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domingo, 25 de maio de 2014

Queremos a volta dos trens brasileiros! (Raquel Rolnik)

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Feriados voltam a escancarar irracionalidade social e ambiental do automóvel. Caos exige reabrir um debate: até quando país adiará reconstrução de sua malha ferroviária?

Por Raquel Rolnik, em seu blog

Mais uma vez, a volta de um feriado — o de Páscoa — exigiu muita paciência dos paulistanos. Muita gente ficou horas parada no trânsito para conseguir voltar pra casa. Um amigo levou 10 horas para fazer um trajeto entre o litoral e a capital que normalmente dura 3 horas. Imagine só… você passa quatro dias descansando, mas chega em casa totalmente estressado depois desta agradabilíssima viagem de volta…

Já está mais do que claro que duplicação de rodovias, construção de novas pistas, túneis e viadutos não resolvem esse problema. Além de não darem conta da demanda – que só aumenta à medida que se abre mais espaço para veículos passarem –, as consequências ambientais são sempre grandes e raramente mitigáveis. Destruímos serras para chegar mais rápido e usufruir… das próprias serras…

Antigamente era possível ir de trem até Santos e até mesmo para o Guarujá. Lembro que íamos de trem para o Rio, para Minas e para todo o interior de São Paulo. É inacreditável que hoje, com tantos recursos e tecnologias disponíveis, não exista essa alternativa.

Além de ficarmos engavetados em viagens intermináveis, nossos carros entopem as belas praias, montanhas e cidades históricas que vamos visitar. Na maior parte delas, aliás, não há a menor necessidade de uso do carro. É possível resolver tudo a pé ou de bicicleta, ou usar transportes locais, minimizando o enorme impacto ambiental que essa imensa quantidade de veículos causa a pequenas vilas e cidades.

Precisamos urgentemente de um trem que ligue a metrópole ao litoral e ao interior.

No ano passado, o Governo do Estado anunciou a construção de uma linha de trem de média velocidade – 120 km por hora – para fazer essa ligação. O projeto – chamado de Trem Intercidades – prevê 430 km de malha ferroviária.

De acordo com o que foi divulgado pela imprensa, esse trem ligaria a capital a Campinas, Americana, Jundiaí, Santo André, São Bernardo, São Caetano, Santos, Sorocaba, São Roque, São José dos Campos, Taubaté e Pindamonhangaba. A publicação do edital para concorrência pública para empresas interessadas em entrar no projeto, via parceria público-privada, foi prometida para este ano, mas até agora nada…

Já imaginaram? Poder viajar tranquilamente, com conforto e hora marcada pra sair e pra chegar, preservando nossas praias e nossas cidades dos danos causados pelos carros?

Queremos um trem para o litoral e interior já!

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17244)

Para ir além do alimento-mercadoria (Juliana Dias)

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Livro propõe alternativas a uma indústria alimentar que padronizou dietas, disseminou agrotóxicos e “aditivos”, reduziu comida a consumo e não venceu a fome

Por Juliana Dias, editora do site Malagueta

O sistema alimentar moderno transformou radicalmente a estrutura social, econômica, política e cultural das sociedades. Inspirada na lógica industrial, os objetivos estão centrados numa economia de baixo custo e grande escala, projetada com tecnologia e eficiência para oferecer “mais por menos” ao consumidor final. Essa equação se traduz em mais produtos na prateleira a um preço cada vez menor de produção, que beneficia exclusivamente os grandes fabricantes e redes varejistas multinacionais.

Em O Fim dos Alimentos (Editora Eevier, à venda na internet), o jornalista norte-americano Paul Roberts descortina o cenário da economia alimentar, com um panorama inédito que reúne subsídios para compreender sintomas que vão da obesidade ao declínio das refeições preparadas em casa. Nutrida por desigualdade e injustiça, esta economia reproduz um ciclo tendencioso e vicioso, em que a demanda do consumidor, seus desejos e interesses implacáveis são utilizados como justificativa para manter um modelo de produção, consumo e distribuição questionável.

A concorrência do setor varejista espreme ao máximo os lucros da cadeia produtiva para se manter no topo da preferência de seu cliente. Este cliente, por sua vez, parece também ter sido moldado geneticamente, culturalmente e socialmente para absorver mais calorias em nome da conveniência e da falta de tempo que o próprio sistema o enreda. Quanto menos tempo se tem para cuidar da alimentação, mais as empresas alimentícias lucram com inovações que facilitam um estilo de vida em que o trabalho ocupa a maior parte do dia e cada vez exige mais, assim como a cadeia produtiva precisa ser cada vez mais eficiente.

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A antropóloga Mary Douglas, no livro O Mundo dos Bens (Editora UFRJ, à venda na internet) supõe que a capacidade essencial do consumo é dar sentido. Trata-se de um sistema de significação, e a verdadeira necessidade que supre é a simbólica. Para cumprir com excelência tal missão, as verbas de marketing e publicidade dão conta de explorar a experiência alimentar, abarcando os valores de uma cultura ou sociedade. A culpa, a insegurança e a vida corrida ganham significado no ato de consumir. No final das contas, quem ganha com tanto tempo e energia desprendidos em prol de um modelo capitalista que consome, esvazia?

Roberts indica um caminho em que gigantes como a Nestlé e o Mc Donald’s mais parecem maquinar contra a humanidade, exaurindo suas forças, como se as pessoas e os recursos fossem infinitos, ou substituíveis infinitamente.

A industrialização da refeição começa no campo epistemológico ao conceituar alimento como mercadoria, sem considerar, como aponta o autor, que o alimento em si não é fundamentalmente um fenômeno econômico. “O produto subjacente – o que comemos – nunca na verdade se conformou aos rigores do modelo industrial moderno”. No entanto, a crise alimentar, ele alerta, é fundamentalmente econômica. A partir desta constatação, podemos pensar nas outras dimensões em que essa crise atinge, como a perda do saber e fazer tradicionais. O jornalista sugere que as relações familiares, a identidade cultural e diversidade ética estavam intimamente relacionadas com o ato de preparar e consumir comida. Agora, esta função está a cargo de grandes corporações.

As culturas alimentares que tratavam a culinária como elemento central para a manutenção da estrutura social e da tradição estão lentamente sendo trocadas por uma cultura alimentar globalizada. “A refeição social é obsoleta e a arte da cozinha é feitichizada em livros de receitas e programas culinários”.

Os alimentos foram dissecados em sua essência e transformados em insumos. O dicionário Houaiss define o verbete como “bem utilizado ou transformado em outros produtos pelo processo produtivo de uma empresa; ou fator de produção”. A etimologia traz a ideia de “tomar, invadir; despender, gastar”. Exatamente como faz a marcha da economia alimentar.

Roberts explica que o alimento é tão impróprio à produção em massa que tivemos de reengendrar plantas e animais para torná-los mais eficientes economicamente. E para corrigir os efeitos colaterais, ergueu-se uma indústria de medicamentos, flavorizantes, aditivos e fertilizantes em prol da qualidade, percebida na textura e no sabor de quem compra. Tudo pode ser constituído. O crescimento desproporcional dos frangos compromete a umidade da carne, por isso, injeções de salmora e outras substâncias garantem o aspecto natural. Todo o esforço da indústria está em parecer caseiro, artesanal e natural, como se estivesse sido feito em casa, na hora. Em nome dessa naturalidade, a saúde das plantas, dos animais, do solo e do homem podem estar ameaçadas.

A indústria construiu uma reputação baseada na capacidade de produzir comida suficiente para abastecer a população com segurança. Com a análise de Roberts, observamos que esta relação de confiança é sustentada com altos investimentos em tecnologia, mas que não são suficientes para impedir práticas fraudulentas – como colocar carne de cavalo em lasanhas, hambúrgueres e kebabs no Reino Unido; e adicionar ureia no leite do Rio Grande do Sul, ambos acontecimentos do primeiro semestre de 2013. Para o autor, o mais grave é que apesar de toda eficiência e abundância, o sistema alimentar moderno não chegou nem perto de erradicar a fome. Roberts suspeita que “há algo de muito errado quando ninguém é produtor, quando ninguém é cozinheiro, e quando o mais próximo que se chega de produzir uma refeição é no buffet de restaurante a quilo”.

A economia alimentar cresceu num contexto da Segunda Guerra Mundial e Revolução Industrial. Aliou-se a fome com a vontade de comer. Num primeiro estágio, a produção industrial caiu como uma luva, era sinal de fartura e progresso. Mas esta máquina alimentar já indica sinal de desgastes. Esta iminente crise será a mais problemática porque a produção ocorre num contexto global, onde os custos são mais baixos. Entretanto, torna-se vulnerável às intempéries como meios de transportes ou capacidade de exportadores. Outro fator apontado no livro é a resistência à mudança. Por isso, sua manutenção depende de investimento contínuo em produção. Por ser tão bem arranjado, uma mudança genuína deve partir de fora da lógica predominante. Caso contrário, as alternativas são incorporadas e reinventadas, como os alimentos orgânicos e os produtos saudáveis. Ademais, a propaganda de bom preço e qualidade esconde muitos dos verdadeiros custos. Os consumidores, peça-chave que roda essa engrenagem, demonstram pouca inclinação a prestar mais atenção ao que comem.

Roberts cita iniciativas em prol de um modelo alternativo, como levar a agricultura aos ambientes urbanos, comida de verdade nos refeitórios da escola e técnicas culinárias na sala de aula. No Brasil, a Lei de Alimentação Escolar (11.497) determina que a Educação Alimentar e Nutricional perpasse o currículo e o processo de ensino-aprendizagem. Diante do panorama exposto, os educadores deveriam tomar parte na discussão sobre o sistema alimentar, considerando não apenas a saúde, mas a complexidade que esta economia engendra. Faz-se necessário uma narrativa abrangente, interdisciplinar e transdisciplinar sobre o que se come, que pode se construída na base da educação, assim como a indústria busca novos consumidores desde o ventre materno. Nos três primeiros capítulos, o livro trata de três grandes mudanças na relação de produção, distribuição e consumo.

Fome de progresso

O autor inicia a obra situando o leitor a respeito da evolução do homem em busca de alimentos. A carne e, posteriormente a agricultura, foram cruciais para desenvolvimento humano e fixação na terra. Desde os primórdios da sociedade, a segurança alimentar se apresentou como uma questão militar e política. A capacidade de produzir grãos caminha com o incremento na produção de carne. A partir de 1500 e 1700 a redescoberta da carne teve papel fundamental para o crescimento da população mundial. Durante séculos, a fome destruiu de forma eficaz a capacidade mental, social e produtiva de populações inteiras. A constante ameaça da escassez versus o crescimento populacional impulsionou inovações e tecnologias, que afastaram o fantasma da fome; e ampliou a baixa estatura provocada pela desnutrição.

Na visão do autor, o globalismo, ou o sistema alimentar internacional foi gerado sob a ideologia do livre-comércio. A fome transformou o alimento em mercadoria e desencadeou uma abundante produção de comida. Os Estados Unidos, berço desta superabundância, o congresso criou um vasto sistema de apoio a produção de alimentos. Segundo o economista de Havard Ray Goldberg, o sistema foi “o maior serviço de utilidade quase-pública do mundo”.

A padronização tornou-se um princípio norteador da produção. Em nome desse padrão de qualidade, o alimento é esmiuçado, descaracterizado e reconstituído. O agricultor moderno concentrou seus esforços em uma só cultura, como milho e soja, base para uma infinidade de produtos; ou espécie de gado. Em 1957, Goldberg e John Davis sugeriram o termo agronegócio (conjunto de operações da cadeia produtiva, do trabalho agropecuário até a comercialização/Houaiss) ao invés de agricultura (trabalho do campo, arte de cultivar).

