sábado, 28 de dezembro de 2013

A Medicina e A Política

"Os determinantes primários das doenças são principalmente econômicos e sociais, conseqüentemente, seus remédios também devem ser econômicos e sociais. A medicina e a política não podem nem devem estar separadas uma da outra."
Geoffrey Rose

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Trinta grandes filmes que marcaram 2013 (Bruno Knott)

Nota do blog: Alguém me acompanha nestas férias? :)

Nas telas, conflitos da desigualdade; viagens incomuns; choques culturais; educação em xeque; imigração e xenofobia; tensões entre amor e amizade
Por Bruno Knott, em Obvious
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O Som ao Redor

Bia é uma dona de casa depressiva cujo sono é interrompido diariamente pelo barulhento cachorro do vizinho. João é um corretor de imóveis que trabalha para o avô, dono de quase todos os apartamentos da região. Clodoaldo é o chefe de um grupo de segurança privada que oferece seus serviços para os moradores da rua. A partir desses três personagens a história se desenvolve, sem pressa e com uma impressionante riqueza de detalhes. Com um olhar clínico, o diretor disseca a rotina e expõe os medos, angústias e preconceitos desse verdadeiro microcosmo da sociedade.
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Amor

Por mais que assistir a Amor seja doloroso, trata-se de uma experiência das mais comoventes e sinceras oferecidas pelo cinema dos dias atuais.
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Django Livre

Tarantino é um dos poucos diretores que conseguem fazer da violência puro entretenimento, algo que fica ainda mais evidente aqui. Não é todo dia que uma história de vingança com sangue jorrando de maneira abundante nos faça rir em boa parte do tempo.
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O Mestre

Paul Thomas Anderson nunca trabalha com temas fáceis e O Mestre não é uma exceção. Mesmo com uma temática difícil e pouco convencional, o filme chega a ser hipnótico, algo que se deve à técnica invejável do diretor e também às poderosas atuações do elenco, principalmente Joaquin Phoenix e Philip Seymour Hoffman.
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Os Miseráveis

É um espetáculo vibrante de sons, músicas e cores. Há um certo exagero no melodrama em alguns momentos, mas isso acaba colaborando positivamente para o resultado final deste épico musical, grandioso em todos os sentidos.
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A Hora Mais Escura

A Hora Mais Escura mostra os dez anos da difícil busca pelo terrorista Osama Bin Laden. O fato de sabermos como tudo acaba está longe de atrapalhar essa intensa experiência. Ponto para Kathryin Bigelow e para Jessica Chastain.
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Indomável Sonhadora

Chega quase a ser um milagre cinematográfico o fato de três ilustres desconhecidos serem os responsáveis por essa bela historia. Acho que isso se chama talento.
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Na Neblina

Dono de um ritmo lento e contemplativo, o filme nos transporta para a Rússia ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Investindo em longas cenas sem cortes e em uma fotografia primorosa, o diretor Sergei Loznitsa escancara a dolorosa realidade daquele povo. Na trama, acompanhamos um partisan desejoso de vingar a morte de seus companheiros. Ele acredita piamente que Sushenya foi o traidor. Com flashbacks reveladores, vamos compreendendo exatamente o que aconteceu.

a-parte-dos-anjos.jpgA Parte dos Anjos

Dirigido por Ken LoachA Parte dos Anjos é uma comédia eficiente que investe em um humor negro de qualidade, além de apresentar situações emocionantes e muitowhisky.
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A Caça

Este filme dinamarquês mostra como uma mentira perpetrada por uma criança pode tomar proporções catastróficas. Um dos melhores do ano.
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Dentro da Casa

O diretor François Ozon nos oferece uma experiência que foge do lugar-comum, perfeita para aqueles que gostam de literatura e de suas possibilidades.
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O Último Elvis

Mesmo com uma atmosfera triste, O Último Elvis reserva alguns momentos divertidos e muitos números musicas de extrema beleza, nos quais o ator estreanteJohn McInerny (cover de Elvis na vida real) nos encanta com sua voz, com direito a versões arrebatadoras de Always On My MindUnchained Melody e I’m So Lonesome I Could Cry. Mais um grande acerto do cinema argentino.
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O Sonho de Wadjda

Filme divertido, sensível e que parece trazer indícios de que a vida um dia pode melhorar para as mulheres do islã.
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O Que Traz Boas Novas

Após o suicídio de uma professora de uma escola do Canadá, Bachir Lazhar é contratado e vai ter que lidar com crianças traumatizados e também com regras rígidas que impedem qualquer tipo de aproximação entre professor e aluno.
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Além da Escuridão – Star Trek

Temos aqui ação do mais alto nível, com efeitos especiais usados a favor da narrativa e elevando a dose de adrenalina nas horas certas. Capaz de agradar tanto aos fãs como os que não se interessam tanto pela franquia.
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Antes da Meia-Noite

Terceiro filme da dupla Ethan Hawke e Julie Delpy que formam novamente o casal Jesse e Céline, adorado por quase todos os cinéfilos. Aqui os diálogos estão ainda mais realistas. Simplesmente, não há como não se envolver.
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Ferrugem e Osso

Ferrugem e Osso possui várias cenas poderosas de genuína beleza, principalmente quando o roteiro foca em Stéphanie e nas repercussões do seu trágico acidente.
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O Lugar Onde Tudo Termina

Uma história forte contada de maneira criativa e ambiciosa. Graças ao roteiro bem escrito, ficamos conhecendo muito bem os personagens principais e sentimos fazer parte de seus dramas.
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Tabu

Tabu é o inebriante resultado da mistura entre o cinema e a poesia em uma das mais belas línguas do mundo, o português
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Frances Ha

Frances Ha transborda sensibilidade e energia. Uma pequena obra-prima cujo sucesso se deve muito a atriz Greta Gerwig.

las-acacias.jpgLas Acacias

Um caminhoneiro transporta uma mulher desconhecida pelas estradas da América do Sul. Com um ritmo cadenciado e vários momentos de silêncio, o filme nos absorve e nos coloca no lugar destes dois personagens extremamente autênticos.Las Acacias é realista e tocante.
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Gravidade

Um espetáculo visual único. Junto com Avatar é a melhor experiência que o cinema 3D já nos ofereceu. Alfonso Cuarón confirma o seu raro talento.
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Terra Firme

O que parecia ser um filme leve com belos cenários naturais sicilianos, transforma-se em um relato contundente sobre imigrantes ilegais que se arriscam diariamente.
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Os Suspeitos

Uma história de crime e investigação contada de maneira inteligente e intensa. Lembra um pouco Zodíaco, mas tem vida própria.
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O Verão da Minha Vida

Aquela velha história do garoto introspectivo que tem uma chance de trazer um pouco de luz para a própria vida. Além da amizade bacana que ele faz com um gerente de um parque aquático, o relacionamento dele com a mãe comove bastante, principalmente no ato final.

