domingo, 30 de março de 2014

Santa Catarina: por que Universidade Federal está ocupada (Caio Teixeira)

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Um relato da operação truculenta e ilegal da PF, que invadiu câmpus da UFSC, agrediu alunos, desrespeitou a reitoria e fez lembrar ditadura. Reitoria segue ocupada em protesto

No Crítica da Espécie

Quando tomei conhecimento da invasão da Universidade Federal de Santa Catarina terça-feira (25/3) por policiais federais não identificados, já imaginei o teor das notícias da mídia no dia seguinte tentando dividir os atores em os que são a favor da maconha e os contra. Afinal, uma das formas mais comuns de manipular informações é desviar o foco do principal para uma falsa polêmica e esta mídia é a mesma que apoiou o golpe militar em 64. Vamos reler os fatos.

Em primeiro lugar os policiais que iniciaram a ação, não se identificaram como tal, tampouco tinham ordem judicial para prender gente. Sem se identificar, não estão efetuando uma prisão, estão realizando sequestro exatamente como os que são lembrados às vésperas do aniversário de 50 anos da ditadura militar. Nem o carro em que estavam era identificado. São práticas típicas da polícia política da ditadura. Como saber se o estudante estava sendo preso ou sequestrado? Quem sabe até por narcotraficantes? Além do mais qualquer operação policial dentro de uma Universidade Federal deve ser comunicada à Reitoria antes e negociada de comum acordo. Ninguém pode invadir uma Universidade e sequestrar estudantes. Isto acontecia, repito, na ditadura quando tínhamos um Estado sem leis e os direitos individuais estavam suspensos.

E também vamos parar com o moralismo de tratar maconha como se fosse pior que drogas legais, tipo cigarro, que mata e ninguém se importa. É que o tabaco enche os cofres de multinacionais que o exploram diretamente e da indústria de medicamentos e equipamentos médicos usados para tratar da epidemia de câncer provocada por esta droga.

Polícia que não se identifica está agindo como bandido, fora da lei, e foi tratada como bandido pelos estudantes até descobrirem do que se tratava. Ouvi o tal delegado no rádio dizendo-se ofendido pela nota da Reitoria que repudia a invasão, chamando a reitora de irresponsável e acusando-a de querer transformar a UFSC numa “república de maconheiros”. Disse quase a mesma coisa no Jornal Nacional (está ficando famoso). Exatamente o mesmo discurso da imprensa comercial. Aqui vale uma observação. O delegado Cassiano é muito jovem, deve ter passado nesses últimos concursos que são disputados por uma nova categoria chamada de concurseiros.

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Nada posso afirmar do delegado pois não o conheço. Mas conheço muitos outros.  Estas pessoas são na maioria jovens que, tão logo recebem o diploma, se ocupam unicamente de estudar e viajar pelo Brasil fazendo concursos, em geral, às expensas da família já que, para tanta atividade, não é possível trabalhar. Um dia são aprovados e passam a ser um juiz, um procurador, um delegado, investidos de autoridade de Estado sem que tenham experimentado a vida real. Muitos desses conhecem o mundo pelas páginas da Veja, assinada pelos pais.  Quanto ao delegado, espera-se que o Ministro da Justiça e o Ministério Público Federal abram inquérito e processem este delegado  por desacato e total despreparo emocional para o exercício da função. A Polícia Federal há muito tempo é um órgão sério empenhado como poucos no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco e não merece ser julgada por atos despropositados e preconceituosos como este. Irresponsável ao extremo é o delegado que mandou lançar gás lacrimogênio e outros artefatos do gênero contra estudantes desarmados na hora da saída das crianças do Colégio Aplicação, que fica a uns cinquenta metros do Centro de Ciências Humanas onde se deu o triste episódio.

Li no jornal que o delegado está substituindo o superintendente – presumivelmente em férias. Dá a impressão de que aproveitou a ausência do titular e da momentânea investidura no Poder para buscar seu minuto de fama armando uma operação espetacular.  Para que? Para capturar os donos do tráfico? Não. Para vasculhar a praia de Jurerê Internacional, onde foram presos magnatas do tráfico há pouco tempo pela própria Polícia Federal? Não. Para pegar os traficantes que abastecem de crack os morros de Florianópolis? Também não. A operação desastrosa tinha por objetivo  pegar “perigosos” estudantes de Ciências Humanas que fumavam um baseado sem colocar em risco a vida de ninguém!Para isso o delegado foi responsável pela invasão de um campus universitário, cheio de jovens estudantes, por soldados armados! Ainda bem que os estudantes também estavam armados com suas câmeras. O vídeo abaixo mostra o poder de fogo de uma lente afiada.