Conforme o jornalista “a uniformidade e a especialização haviam sido os marcos da economia alimentar moderna em seus primórdios; a consolidação e a desigualdade seriam seu legado mais duradouro”.

É muito fácil hoje

A etapa seguinte da economia alimentar foi protagonizada pelos fabricantes de alimentos. O agronegócio resultou em menos gastos para os consumidores; e os produtos de conveniência resultaram em menos tempo gasto no preparo das refeições. A Nestlé é o principal exemplo de Roberts por ser a líder mundial da indústria alimentícia; e ser alvo de inúmeras polêmicas. Nas sociedades industrializadas, o tempo se converteu em uma valiosa mercadoria. Empresas como a suíça Nestlé passaram a atender, além da demanda de preço, a praticidade. A fabricação de alimentos se enfileirou na esteira do modelo fabril e automobilístico, com grande volume, padronização e variedade. Interessante destacar que o paladar é conservador. O historiador Enrique Renteria (2007) afirma que essa importância dada à alimentação é surpreendente visto que é na escolha do que comemos que mostramos menos ousadia. Da mesma forma, Roberts ressalta que o sucesso de empresas como a Nestlé e o Mc Donald’s assinala um dos desenvolvimentos mais radicais e potencialmente inquietantes da história da economia alimentar, pois os seres humanos são de fato inerentemente “conservadores em se tratando de alimentos”.

O sistema de produção, distribuição, divulgação e consumo de alimentos ganhou terreno à medida que o comensal perdeu a capacidade de preparar e entender sua própria comida. Tem o mérito de instigar o apetite por novidades embaladas e com rótulos indecifráveis. As mudanças na forma de comer foram acolhidas ou consideradas como um mal necessário, pois permitiu o controle maior do tempo. Mas ao longo do processo de industrialização do comer os consumidores se mostram cada vez mais dispostos a aceitar produtos sintéticos ou processados. E para convencer o cliente desta “necessidade” a publicidade e o marketing são ostensivos. O autor informa que a indústria alimentícia americana gasta cerca de US$ 33 bilhões por ano, atrás apenas do setor automobilístico. Além da comunicação, o setor investe em analistas de diversas áreas como antropologia e psicologia. Até 2030, a previsão do tempo de cozinha ideal deve ficar entre 5 a 15 minutos. O futuro do alimento, adverte Roberts, é ser um acessório. O sucesso desse modelo se baseia no declínio contínuo da refeição à mesa como uma parte significativa da cultura.

A multidimensionalidade da alimentação (Fischler, 1995) é reduzida a uma mercadoria, desprovida de sua essência, mas enxertada de sentido para consumidor, com informações angariadas em pesquisas de comportamento. O relatório anual do Mc Donald’s, de 1994, avalia que se deve monitorar as mudanças nos estilos de vida dos consumidores e intercepta-los a cada vida. Não é tão difícil monitorar quando as relações também se tornam padronizadas e previsíveis; e a agenda de compromissos abarrotada é uma angústia universal.

Compre um e leve outro grátis

A terceira etapa da cadeia produtiva alimentar é ainda mais cruel e espreme produtores e fabricantes contra suas margens de lucro. Quem dá as cartas são as grandes redes varejistas com operações internacionais. Na liderança está o Wal-Mart, tão demonizado quanto a Monsanto, a Nestlé e o Mc Donald’s. Os fornecedores escolhidos são obrigados a praticamente zerar o lucro para entregar produtos com qualidade, uniformidade e volume. Qualquer irregularidade, isso inclui verduras e legumes, os alimentos/produtos são devolvidos e o fornecedor descredenciado. O Wal-Mart inovou a oferecer descontos diários a sua clientela. Para isso, reduziu os estoques internos, pressionou fabricantes que por sua vez cobraram mais eficiência dos produtores. Em troca, o volume de vendas em contraponto com uma necessidade constante de inovação e investimentos para manter a produção em patamares elevados. “A cultura alimentar é definida pelo preço, com base no valor intrínseco e no tamanho da porção e num sistema de produção global tão enxuto e just in time que é ao mesmo tempo propenso a sofrer contratempos”, afirma o autor, se referindo a exigência de perfeição. Os processadores de carne foram as primeiras vítimas do grande aperto varejista. Daí para se obter frangos em 40 dias foi uma trajetórias de demandas baseadas em custo e eficiência. Entretanto, os mercados mais promissores estão nos países emergentes e em desenvolvimento, que enfrentam desafios em termos de segurança alimentar, bem como de estrutura como ferrovias, depósitos e infraestrutura para distribuição de produtos. Até quando a pressão por preço vai nortear a produção, a distribuição e o consumo, quando estamos lidando com mercadorias forjadas a partir de recursos finitos, como o solo, a água, os animais?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/para-ir-alem-do-alimento-mercadoria/)

domingo, 20 de abril de 2014

São Paulo, Zona Sul: onde a Tarifa Zero já existe (Débora Lopes)

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Em Marsilac, bairro quase rural, população articula, com apoio do Movimento Passe Livre, micro-experiência de acesso gratuito ao transporte público

Por Débora Lopes | Fotos Felipe Larozza, na Vice

O taxímetro acusava uma fortuna de três dígitos quando chegamos em Marsilac, o bairro mais afastado do marco zero de São Paulo. Celular sem sinal, chão de terra batida, gado, linha de trem, bares deslocados, cães de estrada. O extremo sul da cidade é ermo e bucólico — parece interior. Mas a rotina de quem mora lá e precisa se locomover é sôfrega. A estrada é precária, à noite, nem todas as luzes funcionam e, rá!, não existe linha de ônibus. Exatamente por isso, encorajados pelo saudoso Movimento Passe Livre (MPL), os moradores da região criaram uma comissão, alugaram uma van e mostraram para a subprefeitura de Parelheiros, responsável pela área, com quantos passageiros se faz um busão com tarifa zero.

Mal descemos do táxi e o Caio Martins, do MPL, perguntou “Não se perderam? Várias pessoas da imprensa se perderam para chegar e desistiram”. Ou seja, se andar de carro é complicado, imagina para quem está a pé.


Logo na entrada da van, que eu prefiro chamar de pequeno busão, uma placa anunciava: LINHA POPULAR. TRAJETO: MAMBU X MARSILAC. TARIFA ZERO. HOJE O POVO É QUE VAI MANDAR NO TRANSPORTE! Não só o fato de a passagem ser gratuita era incrível, mas também a provocação feita à subprefeitura, que aprovou a criação de uma linha de ônibus, mas nunca tirou o projeto do papel. Inclusive, dei uma ligada para a assessoria de imprensa perguntando sobre a estrada, sobre uma ponte totalmente zoada e perigosa e sobre a linha de ônibus fantasma, mas eles disseram que às cinco da tarde é difícil encontrar as pessoas que poderiam responder por isso. Ué, meu Brasil lindo, horário comercial não existe para funcionário público?

E lá fomos nós fazer o trajeto. O clima dentro do pequeno busão (escrevo como quiser) era animado. Senhoras, senhores, crianças, cortinas vermelhas e azuis, jornalistas, fotógrafos. Pouca ventilação, um calor do cão, mas todo mundo feliz e balangando estrada adentro.

Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores.

“Aqui, as pessoas andam cerca de 15 km. Não tem lazer, educação, cultura. As pessoas são isoladas. Até existem coisas gratuitas, mas não temos como nos locomover. Os jovens conseguem emprego, mas não conseguem transporte para ir trabalhar. Eles perdem a motivação”, me contou Maria Nascimento, integrante da comissão de moradores. Conversei com algumas mulheres sobre os principais empecilhos causados pela distância enorme entre tudo o que existe na região e a falta de transporte. A maioria falou sobre como é difícil ir até o posto de saúde. “Uma senhora cardíaca teve um infarto e morreu porque a ambulância do posto não pôde resgatá-la”, me disse uma delas. Quem não tem carro, se vira como dá. Alguns encaram jornadas de três a quatro horas a pé. Em emergências, geralmente se paga 20 reais por uma carona com o vizinho motorizado.


O momento mais absurdo e lisérgico do rolê no pequeno busão foi quando todos os passageiros tiveram que descer e atravessar uma ponte estreita a pé, esquema Ensaio Sobre a Cegueira. A construção do negócio encontra-se tão precarizada que é perigoso passar por ali com um veículo pesado. A questão é que a ponte não tinha nenhuma cerca e, pasmem, havia buracos no meio dela. Sim, buracos enormes. Sem contar que uma madeira improvisada sustentava boa parte do peso daquela lamentável construção sucateada.

Ali, nem todo mundo sabia exatamente que as manifestações de junho foram puxadas pela garotada do MPL e resultaram na revogação do aumento da tarifa do transporte coletivo. Mas todos pareciam gratos, inclusive a Maria. “Eles contribuem muito com nós. Quando pensamos em desistir, eles nos apoiam e dizem ‘isso é um direito de vocês’.”


Infelizmente, o pequeno busão autogestionado onde todos são bem-vindos não irá acontecer novamente, mas a comissão de moradores e o MPL já chamaram um novo encontro para o dia 19, sábado. Pode ser uma pressão singela, mas se tem a mão dos jovens arautos do transporte coletivo, provavelmente será contínua.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17154)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Quando a catástrofe climática vira produto financeiro (Razmig Keucheyan)

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Superfuracão Hayian, 2013, Filipinas: 5 mil mortos, 1,5 milhão de desabrigados e mais lenha na fornalha das finanças globais


“Derivativos climáticos”, “obrigações de catástrofe”, “bolsa de troca de riscos”… Em torno dos novos desastres naturais surge universo de oportunidades e acumulação

Por Razmig Keucheyan*, no Le Monde Diplomatique

Em novembro de 2013, o “supertufão” Haiyan atingiu o arquipélago das Filipinas: mais de 6 mil mortos, 1,5 milhão de lares destruídos ou danificados, US$ 13 bilhões de danos materiais. Três meses depois, duas corretoras privadas de seguros, Munich Re e Willis Re, acompanhadas por representantes da Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), apresentavam aos senadores filipinos um novo produto financeiro desenvolvido para cobrir eventuais déficits do Estado em termos de gestão de desastres climáticos: o Philippines Risk and Insurance Scheme for Municipalities (Prism), um tipo de título com altos rendimentos que os municípios ofereceriam, em caso de catástrofe, a investidores privados [1]. Estes últimos se beneficiariam de taxas de juros vantajosas subsidiadas pelo Estado, mas, caso houvesse sinistro de uma força ou desastre predefinidos, perderiam seus investimentos.

“Derivativos climáticos” (weather derivatives), “obrigações de catástrofe” (catastrophe bonds) e outros produtos de seguro climático fazem muito sucesso. Além dos países asiáticos, o México, a Turquia, o Chile e até mesmo o estado norte-americano do Alabama, duramente afetado pelo furacão Katrina em 2005, recorreram a eles de uma forma ou de outra. Para os promotores desses instrumentos, trata-se de confiar ao mercado financeiro os seguros de riscos naturais, inclusive os prêmios; avaliações de ameaças e ressarcimento das vítimas. Mas por que o mercado financeiro cobre danos causados pela natureza justamente agora, que ela mostra sinais cada vez mais claros de desgaste?

Durante muitos séculos, a Terra forneceu ao sistema econômico matérias-primas e recursos naturais a preços baixos. O ecossistema também conseguia absorver os dejetos da produção industrial. Mas essas duas funções não se realizam mais tão facilmente. Não só o preço das matérias-primas e da gestão de dejetos aumenta, como a multiplicação e o agravamento dos desastres naturais fazem subir o custo global dos seguros. Isso exerce uma pressão para diminuir as taxas de lucro dos atores industriais. Desse modo, a crise ecológica não é apenas o reflexo, mas também a provável causadora de uma crise do capitalismo.

