perde-se no XVI século, por causa das consequências do império oriental e da educação dos jesuítas. Portugal acaba: Os Lusíadas são um epitáfio.” (in Historia de Portugal, Oliveira Martins, 1972).

Na atualidade, vejo que as utopias  estão de volta no imaginário do mundo global e  elas ganham uma feição pós-capitalista — um novo mundo fora dos padrões da sociedade da mercadoria.

A crise que varre o mundo globalizado acelera estas utopias e cada vez mais arrasta pessoas para um “sonho diurno”, tirando-as do torpor da vida de autômatos-consumistas. Após as derrotas das utopias do século XX, do socialismo real, do nazismo e do fascismo, surgem propostas de um viver agora, já, neste momento, diferente do que nos impõem a sociedade erigida pela burguesia liberal. Nesse sentido os conceitos blochianos têm um imenso valor e são instrumentos importantes para a rebeldia que leva à revolução.

Desta forma, iniciativas que passam desde a formação de Zonas Autônomas, a encontros periódicos como os Rainbows, até a grandes ou pequenas manifestações que atingem a essência  do sistema como a proposta do Passe Livre, jogam um importante papel na busca dessa utopia, pois o desmoronamento desse mundo não se fará de uma única forma ou em um único momento. Ele é fruto da  ação de milhões de pessoas que, em rede, conectadas por um sentimento de mudanças  paralisarão o sistema. Tal processo já se torna visível com as crise do sistema financeiro, do sistema produtivo, no mundo do trabalho e de valores éticos que levam a sociedade para a barbárie e apontam para grandes colapsos energético e ambiental. Não queremos mais isto, é um grito que ecoa com grande intensidade em todo o planeta!

Como era de se esperar, prevalece o instinto de sobrevivência humana que impulsiona os escravos para a rebeldia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/ernst-bloch-viver-o-futuro-no-presente/)

sábado, 23 de novembro de 2013

Ramonet: “Inevitável Mundo Novo”? (Ignacio Ramonet)

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Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para barbárie

Por Ignacio Ramonet | Tradução: Teresa Van Acker

(Publicado originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro de 2000)

Seria pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?

Essas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda mais na literatura.

E, entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua atualidade surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado, pelo menos por uma vez.

O romance, que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano 600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a produção em série e da padronização das peças.

Essa técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as grandes indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também entre os intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e criadores da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos, por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos modernos (1935), de Charles Chaplin.

O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.

Nascido numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres, Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold (1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro diretor geral da Unesco.

Como não poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes “centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial (1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.

Ao retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley, 1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza — iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.

Em seus primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley apresenta um universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles que mais os deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.

Nesse sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo desse período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do moralista.

Essa visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929 castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos. Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo acondicionamento à Pavlov [1] e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos eugênicos e produtivistas.

Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.

Os seres humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” — segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.

No momento de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade da atividade profissional a que estarão destinados.

Além do mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo, recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”

Dessa forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus gostos ou a origem de seus antepassados.

Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia soviética construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados Unidos em nome da modernidade tecnicista.

Huxley, excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em condição humana, no sentido próprio.

O título original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”

No espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado, como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.

Excesso de pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.

Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos, quando, por todos os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos confrontam com desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie humana.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/ramonet-inevitavel-mundo-novo/)

domingo, 10 de novembro de 2013

Krugman: a Civilização no cassino (PAUL KRUGMAN)

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Interesses econômicos, ideologia do livre-mercado e crença infinita na técnica bloqueiam ação contra mudança climática. É uma aposta mortal

Por Paul Krugman, no New York Review of Books | Tradução: Cristiana Martin


Resenha de:
“The Climate Casino: Risk, Uncertainty, and Economics for a Warming World“, de William D. Nordhaus, Yale University Press, 378 pp.


1.