A Polícia Federal não tinha nada mais importante para fazer? A sociedade brasileira espera muito mais dessa instituição. Espera que prenda os óbvios donos da droga apreendida no helicóptero dos Perrela. Espera uma operação para desvendar os casos de corrupção ambiental que saltam aos olhos de qualquer cidadão de Florianópolis. Espera que prenda o presidente da Assembléia Legislativa de SC, envolvido em crimes de colarinho branco. Ocorre que criminosos grandes são sempre protegidos pela mídia e tratados como vítimas quando investigados. Lembram do banqueiro Daniel Dantas que, preso por corrupção, com mandado judicial, tentou subornar o Delegado Federal? Para a mídia, o banqueiro foi vítima e o delegado, bandido. Talvez o estudante sequestrado, por portar alguns cigarros de maconha, seja a chave para desbaratar uma quadrilha internacional de tráfico de drogas! Uau! Não sejam ridículos. Todos sabem que um mero usuário final compra a droga na esquina e jamais vai levar aos magnatas do tráfico, simplesmente porque não tem a menor ideia de quem sejam. Quem tem obrigação de saber é a polícia e para tanto deve fazer como faz com a corrupção, planejando e executando por anos operações de inteligência conjuntamente com o Ministério Público e a Justiça Federal, tudo dentro da lei. A Polícia Federal sabe fazer isto muito bem.

O delegado Cassiano, no entanto não tinha nenhum interesse em combater o tráfico na raiz, como deveria ser sua atribuição. Se tivesse esta intenção, o último lugar provável para encontrar alguma conexão seria a Universidade. Ele atuou com abuso de poder, que é crime, pois não tinha mandado para invadir uma universidade federal. Atuou aparentemente para atender interesse particular e não público (fama momentânea e espaço na mídia, sabe-se lá com que outras intenções) o que pode configurar, se apurado, crime de prevaricação. Efetuou prisão de forma clandestina pois não se identificou como polícia, o que também é crime. Somente quando a confusão foi formada os policiais se apresentaram como tal, de acordo com todos os depoimentos de professores e estudantes que presenciaram o fato.

O delegado, que talvez se sentisse melhor trabalhando no DOI-CODI do regime golpista, realizou uma “operação” pirotécnica ilegal em conluio com a Polícia de Choque, que evidentemente estava a par e a postos para o assalto e operações dessa natureza não se realizam sem preparação logística prévia. O governador, que comanda a Polícia Militar, está devendo explicações embora a autointitulada “imprensa profissional” tenha esquecido de fazer esta ligação, colocando como centro do problema não os atos abusivos do delegado e da polícia, mas reduzindo-a a uma simples questão de ser a favor ou contra a maconha. Uma das formas mais comuns de manipulação da informação pela imprensa comercial é desviar o foco da atenção do principal para um problema secundário de ordem moral sobre o qual as pessoas já tem opinião formada. Dessa forma, o debate fica resumido a uma briga de torcidas de times de futebol na qual ninguém vai abrir mão do seu time. Enquanto isso, o que deveria ser debatido, fica fora da pauta.

Por fim, uma última observação. Não deixa de ser curioso que o delegado tenha escolhido para sua operação ilegal justamente o momento em que os saudosos da ditadura se assanham, incentivadas por Veja, Rede Globo e outros veículos de comunicação que apoiaram o golpe militar. Assistimos há alguns dias até mesmo a tentativa de realização de uma patética marcha, com cartazes pedindo expressamente a volta da ditadura. A ação isolada deste delegado despreparado deve ser veementemente repudiada por toda a sociedade catarinense e principalmente pelos seus próprios colegas que tem prestado, via de regra, excelentes serviços ao país.

Quando você, que está lendo este texto, se posicionar sobre a invasão da UFSC, preocupe-se em dizer se é a favor ou contra uma polícia que age fora da lei e dos limites impostos ao Estado pela Constituição, para proteger os cidadãos. Esta é a questão principal deste debate. Os cinco cigarros de maconha só estão ai para desviar sua atenção. Não fique chapado com as interpretações da “imprensa profissional”. Ela é muito mais poderosa que a maconha para confundir sua percepção da realidade.

Inúmeras manifestações contra a ditadura estão sendo organizadas em todo o país. Elas tem por objetivo repudiar qualquer tentativa de assaltar o poder para atender interesses particulares de pessoas ou grupos minoritários. As que vão ocorrer em Florianópolis são a melhor oportunidade que temos para dizer não ao autoritarismo e repudiarmos qualquer forma de ataque à democracia, como o que ocorreu na UFSC. Muita gente prefere que fiquemos discutindo a maconha em vez de lembrarmos nosso passado para evitar que ele volte. Que nos encontremos todos na rua, dia primeiro de abril às 17 horas.

Cartaz Manifestação

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/santa-cataria-por-que-universidade-federal-esta-ocupada/)

sábado, 29 de março de 2014

Legalizar a planta, para combater o crime (Jean Wyllys)

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Deputado que propõe nova lei sobre drogas sustenta: baseada em hipocrisia, política atual favorece quadrilhas, violência, corrupção policial e consumo irresponsável

Por Jean Wyllys, em Carta Capital

Eu sou contra a liberação da maconha. Sempre fui. E o projeto que protocolei também é contra a liberação. Atualmente, a maconha no Brasil está liberada, apesar de formalmente proibida. A escalada do poder do tráfico é prova irrefutável que, sim, ela e outras drogas estão liberadas!

Mesmo em meio a uma caríssima guerra às drogas, o Estado permitiu, se fazendo de cego, que o crime organizado dominasse áreas inteiras, se instalasse e se fortalecesse com toda sorte de armamento e influência política dentro do próprio Estado. A CPI das milícias, empreendida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ) é outra prova inconteste da influencia das facções criminosas dentro do próprio Estado. Mas nada disto parece claro a quem defende o fortalecimento de uma lei antidrogas cara, fascista e homicida.