Nesse contexto, a “financeirização” parece oferecer uma escapatória: as companhias de seguros e de resseguros (ver boxe) colocam em jogo novas formas de dissipar o risco, das quais a principal é a titularização de riscos climáticos − uma transposição para a esfera meteorológica dos mecanismos testados com o sucesso que conhecemos no sistema imobiliário americano…

Entre os produtos mais fascinantes desse novo arsenal financeiro está o cat bond, diminutivo de catastrophe bond, ou seja “obrigação de catástrofe”. Uma obrigação é um título de crédito ou uma fração de dívida liquidável em um mercado, e sujeita a uma cotação. A particularidade dos cat bonds é que eles não surgem de uma dívida contraída por um Estado para renovar suas infraestruturas ou por uma empresa para financiar sua inovação, e sim da natureza e seus perigos. Eles abrangem uma eventualidade que pode ocorrer, mas sem certeza; sabe-se apenas que ocasionará desgastes materiais e humanos importantes.

A partir daí, trata-se de dispersar os riscos naturais no espaço e no tempo, tornando-os financeiramente insensíveis. Conforme os mercados se desdobram em escala mundial, esses riscos ficam em evidência máxima.

Esse prodígio da engenharia financeira nasceu em 1994, logo após uma série de desastres com custos fora do normal (o furacão Andrews na Flórida em 1992, o terremoto de Northridge na Califórnia em 1994) obrigar a indústria de seguros a encontrar novos recursos. Desde então, foram emitidos cerca de duzentos cat bonds, 27 apenas em 2007, totalizando US$ 14 bilhões.

Furacão no Caribe vs. tsunami na Ásia

Como todo título financeiro, as obrigações climáticas têm de se submeter ao crivo das agências de classificação de risco – Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s –, que geralmente dão a eles a medíocre nota BB, o que significa que eles possuem risco. O valor de um cat bond flutua no mercado em função da maior ou menor probabilidade de que a ameaça venha a acontecer e em função da oferta e procura do título em questão. Acontece que esses títulos continuam circulando quando uma catástrofe se aproxima e mesmo durante seu desenrolar; por exemplo, durante uma onda de calor na Europa ou de um furacão na Flórida. É o que os traders especialistas chamam de live cat bond trading – comércio ao vivo de títulos [2], o que faz sentido em razão de sua composição característica.

Uma bolsa de valores de títulos chamada Catastrophe Risk Exchange (Catex), localizada em Nova Jersey, surgiu em 1995. Um investidor excessivamente exposto aos tremores de terra californianos poderá diversificar seu portfólio trocando seus cat bonds por outros de furacões no Caribe ou de tsunamis no Oceano Índico. A Catex também serve para fornecer base de dados a seus clientes, permitindo a avaliação de riscos.

Protagonistas do dispositivo, as agências de modelização se rendem ao catastrophe modeling, ou seja, à modelização das catástrofes. Seu objetivo é calcular a natureza e reduzir quanto for possível a incerteza. Existe um pequeno número de agências de modelização de negócios no mundo, a maioria delas norte-americana: Applied Insurance Research (AIR), Eqecat e Risk Management Solutions (RMS). Em função de variáveis como velocidade dos ventos, tamanho dos ciclones, temperaturas e características físicas da zona em questão (material utilizado na construção, tipo de terreno, população), elas avaliam o custo de uma catástrofe, bem como as indenizações a serem pagas pelas seguradoras. E, consequentemente, determinam o preço do cat bond.

A maioria das obrigações desse tipo emitidas até hoje partiu de seguradoras e resseguradoras. Mas, desde meados dos anos 2000, os próprios países colocam no mercado cat bonds “soberanos” – da mesma forma que se fala em dívida soberana. Essa tendência, lançada pelos teóricos contemporâneos de seguros advindos da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, uma das escolas de comércio mais prestigiadas do mundo, é fortemente encorajada pelo Banco Mundial e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Esse deslocamento ilustra a ligação estreita que se estabelece entre a crise de orçamento dos países (endividamento e queda de suas receitas) e a crise ambiental. Por causa da dificuldade que atravessam, os países se mostram cada vez menos capazes de assumir o custo dos seguros contra desastres climáticos pelos meios convencionais, ou seja, principalmente por impostos. E essa incapacidade fica a cada dia mais evidenciada conforme aumentam o número e o poder dos cataclismos causados pelas mudanças climáticas. Para governos em apuros, a financeirização dos seguros de riscos climáticos representa um sopro de oxigênio: a titularização como substituto ao imposto e à solidariedade nacional. Esse é um ponto de fusão entre a crise ecológica e a financeira, como mostra o exemplo mexicano.

Furacões no Golfo do México, terremotos, deslocamentos de terra ou erupções do Popocateptl: o México parece cercado por ameaças “naturais”. Segurador em última instância em caso de catástrofes, o Estado indeniza as vítimas com o orçamento federal, ou seja, graças aos impostos, segundo o princípio da solidariedade nacional consubstancial ao Estado-nação moderno. Em 1996, o governo lançou o Fondo de Desastres Naturales (Fonden), destinado na época a fornecer ajuda de urgência aos sinistros e permitir a reconstrução das infraestruturas. Esse dispositivo funcionou até uma série de catástrofes com custo exorbitante se abater sobre o país. Em 2005, o governo federal gastou US$ 800 milhões para cobrir esses danos, quando só tinha… US$ 50 milhões para gastar. (3)

Critérios muito rigorosos

A ideia de titularizar o seguro de riscos de tremores de terra se concretizou no ano seguinte, com o incentivo do Banco Mundial. Em 2009, o país decidiu incluir no dispositivo os furacões, o que deu origem a um programa “multicat”, que cobria uma multiplicidade de riscos. Estavam presentes na mesa de negociações somente pessoas de alto gabarito: o ministro das Finanças do México, representantes da Goldman Sachs e da resseguradora Swiss Re Capital Markets, encarregados de vender o programa aos investidores. A Munich Re também estava presente, bem como dois grandes escritórios de advocacia norte-americanos, Cadwalader, Wickersham & Taft e White & Case. A Applied Insurance Research (AIR), agência de modelização encarregada de estabelecer os parâmetros para o lançamento da obrigação – o nível de gravidade no qual os investidores perderiam seu dinheiro –, elaborou dois modelos: um para os terremotos e outro para os furacões. Depois de estar registrado nas Ilhas Cayman pela Goldman Sachs e pela Swiss Re, o cat bond foi vendido aos investidores em turnês de promoção organizadas pelos bancos.

Cada vez que uma catástrofe abate o México, a agência AIR determina se o acontecimento corresponde aos parâmetros estabelecidos pelos contratantes. Se for o caso, os investidores devem colocar o dinheiro à disposição do Estado do México. Caso contrário, não gastam nada e continuam lucrando com o seguro.

Em abril de 2010, um terremoto arrasou o estado da Baja California, mas seu epicentro se encontrava ao norte da zona delimitada pelo cat bond. Resultado: o dinheiro da obrigação não foi liberado, e o México continuou pagando juros. Da mesma forma, quando um furacão atingiu o estado de Tamaulipas dois meses depois, sua força foi inferior ao nível predeterminado, e o México não viu a cor dos dólares. Os critérios são tão rigorosos que apenas três dos duzentos cat bonds emitidos em quinze anos foram acionados (The Economist, 5 out. 2013).

No Sudeste Asiático, região particularmente exposta, a introdução de cat bonds soberanos se opera segundo modalidades particulares [4]. Na Indonésia, maior país muçulmano do mundo, os princípios de seguros islâmicos, o takaful, se aplicam. Sem poder ignorar que o setor apresenta após uma década um crescimento anual de 25% (contra os 10% obtidos pelo mercado tradicional de seguros), a resseguradora Swiss Re se esforça para reforçar sua sharia credibility, segundo sua própria expressão [5]. Os países em desenvolvimento são com frequência os mais duramente afetados por catástrofes climáticas, tanto por razões geográficas como por não possuírem os mesmos meios de enfrentá-las que os países ocidentais. O aumento do nível do mar atinge tanto a Holanda como Bangladesh, mas é preferível enfrentar as ondas em Amsterdã a encará-las em Munshiganj. [6]

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As obrigações de catástrofe – ou, em outro gênero, os créditos de carbono – não são os únicos produtos financeiros ligados a processos naturais. Os derivativos climáticos, por exemplo, propõem aos investidores apostas em relação ao tempo que faz, ou seja, sobre as variações da meteorologia que não representem uma interrupção no curso normal da vida social. Desde eventos esportivos a colheitas, passando pelo granizo, concertos de rock e variações no preço do gás, bem como diversos outros aspectos das sociedades modernas são influenciados pelo tempo. Estima-se que um quarto da riqueza anual produzida pelos países desenvolvidos esteja suscetível a sofrer impactos em relação ao tempo.7 O princípio do derivativo climático é quase infantil: uma quantia financeira é liberada para o lucro de quem o adquiriu caso as temperaturas – ou algum outro parâmetro meteorológico – superem, ou não atinjam, um nível predeterminado; por exemplo, se o frio – e, portanto, os gastos com energia – excede certo nível ou se a chuva restringe a frequentação de um parque de diversões durante o verão.

No ramo agrícola, alguns derivativos têm como subjacente – o ativo real sobre o qual um instrumento financeiro versa – o tempo de germinação das plantas. Um índice como o “grau por dia de crescimento” (growing degree days) mede a diferença entre a temperatura média que uma plantação necessita para amadurecer e a temperatura real, ativando o pagamento de determinada quantia caso seja ultrapassado um nível estabelecido. Em caso de um swap (“troca”), duas empresas afetadas de maneira oposta pelas variações climáticas podem decidir se segurarem mutuamente. Se uma empresa de energia perde dinheiro em caso de inverno pouco rigoroso e o mesmo ocorre com uma empresa de eventos esportivos em caso de inverno muito rigoroso, elas se cobrem com um montante predeterminado conforme o termômetro sobe ou desce.8

Os ancestrais dos derivativos climáticos apareceram na agricultura no século XIX, principalmente nos Estados Unidos, no Chicago Board of Trade. Eles tratavam de matérias-primas como algodão e trigo.9 No momento da liberação e da aglutinação dos mercados financeiros, nos anos 1970, e da proliferação dos derivativos, os subjacentes potenciais se multiplicaram. Pioneiras nesse ramo, as multinacionais de energia, entre elas a Enron, encontraram nos derivativos um meio de “suavizar” seus riscos de perdas.10 Desse modo, após o inverno de 1998-1999, particularmente brando nos Estados Unidos por causa do fenômeno La Niña, algumas termelétricas decidiram utilizar os derivativos para se “cobrir” – para essas empresas, as flutuações de alguns graus implicavam variações financeiras colossais. A partir de 1999, os derivativos climáticos passaram a ser trocados no Chicago Mercantil Exchange, historicamente especializado em produtos agrícolas. O surgimento desses produtos financeiros está atrelado ao movimento de privatização dos serviços meteorológicos, principalmente nos países anglo-saxões: são eles que, em última instância, determinam o nível que precisa ser atingido para que um derivativo seja acionado.

Em um artigo intitulado “Pourquoi l’environnement a besoin de la haute finance” [Por que o meio ambiente precisa da alta finança], três teóricos de seguros sugerem atualmente a implantação do species swap, um tipo de derivativo que trata do desaparecimento de espécies.11 A interpenetração das finanças e da natureza assume aí uma de suas formas mais radicais: tornar a preservação das espécies rentável para as empresas, a fim de incentivá-las a tomar conta da biodiversidade. Na verdade, essa missão custosa cabe hoje ao Estado, cujos cofres estão cada dia mais vazios. Ainda nesse tema, o aumento da crise fiscal justifica a financeirização da natureza.