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Capitão Phillips

O diretor Paul Greengrass constrói uma atmosfera de tensão quase insuportável para nos contar a história real de um navio capturado por piratas somalianos. E ainda temos a impecável atuação de Tom Hanks, digna de prêmios.
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Amor Bandido

Jeff Nichols nos deixa totalmente imersos neste mundo belo e potencialmente perigoso do sul dos Estados Unidos. Com uma direção segura e calma, ele nos apresenta a vários personagens interessantes que ganham vida graças a qualidade dos atores, com destaque para Matthew McConaughey.

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Blue Caprice

Aproxime um garoto mentalmente influenciável e dono de uma mira perfeita com um homem com transtorno de personalidade, psicótico, vingativo e a facilidade de se conseguir armas. O resultado está em Blue Caprice. A violência é algo perturbador por si só, mas o que vemos aqui nos faz perder a esperança na humanidade.
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Somos o que Somos

Graças a um elenco comprometido e a um diretor talentoso, Somos o que Somos torna-se uma interessante e corajosa obra do gênero horror, com boas doses de mistério e de uma violência brutal.
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Blue Jasmine

Mais um grande trabalho de Woody Allen. Na trama, acompanhamos a derrocada de uma socialite após a perda do seu marido. Atuação magistral de Cate Blanchett.
* Infelizmente, não pude assistir a Azul É a Cor Mais Quente e Rush, que talvez entrassem para a lista. Na sua opinião, quais filmes estão faltando aqui?

Por que a Suécia está revendo a privatização do ensino

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Escolas introduziram publicidade maciça, pressão sobre professores e estímulo permanente à competição. Resultados lastimáveis estão levando defensores da “novidade” a pedir desculpas públicas

Na Rede Democrática

Quando uma das maiores empresas privadas de educação faliu, alguns meses atrás, deixou 11 mil alunos a ver navios e fez com que o governo da Suécia repensasse a reforma neoliberal da educação, feita nos moldes da privataria com o Estado financiando a entrega dos serviços públicos aos oligopólios capitalistas e assim causando graves prejuízos para os trabalhadores e a população.

No país de crescimento mais acelerado da desigualdade econômica entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os aspectos básicos do mercado escolar desregulamentado estão agora sendo reconsiderados, levantando interrogações sobre o envolvimento do setor privado em outras áreas, como a de saúde.

Duas décadas após o início de seu experimento de “livre” mercado na educação, cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam agora escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Essa proporção é quase o dobro da média mundial. Quase metade desses alunos estudam em escolas parcial ou totalmente controladas por empresas de “private equity”, que compram participações em outras empresas.

Na expectativa das eleições do ano que vem, políticos de todos os matizes estão questionando o papel dessas empresas, acusadas de privilegiar o lucro em detrimento da educação, com práticas como deixar alunos decidirem quando aprenderam o suficiente para passar e não manter registro de notas.

O oposicionista Partido Verde – que, a exemplo dos moderados, apoia há muito as escolas de gestão privada, mas que agora defende um recuo – divulgou um pedido público de desculpas num jornal sueco no mês passado sob o título “Perdoe-nos, nossa política desencaminhou nossas escolas”.

No início da década de 1990, os pais recebiam vales do Estado para pagar a escola de sua preferência. A existência de escolas privadas foi autorizada pela primeira vez, e elas podiam até ter fim lucrativo.

O Reino Unido absorveu muitos aspectos desse sistema, embora não tenha chegado a permitir que escolas custeadas com dinheiro público visassem lucro. Empresas de educação suecas alcançaram países tão distantes como a Índia.

A falência, neste ano, da JB Education, controlada pela empresa dinamarquesa de “private equity” Axcel, foi o maior, mas não o único, caso do setor educacional sueco.

O fechamento da JB custou o emprego de quase mil pessoas e deixou mais de 1 bilhão de coroas suecas (US$ 150 milhões) em dívidas. Os alunos de suas escolas ficaram abandonados.

Uma em cada quatro escolas de ensino médio é deficitária e, desde 2008, o risco de insolvência subiu 188% e é 25% superior à média das empresas suecas, disse a consultoria UC. “São poucos os setores que exibem cifras tão ruins como essas”, disse a UC. Parte do problema resulta da distribuição etária da população, com os números totais das escolas secundárias sofrendo queda significativa desde 2008 e pouca probabilidade de voltar ao antigo nível por uma geração ou mais.

A permissividade do ambiente regulatório também contribuiu. A Suécia substituiu um dos sistemas escolares mais rigidamente regulamentados do mundo por um dos mais desregulamentados, o que levou a escândalos como um caso de 2011 em que um pedófilo condenado pôde abrir várias escolas de forma absolutamente legal.

“Eu disse muitas vezes que é mais fácil abrir uma escola do que uma barraca de cachorro-quente”, disse Eva-Lis Siren, diretora do sindicato de professores Lärarförbundet, o maior da Suécia.

As escolas privadas introduziram muitas práticas antes exclusivas do mundo corporativo, como bônus por desempenho para funcionários e divulgação de anúncios no sistema de metrô de Estocolmo. Ao mesmo tempo, a concorrência pôs os professores sob pressão para dar notas mais altas e fazer marketing de suas escolas.

No início, disseram que a participação privada na educação se daria por meio de escolas geridas individualmente e em nível local. Poucos vislumbraram que haveria empresas de “private equity” e grandes corporações administrando centenas de unidades. “Era uma coisa que não estava sequer nos sonhos mais delirantes das pessoas”, tenta se justificar Staffan Lundh, responsável por questões escolares no governo do primeiro-ministro na época e que hoje dirige a Skolverket, a agência sueca de escolas.

É tão obvio que envolvimento do setor privado e a queda da qualidade estão diretamente ligados que a Skolverket já começa a “vê indícios” de que as reformas de mercado contribuíram para aprofundar o fosso do desempenho escolar.

O referencial Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês) da OCDE pinta um quadro sombrio, em que a Suécia ocupa atualmente classificação inferior à da Rússia em matemática.

Vinte e cinco por cento dos garotos de 15 anos não conseguem entender um texto factual básico, disse Anna Ekstrom, diretora da Skolverket. Um estudo da agência divulgado no ano passado mostrou um diferencial crescente entre estudantes, em que um número cada vez maior deles não preenche os requisitos necessários para ingressar no ensino médio.