Quarenta anos atrás, um jovem e brilhante economista da Universidade de Yale chamado William Nordhaus publicou um renomado artigo, The Allocation of Energy Resources, que expandiu fronteiras na análise econômica. Nordhaus argumentou que era necessário pensar claramente sobre a economia de recursos esgotáveis como petróleo e carvão, para olhar para o futuro e avaliar seu valor à medida que vão ficando mais escassos. Esse olhar necessariamente envolveria considerar, não apenas recursos disponíveis e crescimento econômico futuro, mas também prováveis futuras tecnologias. Além disso, Nordhaus desenvolveu um método incorporando todas essas informações – estimativa de recursos, previsões econômicas de longo prazo e as melhores previsões de engenheiros sobre custos de futuras tecnologias – em um modelo quantitativo de preços energéticos em um longo período.

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Os recursos e informações de engenheiros para o artigo de Nordhaus foram, na maioria, organizados e reunidos por seu assistente, um aluno de graduação de 20 anos que permaneceu longas horas fechado na Biblioteca de Geologia de Yale, debruçado no “Bureau of Mines” e afins. Era uma aprendizagem de valor inestimável. Minhas razões para ter buscado este trecho de história intelectual, no entanto, vão muito além da revelação pessoal – embora os leitores desta resenha devam saber que Bill Nordhaus foi meu primeiro mentor profissional. Pois se alguém se debruçar sobre The Allocation of Energy Resources, aprenderá duas lições cruciais. Primeiro, que é difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro distante. Segundo, que às vezes as previsões devem ser feitas mesmo assim.

Voltando a “Allocation” depois de quatro décadas, o que salta aos olhos é o quão errado estavam os especialistas a respeito das futuras tecnologias. Por anos, seus erros pareciam estar em um superotimismo, especialmente sobre a produção de petróleo e de energia nuclear. Mais recentemente, as surpresas apresentaram-se do lado oposto. A extração de petróleo por meio de fracking tem maior impacto imediato nos mercados, mas a novidade fundamental é a competitividade crescente das energias solar e eólica – nenhuma das quais apareceu na obra “Allocation”. Os preços atuais do petróleo, ajustados pela inflação, são praticamente o dobro do que Nordhaus havia previsto, enquanto o preço do carvão e especialmente o do gás natural estão bem abaixo de suas bases de cálculo.

De modo que o futuro é incerto, uma realidade reconhecida no título do novo livro de Nordhaus: The Climate Casino: Risk, Uncertainty, e Economics for a Warming World (“O Cassino Climático: Risco, Incerteza e Economia para um Mundo em Aquecimento”, sem edição em português). Ainda assim, as decisões devem ser feitas levando em consideração o futuro – e às vezes o futuro de longo prazo. Isso é verdade quando se trata de recursos esgotáveis, em que cada barril de petróleo queimado hoje é um barril não disponível para as próximas gerações. É ainda mais verdadeiro para o aquecimento global, em que cada tonelada de dióxido de carbono emitida hoje permanecerá na atmosfera, alterando o clima do planeta, para as gerações vindouras. E, como enfatiza Nordhaus – talvez não tanto quanto alguns gostariam –, quando falamos em mudanças climáticas a incerteza leva ao aumento, e não ao enfraquecimento da necessidade de ação imediata.

No entanto, embora a incerteza não possa ser banida da questão do aquecimento global, podemos e devemos fazer as melhores previsões possíveis. Acompanhando seu estudo sobre as energias futuras, Nordhaus tornou-se pioneiro no desenvolvimento de “modelos de avaliação integrada”, que tentam reunir o que conhecemos sobre dois sistemas – a economia e o clima –, mapeando a interação entre eles na tentativa de analisar a relação custo-benefício de políticas alternativas (2). Por um lado, The Climate Casino é um esforço para popularizar os resultados dos IAMs e de suas implicações. Mas é também, claro, um convite à ação. Vou perguntar adiante, nesta resenha, se esse convite tem alguma chance de sucesso.

2.

Estilisticamente, The Climate Casino deve ser lido mais como cartilha do que como manifesto – algo que certamente frustrará muitos ativistas climáticos.