Vivendo acima da lei, tais facções experimentam a verdadeira reserva de mercado, e seus agentes públicos, responsáveis pela manutenção da tranquilidade de seu funcionamento, são muito bem pagos. Assim o Estado, informalmente, já pratica a liberação e o controle sobre o comércio de drogas. Contraditório, não? Pois é, não parece a muitos.

Este não é um privilégio nosso, do Brasil. Nos EUA, a “lei seca”, da década de 1930, fomentou a criação de um circuito de violência, reforçou o poder do crime organizado, enriqueceu gangsteres como Al Capone (e lhes trouxe grande fama), e submeteu a população ao consumo de bebidas produzidas sem qualquer controle de qualidade e com consequências diretas à saúde pública.

Este sistema continua funcionando no Brasil – importando, distribuindo, vendendo e brigando pelo poder -, e cada pessoa que é presa ou executada sem direito de defesa pela polícia ou por uma facção rival é substituída por outra sem atrapalhar ou impedir a continuidade do circuito. Em geral os mortos são quase sempre pobres, favelados, e na maioria dos casos jovens e negros. Quase sempre são aqueles que têm a menor responsabilidade e os menores lucros. Milhares de pessoas morrem por causa disso, milhares vivem armadas, clandestinas, exercendo a violência, muitas são presas e, na cadeia, submetidas a condições desumanas e a situações de violência idênticas ou piores às que sofriam em “liberdade”, mas o sistema continua funcionando.

Esta parte é confundida pelo próprio Estado com o todo de uma comunidade pobre, como uma favela. Imediatamente, o pobre – e desses, a quase totalidade são negros e pardos em nosso país – é associado com o tráfico. O pobre que já não tem acesso à educação (e nem vamos falar em educação de qualidade! Esta está ainda mais distante dele, localizada nas escolas públicas dos bairros mais abastados!), aos serviços básicos do Estado, à formação profissional, ao ensino superior e aos aparelhos culturais, muitas vezes é convencido pelo traficante que fazer o “aviãozinho” é a única forma de mobilidade social.

Vem à mente o trecho de uma música que talvez resuma, totalmente, o argumento do tráfico: “quer viver pouco como um rei, ou muito como um zé?”. O Estado que libera a venda das drogas é responsável direto por esta decisão, afinal, quem, ali em meio à busca pela sobrevivência e sem qualquer outra expectativa, irá vislumbrar algo diferente do que o traficante lhe tenta convencer?

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Vez por outra (quer dizer, sempre, mas em geral só ficamos sabendo quando uma ínfima parte das ocorrências surge na mídia) um caso decorrente desta confusão entre pobreza e criminalidade por parte do próprio Estado, especialmente de seu braço forte, ou seja, a polícia, nos choca. Onde está Amarildo, pedreiro que desapareceu de dentro de uma Unidade de Polícia Pacificadora sem nunca ter, formalmente, saído de dentro dela, sem ter ficha criminal, sem ser acusado por crime, enfim, inocente à luz da lei? Por que Cláudia Silva Ferreira foi baleada pela polícia – que apresentou diversas versões contraditórias para o fato – jogada em um porta-malas como se uma coisa qualquer fosse, e, após ser arrastada por meio quilômetro, foi novamente atirada no mesmo porta-malas, sem que tivesse sequer o direito de ser socorrida no banco traseiro da viatura, ou melhor, em uma ambulância?

Ora, não é esta mais uma prova inconteste de que, na visão do Estado, o pobre negro, morador da favela e vítima do tráfico sequer tem direito de um socorro digno? Quem mais seria levado ao hospital em um porta-malas?

Resumindo-me: O comércio de drogas, independente de qual for, é sim liberado no Brasil, e isto ninguém pode negar. A criminalização da pobreza e a formação dos guetos marginalizados é também outro fato inconteste. A solução é regulamentar, como fez o Uruguai recentemente. Tirar o usuário recreativo da situação de criminoso, equiparável ao grande traficante, e permitir que ele compre com segurança ou que tenha seu próprio cultivo, não dependendo de ninguém para satisfazer seu consumo. Ora, não é lógico que isto afeta diretamente a relação entre traficantes e consumidores?

Alterar toda esta estrutura de poder e marginalização é o primeiro passo para o combate efetivo e inteligente ao tráfico de drogas e tudo aquilo que ele financia – a violência, a corrupção, e a exploração sexual e do trabalho através do tráfico humano. Alterar esta estrutura implica, também, em não atirar nas cadeias tantas pessoas pobres flagradas com uma quantidade qualquer de maconha. Pessoas que não cometeram qualquer crime contra a vida ou a propriedade, mas que lotam presídios e que acabam sendo formados em uma espécie de “escola do crime”. Afinal, saindo da cadeia a realidade é ainda mais difícil e marginalizada, e a ascensão no mundo do crime se abre como caminho natural para alguns.

Onde quero chegar, afinal?

Segurança pública e combate ao tráfico são duas áreas cercadas por preconceitos e achismos que não sobrevivem à mínima informação. Ainda assim são perpetuados pela repetição. Mexer nesta estrutura exige coragem e responsabilidade. Coragem porque mexer com preconceitos implica em virar alvo de toda sorte de flecha raivosa de gente mal informada, reacionária ou mesmo mal intencionada. Responsabilidade porque todos os fatores envolvidos exigem igual atenção. Soluções simplistas, como aumentar penas, “explodir favelas” e prender menores de idade apenas acentuam problemas e não trazem nenhum resultado – e nem nunca trouxeram!