Uma pesquisa da GP/Sifo realizada neste ano com mil pessoas mostrou que 58% são amplamente favoráveis a proibir a geração de lucro em áreas financiadas com dinheiro público, como a educação.

O ministro da Educação, Jan Bjorklund, de centro-direita, dirigente do segundo maior partido da coalizão de governo, formada por quatro partidos, disse que empresas de “private equity” também deveriam ser vetadas como controladoras de empresas do setor de assistência médica, inclusive de assistência aos idosos.

“Acho que acreditamos cegamente demais na possibilidade de mais escolas privadas garantirem maior qualidade da educação”, disse Tomas Tobé, diretor da comissão de educação do Parlamento e porta-voz de educação do governista Partido Moderado. Como são “ingênuos” os neoliberais…

O fechamento de escolas e a piora dos resultados tiraram o brilho de um modelo de educação admirado e imitado em todo o mundo pelos mesmos privatistas e neoliberais que propagandeiam o mercado capitalista como uma espécie de solução milagrosa para todos problemas da sociedade, quando na verdade é o capitalismo quem gera todos os problemas e desigualdades sociais ao concentar toda a riqueza, poder e oportunidades nas mãos de uma classe dominante privilegiada, as custas da miséria, exploração e exclusão de grande parte da humanidade e do empobrecimento crescente dos povos.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/por-que-a-suecia-esta-revendo-a-privatizacao-do-ensino/)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Saúde, Dilma! (Ruth de Aquino)

São nossos votos para 2014, presidente. A senhora venceu uma doença e uma eleição. Ao que tudo indica vencerá a próxima. A senhora precisa de saúde como mulher, mãe e avó. O Brasil precisa de Saúde, com maiúscula.
A coluna anterior “O corredor da morte nos hospitais” atingiu o nervo da revolta entre os leitores. Reproduzo abaixo parte da carta de um médico, que pede para não ser identificado, com medo de represálias:

“Prezada Ruth. O que aconteceu com seu pai, infelizmente, é normal. Acontece com TODOS os planos de saúde em TODOS os hospitais do Brasil, quando se trata de atendimento de emergência. A autorização de procedimentos é sempre por telefone e, se você já tentou, sabe que isso significa horas de lenga-lenga e musiquinhas irritantes.

Até que se contate um médico auditor responsável, pelo menos uma hora já é perdida na espera. Por isso, os melhores atendimentos de emergência ainda estão nos hospitais públicos. Quando é preciso uma cirurgia de urgência, o cenário muda: vou dar o exemplo de um caso comum em nosso dia a dia.

O paciente chega politraumatizado – com uma fratura exposta de perna e um traumatismo craniano leve. A pancada na cabeça torna necessária a realização de exames, como uma tomografia, e a colocação do paciente em observação. A fratura exposta deve ser operada logo. Quanto mais tempo demora, maior o risco de o paciente contrair uma infecção que, se confirmada, será de difícil tratamento – ossos não respondem bem a infecções, o que obrigaria a cirurgias posteriores. Uma urgência, portanto.

Como o paciente está lúcido, ele diz à equipe que tem plano e quer operar em hospital particular. O chefe de equipe faz o contato e, em até duas horas, a transferência é autorizada. Falta a ambulância chegar, o que só costuma acontecer cerca de três horas depois.

É isso mesmo: em média, entre a chegada do paciente ao hospital público e a saída do paciente para o particular, o tempo de espera varia entre 5 e 8 horas. Diz-se que o período de ouro para essas cirurgias é de menos de 6 horas, para diminuir o risco de infecção. Normalmente, convencemos o paciente de que é melhor operar no hospital público e, depois, fazer o acompanhamento pós-operatório num hospital particular.

E é com isso que os planos de saúde contam. Que, com a demora, o SUS acabe arcando com as despesas maiores. Exames, medicamentos, material anestésico, material cirúrgico. E que, depois, não haja ressarcimento ao hospital por todos os serviços. Sem contar que um paciente que teria condições de arcar financeiramente por um serviço melhor acaba ocupando ou disputando espaço com pacientes menos favorecidos.

Talvez, no Hospital Lourenço Jorge, seu pai tivesse sido atendido mais rápido. Só teria de esperar pelos procedimentos numa maca muito menos confortável, em contato próximo com outros pacientes. Talvez visse alguns pacientes aguardando cirurgia espalhados nos corredores, por falta de vaga nas enfermarias. Quer dizer, talvez não. O Lourenço não tem neurocirurgião para ver a tomografia cerebral de seu pai. Sobraram só o Miguel Couto e o Souza Aguiar no Rio. Faltam neurocirurgiões que aceitem trabalhar por pouco.

Atualmente, meu salário pela prefeitura do Rio é de R$ 1.686. Passei num concurso entre os primeiros lugares para ter direito a esse salário. Somente aceitei por respeito à instituição onde fiz internato, residência e pós-graduação. Não aceitaria se não fosse por motivos idealistas. Sou obrigado a dar plantões com colegas que não fizeram concurso nenhum. Apenas conhecem as pessoas certas. E, por isso, recebem até R$ 7.500. Para realizar o mesmo serviço.

Também trabalho em hospitais particulares. E tento fazer o certo por lá também. Mas os mesmos planos de saúde que se negavam a pagar a tomografia de seu pai também se negam a pagar decentemente por nossos procedimentos. Recebo cerca de R$ 150 – para a equipe toda, cirurgião, auxiliar e instrumentadora – por uma fratura de calcâneo, cirurgia complexa, com alto risco de complicações. Para a placa e os parafusos utilizados para a fixação, que custam R$ 1.500, os planos pagam tranquilamente R$ 5.000.

Meus antigos professores me dizem que o foco precisa ser a saúde pública. No dia em que a saúde pública remunerar adequadamente a classe médica, os hospitais particulares e os planos de saúde serão obrigados a aumentar as remunerações se quiserem atendimento de qualidade.
Meus mestres são de um tempo em que um médico fazia carreira no mesmo hospital durante toda a vida. O que é cada vez menos possível, mesmo em hospitais particulares. O médico hoje tenta sobreviver até conseguir o suficiente para montar um consultório. Aí, é fugir tanto do serviço público quanto dos planos.  Ou largar a especialização, ir para o interior e entrar para o Mais Médicos.

Atendi índios na Amazônia e sou apaixonado pelo serviço público. Mas é cada vez mais difícil fazer carreira de Estado nos dias de hoje”.

Saúde, Dilma!