Trata-se, é bom lembrar, de uma posição característica de Nordhaus: na comunidade de pessoas razoáveis, que aceitam a realidade do aquecimento global e a necessidade de fazer algo a respeito, ele tem assumido o papel de desmistificador, criticando afirmações muito fortes, que não acredita serem justificáveis por teorias ou evidências. Ele levantou bandeiras de relativo otimismo sobre nossa capacidade de adaptação ao aquecimento global moderado. Criticou duramente o estudo de Nicholas Stern, amplamente divulgado, sobre a economia das mudanças climáticas, argumentando que não deveríamos pensar nos custos impostos às futuras gerações devido ao consumo de combustíveis fósseis nas gerações atuais (3). E assumiu uma postura cética em relação aos argumentos de Martin Weitzman, de Harvard, de ampla circulação, de que o risco de efeitos climáticos catastróficos justifica ações muito rápidas e agressivas para limitar emissões de gases do efeito estufa (4).

Como eu dizia, a participação de Nordhaus nessas controvérsias frustrou alguns ativistas do clima, até porque adversários de todo e qualquer tipo de ação contra as mudanças climáticas usaram seus trabalhos para apoiar a posição deles. Dito isto, é importante notar que The Climate Casino não é, de modo algum, o trabalho de alguém cético sobre a realidade do aquecimento global e a necessidade de agir imediatamente. Ele meio que ridiculariza afirmativas de que as mudanças climáticas não estão acontecendo ou não são resultado da atividade humana. E conclama à ação agressiva: sua melhor estimativa sobre o que deveríamos estar fazendo envolve impor um imposto substancial e imediato sobre a emissão de carbono, de tal forma a aumentar bruscamente o preço atual do carvão, e elevá-la gradualmente até mais que o dobro em 2030.

Talvez alguns até considerem essa política inadequada, mas é muito mais do que existe atualmente na agenda política. Portanto, na prática, Nordhaus e os ativistas climáticos mais agressivos estão do mesmo lado. [...]

Então, o que ele diz neste livro? Primeiro, ele revisa a ciência climática básica. Ao queimar quantidades colossais de combustíveis fósseis, aumentamos enormemente a concentração de dióxido de carbono na atmosfera – e certamente a elevaremos muito mais nas próximas décadas. O problema é que o CO2 é um gás de efeito estufa (assim como muitos outros gases também liberados em consequência da industrialização): ele retém calor, elevando a temperatura do planeta.

De que nível de elevação estamos falando? Nordhaus segue o consenso científico do último relatório do Painel Intergovernamental da Mudança Climática (IPCC), que coloca o provável aumento entre 1,8 e 4 graus centígrados em 2100. Na verdade, Nordhaus aponta para o máximo deste intervalo, com a elevação da temperatura em até aproximadamente 6ºC em 2200. Ele observa também a possibilidade de haver surpresas desagradáveis. Por exemplo, se o aquecimento levar à liberação de quantidades substanciais de metano – um poderoso gás de efeito estufa – provenientes do descongelamento da tundra.

O aquecimento, por sua vez, tem várias consequências para além da simples elevação das temperaturas. O nível dos mares vai aumentar, tanto pela própria expansão da água quanto pelo derretimento do gelo. Aqui, também há a possibilidade de haver surpresas desagradáveis – por exemplo, o derretimento da camada de gelo da Groenlândia, que, por sua vez, causaria mais derretimento. Furacões ficarão mais intensos, pois são “alimentados” por águas mornas. Climas locais podem mudar drasticamente, com áreas úmidas tornando-se ainda mais úmidas ou tornando-se secas.

Há também uma importante consequência do aumento dos níveis de CO2, que não está diretamente relacionada ao aquecimento: os oceanos tornam-se mais ácidos, com efeitos adversos na vida marítima. Efeitos devastadores em recifes de coral já são provavelmente inevitáveis.

Quanto prejuízo isso provocará? Nordhaus desenha um contraste entre o que ele chama de “sistemas gerenciados” – como a agricultura e a saúde pública, atividades humanas basicamente afetadas pelo clima – e “sistemas não gerenciáveis”, tais como nível dos mares, acidificação dos oceanos e desaparecimento de espécies. Comparado a alguns autores, Nordhaus é relativamente otimista sobre o impacto da elevação das temperaturas nos sistemas gerenciados. Na verdade, ele resume estudos que sugerem um provável pequeno aumento das colheitas agrícolas graças a um ou dois graus de aquecimento, e declara: “É impressionante como este resumo das evidências científicas contrasta com a retórica popular.” Ele também vê os impactos na saúde como modestos, ao menos com o aquecimento provável neste século, com avaliação “similar à da agricultura”.