Cabe à imprensa, que atua como mediadora da informação, a interpretando e repassando ao seu público, a responsabilidade de, no mínimo, não fomentar novos (e velhos) preconceitos, mesmo que por acidente. Responsabilidade com a notícia é, por exemplo, não focar na questão da anistia de presos pelo porte de drogas (e apenas de drogas, não vale para crimes violentos ou associações criminosas!) dando a isto um peso maior que o que realmente importa no projeto, que é a formação de uma política de segurança pública que não penalize os mais pobres como forma de esconder dos mais ricos a baixa eficiência de seu trabalho.

Alguns veículos de imprensa, ao darem atenção primária à anistia de presos por tráfico de maconha, especificamente, criam – de forma acidental ou mesmo intencional – a imagem de que a função do projeto é a de defender bandidos ou de esvaziar cadeias. É assim que o leitor, expectador ou ouvinte vai entender. E é sobre isto que ele formará sua opinião. Não, senhores da imprensa, o foco é outro! As consequências ao sistema prisional são secundárias! Aos que cometeram esta falha por acidente, é hora de redobrar o cuidado. Aos que o fizeram intencionalmente, meu lamento pelo eterno compromisso com a desinformação.

O foco aqui não é perdoar presos. O foco aqui é investir em reintegração à sociedade, políticas públicas, responsabilidade do Estado e na aplicação correta dos recursos da segurança pública.

O foco aqui é tirar o jovem negro e pobre, o mesmo que tem morre quase três vezes mais que o jovem branco pobre do estigma de ser criminoso, mesmo quando ele refuta o tráfico e se esforça quase que de forma sobre humana para reverter aquela situação de pobreza por meio da educação.

O foco aqui é outro. É hora de deixar a inocência de lado, de achar que o mesmo modelo falido de combate ao tráfico, que nunca funcionou em canto algum do mundo, vai milagrosamente trazer um bom resultado! É hora da imprensa mostrar sua responsabilidade nisto, sendo sensível ao que é principal e o que é secundário, e ajudando a população, sobretudo a mais pobre – e consequentemente, a mais prejudicada pela política de segurança pública vigente -, a formar uma opinião balizada dos fatos.

É chegada a hora!

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/legalizar-a-planta-para-combater-o-crime/)

Transporte público elétrico, o novo passo do Uruguai (Inés Acosta)

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Em luta por matriz energética limpa, Montevidéu testa ônibus e táxis alimentados na tomada e descobre: subsídio oculto à gasolina é maior que imaginado

Por Inés Acosta, no Envolverde

Substituir pouco a pouco o petróleo pela energia elétrica no transporte público é a aposta do Uruguai, que atualmente avalia o rendimento e os custos de incorporar essa tecnologia. Os testes mostram que o ônibus elétrico pode reduzir entre seis e oito vezes o custo de funcionamento de um modelo a diesel.

No final de 2013, foram feitas provas de rendimento e autonomia de um automóvel modelo E6 e de um ônibus K9 da empresa chinesa BYD. E no dia 13 deste mês os resultados foram divulgados. A análise econômica do rendimento dos veículos elétricos, realizada pela prefeitura de Montevidéu, deu resultados positivos. Mas alerta-se que é preciso projetar mecanismos para enfrentar o investimento inicial e redefinir o alcance de subsídios e impostos.

O benefício econômico geral de um ônibus elétrico é de 1,7 ponto frente a um motor a diesel, segundo esse estudo que levou em conta custos de aquisição, manutenção e funcionamento dos diferentes tipos de veículos no atual cenário fiscal e de subsídios. Nos táxis, a diferença é de 1,8 para um entre os elétricos e os movidos à gasolina, e de 1,4 para um com relação aos que usam diesel.

Quanto ao gasto energético, é seis vezes menor no motor elétrico com relação ao diesel. Mas 65% do gasto dos ônibus com este combustível fóssil é subsidiado pelo Estado, por isso para os empresários não é rentável mudar para a eletricidade, se não forem modificados os subsídios.

A iniciativa faz parte da política energética uruguaia, que pretende que, a partir do próximo ano, metade de sua matriz energética seja composta por fontes renováveis, com grande presença da eólica. O Grupo Mobilidade Elétrica, integrado por vários organismos nacionais e da prefeitura da capital, trabalha desde 2012 para implantar essa tecnologia, que permite, por exemplo, zero emissão de gases-estufa.

Esses veículos funcionam com um banco de baterias de lítio e fosfato de ferro, uma tecnologia biodegradável que não inclui metais pesados. O carro e o ônibus têm autonomia de 300 e 250 quilômetros por carga, respectivamente. São carregados em uma rede elétrica que deve ter potência de dez quilowatts/hora, quando a das casas uruguaias oscila entre dois e seis quilowatts/hora.

O preço é cinco vezes superior ao dos veículos movidos a combustíveis fósseis no Uruguai. Um ônibus custa US$ 500 mil e um carro US$ 60 mil, mas os gastos de funcionamento e manutenção representam apenas 10% dos com motor a diesel.