Imaginemos que o estado da Flórida assine um contrato de species swap com uma empresa, tendo como subjacente uma variedade de tartaruga ameaçada que vive nos arredores da contratante. Se o número de espécimes aumentar por causa da atenção dedicada pela empresa, o estado paga juros a esta; porém, se as tartarugas rarearem ou se aproximarem da extinção, é a empresa que tem de pagar ao estado, para que este possa iniciar uma operação de salvação.

As “hipotecas ambientais” (environmental mortgages) – tipo de subprime cujo subjacente não é um bem imobiliário, e sim uma parte do meio ambiente –, os títulos garantidos por florestas (forest backed securities) e ainda os mecanismos de compensação de zonas úmidas (wetlands), legalizados nos Estados Unidos pela administração do presidente George H. Bush durante os anos 1990, constituem outros exemplos de produtos financeiros desse tipo.

O capitalismo, segundo o teórico do ecossocialismo James O’Connor, implica “condições de produção”.12 À medida que se desenvolve, enfraquece e até destrói suas condições de produção. Se o petróleo barato permitiu durante mais de um século o funcionamento daquilo que Timothy Mitchell chama de “democracia do carbono”,13 sua escassez aumenta consideravelmente os custos da indústria. O capital precisa dessas condições de produção, mas não consegue evitar que, por sua ação, as fontes se esgotem. É o que O’Connor chama de “segunda contradição” do sistema: aquela entre o capital e a natureza, ao passo que a primeira opõe o capital e o trabalho.

Essas duas contradições se entrelaçam: o trabalho humano gera valor transformando a natureza. A primeira contradição conduz a uma baixa tendenciosa da taxa de lucro, ou seja, ao surgimento de crises profundas do sistema. A segunda induz a um encarecimento crescente da manutenção das condições de produção, que pesa igualmente na queda da taxa de lucro, pois volumes crescentes de capitais empregados nessa manutenção – por exemplo, para pesquisas de reservas de petróleo, cujo acesso está cada vez mais difícil – não são transformados em lucro.

Nessa configuração, o Estado moderno tem um papel de interface entre o capital e a natureza: ele regula o uso das condições de produção para que elas possam ser exploradas. O objetivo do ecossocialismo consiste em desfazer o tríptico formado pelo capitalismo, a natureza e o Estado. Trata-se de impedir este último de trabalhar a favor dos interesses do capital e reorientar sua ação a favor do bem-estar da população e da preservação do equilíbrio natural. A conferência Paris Climat 2015 (COP 21), na qual o governo do presidente François Hollande parece estar depositando grandes esperanças, oferecerá ao movimento global pela justiça climática uma chance de expressar essa reivindicação.

Listas negras

O seguro moderno é indissociável do resseguro – o “seguro das seguradoras” –, que o segue como sua sombra. Ele permite às seguradoras se prevenirem contra riscos que julgam importantes, por isso contratam um seguro para seguros. O mecanismo é o mesmo que no grau inferior: a seguradora paga um montante à resseguradora, que lhe pagará indenizações caso ocorra algum sinistro. Esse montante normalmente é reinvestido pela resseguradora em outros títulos financeiros, cujos lucros servem para reembolsar as seguradoras. Sendo assim, as resseguradoras ocupam desde o século XIX a vanguarda da finança internacional. O setor – hoje em dia dominado pelas companhias Munich Re (fundada em 1880) e Swiss Re (criada em 1863) – surgiu após incêndios que devastaram grandes cidades. Em 1842, Hamburgo ardeu em chamas; as seguradoras alemãs entraram em situação de calamidade, e assim nasceu o resseguro.

Diversos tipos de risco reviraram o setor recentemente: terrorismo, riscos tecnológicos e multiplicação de desastres naturais – principalmente por causa das mudanças climáticas – com custos cada vez mais elevados. A Swiss Re produz dados anuais bem completos, compilados em uma revista chamada Sigma, sobre a amplitude dos desastres humanos e seus danos materiais.1 Os números tratam principalmente dos bens assegurados, ou seja, dos totais que as seguradoras e resseguradoras pagaram a seus clientes. Nela é possível constatar que, nos países em desenvolvimento, apenas 3% dos bens perdidos são segurados, contra mais de 40% nos países desenvolvidos.2

Com US$ 75 bilhões, o furacão Katrina, que atingiu a região de Nova Orleans em 2005, é considerado até hoje o episódio mais custoso da história em danos segurados desde 1970 – época na qual esses dados começaram a ser compilados. A conta sobe para até US$ 150 bilhões se adicionarmos os bens não assegurados. Aparecem em seguida na lista o terremoto seguido de um tsunami no Japão em 2011 (US$ 35 bilhões) – que ocasionou a catástrofe nuclear de Fukushima –, o furacão Andrews de 1992 nos Estados Unidos (US$ 25 bilhões) e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 (US$ 24 bilhões); estes últimos foram os mais custosos na categoria que a Swiss Re chama de “técnicos”, ou seja, sem relação com um fenômeno natural.

Na França, em 2003, ano da onda de calor, o custo agregado dos cataclismos naturais passou de 2 bilhões de euros, um recorde para o país. Nos últimos vinte anos, o principal risco natural eram as inundações, seguidas pelas secas. Dos 25 desastres mais custosos no período entre 1970 e 2010, mais da metade ocorreu após 2001. O número de furacões de categoria 4 ou 5 dobrou em 35 anos (5 é a força máxima dos ventos).

Esse tipo de acontecimento pode ter um custo material elevado e um custo humano baixo, e vice-versa. Os mais mortíferos foram as tempestades e inundações causadas em 1970 pelo ciclone Bhola em Bangladesh (Paquistão Oriental na época) e no estado indiano de Bengala, que fez em torno de 300 mil vítimas. Em terceiro lugar está o tremor de terra no Haiti em 2010, com 222 mil mortos. A onda de calor e a seca europeia em 2003, que provocaram a morte de 35 mil pessoas, ficam em 12o segundo lugar na lista. Aliás, esse é o pior desastre na Europa, que ocupa com os Estados Unidos as mais altas posições do ranking de desastres mais custosos financeiramente. Isso comprova, se necessário, o impacto do desenvolvimento econômico sobre mortalidade nessas situações.

No ano de 2011 – último com números disponíveis –, a Swiss Re contabilizou 325 catástrofes, das quais 175 foram consideradas “naturais” e 150 “técnicas”. A essa segunda categoria, a resseguradora julgou sábio acrescentar… a Primavera Árabe. (R.K.)


*Razmig Keucheyan Conferencista de Sociologia da Universidade Paris-Sorbonne

Ilustração: Patricio Bisso

1 Imelda V. Abano, “Philippines mulls disaster risk insurance for local governments” [Filipinas refletem sobre seguros contra riscos de desastres com governos locais], Thomson Reuters Foundation, Londres, 22 jan. 2014.

2 Cenas burlescas foram descritas por Michael Lewis, “In nature’s casino” [No cassino da natureza], New York Times Magazine,26 ago. 2007.

3 Erwann Michel-Kerjan (org.), “Catastrophe financing for governments: learning from the 2009-2012 Multicat Program in Mexico” [Financiamento de catástrofes pelos governos: aprendendo com o Programa Multicat do México de 2009-2012], OECD Working Papers on Finance, Insurance and Private Pensions, n.9, Paris, 2011. Esse relatório serve de fonte para os dois próximos parágrafos.

4 “Advancing disaster risk financing and insurance in ASEAN countries. Framework and options for implementation” [Avançando sobre financiamento e seguros contra riscos de desastres nos países da Asean. Quadro e opções de aplicação], Banco Mundial, Washington, abr. 2012. Disponível em: .

5 Cf. “Insurance in the emerging markets: overview and prospects for Islamic insurance” [Seguros nos mercados emergentes: visão geral e prospecção para seguros islâmicos], Sigma, n.5, Zurique, 2008.

6 Ler Donatien Garnier, “Au Bangladesh, les premiers réfugiés climatiques” [Em Bangladesh, os primeiros refugiados climáticos], Le Monde Diplomatique, abr. 2007.

7 Frédéric Morlaye, Risk management et assurance [Gerenciamento de riscos e seguro],Economica,Paris, 2006.

8 Melinda Cooper, “Turbulent worlds: financial markets and environmental crisis” [Mundos turbulentos: mercado financeiro e crise ambiental], Theory, Culture & Society, n.27, Londres, 2010.

9 Para uma história desses produtos financeiros, cf. William Cronon, Nature’s metropolis. Chicago and the Great West [Metrópoles da natureza. Chicago e o Grande Oeste], WW Norton, Nova York, 1992, capítulo 3.

10 John E. Thornes, “An introduction to weather and climate derivatives” [Uma introdução para derivativos climáticos e de tempo], Weather, v.58, Reading (Reino Unido), maio 2003; Samuel Randalls, “Weather profits. Weather derivatives and the commercialization of meteorology” [Lucros sobre o clima. Derivativos climáticos e a comercialização da meteorologia], Social Studies of Science, n.40, Kingston, 2010.

11 Cf. James T. Mandel, C. Josh Donlan e Jonathan Armstrong, “A derivative approach to endangered species conservation” [Uma abordagem derivativa para a conservação de espécies ameaçadas], Frontiers in Ecology and the Environment, n.8, Washington, 2010.

12 James O’Connor, Natural causes. Essays in ecological marxism [Causas naturais. Ensaios sobre ecologia marxista], Guilford Press, Nova York, 1997.

13 Timothy Mitchell, Carbon democracy. Le pouvoir politique à l’ère du pétrole [Democracia do carbono. O poder político na era do petróleo], La Découverte, Paris, 2013.

14 Cf. e especialmente “Catastrophes naturelles et techniques en 2011” [Catástrofes naturais e técnicas em 2011], Sigma, n.2, Zurique, 2012. Os dados apresentados provêm desse exemplar.

15 Koko Warner et al., “Adaptation to climate change. Linking disaster risk reduction and insurance” [Adaptação às mudanças climáticas. Ligações entre redução de riscos de desastres e seguros], Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), 2009.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/quando-a-catastrofe-climatica-vira-produto-financeiro/)

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Por mais parques — e menos cinzentos (Breno Castro Alves)

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Surgem, em S.Paulo, coletivos dispostos a lutar pelos espaços públicos e a geri-los de modo não burocrático. Mídia, enquanto isso, torce por espigões

Por Breno Castro Alves

Em tempos de voracidade do capital imobiliário, o Parque Augusta — última área livre de mata atlântica no centro de SP — sofre a ameaça real de ser transformado em duas torres de 100 metros. A Folha de São Paulo atuou, esses dias, como porta voz das incorporadoras Setin e Cyrella.

Apesar de o jornal afirmar que ali haverá torres, o prefeito Fernando Haddad sancionou, em dezembro de 2013 a a Lei 345/2006, que determina a criação do parque público na área disputada. Há resistência engravatada. Dois dias depois da aprovação dessa lei, as incorporadoras Setin e Cyrella, sócias do proprietário e ex-banqueiro Armando Conde, fecharam ilegalmente os portões de acesso ao parque, que se mantém assim há 90 dias.

Em resposta a essa restrição ilegal à circulação de pessoas em espaço público, um movimento social — o Organismo Parque Augusta — articulou-se e iniciou diálogo formal com a prefeitura, em 25 de março. Publicamos aqui uma carta pública com nosso posicionamento a partir deste encontro.

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O Organismo, que defende a gestão popular de um parque 100% público, está cobrando a participação da gestão Haddad na construção da política pública que vai garantir o cumprimento da lei já aprovada pelo prefeito. Entendemos ser necessária a participação de, no mínimo, as secretarias de Desenvolvimento Urbano, Verde e Meio Ambiente, Educação, Cultural, Governo, Subprefeituras, além dos outros órgãos da máquina pública descritos na carta. Os objetivos a que pretendemos chegar com essa mobilização estão descritos no site Parque Augusta (http://www.parqueaugusta.cc).