Os maiores custos, argumenta Nordhaus, vêm dos sistemas não gerenciáveis: elevação dos oceanos, furacões mais intensos, perda na diversidade de espécies, oceanos cada vez mais ácidos. O problema é como colocar um número nesses custos – o que ele precisa fazer, pois, como já apontei, seu objetivo é fazer uma análise da relação custo-benefício.

No fim, e apesar da desmistificação, Nordhaus conclui que haverá custos crescentes conforme a elevação da temperatura vá além dos 2°C – e um aumento de no mínimo tal grandeza parece, a esta altura, quase impossível de evitar. Quando se leva em conta o risco de aumentos surpreendentes na temperatura, surge um impulso incontrolável de agir para limitar a mudança climática. O problema, então, é qual o tamanho da ação e que forma ela deveria tomar.

3.

Existe uma facção no debate sobre o clima que reconhece a realidade do aquecimento global e seus custos, mas rejeita a noção de tentar limitar a emissão de gases causadores do efeito estufa – seja porque considera seus custos muito caros, ou (suspeita-se) porque limitar os impactos humanos no meio ambiente faz com que algumas pessoas imaginem que isso seja coisa de “hippie”. Assim, essa facção clama por uma geoengenharia: ao invés de limitar os impactos humanos, nós deveríamos compensá-los com outros impactos na direção contrária.

Muitos ambientalistas rejeitam a ideia da geoengenharia. Nordhaus não; ele sugere que esquemas como o bombeamento de aerosóis refletivos na alta atmosfera poderia livrar o aquecimento global dos gases de efeito estufa a um preço relativamente barato. Mesmo assim, como ele aponta, a geoengenharia não iria de fato reverter os efeitos dos gases, apenas servir para desencadear outros efeitos e isso, apenas em níveis globais. A acidificação do oceano, por exemplo, iria continuar; e mesmo se a média da temperatura global pudesse ser estabilizada, poderiam ocorrer enormes variações em climas e temperaturas locais.

No fim, Nordhaus faz uma bela análise de por que a geoengenharia deveria ser estudada e, consequentemente, guardada como carta na manga, da mesma maneira como médicos estudam e guardam em suas mentes tratamentos perigosos mas poderosos, a serem utilizados apenas, e só apenas, quando todo o resto falha. A primeira linha de defesa deveria ser um esforço para limitar o aquecimento global limitando as emissões de gases. Como isso pode ser feito?

No texto introdutório ao capítulo de Economia do livro, ele fala sobre o conceito de “externalidades negativas” – custos que as pessoas impõem aos outros através de ações, sem serem responsabilizadas por isso. Poluição e congestionamento no trânsito são dois exemplos clássicos – e emissão de gases é, em nível conceitual, apenas um tipo de poluição. É verdade, existem aspectos incomuns nesses gases: o mal que eles causam é global, não local; os prejuízos estendem-se para um futuro longínquo, ao invés de se manifestarem esporadicamente, e existe o risco de essas emissões causarem, além de prejuízos, uma catástrofe na civilização.

Contudo, apesar dos aspectos incomuns, muitas análises do livro deveriam ser aplicadas. E o que Nordhaus diz é que a melhor maneira de controlar a poluição é colocar um preço nas emissões, para que os indivíduos e empresas tenham um incentivo financeiro para reduzi-los. [...]

Por que tributar o carbono é melhor do que regular diretamente as emissões? Todo economista conhece os argumentos: medidas para reduzir emissões podem acontecer em muitas “margens”, e nós deveríamos dar às pessoas incentivo para explorar essas margens. Deveriam os próprios consumidores tentar usar menos energia? Eles deveriam mudar seu consumo para produtos que usam menos energia ao ser fabricados? Deveríamos tentar produzir energia a partir de fontes com menores níveis de emissão (gás natural) ou sem emissão alguma (eólica)? Deveríamos tentar remover o dióxido de carbono (CO2) após o carbono ter sido queimado, ou seja, por captura e sequestro em complexos de energia? A resposta é: todas acima. E colocar um preço no carbono, na verdade, dá às pessoas um incentivo para realizar todas elas.