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O diretor nacional de Energia, Ramón Méndez, explicou ao Terramérica que uma carga completa da bateria de um automóvel, com tarifa padrão uruguaia, custaria cerca de US$ 10. Além disso, acrescentou, o país poderia assumir o consumo energético, porque em 2015 se converterá em exportador de energia. Desde 2005, o “Uruguai está instalando tanta quantidade de geração elétrica nova quanto foi feito nos cem anos anteriores da história elétrica de nosso país”, destacou.

O transporte absorve um terço da energia que se consome. “Anualmente, são gastos mais de US$ 2 bilhões em combustível”, afirmou Méndez. Por isso, o que se fizer “no setor poderá significar centenas de milhões de dólares de economia a cada ano para o país”, acrescentou, ressaltando que “o veículo elétrico é o caminho para onde o mundo em geral, e o Uruguai em particular, irão”.

Com veículos elétricos, o transporte, que agora depende de derivados de petróleo, passaria a funcionar a partir de fontes como eólica, biomassa e fotovoltaica. “Isso significa redução de custos e mais soberania”, destacou o chefe da Direção Nacional de Energia. Ele acrescentou que, “enquanto não encontrarmos petróleo em nosso país, em lugar de depender do que temos que importar a preço elevado e totalmente incerto, podemos ter a garantia de que instalamos mais parques eólicos e podemos também atender as necessidades do transporte”.

Mas são necessários ajustes. O Uruguai gasta US$ 100 milhões anuais com subsídio para o diesel no transporte público, explicou ao Terramérica o diretor de Mobilidade da Prefeitura, Néstor Campal. “Se esse dinheiro for usado de outra forma, melhorando a infraestrutura para os veículos elétricos, cujo custo operacional é menor, ganharemos uma tecnologia com muitíssimos benefícios ambientais e de outras naturezas”, afirmou. A seu ver, deve-se modificar a legislação “para que o subsídio opere equilibrando os dois sistemas”.

O ministro dos Transportes, Enrique Pintado, declarou que o “subsídio recebido pelo transporte não pode ter o contrassenso de ‘quanto mais gastar mais subsídio terá’. É preciso ter prêmios para a redução do consumo”. Ele também afirmou que o preço da passagem “tem de baixar não por força de subsídios, mas em função de um preço menor na realidade. Isso significa ser muito mais eficiente na gestão das empresas e na baixa dos custos energéticos, de insumos e das unidades”.

“Estamos assentando as bases para os próximos governos departamental e nacional serem capazes de concretizar o que hoje estamos lançando”, afirmou Pintado durante a apresentação da avaliação dos veículos elétricos. O custo tributário é outro aspecto que deve ser revisto para promover a mobilidade elétrica. A tarifa de importação dos ônibus elétricos é de 23% e para os movidos a diesel é de 6%, e estes estão isentos do imposto específico interno (Imesi). Já os táxis elétricos importados têm um Imesi preferencial de 5,75%, contra ao de 11,5% para os movidos a motor diesel.

Para definir benefícios fiscais a fim de promover essa tecnologia, o Ministério da Economia e das Finanças se integrará ao Grupo Mobilidade Elétrica.

Táxis primeiro

Este ano começarão a circular na capital uruguaia os primeiros 50 táxis elétricos. Também nas frotas de Bogotá e Londres estão sendo incorporados veículos elétricos, destacou Campal. Já circulam em Hong Kong e na cidade chinesa de Shenzhen, onde são fabricados.

Porém, ainda não está definido como serão implantados os pontos de carga das baterias para táxis e ônibus, pontuou Méndez. Além disso, a empresa estatal de eletricidade adquiriu 30 caminhonetes elétricas Kangoo Maxi Z.E., da empresa francesa Renault, para sua frota de trabalho. Envolverde/Terramérica

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=16957)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Para romper a masmorra do individualismo (Katia Marko)

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell

O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.

Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.

Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”

Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”

A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.

Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.

Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.

No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”

Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”

No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”

O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.

Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”

Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/para-romper-a-masmorra-do-individualismo/)

terça-feira, 25 de março de 2014

Comuna de Paris: outra democracia é possível? (Antoni Aguiló)

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Há 143 anos, começava insurreição que estabeleceu formas inéditas de autonomia popular. Quais foram e como podem inspirar movimentos contemporâneos

Por Antoni Aguiló | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Jacques Tardi, Le cri du peuple

Acaba de completar 143 anos (em 26 de março) a proclamação da Comuna de Paris, uma das experiências de democracia popular participativa mais iluminadoras da história contemporânea do Ocidente, mas também, e ao mesmo tempo, uma das mais trágicas que já se conheceu.

Ao final da guerra franco-prussiana, com a França derrotada, seu primeiro ministro, Adolphe Thiers, destacou a importância de desarmar imediatamente Paris para impor o armistício humilhante assinado com a Prússia. Em 18 de março de 1871, sob o pretexto de que as armas eram propriedade do Estado, Thiers ordenou ao exército a retirada dos canhões que a Guarda Nacional tinha nas colinas Montmartre. Então, uma multidão indignada de mulheres e homens da classe operária se opôs ao desarmamento, que deixaria a cidade indefesa. Uma parte das tropas enviadas pelo governo negou-se a disparar contra o povo e muitos dos soldados acabaram confraternizando com o movimento de resistência. Este levantou-se em armas contra a Assembleia Nacional, desencadeando um processo revolucionário que colocava o proletariado parisiense em choque com a grande classe dos proprietários de terras, rentistas e camponeses ricos que dominava a Assembleia francesa.