Ao aprofundar este processo político que propomos, descobrimos que não estamos sós. Encontramos a luta de diversos outros parques municipais ameaçados. São 130, segundo a secretaria do Verde — e há gente que começa a lutar por eles. O Organismo Parque Augusta participou do I Ato em Defesa dos Parques Ameaçados em SP. Aconteceu dia 31, no centro da cidade. Contou com a participação dos parques Águas Espraiadas, Brasilândia, Embu-Mirim, Minhocão, Augusta, Mooca, Morro do Querosene, Peruche, Pinheiros e Vila Ema. Terminou com a criação da Rede Novos Parques SP.

A Rede se propõe a pensar uma política pública que primeiro garanta a integridade física de todos os parques da cidade, para depois desenvolver um processo de abertura para as comunidades ao redor, construindo experiências de gestão popular nestes espaços.

Propomos um ciclo aberto de debates e pesquisa sobre os parques da cidade e entendemos que a Virada Cultural é cenário ideal para essa realização. O evento, que traz a ocupação do centro em seu dna, poderá amplificar e democratizar o debate, envolvendo população e prefeitura na construção dessas soluções necessárias.

Aqui, carta aberta do Organismo Parque Augusta sobre o ínicio de nossa conversa com a prefeitura e o convite ao diálogo que estendemos a toda a gestão Haddad.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/10/por-mais-parques-e-menos-cinzentos/)

Dieta perigosa para o planeta (Taís González)

QUE1 QUERÊNCIA 29/01/2008  VIDA & DESMATAMENTO QUERÊNCIA MATO GROSSO  . FOTO: JF DIORIO/AE


Pesquisa sueca revela: aumento do consumo de carne e laticínios pode ter efeitos devastadores sobre clima. Mudança de hábitos alimentares deveria começar rapidamente

Por Taís González

O Painel Intergovernamental da Mudança do Clima (IPCC) afirma ser imperativo evitar que a temperatura da terra eleve-se em mais de 2ºC, em relação aos níveis pré-industriais. Para tanto, instituições como o Programa da ONU para Meio Ambiente (PNUMA) já haviam alertado para a necessidade de reduzir o consumo de proteínas animais. Agora, cientistas da Universidade de Tecnologia Chalmers, na Suécia, deram caráter preciso a esta recomendação. Um estudo recente realizado por eles calcula que, caso não haja mudanças na estrutura de produção e consumo dos alimentos humanos, as emissões de gases do efeito-estufa provenientes da pecuária (óxido nitroso e metano) podem dobrar, até 2070. Ela passará das 7,1 gigatoneladas, registradas em 2000, para 13 gigatoneladas, em 2070.

Os números importam muito. De acordo com a pesquisa, a criação de animais é responsável por 25 a 30% dos gases de efeito-estufa produzidos pela atividade do ser humano. Significa que, para alcançar a meta de limitar o aquecimento global em 2ºC e evitar as piores consequências das mudanças climáticas, não basta reduzir a queima de combustíveis fósseis.

“A mudança de dieta exite um longo tempo. Já deveríamos estar pensando em como tornar nossa alimentação menos perigosa para o clima”, afirmou Fredrik Hedenus, um dos autores do estudo. O cientista acredita que uma dieta vegana pode reduzir até 95% dos gases de efeito-estufa procedentes da alimentação (aqui, em sueco). Hedenus defende o imposto sobre o carbono para o setor pecuário, mas admite que esta é uma ação complexa. “O problema fundamental que temos hoje é que a pecuária não paga pelos seus custos climáticos. No entanto, é difícil taxar as emissões do setor, já que essas emissões consistem principalmente do metano dos estômagos do gado e do óxido nitroso dos campos.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/10/dieta-perigosa-para-o-planeta/)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Água: Brasil vive crises que marcarão o século (Cândido Grzybowski)

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca

Represa de Bragança Paulista, no interior de SP, que faz parte do sistema Cantareira, está quase seca
Perspectiva de racionamento em S.Paulo e disputas pelo Rio Paraíba sugerem: políticas atuais levarão a desastre. É preciso tratar recurso como Bem Comum

Por Cândido Grzybowski*, via Carta Maior

A água bem merece um dia seu no nosso calendário, o 22 de março. Este reconhecimento só se deu em 1993, após a Eco-92. No fundo, deveríamos celebrar a água todos os dias, o dia inteiro. Mas só lembramos dela na sua falta ou no seu excesso. Quem vive em territórios áridos ou semiáridos, dada a sua relativa escassez, organiza a vida em torno à água. No Brasil, isto vale para a grande Região Nordeste, que possui 30% da população brasileira e só 3% da água. São seculares as secas no Nordeste, tanto quanto a nossa incapacidade de gerir a questão. Afinal, no nosso semiárido até chove mais do que na Argélia, por exemplo. Por que, com mais água, nosso povo sofre tanto?

Açudes, represas e poços foram feitos ao longo do tempo para estocar água, mas muito investimento acabou sendo privatizado pelo nosso secular patrimonialismo, que beneficia sistematicamente os grandes proprietários de terras. Mas, há que se reconhecer, é no Nordeste rural que, nos anos recentes, se desenvolve a experiência participativa mais promissora de gestão da água: a Articulação do Semiárido Nordestino, com a experiência de construção comunitária de cisternas familiares coletoras de águas das chuvas, já mais de 500 mil.

Nada, porém, como um verão tórrido e seco, como este de 2014, para a gente pensar na bendita água. Isto é particularmente relevante para as duas maiores regiões metropolitanas do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro. Para milhões de pessoas a água faltou nas torneiras e chuveiros. As notícias e as imagens alarmantes de represas vazias e o inevitável racionamento, especialmente em São Paulo, apavoram. A enorme estiagem significa também reservatórios hidrelétricos no limite e possibilidade de falta de eletricidade logo aí. Enfim, é a água mostrando que está nas nossas vidas mais do que a gente pensa.

Mas também esquecemos. Estamos vendo imagens de enormes inundações na Região Amazônica. Como seria bom se tanta água fosse melhor distribuída. No entanto, esquecemos que em dezembro, alguns meses atrás, as inundações foram aqui na Região Sudeste. A Baixada, na área metropolitana do Rio, foi devastada por duas enxurradas antes do Natal. O pior aconteceu no Espírito Santo, que quase virou mar. Bem: agora, a seca. Será que isto tudo são catástrofes? Ou não sabemos lidar com a água?

A água e a vida

Não existe vida sem água. E a água mal gerida por nós pode significar morte. É tão simples e trágico assim!  A água ocupa um dos lugares centrais no ciclo da vida e do conjunto de sistemas ambientais que regulam a vida, o clima e a própria integridade do planeta Terra.

A água é tão presente no nosso cotidiano que a gente só lembra dela quando falta. É como o ar que respiramos, nunca pode faltar. Mas como somos negligentes com a água! Esperamos que ela flua, venha até nós e passe, pronto. Esquecemos que sem ela não há vida, nenhuma vida. No nosso modo de vida, ainda mais em grandes metrópoles, vivemos um cotidiano sem pensar na água, como se não fosse algo relacionado a uma condição vital, que deveria estar no centro da própria organização social urbana.

Como recurso natural, a água é um estoque dado, uma quantidade na natureza de tamanho determinado: 97,5% da água forma os mares, mas só uma pequeníssima parcela da água doce restante é disponível para consumo, pois muita água está congelada ou armazenada no alto de cordilheiras e na Antártida. A água doce seria suficiente não fosse a forma predatória como a utilizamos. Ela se mantém e renova num ciclo ambiental definido: dos estoques em aquíferos, flui para nascentes, córregos, riachos, rios e deságua no mar, evapora, forma nuvens, chove, irriga a terra e alimenta os aquíferos, e o ciclo recomeça. Isto, de um modo simplificado, mostra o funcionamento de um dos sistemas mais essenciais e, ao mesmo tempo, mais ameaçados hoje em dia, que está no centro das mudanças climáticas.  A água é um sistema ambiental complexo, que afeta outros sistemas fundamentais e é por eles afetado: atmosfera e clima, biodiversidade e florestas, oceanos e evaporação. A água fresca, tão essencial, como estoque dado, precisa se renovar no seu ciclo natural.

São afetados e interagem com a água, condicionando, portanto, a vida, toda a vida, mudanças provocadas pela ação humana sobre o meio ambiente: as mudanças climáticas, a acidificação dos oceanos, as emissões de aerosol e o buraco de ozônio, o uso da terra, a perda da biodiversidade, a composição química do meio ambiente (poluição). Hoje a humanidade é uma força que afeta o funcionamento do conjunto dos sistemas ambientais vitais, ultrapassando os umbrais do tolerável para que eles funcionem e não provoquem mudanças imprevisíveis e irreversíveis.

Tomando o exemplo da água, precisamos pensar como formamos o nosso habitat humano, os territórios em que nos organizamos como sociedade. Talvez o exemplo mais emblemático dessa distorção seja o da água mesmo. As águas, pelo seu próprio ciclo, são complexos sistemas de drenagem com suas bacias hidrográficas. Elas estão no centro natural de territórios de todo planeta. No entanto, ao longo da história, tendemos a transformar as bacias em fronteiras humanas, ao invés de sistemas naturais integradores. Quantos rios no mundo não passam de fronteiras entre países! E pior, mesmo no interior de Estados, muitos rios e baciais são fronteiras naturais entre divisões territoriais, chegando até a pequenas unidades administrativas, como os municípios entre nós.

Enfim, neste exemplo sobre a água é possível examinar a tragédia que a ação humana pode provocar. Estamos diante de uma ruptura insustentável entre humanidade e natureza — na religião, na filosofia, na economia, na política, na organização social e no conjunto de nossas práticas pela sobrevivência. Negamos a nossa própria condição de natureza e nos consideramos acima dela, feitos para dominá-la, para violar os seus segredos, segundo Bacon. Agredimos a natureza sem ética, como que negando a ela o direito de ser o que é. O desastre está na nossa porta. A ruptura entre natureza e seres humanos é a causa da insustentabilidade do modo de vida que temos. A água é o exemplo mais palpável.

A crise mundial da água

Já estamos vivendo a crise mundial da água, mas fazemos de conta que não. A humanidade é a principal causa de mudança no ciclo de água fresca, que torna possível a vida no planeta Terra. Hoje, estima-se que 80% dos rios no mundo estão em perigo e 25% deles chegam secos antes de desaguar no mar, o que se soma ao fato de já termos passado do limite natural na acidificação dos oceanos (RISILIANCE ALLIANCE,  2012). Nunca é demais lembrar aqui a tragédia do rio Jordão, no centro da guerra territorial entre Palestina e Israel, que chega seco ao mar Mediterrâneo devido ao uso intenso de suas águas para irrigação pelos israelitas. A antiga União Soviética, devido ao intenso uso agrícola, secou um imenso lago na Europa Central.

Segundo Maude Barlow, do Council of Canadians, a cada dia jogamos de esgoto e de resíduos industriais e agrícolas no sistema mundial de águas o equivalente ao peso mundial de toda a população humana (2 milhões de toneladas). A indústria de mineração no mundo deixa nos territórios, como veneno, o equivalente a cerca de 800 trilhões de litros, a cada ano. Estima-se que  um terço de todo o fluxo de água é usado hoje para a produção de agroenergia, água suficiente para satisfazer a necessidade de toda a população mundial. Por isto, a água é uma das maiores ameaças ecológicas para a humanidade. A água contaminada mata mais crianças por dia do que HIV-AIDS, malária e as guerras juntas (BARLOW, 2010).