(Disponível em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-aquino/noticia/2013/12/bsaudeb-dilma.html)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O SUS que dá certo

Um vídeo mais lindo que o outro no concurso da @RedeHumanizaSUS. Como é bom ver o SUS que dá certo! Me motiva muito a seguir minha profissao

Link para os vídeos do concurso da @RedeHumanizaSUS : http://www.redehumanizasus.net/concurso

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Experimentação do Viver

Às vezes quando paro para pensar e sentir por que eu ainda continuo no curso de Medicina, preciso refletir sobre meus princípios de vida.

Minha opção pela Medicina atualmente é sobretudo ética e política. Eu acredito em uma forma diferente de prática médica e se eu desistir de meu caminho, quem o seguirá por mim? Eu desejo ver essa mudança acontecer!

Creio que várias pessoas passam por questionamentos semelhantes, em várias profissões. E acredito na importância da perseverança nesse caminho, na afirmação dele. Se todos desistirem, nada nunca muda. E a transformação é necessária nos processos da vida.

Às vezes essa minha escolha mais me parece uma tortura ou um masoquismo. Mas o processo de aperfeiçoamento jamais é sereno e calmo, já que são as turbulências que conduzem o indivíduo adiante. Talvez eu precise aprender a conviver melhor com o indesejado, com o sofrido. E sobretudo talvez eu precise aprender a valorizar mais aquilo que me faz bem e que pode ser incluído na minha rotina desgastante.

Esse é um dos motivos pelos quais deletei meu facebook. Meus amigos reais merecem esse tempo que eu estava desperdiçando nas redes sociais. Quero gastá-lo com pessoas que eu amo e comigo mesmo.

Aos poucos, vou aprendendo a felicidade, sentindo os movimentos da vida que levam harmonicamente ao caminho e nadando junto a eles. Ainda vou aprender a viver! A vida é um aprendizado.

Pensando bem, viver não é tão torturante assim... Viver é experimentar-se.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Ritalina, a droga legal que ameaça o futuro (Roberto Amado)

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Com efeito comparável ao da cocaína, droga é receitada a crianças questionadoras e livres. Professora afirma: “podemos abortar projetos de mundo diferentes”

Por Roberto Amado, no DCM

É uma situação comum. A criança dá trabalho, questiona muito, viaja nas suas fantasias, se desliga da realidade. Os pais se incomodam e levam ao médico, um psiquiatra talvez.  Ele não hesita: o diagnóstico é déficit de atenção (ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH) e indica ritalina para a criança.

O medicamento é uma bomba. Da família das anfetaminas, a ritalina, ou metilfenidato, tem o mesmo mecanismo de qualquer estimulante, inclusive a cocaína, aumentando a concentração de dopamina nas sinapses. A criança “sossega”: pára de viajar, de questionar e tem o comportamento zombie like, como a própria medicina define. Ou seja, vira zumbi — um robozinho sem emoções. É um alívio para os pais, claro, e também para os médicos. Por esse motivo a droga tem sido indicada indiscriminadamente nos consultórios da vida. A ponto de o Brasil ser o segundo país que mais consome ritalina no mundo, só perdendo para os EUA.

A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista ao  Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de mil  anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela.

O fato, no entanto, é que o uso da ritalina reflete muito mais um problema cultural e social do que médico. A vida contemporânea, que envolve pais e mães num turbilhão de exigências profissionais, sociais e financeiras, não deixa espaço para a livre manifestação das crianças. Elas viram um problema até que cresçam. É preciso colocá-las na escola logo no primeiro ano de vida, preencher seus horários com “atividades”, diminuir ao máximo o tempo ocioso, e compensar de alguma forma a lacuna provocada pela ausência de espaços sociais e públicos. Já não há mais a rua para a criança conviver e exercer sua “criancice.

E se nada disso funcionar, a solução é enfiar ritalina goela abaixo. “Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la a lidar com essa criança. Fala-se muito que, se a criança não for tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH está sendo feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de forma indiscriminada”, diz a médica.

Mas os problemas não param por aí. A ritalina foi retirada do mercado recentemente, num movimento de especulação comum, normalmente atribuído ao interesse por aumentar o preço da medicação. E como é uma droga química que provoca dependência, as consequências foram dramáticas. “As famílias ficaram muito preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os filhos ficassem sem esse fornecimento”, diz a médica. “Se a criança já desenvolveu dependência química, ela pode enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA)”.

Enquanto isso, a ritalina também entra no mercado dos jovens e das baladas. A medicação inibe o apetite e, portanto, promove emagrecimento. Além disso, oferece o efeito “estou podendo” — ou seja, dá a sensação de raciocínio rápido, capacidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo, muito animação e estímulo sexual — ou, pelo menos, a impressão disso. “Não há ressaca ou qualquer efeito no dia seguinte e nem é preciso beber para ficar loucaça”, diz uma usuária da droga nas suas incursões noturnas às baladas de São Paulo. “Eu tomo logo umas duas e saio causando, beijando todo mundo, dançando o tempo todo, curtindo mesmo”, diz ela.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/ritalina-a-droga-legal-que-ameaca-o-futuro/)

Bangladesh: mulheres lideram revolução agrícola (Naimul Haq)

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Em exemplo de conversão notável, milhões de agricultores adotam, com sucesso, cultivos orgânicos. Processo abre alternativa a donas de casa e empregadas domésticas

Por Naimul Haq, na IPS

Em um dia quente e úmido no noroeste de Bangladesh, Anisa Begum senta-se com um grupo de 25 mulheres para explicar a elas como podem usar fertilizantes naturais para aumentar o rendimento dos cultivos de cereais. Begum, de 47 anos e mãe de dois filhos, tenta convencê-las de que, se os homens podem cultivar e fazer dinheiro, elas também podem.

Begum lidera um dos Grupos de Interesse Comum (GIC), que reúnem mulheres interessadas na agricultura nesse país da Ásia meridional, onde ainda poucas das que vivem no campo trabalham fora e, quando o fazem, costumam ser diaristas. Ela se especializa na capacitação sobre o uso de fertilizantes naturais para maximizar cultivos. Begum e outras nove agricultoras visitaram o Vietnã no ano passado, país conhecido por sua eficiência nas colheitas.

“É um sentimento maravilhoso”, disse à IPS uma sorridente Begum, no quintal de sua casa, na aldeia de Islampur, distrito de Rangpur. Este ano, ela capacitou uma dezena de integrantes dos GIC na área de Pairabond, em Rangpur, a 255 quilômetros de Daca, e assegura que cada vez mais mulheres mostram interesse nas novas práticas de cultivo.