Após a tentativa fracassada de desarmamento, o gabinete de Thiers fugiu para Versalhes. Os rebeldes instituíram um governo municipal provisório que, depois das eleições de 26 de março, transformou-se na Comuna de Paris. Constituía-se, assim, uma prefeitura rebelde de forte base entre os trabalhadores. O exemplo de Paris estendeu-se por outras cidades e povoados provinciais, como Lyon e Marselha, onde proclamaram-se comunas insurgentes, rapidamente esmagadas por Versalhes.

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Mais além de seus tropeços, a Comuna de Paris nos deixou um legado: os exercícios de construção de poder popular vindos de baixo mais relevantes da história recente. Que aprendizagens da Comuna, em matéria de democracia, podem contribuir para iluminar as atuais lutas por democracias reais? Em que medida essas lutas passam por uma prática política revolucionária que amplia o poder efetivo das classes populares e outros coletivos historicamente afetados pela discriminação? Ao meu juizo, como embrião de democracia revolucionária, a Comuna de Paris proporciona alguns ensinamentos chave, que abrem caminhos pouco explorados para o avanço das democracias a serviço da emancipação social:

Democracia de base: a pretensão era a criação de um Estado desde a base, formado por autogovernos municipais federados entre si, com um governo central que tivesse escassas funções de coordenação. Um Estado novo, que contribuísse para desfazer a relação entre governantes e governados e assegurar melhores condições de vida e trabalho; no qual as pessoas se sentissem reconhecidas e, portanto, dispostas a defendê-lo.

Democracia operária de inspiração socialista. Os comuneiros tinham consciência da necessidade de romper com as velhas formas de dominação política (o parlamentarismo liberal e o Estado capitalista burguês), o que os levou a experimentar formas alternativas de política e sociedade. Mesmo que a Comuna não tenha acabado com o Estado capitalista, seu grande mérito foi arrebatar completamente seu controle da burguesia, transformando-o em um organismo novo, que permitia o acesso ao poder a quem tradicionalmente havia sido apartado dele. Já não era o governo das classes elitistas dominantes, mas o das maioria populares não representadas, os operários, cuja bandeira vermelha, símbolo da fraternidade internacional dos trabalhadores, tremulava pela primeira vez na sede do Governo, o Hôtel de Ville.

Neste ponto, adquire especial relevância o componente socialista da Comuna, presente no tipo de democracia que se estabeleceu: uma democracia não meramente formal, mas substantiva, participativa, que combinava democracia representativa com democracia direta. Uma democracia que representava um processo mais além da tomada conjuntural do poder, já que aspirava substituir o aparato burguês do Estado por outro, em correspondência com os interesses da classe trabalhadora. Em outras palavras, a democracia operária da Comuna permitiu a inversão do poder, deslocando o poder político classista e elitista monopolizado por proprietários para colocar nas mãos da classe trabalhadora a capacidade efetiva de deliberar, decidir e organizar a sociedade.

A democracia da Comuna articulava-se em torno de cinco princípios: 1) Eleição por sufrágio universal de todos os funcionários públicos. 2) Limitação do salário dos membros e funcionários comunais, que não podiam exceder o salário médio de um operário qualificado, e em nenhum caso superar os 6 mil francos anuais. 3) Os representantes políticos estavam ligados umbilicalmente aos eleitores por delegação e mandato imperativo. 4) Qualquer representante podia perder a confiança dos eleitores e ser deposto de imediato; ou seja, a Comuna instituiu a revogabilidade do mandato, acabando com a perversidade de um sistema representativo liberal que, como na atualidade, permitia suplantar a vontade dos representados e promovia a profissionalização da política. A Comuna cuidou, deste modo, de fazer um uso contra-hegemônico da democracia representativa, em que os representantes obedecem — e não um sistema como o atual, em que os que mandam não obedecem, e os que obedecem não mandam. Este tipo de democracia representativa consagrava o direito popular a pedir contas, exigir responsabilidades e controlar os representantes, o que representou um duro golpe à (hoje tão em voga…) compreensão parasitária da política, vista como um trampolim para obter privilégios, fazer carreira profissional e esquecer-se do eleitorado. 5) Transferência de tarefas do Estados aos trabalhadores organizados, como a promoção da autogestão operária mediante a socialização das fábricas abandonadas pelos patrões.

Novas medidas emancipadoras. As iniciativas para socializar o poder político não foram as únicas. Também foram acompanhadas de medidas atrevidas de caráter social, entre as quais cabe destacar a separação entre Igreja e Estado, garantindo o caráter laico, obrigatório e gratuito da educação pública; a expropriação dos bens das igrejas; a supressão do serviço militar obrigatório; a aprovação de uma moratória sobre as rendas de habitação, que abolia as leis anteriores nesta matéria, confiscava as residências vazias e cancelava as dívidas por aluguel, pondo a moradia a serviço das necessidades sociais e ao bem estar geral; a supressão do trabalho noturno das padarias e a proibição da prática patronal de multar os empregados, uma estratégia habitual para reduzir seus salários.