Não falta água, nós é que criamos a escassez de água pelo modo com que a usamos. Devido à escassez criada, a água se transformou num negócio global. Por que? Para que? Nada mais emblemático do absurdo do negócio da água do que o trágico acidente no grande túnel de passagem entre Itália e França no Mont Blanc, anos atrás. O acidente foi provocado por dois caminhões… carregados de água, um da Itália para a França e outro da França para a Itália!

Estamos diante de um iminente risco da água virar mais uma commodity, de ser transformada em um produto comercializável, que se adquire pelo preço determinado de quem a explora. Aliás, isto é precisamente o que está sendo proposto sob o belo nome de economia verde e sustentável, que estende o domínio do capitalismo e dos mercados a toda a natureza e seus chamados “serviços”. Está em jogo o próprio direito de viver. Cobrar taxa para que a água jorre na torneira de casa, um direito fundamental, já é discutível. Mas ter que pagar pelo monopólio privado da água é estar submetido a uma violação absurda de um direito básico.

A gradativa escassez gerada e a mercantilização da água afetam tudo na vida humana e na natureza: a diversidade de culturas humanas, a biodiversidade natural, o alimento, a segurança ecológica e o funcionamento dos sistemas ambientais, que vão do sequestro de carbono da atmosfera, da resiliência dos sistemas aquáticos e terrestres, à regulação do clima. A água, num certo sentido, resume nela a crise do desenvolvimento que temos, que produz luxo e lixo ao mesmo tempo, tudo em nome da acumulação de riquezas.


As lutas pela água

Neste final de verão e início de outono, entre tantas questões que alimentam as inquietações do nosso cotidiano, surgiu a questão do uso das águas do rio Paraíba do Sul. Com nascentes em São Paulo, mas correndo em direção ao Nordeste, sendo o principal rio e atravessando todo o Estado do Rio de Janeiro, suas águas viraram uma controvérsia federativa. Com falta de água, São Paulo quer interligar a bacia do Paraíba do Sul ao sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, hoje sob ameaça de “estresse” hídrico. Sem entrar nos meandros técnicos, o fato soa como uma ameaça,  uma guerra federativa. Por que? Não desenvolvemos uma cultura de gerir nossas águas como um bem comum.

A água já está no centro de importantes conflitos sociais pelo mundo. A lista de exemplos é longa. Basta lembrar alguns. Além da disputa do rio Jordão entre Palestina e Israel, importa lembrar aqui a questão do Tibet, ocupado militarmente pela China por causa exatamente da água, pois os dois grandes rios chineses são abastecidos naturalmente pelo degelo das montanhas do Himalaia. Em 2000, devido à tentativa de privatização do abastecimento de água em Cochabamba, na Bolívia, explodiu a guerra popular pela água, obrigando o governo a rever a sua decisão. Na Índia, alastrou-se um grande movimento contra a Coca-Cola, devido ao crescente controle dessa multinacional de refrigerantes de fontes naturais de água fresca, logo num país onde a água não é exatamente abundante. Cabe lembrar que a Coca-Cola usava 3 litros de água fresca para produzir 1 litro de seu refrigerante. Foi em Mumbai, na Índia, em 2004, durante o Fórum Social Mundial, que a comercialização da Coca-Cola foi proibida no espaço de realização do evento. Talvez isto tenha ajudado a empresa a adotar práticas um pouquinho mais responsáveis, pois em 2009, conforme publicação da própria empresa, se consumia 2,04 litros de água para cada litro de produto (COCA-COLA, sd).

Mas a água não é só disputada pelo seu consumo imediato. Ela representa complexos sistemas, que muitas vezes são agredidos em nome do desenvolvimento. No momento, é possível ver isto na questão que envolve a construção das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, e de Belo Monte, no Xingu.  O uso da água para gerar energia elétrica é uma forma de extrativismo agressivo social e ambientalmente, apesar de ser contabilizada como energia limpa nas estatísticas do país. Para construir hidrelétricas é preciso agredir o rio e o que ele significa para a população que vê no rio agredido uma parte fundamental de seu território e seu modo de vida. Na bacia do Xingu vivem importantes povos indígenas, com seu direito ao território reconhecido em nossa constituição democrática.

Interessante lembrar aqui o caso de Itaipu, hidrelétrica construída pela ditadura nos anos 70 do século passado. O Rio Paraná, em Itaipu, é fronteira entre Paraguai e Brasil. Para usá-lo na produção de energia foi importante um acordo que divide ao meio, entre os dois países, a energia produzida. Mas como ficou a população a ser “inundada”? Eram milhares de pequenos produtores familiares só do lado brasileiro. O processo de exclusão da área foi feito à força, com indenizações que não garantiam a reprodução das mesmas condições de vida em outro lugar. Surgiu, então, o movimento dos atingidos por barragens e, dado que havia sem-terra, o MST tem uma da origens por lá. Acontece que ninguém pensou nos índios Guaranis, ocupantes ancestrais de todo o território. Só depois, muito depois, é que a questão mereceu atenção e foram cedidos territórios específicos para os Guaranis. Mas o interessante é como a questão da água do rio mudou no decurso do tempo. Usina hidrelétrica depende de água como qualquer ser vivo. O Oeste do Paraná é uma das áreas de maior intensidade de exploração agrícola e pecuária intensiva. O assoreamento do lago de Itaipu avançava espantosamente.

Foi por iniciativa da própria Itaipu que, desde 2003, se desenvolve o exemplar programa “Cultivando Água Boa”, de sustentabilidade das águas e do modo de vida dos municípios brasileiros do entorno. Á água, ontem agredida e usada como mero recurso, hoje é cuidada, das microbacias dos rios, que alimentam o lago, ao alimento orgânico produzido para as escolas da região.

Enfim, existem conflitos sociais porque a água é de algum modo ameaçada como bem comum, que está aí no centro de toda a vida. O aprisionamento da água para o seu uso privado, para a sua mercantilização direta ou na forma de minérios, energia, insumo na produção agrícola e industrial, é o que a torna escassa e motivo de disputa. Na verdade, hoje em dia, todos os conflitos de água se referem a territórios específicos, territórios entendidos como as condições dadas, as naturais e as criadas pela ação humana passada, e os modos de vida atuais que os organizam. Aí a água pode ser tratada como um mero recurso natural, na visão de empresas e, muitas vezes, governos, ou como um bem essencial à própria vida de quem aí vive. A disputa, simplificadamente, é entre tais visões diametralmente opostas.

A Água como bem comum

Aqui é essencial destacar a água como bem comum fundamental da vida, de toda vida. Os bens comuns, ou simplesmente comuns, são parte intrínseca da integridade das condições de vida de todos e todas. São bens comuns: o próprio planeta Terra,  a atmosfera (o ar e o clima), o espaço sideral (órbitas geoestacionárias) e o espectro de ondas (para frequências de comunicação), a biodiversidade, as terras férteis, as montanhas, os oceanos, os rios, as águas….Bens que existem em um estoque dado. São também comuns bens produzidos como a língua e a cultura, o conhecimento, a informação, a internet… , todos bens que se multiplicam e se enriquecem com o seu uso humano. A cidade, como um conjunto coletivo, é um bem comum, convivendo com propriedades privadas  de casas, apartamentos, casas comerciais e de serviços, indústrias, em seu interior. Nenhum bem é comum por si, torna-se comum, faz-se comum pelas relações sociais (ver: VIEIRA, 2012; HELFRICH et alii, 2009; GRZYBOWSKI, 2011).

O que faz um bem ser comum é o indispensável compartilhamento e o necessário cuidado. A percepção da necessidade de compartilhar e cuidar de certos bens leva os grupos humanos a se organizar e a tratá-los como comuns. Por isto é que socialmente se criam bens comuns. Voltar a tornar comum o que foi privatizado está no centro de muitas indignações e insurgências pelo mundo. O caso da água é um dos mais evidentes e emergentes hoje em dia. A água só é garantida de fato quando tratada como bem comum. No Fórum Social Mundial, ainda na primeira edição em 2001, em Porto Alegre, começou a se formar a rede mundial do direito à água como bem comum, uma das maiores redes de cidadania no mundo. Na luta contra a privatização e pela volta a formas de tratar a água como bem comum vale lembrar aqui os casos de Roma e de Paris, hoje com o abastecimento de água sob a gestão da municipalidade e sob controle direto cidadão.

Ser comum é ser um direito coletivo. Não é uma questão de propriedade. Não é “de ninguém”, mas de todos. Não é só ser público que garante ser de todos. O ar é comum porque é de todos, mas é difícil imaginá-lo público ou, ainda mais difícil, privado.  A rua é comum porque pública, também de todos, mas temos experiências de sobra sobre a sua privatização, com cancelas e guardas armados. A água é um direito coletivo porque comum, só que pode ser privatizada na medida em que pode ser aprisionada. Não é automático que a gestão pública da água a trate como um bem comum, mas estar sobre gestão pública muda a natureza do conflito pelo direito coletivo à água.

O privado é o que é controlado privadamente, segundo interesses particulares. O que é público, controlado ou não pelo Estado, deve atender a interesses coletivos, de todas e todos. Mas para isto necessariamente precisa ser visto e tratado como um comum, um direito igual de todos e todas da coletividade. Só a cidadania em ação pode garantir o caráter comum de um bem.  A água merece ser mais do que uma tragédia, por sua falta ou excesso. Está no hora de instituirmos publicamente a água como um bem comum. Não esqueçamos que somos gestores de 12% da água doce do mundo!

Para finalizar

Toda a minha análise sobre a água tem como referência o indispensável tratamento que devemos a ela como um bem comum vital. Devemos trazê-la para a agenda pública, para o centro da ação cidadã. Não vamos conseguir enfrentar nossos problemas de justiça social e ambiental sem resgatar a água do seu aprisionamento como recurso na produção e como mercadoria rara por agressivas forças privatizantes. Mas não vamos progredir muito sem lutar para que o Estado garanta o caráter comum da água, como bem a ser compartilhado entre todos e todas, sem discriminações e exclusões.

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(*) Sociólogo, diretor do Ibase

(**) Este artigo é uma adaptação e atualização de palestra do autor no Seminário “Sustentabilidade – Múltiplos Olhares: Água e Saneamento & Resíduos Sólidos”, organizado pelo Museu Ciência e Vida, Fundação CECIERJ, Duque de Caxias, 07/11/2012.

Referências

• BARLOW, Maude. “Every now and then in history, the race takes a collective step forward in ist evolution”. On the Commons. 2010 (Disponível em: <http://onthecommons.org-commons-future-already-here>. Acesso em 15 out 2012)

• COCA-COLA Brasil. Guia de Sustentabilidade. sd

• GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos para a biocivilização. Rio de Janeiro, Ibase, 2011 (Disponível em <http://www.ibase.br/pt/wp-content/uploads/2011/08/Caminhos-descaminhos.pdf>

• HELFRICH, Silke et alii. Biens Communs – La prospérité par le partage. Berlin, Heinrich Böll Stiftung, 2009.

• O GLOBO. Amanhã. Rio de Janeiro, 11/03/2014

• RESILIENCE ALLIANCE. Planetary Boundaries: exploring the safe operatin space for humanity. Ecology and Society. London, v.14 (Disponível em <www.ecologyandsociety.org/vol14/art32> Acesso em 15 out 2012)

• VIEIRA, Miguel Said. Bens comuns intelectuais e bens comuns globais: uma breve revisão crítica. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2012.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17002)

sábado, 29 de março de 2014

Transporte público elétrico, o novo passo do Uruguai (Inés Acosta)

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Em luta por matriz energética limpa, Montevidéu testa ônibus e táxis alimentados na tomada e descobre: subsídio oculto à gasolina é maior que imaginado

Por Inés Acosta, no Envolverde

Substituir pouco a pouco o petróleo pela energia elétrica no transporte público é a aposta do Uruguai, que atualmente avalia o rendimento e os custos de incorporar essa tecnologia. Os testes mostram que o ônibus elétrico pode reduzir entre seis e oito vezes o custo de funcionamento de um modelo a diesel.