Por outro lado, seria muito difícil estabelecer regras para conseguir cumprir todas essas metas; na realidade, apenas conseguir comparar as emissões para fazer uma simples escolha, seja dirigir um carro ou voar até uma cidade distante, não é nada fácil. Por isso, estabelecer preços para carbono é o caminho a ser seguido. [...]

4.

Gostei de The Climate Casino, e aprendi muito com ele. Mesmo assim, enquanto o lia, não pude deixar de me perguntar para quem, exatamente, o livro foi escrito. Ele adota um tratamento calmo e fundamentado, ordenando o que há de melhor em evidências econômicas e científicas em favor de uma abordagem pragmática da política. E este é o ponto: quase todo mundo que responde a esse tipo de argumento já é favorável a uma forte ação contra a mudança climática. O problema são os outros.

Claro que Nordhaus está ciente disso, mas creio que ele minimiza quão ruim está o cenário. […] O ponto é: há poderes reais por trás da oposição a qualquer tipo de ação climática – poderes que desvirtuam o debate, tanto negando a ciência climática quanto exagerando os custos para reduzir a poluição. E esse não é o tipo de poder que pode ser afastado com argumentos tranquilos e racionais.

Por que alguns indivíduos poderosos e grandes organizações se opõem tão fortemente à ação, diante de perigo tão claro e presente? Parte da resposta é pura e simplesmente interesse próprio. Enfrentar o aquecimento global envolveria eliminar o uso de carvão, exceto na medida em que o CO2 puder ser recapturado após o consumo; envolveria redução do consumo de combustíveis fósseis; e preços substancialmente mais altos para a eletricidade. Para alguns tipos de negócio, isso significaria bilhões de dólares perdidos, e para os donos desses negócios, subsidiar a negação climática tem sido um investimento altamente lucrativo.

Para além disso tudo está a ideologia. “Os mercados sozinhos não resolverão esse problema”, declara Nordhaus. “Não há ‘solução de livre mercado’ genuína para o aquecimento global.” Isso não é uma afirmação radical, é apenas economia básica. Contudo, é um anátema para os entusiastas do livre mercado. Se você gosta de se imaginar como personagem de um romance de Ayn Rand, e alguém diz a você que o mundo não é daquele jeito, que ele necessita intervenção do governo – não importa quão amigável ao mercado ele possa ser – sua resposta provavelmente será rejeitar a informação e se apegar a suas fantasias. E, é triste dizer, um bom número de pessoas influentes na vida pública norte-americana acredita estar atuando no Atlas Shrugged.

Finalmente, há um forte traço no conservadorismo norte-americano moderno que nega não só a ciência climática, mas também os métodos científicos em geral. Uma enquete sugere, por exemplo, que a grande maioria dos republicanos rejeita a teoria da evolução. Para pessoas com essa mentalidade, permanecer alheio ao consenso científico sobre a questão apenas sustenta e alimenta fantasias sobre conspirações malucas.

Daí minha preocupação com a utilidade de livros como The Climate Casino. Dado o estado atual da política norte-americana, a combinação de interesse próprio, ideologia e hostilidade à ciência constitui um enorme obstáculo à ação, e a argumentação racional provavelmente não ajudará. Enquanto isso, o tempo está se esgotando, à medida que a concentração de carbono continua a subir.

Ao longo deste livro, o tom de Nordhaus é um pouco cínico, mas basicamente calmo e otimista: o aquecimento global é, em última análise, um problema que deveríamos ser capazes de resolver. Só gostaria de poder compartilhar de sua aparente convicção de que essa possibilidade vai se traduzir em realidade. Ao contrário, continuo sendo assombrado por um dado que ele apresenta no início do livro, ao mostrar que temos vivido em uma era de estabilidade climática incomum – “os últimos 7.000 anos têm sido o período de clima mais estável em mais de 100 mil anos”, afirma. Como pontua Nordhaus, esta era de estabilidade coincide exatamente com a ascensão da civilização, e isso provavelmente não é uma coincidência.