Os GIC, formados com a ajuda de escritórios agrícolas locais, são parte do Projeto Nacional de Tecnologia e Agricultura, destinado a melhorar a produtividade e a segurança alimentar de Bangladesh. Esse projeto, de US$ 82,6 milhões, foi desenhado e financiado de forma conjunta pelo Banco Mundial, Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) e governo de Bangladesh.

“É absolutamente incrível”, disse o chefe de avaliação e supervisão do projeto, Mizanur Rahman. “Mais de dois milhões de agricultores, 30% dos quais são mulheres, estão adotando novas técnicas em áreas-piloto dos distritos do noroeste”. Rangpur é conhecida pela boa qualidade de seus cereais e vegetais, graças à qualidade do solo. Todo o país depende dos grãos produzidos nessa região.

Tradicionalmente, as mulheres desse país se dedicam mais ao trabalho doméstico do que à agricultura. Um estudo intitulado Contribuição Econômica das Mulheres em Bangladesh, realizado em 2008 pelo Escritório de Estatísticas, indica que apenas 21% das mulheres bengalis participavam de atividades agrícolas, contra 78% dos homens.

Essa nova capacitação gratuita também procura promover o empreendedorismo. “No começo tivemos dificuldades para convencer as mulheres a investirem mais em agricultura. Demonstramos que podiam adotar novas tecnologias e assim obter benefícios”, explicou Sarwarul Haque, funcionário agrícola no subdistrito de Mithapukur. Nos GIC as mulheres aprendem novas técnicas que incluem o uso de arroz aromático resistente a secas e de grande rendimento, de compostagem à base de minhocas e sementes de tomates para toda temporada que mantém o cultivo livre do vírus amarelo.

Rowshan Ara, uma produtora de sucesso em Pairabond, disse à IPS que, “quando começaram as demonstrações na aldeia de Islampur, quase não havia mulheres interessadas na agricultura. Hoje, dos cerca de 5.500 habitantes de Islampur, 1.200 são camponeses, e mais de 40% são mulheres”.

Antes de entrar para os GIC muitas mulheres eram diaristas, e ganhavam apenas 50 takas (US$ 0,88) por dez horas diárias de trabalho físico, plantando e colhendo arroz. Uma diarista pode ganhar um máximo de 1.500 takas (US$ 20) por mês. Mas, a maior participação feminina na agricultura mudou as regras. Agora uma mulher pode ganhar entre US$ 54 e US$ 100 mensais cultivando cereais de qualidade, que têm grande demanda no exterior.

A camponesa Momena Begum, de 42 anos, disse à IPS que escolheu se “capacitar em compostagem com base em minhocas, e no final do ano passado fiz vendas no valor de US$ 4.500. Consegui um lucro de quase 30%”. A compostagem de minhocas se tornou muito popular, já que é mais barato do que os químicos (menos de US$ 0,25 o quilo). Outra prática muito popular é a produção de sementes resistentes às pragas.

“Aprendi como produzir fertilizantes naturais com base em jacintos de água decompostos. Essas plantas são abundantes, por isso não é preciso muito investimento”, disse Parul Sarkar, vizinha de Momena. Esse fertilizante garante rendimento 150% superior aos químicos. “Com um pequeno investimento, pude começar a abastecer o mercado local”, destacou. Sarkar ganhou mais de US$ 380 com a venda de fertilizantes naturais no primeiro trimestre deste ano. Seu marido, no entanto, conseguiu apenas US$ 90 trabalhando nas colheitas.

Cada vez mais mulheres se integram aos GIC. Em 2009, havia menos de 20 grupos em Mithapukur, e agora são mais de 240. A adoção de novas tecnologias agrícolas tem um enorme impacto. Os comerciantes e intermediários preferem vender os fertilizantes naturais. “As batatas e os tomates cultivados com fertilizantes naturais são mais saudáveis e brilhantes. Qualquer um nota a diferença”, afirmou Raja Miha, atacadista no distrito de Bogra.

(Disponível em http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/bangladesh-mulheres-lideram-revolucao-agricola/)

Para somar-se às redes da Ciência Livre (Ladislau Dowbor)

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Ladislau Dowbor propõe a professores e pesquisadores: crie um blog, compartilhe conhecimentos, ajude a superar a era propriedade intelectual

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Henri Matisse, Alegria de Viver

Na virada do milênio, decidi repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um balanço. Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas, relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje a ele, que ajudou a montar meu primeiro site. Alguns já chamam este tipo de ajuda de filhoware.

Decidi fazer este pequeno balanço porque pode ser útil a muita gente que se debate com a transição. Deixem-me dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de arquitetura do trabalho intelectual.

O ponto de partida foi o meu blog, http://dowbor.org, hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.

Deixem-me lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50 milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora. Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE (China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira ainda muito tímida.

Isto dito, eu que não sou nenhum MIT, constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte, esperando que as informações sejam úteis:

1. A criação de um blog individual de professor representa um investimento extremamente pequeno, comparando com o benefício obtido, sobretudo porque hoje temos estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.

2. Ter um blog não é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog científico como o meu é, na realidade, muito mais uma biblioteca de fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu precise acompanhar e administrar. Não é muito distinto, nesse aspecto, de uma estante em minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar meu texto com uma palavra-chave no computador, do que localizá-lo na estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu blog, não precisa pedir o livro emprestado, nem perder tempo dele e meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.

3. Produção científica e divulgação deixam de constituir processos separados. O artigo ou livro que o professor escreve, ou que recebeu e quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português, pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles encontraram simplesmente porque colocaram palavras-chaves na busca por internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada, mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai para a 6ª edição pela editora: uma coisa não atrapalha a outra, a editora encontra o seu interesse também.

4. O essencial não está na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente. Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação em geral.

5. O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros. Coloco no blog, na seção Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta sobre energia, recomendo que leiam, em meu site o artigo de Ignacy Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para alunos.

6. Como professor, recebo frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço suficientemente minha área para saber que se trata de um ótimo trabalho. Normalmente, ninguém o leria, pois o aluno não é conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons trabalhos de pessoas menos conhecidas.

7. Tudo isto está baseado no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido, que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao mesmo tempo que permite que o artigo seja imediatamente acessível para fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.

8. Um aspecto muito enriquecedor do processo é que me permite utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada produção. Associo ao que escrevo ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso ou animações gráfica, livremente – pois do lado de quem lê haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem, ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem utilizada é muito útil.

9. Trata-se de uma ferramenta em que o universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez de o professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos online sobre o tema, desenvolverão sua capacidade de pesquisar no imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados. Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.