No final de 2013, foram feitas provas de rendimento e autonomia de um automóvel modelo E6 e de um ônibus K9 da empresa chinesa BYD. E no dia 13 deste mês os resultados foram divulgados. A análise econômica do rendimento dos veículos elétricos, realizada pela prefeitura de Montevidéu, deu resultados positivos. Mas alerta-se que é preciso projetar mecanismos para enfrentar o investimento inicial e redefinir o alcance de subsídios e impostos.

O benefício econômico geral de um ônibus elétrico é de 1,7 ponto frente a um motor a diesel, segundo esse estudo que levou em conta custos de aquisição, manutenção e funcionamento dos diferentes tipos de veículos no atual cenário fiscal e de subsídios. Nos táxis, a diferença é de 1,8 para um entre os elétricos e os movidos à gasolina, e de 1,4 para um com relação aos que usam diesel.

Quanto ao gasto energético, é seis vezes menor no motor elétrico com relação ao diesel. Mas 65% do gasto dos ônibus com este combustível fóssil é subsidiado pelo Estado, por isso para os empresários não é rentável mudar para a eletricidade, se não forem modificados os subsídios.

A iniciativa faz parte da política energética uruguaia, que pretende que, a partir do próximo ano, metade de sua matriz energética seja composta por fontes renováveis, com grande presença da eólica. O Grupo Mobilidade Elétrica, integrado por vários organismos nacionais e da prefeitura da capital, trabalha desde 2012 para implantar essa tecnologia, que permite, por exemplo, zero emissão de gases-estufa.

Esses veículos funcionam com um banco de baterias de lítio e fosfato de ferro, uma tecnologia biodegradável que não inclui metais pesados. O carro e o ônibus têm autonomia de 300 e 250 quilômetros por carga, respectivamente. São carregados em uma rede elétrica que deve ter potência de dez quilowatts/hora, quando a das casas uruguaias oscila entre dois e seis quilowatts/hora.

O preço é cinco vezes superior ao dos veículos movidos a combustíveis fósseis no Uruguai. Um ônibus custa US$ 500 mil e um carro US$ 60 mil, mas os gastos de funcionamento e manutenção representam apenas 10% dos com motor a diesel.

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O diretor nacional de Energia, Ramón Méndez, explicou ao Terramérica que uma carga completa da bateria de um automóvel, com tarifa padrão uruguaia, custaria cerca de US$ 10. Além disso, acrescentou, o país poderia assumir o consumo energético, porque em 2015 se converterá em exportador de energia. Desde 2005, o “Uruguai está instalando tanta quantidade de geração elétrica nova quanto foi feito nos cem anos anteriores da história elétrica de nosso país”, destacou.

O transporte absorve um terço da energia que se consome. “Anualmente, são gastos mais de US$ 2 bilhões em combustível”, afirmou Méndez. Por isso, o que se fizer “no setor poderá significar centenas de milhões de dólares de economia a cada ano para o país”, acrescentou, ressaltando que “o veículo elétrico é o caminho para onde o mundo em geral, e o Uruguai em particular, irão”.

Com veículos elétricos, o transporte, que agora depende de derivados de petróleo, passaria a funcionar a partir de fontes como eólica, biomassa e fotovoltaica. “Isso significa redução de custos e mais soberania”, destacou o chefe da Direção Nacional de Energia. Ele acrescentou que, “enquanto não encontrarmos petróleo em nosso país, em lugar de depender do que temos que importar a preço elevado e totalmente incerto, podemos ter a garantia de que instalamos mais parques eólicos e podemos também atender as necessidades do transporte”.

Mas são necessários ajustes. O Uruguai gasta US$ 100 milhões anuais com subsídio para o diesel no transporte público, explicou ao Terramérica o diretor de Mobilidade da Prefeitura, Néstor Campal. “Se esse dinheiro for usado de outra forma, melhorando a infraestrutura para os veículos elétricos, cujo custo operacional é menor, ganharemos uma tecnologia com muitíssimos benefícios ambientais e de outras naturezas”, afirmou. A seu ver, deve-se modificar a legislação “para que o subsídio opere equilibrando os dois sistemas”.

O ministro dos Transportes, Enrique Pintado, declarou que o “subsídio recebido pelo transporte não pode ter o contrassenso de ‘quanto mais gastar mais subsídio terá’. É preciso ter prêmios para a redução do consumo”. Ele também afirmou que o preço da passagem “tem de baixar não por força de subsídios, mas em função de um preço menor na realidade. Isso significa ser muito mais eficiente na gestão das empresas e na baixa dos custos energéticos, de insumos e das unidades”.

“Estamos assentando as bases para os próximos governos departamental e nacional serem capazes de concretizar o que hoje estamos lançando”, afirmou Pintado durante a apresentação da avaliação dos veículos elétricos. O custo tributário é outro aspecto que deve ser revisto para promover a mobilidade elétrica. A tarifa de importação dos ônibus elétricos é de 23% e para os movidos a diesel é de 6%, e estes estão isentos do imposto específico interno (Imesi). Já os táxis elétricos importados têm um Imesi preferencial de 5,75%, contra ao de 11,5% para os movidos a motor diesel.

Para definir benefícios fiscais a fim de promover essa tecnologia, o Ministério da Economia e das Finanças se integrará ao Grupo Mobilidade Elétrica.

Táxis primeiro

Este ano começarão a circular na capital uruguaia os primeiros 50 táxis elétricos. Também nas frotas de Bogotá e Londres estão sendo incorporados veículos elétricos, destacou Campal. Já circulam em Hong Kong e na cidade chinesa de Shenzhen, onde são fabricados.

Porém, ainda não está definido como serão implantados os pontos de carga das baterias para táxis e ônibus, pontuou Méndez. Além disso, a empresa estatal de eletricidade adquiriu 30 caminhonetes elétricas Kangoo Maxi Z.E., da empresa francesa Renault, para sua frota de trabalho. Envolverde/Terramérica

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=16957)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Para enxergar as águas que nos constituem (Bruna Bernacchio)

Ao lado da escadaria que liga a Rua Werner Sack à Rua Orós está uma das nascentes do Rio das Corujas. Os vigias que trabalham na guarita ao pé do morro garantem que a água jorra 24 horas por dia, 365 dias por ano
Ao lado da escadaria que liga a Rua Werner Sack à Rua Orós está uma das nascentes do Rio das Corujas. Os vigias que trabalham na guarita ao pé do morro garantem que a água jorra 24 horas por dia, 365 dias por ano

Em São Paulo, pequenas iniciativas procuram tornar rios novamente visíveis e criar outro paradigma de urbanização e usufruto dos recursos naturais

Por Bruna Bernacchio

Em menos de um século, a capital paulista se transformou. É difícil acreditar que, antes do mar de carros que hoje ocupa suas ruas, havia rios em SP. A cidade foi fundada entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, essenciais à vida que se desenvolveu por ali. Mas, para o modelo industrial da década de 30, os rios passaram a ser obstáculos, e as ferrovias, símbolo de modernização. O documentário “Entre Rios – A urbanização de São Paulo” conta essa história.

Na Serra da Cantareira, zona Norte de SP, onde está o maior sistema de captação e tratamento de água da América Latina, estão também alguns dos poucos rios não canalizados da cidade. Ao pé da Serra, no populoso distrito da Brasilândia, estão o Riacho da Onça, do Canivete, do Bananal e do Bispo, entre outros. É fácil enxergar, ali, a água correndo – só que entulhada de lixo. As casas, muito próximas das várzeas, jogam o esgoto direto nos córregos. Mas não é só lá. “Tanto do barraco, que da privada cai no riacho, como do Shopping Cidade Jardim, que segue pro Rio Pinheiros, por encanamento”, revela o geógrafo Luiz de Campos Jr, da iniciativa Rios e Ruas. Segundo ele, a Sabesp não tem coletor em vários locais da cidade.

No primeiro domingo de dezembro, ao lado do Riacho da Onça, jovens do Jardim Eliza Maria, um dos bairros da região, grafitavam os muros para sensibilizar a vizinhança. Somam-se ao esforço os coletivos Projeto Vista Verde e Circuito de Bike e seu Quintino – líder comunitário, conselheiro da Prefeitura para questões do meio ambiente e fundador do Movimento Ousadia Popular, que há décadas planta, limpa e cuida da natureza da região. O Riacho da Onça tem 5 km de água corrente e ao seu lado se pretende implementar um parque, ciclovias e ciclofaixas.

São ao todo cerca de 3.000 km de águas fluviais na cidade. Na região mais central, há dois grandes grupos de bacias hidrográficas: de um lado do espigão, fluem até desembocarem no Rio Pinheiros, e do outro, descem em direção ao Tamanduateí. Ambos convergem para o Tietê. Todas as outras dezenas de bacias da periferia também chegam em um desses três grandes rios, ou na Represa da Guarapiranga. Muitos estão tamponados pelo cimento, escondidos nas galerias, mas ainda vivos e interligados.

Rios e Ruas

O grupo Rios e Ruas, integrado pelo geógrafo, arquiteto e urbanista José Bueno e amigos, organiza expedições e passeios para explorar o curso de córregos e rios da cidade. Participam também de duas ações de apropriação do espaço público e da riqueza das águas. Uma, encabeçada pelo Coletivo Ocupe e Abrace, na Praça Homero Silva, Pompeia – ou Praça da Nascente. Este ano, moradores da região liberaram o que ainda brotava do Água Preta, a poucos palmos do chão. Para utilização do recurso, instalaram no local uma cacimba – espécie de poço artesanal. Com uma tampa giratória preservam a qualidade da água, não potável, mas a mantém livre. Perto dali, entre a Vila Beatriz e a Vila Madalena, ao lado do Parque Linear das Corujas, que existe há dois anos, o mesmo tipo de captação foi construída e seu compartilhamento com a comunidade local já acontece com sucesso. É utilizada principalmente para a rega da Horta Comunitária das Corujas, cuidada de forma voluntária pelos moradores.

Do outro lado do Pinheiros, a Associação de Moradores do Morro do Querosene, no Butantã, luta pela reativação de uma fonte pública de água e a criação do Parque da Fonte. Região histórica de descanso e abastecimento de tribos indígenas e bandeirantes, a fonte foi canalizada no início do século XX, sendo abastecidas pelas águas das nascentes do Rio Pirajussara Mirim. Algumas décadas depois, o dono do terreno particular, de área de 40 mil m², fechou o caminho para a fonte. Durante a gestão Kassab, ele foi tombado pelo Conpresp como patrimônio público e instituído zona de interesse ambiental. Antes, toda aquela região do Butantã era repleta de bicas. As pessoas faziam fila para abastecer suas reservas, depois drenadas e bloqueadas. Hoje, a Sabesp proibe toda e qualquer forma independente de captação de água.

Luiz costuma dizer que a cada 200 metros, em qualquer lugar da cidade, há um rio. Muitas vezes, as águas correm pela calçada e logo caem no bueiro, como é o caso do Rio Caaguaçu, ou Boa Vista. Mas há quem ainda se sirva dessas águas não dominadas, como seu Onofre Sabino, que há mais de 20 anos lava carros com água de uma nascente do Rio Saracura, que fica dentro de terreno abandonado. Ou Valter Bechara que, depois de descobrir que havia uma nascente do Rio Tiburtino dentro da sua casa, desistiu de aterrar a poça que insistia em aparecer e resolveu transformá-la numa fonte.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/01/08/para-ver-as-aguas-que-nos-constituem/)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Bangladesh: mulheres lideram revolução agrícola (Naimul Haq)

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Em exemplo de conversão notável, milhões de agricultores adotam, com sucesso, cultivos orgânicos. Processo abre alternativa a donas de casa e empregadas domésticas

Por Naimul Haq, na IPS

Em um dia quente e úmido no noroeste de Bangladesh, Anisa Begum senta-se com um grupo de 25 mulheres para explicar a elas como podem usar fertilizantes naturais para aumentar o rendimento dos cultivos de cereais. Begum, de 47 anos e mãe de dois filhos, tenta convencê-las de que, se os homens podem cultivar e fazer dinheiro, elas também podem.