Agora, este período de estabilidade está terminando – e foi a civilização que produziu isso, por meio da Revolução Industrial e da queima maciça de carvão e outros combustíveis fósseis. A industrialização, é claro, tornou-nos imensamente mais poderosos, e mais flexíveis também, mais capazes de nos adaptar a circunstâncias em transformação. A Revolução Científica que acompanhou a revolução na indústria também nos deu muito mais conhecimento sobre o mundo, inclusive a compreensão sobre o que estamos fazendo com o meio ambiente.

Mas parece que fizemos, sem saber, uma aposta tremendamente perigosa: a de que seremos capazes de usar o poder e conhecimento que adquirimos nos últimos séculos para enfrentar os riscos climáticos que desencadeamos no mesmo período. Vamos ganhar a aposta? O tempo dirá. Infelizmente, se a aposta não der certo, não teremos outra chance de jogar.



Notas

(1) Brookings Papers on Economic Activity, Vol. 3 (1973).

(2) Ver, por exemplo, William D. Nordhaus and Joseph Boyer, Warming the World: Economic Models of Global Warming (MIT Press, 2000).

(3) William D. Nordhaus, “A Review of the ‘Stern Review on the Economics of Climate Change’,”Journal of Economic Literature, Vol. 45, No. 3 (September 2007).

(4) Ver Martin L. Weitzman, “On Modeling and Interpreting the Economics of Catastrophic Climate Change,”The Review of Economics and Statistics, Vol. 91, No. 1 (2009); e William D. Nordhaus, “The Economics of Tail Events with an Application to Climate Change”,Review of Environmental Economics and Policy, Vol. 5, No. 2 (2011).


(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/krugman-a-civilizacao-no-cassino/)

domingo, 3 de novembro de 2013

O Espaço visto da Terra, em dois tempos (José Geraldo Couto)

131101-2001
Como dois grandes filmes — “2001″, de Kubrick e “Gravidade”, de Quarón — quebraram nossas perspectivas espaciais e narrativas
Por José Geraldo Couto
Na saída da gloriosa sessão de 2001, uma odisseia no espaço na tela grande do CineSESC, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um colega crítico brincou: “Não é nenhum Gravidade, mas…” A boutade me fez pensar no filme de Alfonso Cuarón à luz do clássico de Kubrick, e vice-versa.
Comecemos por Gravidade. O filme é, antes de tudo, um prodígio de tecnologia, talvez nem tanto pelo 3D, mas pela virtual abolição das referências de espaço habituais (em cima, embaixo, direita, esquerda). Cabeça para baixo, cabeça para cima, é tudo praticamente a mesma coisa, como nas sensações mais malucas experimentadas nos sonhos.
Com essa qualidade de sortilégio e prestidigitação, poderia ser uma atração de parque de diversões – e não vai aqui nenhum demérito. Afinal, o que era o cinema em seus primórdios senão um espetáculo de feira?
Formato convencional
Ocorre que, no atual estágio da indústria cultural e da organização global do entretenimento, esse espetáculo precisa ser formatado segundo determinados parâmetros, que incluem a duração (uma hora e meia), a presença de astros de sucesso (Sandra Bullock e George Clooney), a criação de um entrecho ancorado em clichês melodramáticos (a heroína que perdeu a filhinha num acidente), o heróicool que não perde o bom humor nem à beira da morte, a música redundante e enfaticamente convencional, o final feliz.
Claro que seria possível especular sobre um eventual comentário do filme acerca da geopolítica atual, pois não deixa de ser irônico que a protagonista norte-americana se sirva de equipamentos russos e chineses para voltar para casa. Também se falou do percurso da heroína pelos quatro elementos: ar, fogo, água e terra, nesta ordem.
Mas tudo isso fica em segundo plano diante da montanha-russa de sensações (olha o clichê aí – essas coisas são contagiosas) desencadeada pelo filme, com sua sucessão de sustos, trombadas e rodopios.
Já em 2001, tudo foge à ideia de um formato convencional pré-estabelecido, a começar por sua duração: duas horas e quarenta minutos, com um intervalo preenchido por música para não perder o “clima”. Começa com vários minutos de tela preta, sem imagem nem palavras, só com silêncio e uma música (“Atmospheres”, de Ligeti) que parece surgir aos poucos da cacofonia, como a ordem a partir do caos, até que entram os acordes bombásticos de “Also sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, desde então associados indelevelmente ao filme. Estamos já no terreno do grandioso.
Dimensão metafísica
A estrutura narrativa é insólita, saltando os milênios, alternando cenas de dramaturgia naturalista a longos momentos sem diálogos, em que macacos contracenam com macacos, homens contracenam com máquinas ou máquinas contracenam com o cosmo, culminando em imagens puramente abstratas. Há buracos, elipses, zonas de sombra, enigmas não resolvidos, pontos sem nó.
Há maravilha visual também em 2001 (o filme ganhou o Oscar de efeitos especiais), mas sua tecnologia ainda é, basicamente, da ordem do artesanal, dos recursos mecânicos e fotográficos pré-eletrônicos ou rudimentarmente eletrônicos. Parece até irônico hoje que um de seus encantos, o computador inteligente Hal 9000, tenha o tamanho de um sótão, no qual o protagonista humano (Keir Dullea) entra confortavelmente.
Por mais que Kubrick fosse fascinado pela ciência, em 2001 a tecnologia não está presente como mero fetiche ou espetáculo, mas é, ela própria, objeto de questionamento, como produto humano que aspira ao sobre-humano, à superação dos limites. Toca-se, assim, no metafísico, que para alguns tem o nome de sagrado.
Os personagens de Gravidade estão soltos na ionosfera. Os de 2001 estão sozinhos no infinito, perdidos na eternidade. Se Gravidade apela aos sentidos do espectador, 2001 apela ao espírito. Nisso reside sua perene grandeza.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Coincidências do Despertar