10. O processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores. Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A minha solução é que publico, sim, em periódicos formalmente avaliados como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e pelo qual não me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada 24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas condições, francamente, não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e 50 dólares por artigo e por acesso. Mais de 15 mil cientistas norte-americanos já boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não atualizar seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital – um para pontos, outro para leitores.

11. Com pequenos conselhos de alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais evidentes de comunicação. Abri a possibilidade de qualquer pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil “colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento, permite fazer circular o material. Portanto, minha biblioteca virtual não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com todos os interessados, mesmo que não me conheçam.

12. Uma virtude básica do processo, que precisa ser entendida, é que os textos circulam não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular é o que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de construção científica.

13. Finalmente acho que, da mesma forma que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde, Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros – precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de copyright só teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição. Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.

Permito-me aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu blog, hoje um WordPress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho. Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, como organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no começo até montar um formato adequado para professor), fiquem à vontade; eventualmente, posso até recomendar pessoas capazes de ajudá-los. Vamos encher este país de ciência, de boa ciência, progressista, transformadora.

Quanto ao medo das pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável, descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é relevante ou não”.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/para-somar-se-as-redes-da-ciencia-livre/)

sábado, 23 de novembro de 2013

Universidade, entre agroecologia e agronegócio (Luciana Jacob)

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Qual deveria ser o papel do ensino superior de Agricultura, num mundo que enfrenta fome e crise socioambiental planetária?

Por Luciana Jacob | Fotografia: Jorge Luiz Campos

Como instituição social que é, a universidade expressa a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade, em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão e em sua gestão. Assim, tal qual a sociedade, a universidade é constituída não só por diferentes visões de mundo, como principalmente por visões conflitantes: a produção de conhecimento e sua incorporação nos currículos universitários são processos atravessados por relações de poder.

A articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a formação de profissionais para as demandas explícitas do mercado. Isto fica evidente nas formas curriculares, na escolha de quais conhecimentos devem fazer parte da formação e tornar-se objetos de pesquisa e, principalmente, nas ausências que denunciam o descaso legado a projetos contra-hegemônicos. As atividades universitárias foram atingidas por forças que amplificaram sua condição de dependência à globalização neoliberal, afastando-se das demandas sociais necessárias para um projeto democrático de país. Elas têm se aproximado do mundo empresarial, relegando a segundo plano o interesse público.

Social e historicamente construídos, os saberes produzidos pela universidade são eleitos por determinados grupos sociais como legítimos, credíveis e merecedores de serem reproduzidos a determinados grupos sociais.

Que saberes e grupos sociais são incluídos e quais são excluídos da universidade e, em decorrência, quais divisões sociais são produzidas e reforçadas? Qual o significado da ausência de determinados saberes na universidade? É um silêncio genuíno ou fruto de um silenciamento, ou seja, de uma imposição epistemológica?

A degradação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais muito graves da crise do mundo globalizado. Na agricultura, assistimos à perda da soberania alimentar, à fome, à violência no campo, à perda de diversidade genética e dos solos, ao avanço da concentração de terras, ao desmatamento, ao envenenamento por agrotóxicos. Paralelamente, temos assistido a uma ofensiva aterradora de setores conservadores do Congresso Nacional sobre os direitos fundamentais de indígenas, contra o Código Florestal e a Lei de Biossegurança. Presenciamos a aprovação indiscriminada de transgênicos, sem os estudos necessários e a devida responsabilidade social e científica.

De modo predominante, a universidade contribui para a manutenção do paradigma hegemônico, formando pessoas aptas a lhe dar continuidade e produzir conhecimento que alimenta e fortalece seus preceitos. Na área de Ciências Agrárias, as atividades acadêmicas geralmente se articulam em torno do paradigma do agronegócio como cânone de desenvolvimento do país. E, como sabemos, a razão que permeia o agronegócio tem como características o capitalismo e a globalização neoliberal; a total dependência de insumos finitos e externos ao sistema agrícola; a simplificação genética; a concentração de terras e riquezas; entre outros – aspectos completamente avessos à sustentabilidade socioambiental.

A organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou recentemente o Relatório de 2013 sobre Comércio e Meio Ambiente, intitulado “Acorde antes que seja tarde demais: torne a agricultura verdadeiramente sustentável agora para a segurança alimentar em um clima em mudança” (em tradução livre do inglês). O relatório, para além de alertar sobre os danos do paradigma hegemônico de produção agrícola, aponta a adoção da agroecologia como fundamental para evitar o agravamento da crise socioambiental e prováveis crises alimentares futuras – exatamente o oposto do que vem sendo desenvolvido pela grande parte das universidades brasileiras.

A construção de uma racionalidade ambiental para o enfrentamento destes problemas – em oposição à racionalidade econômica – exige a elaboração de novos saberes e, principalmente, a participação dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade na construção destes saberes. No espaço da universidade, isto implica a internalização das discussões socioambientais nas atividades de ensino e pesquisa, a abertura do diálogo com outras formas de saber e o repensar do papel da extensão universitária na perspectiva que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia de saberes.

Assento esta ideia em três pressupostos. A abundância de conhecimento no mundo é muito superior ao o conhecimento disponível em um currículo de determinada área. Além disso, a escolha de quais conhecimentos são legítimos e válidos é feita pelos grupos sociais dominantes e que assim o são pois historicamente oprimiram os grupos sociais hoje excluídos. Por fim, esta relação de poder guarda em si a força da hierarquização: os saberes que não passam nesse crivo são considerados alternativos, lendas, crenças, locais, ou seja, são descredibilizados.

Como avançar na construção de conhecimento socioambiental destinado à transformação social, quando a cultura e os saberes de camponeses e camponesas foram marginalizados e deslegitimados? Como dissolver o muro que tem separado a universidade das lutas sociais de modo geral e, especificamente, da agroecologia e soberania alimentar?

Proponho três alternativas que, se não completas e definitivas, se configuram como desafios para estas transformações.

Primeiro: mudanças nas prioridades da universidade – o que, como e para quem pesquisar e ensinar – não se operam de forma desconectada das estruturas sociais. Embora possa ser espaço de resistência, questionamento e promoção de transformação social, a universidade é sobretudo reprodutora de paradigmas mais amplos e funciona de acordo com dinâmicas sociais que por vezes a transcendem. Assim, não há possibilidade de se construir conhecimento contra-hegemônico de forma descolada dos grupos que mais sofrem as violências do conhecimento hegemônico nem à revelia de outros setores da sociedade. Há a necessidade de se avançar para uma ecologia de saberes que, segundo Boaventura, é o confrontamento da monocultura do saber e do rigor científico pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em práticas sociais.