Contudo, a burguesia francesa não permitiu que o novo sistema político prosperasse. Com a colaboração das tropas prussianas que cercavam Paris, o governo de Versalhes enviou mais de 130 mil soldados que, em 28 e maio de 1871, depois de 72 dias intensos e fugazes de autogoverno popular, aniquilaram a Comuna. Estima-se que na batalha tenham morrido mais de 20 mil parisienses, e que uns 43 mil combatentes tenham sido capturados; 13 mil condenados à prisão, 7 mil deles deportados para a Nova Caledônia.

A Comuna de Paris representa não apenas a última das grandes revoluções populares do século XIX, mas também o primeiro dos democraticídios da era moderna, algo mencionado apenas de passagem na história “oficial” da democracia. Lamentavelmente, hoje também são tempos de democraticídio, de extermínio de saberes e práticas democráticas. O capitalismo fulminou a democracia representativa em boa parte da Europa, onde os Parlamentos e as eleições tornaram-se praticamente dispensáveis. Mas também são, entre outras coisas, tempos de experimentalismo político, de rachaduras no poder constituído, de protestos populares, de organização coletiva e de lutas por um poder popular constituinte. Como nos recorda a Comuna de Paris, ele nasce nas ruas, como exigência de mudança das velhas estruturas políticas e econômicas que oprimem a gente e restringem a construção de outras democracias possíveis.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/comuna-de-paris-outras-democracias-sao-possiveis/)

domingo, 16 de março de 2014

Cinco histórias brasileiras longe do Fla-Flu (Rodrigo Vianna)

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Milhões de famílias humildes estão colocando filhos na Universidade. Entrevistei cinco delas e descobri que ir muito além do que pensam oposição e governo 

Por Rodrigo Vianna, em seu blog

Durante mais de um mês, rodamos atrás de boas histórias por esse Brasil: Goiás (foto ao lado), Santa Catarina, Pernambuco, São Paulo. O objetivo era encontrar famílias que, pela primeira vez, tivessem conseguido colocar um filho na Universidade.

Não foi difícil achar. Longe do Fla-Flu histérico na internet, há um novo Brasil que se desenha. O filho de pescadores virou advogado (e já trabalha num escritório – no centro de Florianópolis). A filha de um catador de latinhas estuda para se formar veterinária em São Paulo. O lavrador goiano conseguiu transformar o filho em engenheiro. O produtor rural pernambucano (a família vive no meio do sertão, em Bodocó) mandou a filha pra São Paulo, e hoje ela é dentista…

Tudo isso aconteceu nos últimos dez anos. Enquanto muita gente reclamava dos aeroportos lotados de “gente feia”, tripudiava do “Bolsa Esmola”, e falava mal do PROUNI (que enche as universidades de “vagabundos”)… Enquanto isso, o povão arregaçou as mangas e aproveitou as brechas que se abriram. Mas não venham os governistas mais empolgados achar que esse povo se ajoelha no chão pra agradecer Lula e o PT. Conversei com as famílias, entrei nas casas: a maioria está feliz, mas sabe dos imensos problemas do nosso país. E quer mudança. Mais mudança. O que não significa andar pra trás, com discurso de “menos Estado”…

Esse novo Brasil (construído pelas bordas, e longe dos holofotes) é resultado, sim, de políticas públicas claramente inclusivas. Mas se desenha também graças ao esforço individual, à solidariedade e à garra das famílias mais humildes. Esse povo brasileiro é admirável: longe das Sherazade, da violência policial, dos colunistas urubulinos e dos comentaristas que falam do Brasil sem sair da frente do computador, há um outro país que nos enche de esperança.

É o que você pode conferir a seguir, em 5 reportagens da série “Eles Chegaram Lá” – que foi ao ar no “Jornal da Record. Produção: Rosana Mamani. Edição: Ângela Canguçu. Reportagem: Rodrigo Vianna (com participação de Jairo Bastos, em Pernambuco.) Imagens: Edgar Luchetta (São Paulo – apoio técnico de André Carvalho), Fabio Varela (Brasília/Goiás – apoio técnico de Fernando Gommes), Márcio Ramos (Santa Catarina). Coordenação: Helio Matosinho. Chefia de Redação: Thiago Contreira.




Pra começar, conheça a história de Almiro – o filho de lavradores na região de Anápolis (GO), que se formou em Engenharia; ele trabalha para indústrias importantes, dá aulas no SENAI e faz pós-graduação no ITA. O pai segue a plantar tomate e banana. Almiro estudou em faculdade particular, com bolsa do PROUNI.

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Djuliane é filha de um catador de latinhas em São Paulo. Na infância, rodava pelas ruas, no carrinho puxado pelo pai, cercada por papelão e garrafas. Hoje está na Universidade. Um amigo da família ajuda a pagar o curso, em faculdade particular. Você também vai conhecer o José – filho de empregada doméstica que só sabe assinar o nome (mas dotada de uma garra impressionante), ele acaba de se formar em Administração.

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O cenário é belíssimo: a praia da Pinheira, litoral catarinense. O pescador Manoel acorda todo dia às 4h da manhã. E vai pro mar. Isso há quase 50 anos. A novidade é que ele e a mulher (batalhadora, ao lado do marido) conseguiram colocar dois filhos na Universidade: Marcos estudou com bolsa do PROUNI, e já se formou em Direito. Marcelo está terminando o curso de Engenharia de Pesca, numa faculdade pública: a Universidade do Estado de Santa Catarina.