Ontem mesmo ao escrever a crônica sobre o despertar, citei as coincidências narradas no livro A Profecia Celestina. Mesmo que as tenha menosprezado perante os sonhos que guiam o caminho, logo depois fui surpreendido ao assistir ao filme Cloud Atlas (A Viagem) baseado no romance de David Mitchell.

É de uma coincidência absurda eu dissertar sobre o despertar - não cheguei a aprofundar a questão do efeito borboleta, tampouco do aspecto da física quântica entre o um e o todo, mas pensei ao escrever - e logo em seguida, antes de dormir, assistir a um filme que aborda justamente temas que eu havia acabado de escrever. Não é acaso, tenho certeza. É uma mensagem de que devo persistir nesses sonhos, que conduzirão a um sonho coletivo sólido e de felicidade.

Estou profundamente apaixonado por essas questões filosóficas e existenciais e pretendo me aprofundar cada vez mais nelas. Mas sempre com o cuidado de não tirar os pés do chão, onde de fato agirei, e não simplesmente pensarei ou sonharei. Os sonhos precisam de realizações.

Eis o trailer do filme e a sinopse do livro Cloud Atlas (A Viagem):


"Nesta história as personagens conhecem-se e voltam a reunir-se de uma vida para a próxima. Nascem e renascem. As ações e escolhas individuais têm consequências e impactos entre si no passado, presente e futuro distante. Uma alma é moldada de assassino a herói, e um simples ato de bondade tem repercussões ao longo de séculos, tornando-se na inspiração de uma revolução. Essas mesmas histórias fazem parte de uma linha narrativa que segue uma alma humana ao longo de uma jornada de descoberta e redenção durante várias encarnações. A narração mostra como as acções de um indivíduo criam uma cadeia de acontecimentos que ecoam através dos tempos, por diferentes civilizações, fazendo com que todas as histórias de todos os indivíduos sejam na verdade apenas parte de uma narrativa muito maior que começou muito antes do surgimento do homem e que permanecerá em desenvolvimento muito depois da humanidade se extinguir."

(Excerto da Wikipedia, disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cloud_Atlas)
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