O segundo é que as mudanças não podem ser implementadas apenas por alguns, mas é pela força de alguns poucos que elas ganharão projeção institucional. Sua promoção faz sentido em contextos específicos, com lutas conectadas com a história de cada instituição, apesar de fortalecerem e serem fortalecidas por lutas mais amplas, de outros grupos sociais, de outros lugares, de outros movimentos, de outras escalas e outras identidades culturais – ou seja, inserida em uma globalização contra-hegemônica.

O terceiro é que não há possibilidade de se pensar a inclusão de saberes socioambientais na universidade sem que isto seja tratado em termos epistemológicos e metodológicos. Epistemológicos porque promover o debate sobre sustentabilidade na universidade requer uma ecologia de saberes que luta contra a injustiça cognitiva. E metodológicos, uma vez que a inserção deste saber, pela sua própria complexidade, está imbricado também no questionamento crítico acerca dos métodos e estruturas em que se pauta atualmente o ensino superior.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/universidade-entre-agroecologia-e-agronegocio/)

Depois de Jango, falta desenterrar as reformas de base (Victor Leonardo de Araujo)

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No momento em homenageia ex-presidente, país vive encruzilhada e parece necessitar, como nunca, das mudanças estruturais por que ele lutou

Por Victor Leonardo de Araujo*, na Carta Maior

A exumação dos restos mortais do ex-presidente João Goulart é inequivocamente um avanço para que o Brasil seja passado a limpo. O País cumpriu, com três décadas de atraso, o dever de lhe prestar as honras de Estado negadas quando de sua morte e de apurar as reais condições em que ela ocorreu. Mas deve continuar a lhe prestar homenagem, exumando também as reformas de base, enterradas pela ditadura militar e jamais trazidas de volta para a agenda após a democratização.

A agenda de reformas de base previa uma reforma tributária. Ela foi realizada pelo governo militar, mas seu caráter foi concentrador de renda, porque manteve a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro, concentrado em impostos indiretos. A Constituição de 1988 não alterou a essência do sistema tributário brasileiro quanto a este quesito. Discutir reforma tributária é sempre um assunto árduo, porque significa discutir sobre quais ombros recairá o esforço de financiar o Estado. Na agenda atual, a reforma tributária permanece na agenda econômica, mas o debate tem sido capitaneado pelo empresariado, e por isso é pautado pelos temas concernentes à desoneração da produção, à busca por competitividade da produção nacional, e ao tamanho da carga tributária bruta. Como os grandes empresários que influenciam a agenda também são ricos, a agenda pautada por eles não toca nas questões distributivas, ou seja, às modificações que são necessárias para tornar progressivo o sistema tributário brasileiro. Renda, propriedade do capital e grandes fortunas são itens que estão fora da agenda de reforma tributária do empresariado brasileiro. O impostômetro que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo exibe na Avenida Paulista não informa ao transeunte que os industriais da Fiesp pagam relativamente menos imposto que o restante dos brasileiros.

Outro item das reformas de Jango era o sistema financeiro. Novamente, as reformas realizadas pelo governo militar tiveram um viés conservador: estimularam a concentração bancária, e facilitaram a diversificação dos padrões de consumo de uma classe média alta. Entretanto, deixou sem solução os problemas concernentes ao financiamento do setor produtivo, que continuou dependente do setor público, e ainda assim privilegiando as grandes empresas e as regiões mais ricas. Atualmente, o setor financeiro tem papel privilegiado no desenho da política macroeconômica, haja visto que o ônus dos ajustes fiscais sempre recaem sobre o aumento da arrecadação e/ou da redução das despesas ditas primárias, jamais com o significado de redução das despesas financeiras. O sistema financeiro permanece com pouca ou nenhuma funcionalidade para parte importante do setor produtivo, operando no curto prazo, a taxas  elevadas (spreads), e tendo os títulos públicos ainda como opção preferencial de parte do sistema bancário.

Finalmente, o país não acertou as contas com a estrutura fundiária arcaica. Arcaica não no sentido econômico, porque o agronegócio introduziu técnicas avançadas de produção e gaba-se de ser responsável pela geração de superávits comerciais. Mas é arcaica porque ainda não foi capaz de assegurar, de forma generalizada, ao pequeno agricultor as condições de gerar excedentes comercializáveis. No Brasil, menos de 10% dos estabelecimentos agropecuários eram responsáveis pela geração de mais de 85% da produção bruta no ano de 2006 (veja nota). E, sobretudo, por não ter sido capaz de superar uma estrutura fundiária arcaica, continua a concentrar o poder político regional na figura dos velhos coroneis, como Sarney, Lobão e Calheiros, agora de forma na forma renovada de Kátia Abreu, Ronaldo Caiado entre tantos outros.

A demora em acertar contas com os problemas estruturais brasileiros agravou alguns deles, e assim um sexto item deve ser acrescentado à lista de reformas necessárias: a reforma urbana, para assegurar o direito à moradia nas grandes cidades e frear o mecanismo puramente mercadológico que orienta o acesso aos terrenos urbanos e que tem como resultado mais perverso o inchamento das grandes cidades, a marginalização de parte significativa das populações urbanas e o afastamento dos mais pobres das áreas centrais, cada vez mais caras e acessíveis somente aos mais ricos, transformando a mobilidade urbana em um problema cada vez mais grave.

Trazer essas reformas à ordem do dia seria a mais justa forma de dar prosseguimento às merecidas homenagens ao ex-presidente Jango.

Nota
Vieira Filho, J. E. R. & Santos, G. R. Heterogeneidade no setor agropecuário brasileiro: contraste tecnológico. Radar: tecnologia, produção e comércio exterior, nº 14. Brasília: Ipea.

* Victor Leonardo de Araujo é professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/depois-de-jango-falta-desenterrar-as-reformas-de-base/)

Ramonet: “Inevitável Mundo Novo”? (Ignacio Ramonet)

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Cinquenta anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço científico pode ser, em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para barbárie

Por Ignacio Ramonet | Tradução: Teresa Van Acker

(Publicado originalmente no “Le Monde Diplomatique Brasil”, edição internet, setembro de 2000)

Seria pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar um livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?

Essas questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda mais na literatura.

E, entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua atualidade surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado, pelo menos por uma vez.

O romance, que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano 600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a produção em série e da padronização das peças.

Essa técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro. Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as grandes indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também entre os intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e criadores da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico. Pensemos, por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos modernos (1935), de Charles Chaplin.

O autor de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um homem afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.