Begum lidera um dos Grupos de Interesse Comum (GIC), que reúnem mulheres interessadas na agricultura nesse país da Ásia meridional, onde ainda poucas das que vivem no campo trabalham fora e, quando o fazem, costumam ser diaristas. Ela se especializa na capacitação sobre o uso de fertilizantes naturais para maximizar cultivos. Begum e outras nove agricultoras visitaram o Vietnã no ano passado, país conhecido por sua eficiência nas colheitas.

“É um sentimento maravilhoso”, disse à IPS uma sorridente Begum, no quintal de sua casa, na aldeia de Islampur, distrito de Rangpur. Este ano, ela capacitou uma dezena de integrantes dos GIC na área de Pairabond, em Rangpur, a 255 quilômetros de Daca, e assegura que cada vez mais mulheres mostram interesse nas novas práticas de cultivo.

Os GIC, formados com a ajuda de escritórios agrícolas locais, são parte do Projeto Nacional de Tecnologia e Agricultura, destinado a melhorar a produtividade e a segurança alimentar de Bangladesh. Esse projeto, de US$ 82,6 milhões, foi desenhado e financiado de forma conjunta pelo Banco Mundial, Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) e governo de Bangladesh.

“É absolutamente incrível”, disse o chefe de avaliação e supervisão do projeto, Mizanur Rahman. “Mais de dois milhões de agricultores, 30% dos quais são mulheres, estão adotando novas técnicas em áreas-piloto dos distritos do noroeste”. Rangpur é conhecida pela boa qualidade de seus cereais e vegetais, graças à qualidade do solo. Todo o país depende dos grãos produzidos nessa região.

Tradicionalmente, as mulheres desse país se dedicam mais ao trabalho doméstico do que à agricultura. Um estudo intitulado Contribuição Econômica das Mulheres em Bangladesh, realizado em 2008 pelo Escritório de Estatísticas, indica que apenas 21% das mulheres bengalis participavam de atividades agrícolas, contra 78% dos homens.

Essa nova capacitação gratuita também procura promover o empreendedorismo. “No começo tivemos dificuldades para convencer as mulheres a investirem mais em agricultura. Demonstramos que podiam adotar novas tecnologias e assim obter benefícios”, explicou Sarwarul Haque, funcionário agrícola no subdistrito de Mithapukur. Nos GIC as mulheres aprendem novas técnicas que incluem o uso de arroz aromático resistente a secas e de grande rendimento, de compostagem à base de minhocas e sementes de tomates para toda temporada que mantém o cultivo livre do vírus amarelo.

Rowshan Ara, uma produtora de sucesso em Pairabond, disse à IPS que, “quando começaram as demonstrações na aldeia de Islampur, quase não havia mulheres interessadas na agricultura. Hoje, dos cerca de 5.500 habitantes de Islampur, 1.200 são camponeses, e mais de 40% são mulheres”.

Antes de entrar para os GIC muitas mulheres eram diaristas, e ganhavam apenas 50 takas (US$ 0,88) por dez horas diárias de trabalho físico, plantando e colhendo arroz. Uma diarista pode ganhar um máximo de 1.500 takas (US$ 20) por mês. Mas, a maior participação feminina na agricultura mudou as regras. Agora uma mulher pode ganhar entre US$ 54 e US$ 100 mensais cultivando cereais de qualidade, que têm grande demanda no exterior.

A camponesa Momena Begum, de 42 anos, disse à IPS que escolheu se “capacitar em compostagem com base em minhocas, e no final do ano passado fiz vendas no valor de US$ 4.500. Consegui um lucro de quase 30%”. A compostagem de minhocas se tornou muito popular, já que é mais barato do que os químicos (menos de US$ 0,25 o quilo). Outra prática muito popular é a produção de sementes resistentes às pragas.

“Aprendi como produzir fertilizantes naturais com base em jacintos de água decompostos. Essas plantas são abundantes, por isso não é preciso muito investimento”, disse Parul Sarkar, vizinha de Momena. Esse fertilizante garante rendimento 150% superior aos químicos. “Com um pequeno investimento, pude começar a abastecer o mercado local”, destacou. Sarkar ganhou mais de US$ 380 com a venda de fertilizantes naturais no primeiro trimestre deste ano. Seu marido, no entanto, conseguiu apenas US$ 90 trabalhando nas colheitas.

Cada vez mais mulheres se integram aos GIC. Em 2009, havia menos de 20 grupos em Mithapukur, e agora são mais de 240. A adoção de novas tecnologias agrícolas tem um enorme impacto. Os comerciantes e intermediários preferem vender os fertilizantes naturais. “As batatas e os tomates cultivados com fertilizantes naturais são mais saudáveis e brilhantes. Qualquer um nota a diferença”, afirmou Raja Miha, atacadista no distrito de Bogra.

(Disponível em http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/bangladesh-mulheres-lideram-revolucao-agricola/)

sábado, 23 de novembro de 2013

Universidade, entre agroecologia e agronegócio (Luciana Jacob)

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Qual deveria ser o papel do ensino superior de Agricultura, num mundo que enfrenta fome e crise socioambiental planetária?

Por Luciana Jacob | Fotografia: Jorge Luiz Campos

Como instituição social que é, a universidade expressa a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade, em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão e em sua gestão. Assim, tal qual a sociedade, a universidade é constituída não só por diferentes visões de mundo, como principalmente por visões conflitantes: a produção de conhecimento e sua incorporação nos currículos universitários são processos atravessados por relações de poder.

A articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a formação de profissionais para as demandas explícitas do mercado. Isto fica evidente nas formas curriculares, na escolha de quais conhecimentos devem fazer parte da formação e tornar-se objetos de pesquisa e, principalmente, nas ausências que denunciam o descaso legado a projetos contra-hegemônicos. As atividades universitárias foram atingidas por forças que amplificaram sua condição de dependência à globalização neoliberal, afastando-se das demandas sociais necessárias para um projeto democrático de país. Elas têm se aproximado do mundo empresarial, relegando a segundo plano o interesse público.

Social e historicamente construídos, os saberes produzidos pela universidade são eleitos por determinados grupos sociais como legítimos, credíveis e merecedores de serem reproduzidos a determinados grupos sociais.

Que saberes e grupos sociais são incluídos e quais são excluídos da universidade e, em decorrência, quais divisões sociais são produzidas e reforçadas? Qual o significado da ausência de determinados saberes na universidade? É um silêncio genuíno ou fruto de um silenciamento, ou seja, de uma imposição epistemológica?

A degradação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais muito graves da crise do mundo globalizado. Na agricultura, assistimos à perda da soberania alimentar, à fome, à violência no campo, à perda de diversidade genética e dos solos, ao avanço da concentração de terras, ao desmatamento, ao envenenamento por agrotóxicos. Paralelamente, temos assistido a uma ofensiva aterradora de setores conservadores do Congresso Nacional sobre os direitos fundamentais de indígenas, contra o Código Florestal e a Lei de Biossegurança. Presenciamos a aprovação indiscriminada de transgênicos, sem os estudos necessários e a devida responsabilidade social e científica.

De modo predominante, a universidade contribui para a manutenção do paradigma hegemônico, formando pessoas aptas a lhe dar continuidade e produzir conhecimento que alimenta e fortalece seus preceitos. Na área de Ciências Agrárias, as atividades acadêmicas geralmente se articulam em torno do paradigma do agronegócio como cânone de desenvolvimento do país. E, como sabemos, a razão que permeia o agronegócio tem como características o capitalismo e a globalização neoliberal; a total dependência de insumos finitos e externos ao sistema agrícola; a simplificação genética; a concentração de terras e riquezas; entre outros – aspectos completamente avessos à sustentabilidade socioambiental.

A organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou recentemente o Relatório de 2013 sobre Comércio e Meio Ambiente, intitulado “Acorde antes que seja tarde demais: torne a agricultura verdadeiramente sustentável agora para a segurança alimentar em um clima em mudança” (em tradução livre do inglês). O relatório, para além de alertar sobre os danos do paradigma hegemônico de produção agrícola, aponta a adoção da agroecologia como fundamental para evitar o agravamento da crise socioambiental e prováveis crises alimentares futuras – exatamente o oposto do que vem sendo desenvolvido pela grande parte das universidades brasileiras.

A construção de uma racionalidade ambiental para o enfrentamento destes problemas – em oposição à racionalidade econômica – exige a elaboração de novos saberes e, principalmente, a participação dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade na construção destes saberes. No espaço da universidade, isto implica a internalização das discussões socioambientais nas atividades de ensino e pesquisa, a abertura do diálogo com outras formas de saber e o repensar do papel da extensão universitária na perspectiva que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia de saberes.

Assento esta ideia em três pressupostos. A abundância de conhecimento no mundo é muito superior ao o conhecimento disponível em um currículo de determinada área. Além disso, a escolha de quais conhecimentos são legítimos e válidos é feita pelos grupos sociais dominantes e que assim o são pois historicamente oprimiram os grupos sociais hoje excluídos. Por fim, esta relação de poder guarda em si a força da hierarquização: os saberes que não passam nesse crivo são considerados alternativos, lendas, crenças, locais, ou seja, são descredibilizados.

Como avançar na construção de conhecimento socioambiental destinado à transformação social, quando a cultura e os saberes de camponeses e camponesas foram marginalizados e deslegitimados? Como dissolver o muro que tem separado a universidade das lutas sociais de modo geral e, especificamente, da agroecologia e soberania alimentar?

Proponho três alternativas que, se não completas e definitivas, se configuram como desafios para estas transformações.

Primeiro: mudanças nas prioridades da universidade – o que, como e para quem pesquisar e ensinar – não se operam de forma desconectada das estruturas sociais. Embora possa ser espaço de resistência, questionamento e promoção de transformação social, a universidade é sobretudo reprodutora de paradigmas mais amplos e funciona de acordo com dinâmicas sociais que por vezes a transcendem. Assim, não há possibilidade de se construir conhecimento contra-hegemônico de forma descolada dos grupos que mais sofrem as violências do conhecimento hegemônico nem à revelia de outros setores da sociedade. Há a necessidade de se avançar para uma ecologia de saberes que, segundo Boaventura, é o confrontamento da monocultura do saber e do rigor científico pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em práticas sociais.

O segundo é que as mudanças não podem ser implementadas apenas por alguns, mas é pela força de alguns poucos que elas ganharão projeção institucional. Sua promoção faz sentido em contextos específicos, com lutas conectadas com a história de cada instituição, apesar de fortalecerem e serem fortalecidas por lutas mais amplas, de outros grupos sociais, de outros lugares, de outros movimentos, de outras escalas e outras identidades culturais – ou seja, inserida em uma globalização contra-hegemônica.

O terceiro é que não há possibilidade de se pensar a inclusão de saberes socioambientais na universidade sem que isto seja tratado em termos epistemológicos e metodológicos. Epistemológicos porque promover o debate sobre sustentabilidade na universidade requer uma ecologia de saberes que luta contra a injustiça cognitiva. E metodológicos, uma vez que a inserção deste saber, pela sua própria complexidade, está imbricado também no questionamento crítico acerca dos métodos e estruturas em que se pauta atualmente o ensino superior.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/universidade-entre-agroecologia-e-agronegocio/)
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