Nascido numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres, Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold (1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro diretor geral da Unesco.

Como não poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes “centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial (1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.

Ao retornar de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence (autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley, 1928), que, já tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza — iria exercer sobre si uma importante e duradoura influência.

Em seus primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley apresenta um universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles que mais os deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de Jonathan Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.

Nesse sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo desse período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do moralista.

Essa visão pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929 castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos. Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo acondicionamento à Pavlov [1] e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos eugênicos e produtivistas.

Em Admirável Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um personagem do livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.

Os seres humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” — segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.

No momento de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade da atividade profissional a que estarão destinados.

Além do mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo, recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”

Dessa forma Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas desde 1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus gostos ou a origem de seus antepassados.

Em Admirável Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível perceber, e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia soviética construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados Unidos em nome da modernidade tecnicista.

Huxley, excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em condição humana, no sentido próprio.

O título original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade, maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”

No espírito de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada tem de maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado, como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.

Excesso de pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.

Pessimista e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a compreender o alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos, quando, por todos os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos confrontam com desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie humana.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/ramonet-inevitavel-mundo-novo/)

Por que deixamos Varsóvia (Jamie Henn)

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Ao retirarem-se das negociações climáticas, movimentos por justiça global mandaram recado: não aceitaremos mais farsas. E voltaremos mais fortes

Por Jamie Henn, da YesMagazine | Tradução: Inês Castilho

Estou sentado em um espaço de convergência no centro de Varsóvia, a um quilômetro e meio do Estádio Nacional, onde, nas duas últimas semanas, negociadores do mundo inteiro foram incapazes de conseguir qualquer progresso na última rodada da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas.

Cai a noite, e a maioria dos ativistas que estão aqui quase enlouqueceram nas últimas semanas de negociação, mas a sala ainda vibra de energia. A meu lado, Evelyn Araripe, ativista e jornalista do grupo brasileiro Viração, rememora os acontecimentos do dia. Do outro lado da sala, um grupo de jovens do Friends of the Earth (Amigos da Terra) planeja suas próximas atividades. No andar de baixo, as pessoas conspiram sobre os vídeos e entrevistas que pretendem fazer amanhã.

Aqui é onde está acontecendo o verdadeiro enfrentamento das mudanças climáticas: um prédio velho, meio caído, perto da principal rua comercial de Varsóvia. Nosso cenário não tem a ordem das estéreis salas plenárias da Conferência das Partes 19, mas é repleta de criatividade e determinação.

Especialmente agora. Faz apenas algumas horas que grande parte das organizações da sociedade civil abandonou a COP19, para protestar contra a falta de progresso nas conversações. Em particular, contra as manobras dos grandes poluidores, tais como Austrália e Japão, para abandonar seu compromisso de cortar emissões de CO²; a falta de financiamento para os países em desenvolvimento; e o domínio exercido pelas corporações sobre um processo supostamente criado para representar as vozes dos povos do mundo.


Nosso anfitrião, o governo polonês, não apenas permitiu que corporações patrocinadoras estampassem seus logos por todo lado, nas salas onde ocorreu o encontro, mas chegou ao ponto de se aliar à Associação Mundial de Carvão para sediar uma grande cúpula sobre o combustível, lado a lado com as negociações sobre o clima. É o equivalente a montar uma feira de armamentos junto com uma conferência mundial de paz – o que gerou protestos, naturalmente.

De modo que hoje, com camisetas onde se lê “Polluters Talk, We Walk“ (Quando os poluidores Falam, nós saímos), algumas das maiores organizações ambientais – Greenpeace, Oxfam, Friends of the Earth, 350.org etc.— uniram-se a grupos como ActionAid, redes de trabalhadores como Confederação Internacional de Sindicatos, movimentos do Sul Global como Aliança Pan-Africana pela Justiça Climática e jovens de todo o mundo, para deixar a conferência.

Foi uma condenação a essas conversas em particular, não a todo o processo da ONU. Atrás, em nossas camisetas, pode-se ler “Volveremos”, em espanhol – mais fortes e poderosos que nunca. Não abandonamos nossa esperança nas negociações climáticas da ONU, mas essas reuniões eram uma farsa, e sabemos que elas não vão construir um processo relevante até que digamos basta à indústria de combustíveis fósseis e acabemos com seu domínio sobre nossos governos e economias.

A amplitude e o alcance da paralisação de hoje foram um acontecimento sem precedentes no processo da ONU. Grupos isolados já abandonaram as negociações climáticas, no passado (perdi a conta de quantas vezes grupos como Friends of the Earth ou 350.org marcharam, protestaram ou foram expulsos de reuniões). Mas nunca antes tantos grupos, de ONGs gigantes como a World Wildlife Federation (Federação Mundial para a Vida Selvagem) a movimentos sociais de todo o Sul Global marcharam juntos com uma só voz. A ação de hoje foi pequena – o abandono de uma conferência –, mas significou outro nível de unidade no movimento climático global.

Depois de deixar as conversações, centenas de nós viemos para o espaço de convergência partilhar nossas percepções sobre o dia e nos comprometer com o duro trabalho que temos pela frente. Estamos exigindo um bocado dos nossos líderes políticos: financiamento de verdade, forte redução das emissões, novos mecanismos para lidar com as perdas e os prejuízos causados pelas mudanças climáticas. Precisamos também exigir muito de nós mesmos: outro nível de colaboração, vontade de correr riscos, e foco na mobilização de um movimento poderoso nas capitais mundo afora.

Sabemos que não estamos sós. Já estão chegando, neste momento, as fotos das vigílias We Stand With You (Estamos Com Vocês), que acontecem em todo o mundo para honrar as vítimas do Tufão Haiyan e demandar ação imediata contra o aquecimento global.

Esta é a sétima vez que venho a uma conferência climática anual da ONU, e é difícil não haver uma depressão em massa com todo o processo. O progresso é lento, as coisas desmoronam. E apesar disso, este ano há algo diferente no ar.

Pela primeira vez, parece que realmente sabemos quem são os inimigos. É a indústria de combustíveis fósseis – e estamos começando a ir atrás deles seriamente, fazendo de campanhas de desinvestimento à obstrução de dutos.

Lutar contra as mudanças climáticas é difícil, mas, sentado em salas como esta, cercado por ativistas de todo o mundo que estão empenhando seus corações e vidas nesta luta, é difícil não se sentir otimista. Com sempre diz Bill McKibben, não tenho certeza de que vamos ganhar, mas vamos provocar uma briga infernal.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/por-que-deixamos-varsovia/)
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