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O pai é pedreiro, a mãe é costureira. Os dois só estudaram o básico. O filho Neemias é pintor de paredes. E não aceitou o “destino” traçado. Com mais de 40 anos e 6 filhos pra criar, Neemias conseguiu entrar na faculdade particular, estuda Engenharia, graças a uma bolsa do Educafro – entidade que apóia o esforço de negros para chegar à Universidade. No Brasil, o número de negros no ensino superior saltou de pouco mais de 2%, para 15% nos últimos dez anos. Cotas, solidariedade, esforço individual: tudo fez diferença. Conheça também o Bruno:  filho de uma cozinheira, ele acaba de se formar em RH.

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A família vive em Bodocó, no meio da caatinga. Edivaldo, um dos filhos do casal de pequenos produtores rurais, migrou pra São Paulo: virou pedreiro, encarregado de obras. Anos depois, levou a irmã Elane pra São Paulo. Ela começou trabalhando como faxineira numa faculdade na zona leste. Conseguiu bolsa da universidade e, enquanto limpava salas e arrumava cadeiras, foi cursando Odontologia. Hoje, a filha do sertão é dentista em São Paulo.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=16725)

sexta-feira, 14 de março de 2014

O Cartaz no Elevador

Hoje cheguei ao edifício onde moro e tive (mais) um desgosto de passar pela área comum até chegar em meu apartamento. Explico.

Estava no elevador um cartaz, com título "MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS II - O RETORNO" e nele descrito uma manifestação em frente à Brigada Militar, solicitando intervenção dos militares na política brasileira, para retirar o PT do poder.

Não me controlei e escrevi dois bilhetes em post-it. Em um deles: "Que tal começarmos uma NOVA POLÍTICA em nosso próprio condomínio, em nossa comunidade? A corrupção, as intrigas, a inoperância e a TIRANIA nascem mais próximas a nós do que imaginamos." Em outro: "Tirem suas bundas de suas camas/cadeiras e vão TRABALHAR por um novo Brasil. Deveriam se envergonhar de exaltar um GOLPE ANTIDEMOCRÁTICO."

Estou inquieto até agora. Já não gosto de morar em meio a tanto dinossauro da elite brasileira (esse é mais um preço que se paga por morar em um bairro nobre, além dos altos impostos), todavia enquanto ficavam em suas cavernas eu ao menos podia ignorar esse fato. Questão é que resolveram sair (fora das reuniões de condomínio, onde já demonstravam seu anacronismo e velharia) para mostrar suas garras nefastas, as garras da velha elite colonialista brasileira, a qual sempre esteve atrelada ao braço militar, por meios escusos de articulação e ação.

Devemos combater a ignorância, o preconceito e a tirania de certos movimentos que estão se fortalecendo em nossa sociedade. E, como ocorre comigo, eles podem estar brotando na porta ao lado. Não podemos ficar calados. Devemos defender nosso bem maior, a democracia, e sobretudo os avanços que já conquistamos na sociedade brasileira.

Não sou PT, mas não sou de uma oposição conservadora e desleal, que ignora valores fundamentais de nossa sociedade para tentar alcançar seus fins elitistas e deploráveis. E, se em algum momento for necessário, irei à rua defender com meu sangue esses baluartes. Por enquanto, me restrinjo à luta no campo intelectual e político, pois mais que isso seria exagero e contraprodutivo no momento atual.

Hoje não vou dormir em paz. A bem da verdade, já não durmo em paz há muito tempo, já que há muita miséria e desolação - sintomas de um sistema hegemônico selvagem e desumano, o capitalismo - para combater. Estão a nossa volta, e muitos fingem não existir, ou não se sentem responsáveis, ou, pior, sabem que da fome, do suor e da lágrima do outro forja seu banquete de farturas e coisas supérfluas.

Que essa minha falta de paz seja minha força-motriz para defender sempre aqueles desassistidos. E que meu grito não seja solitário. A luta é nossa, da humanidade, para banir aquilo que nos prende ao passado de tirania e de iniquidades, no vislumbre de uma nova sociedade, a qual garanta a todos seu direito legítimo e básico à humanidade.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Comer, ato revolucionário? (Satish Kumar)

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Refletir sobre o que nos alimenta pode nos levar a rebeldias como reforma agrária, mercados de agricultores, jardins operários, “slow food”, permacultura e agricultura florestal

Por Satish Kumar | Tradução Josemar Vidal Jr., editor de Tautologia Total

A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Comer alimentos apropriados é parte da solução de problemas como as mudanças climáticas e a fome no mundo. Na tradição cristã, festejar no Natal e jejuar na Quaresma são símbolos significantes da relação estreita entre as pessoas e os alimentos, entre liberdade e comedimento, entre celebração e solitude.

Mas festejar e jejuar não são opostos: são complementares. Quando nós praticamos a liberdade de um banquete e somos pessoas habituadas à pratica do jejum, muito provavelmente vamos aproveitar a festa sem abusos.Jejuar é uma grande habilidade. Quando, no romance de Herman Hesse, a bela cortesã Ka­mala pergunta a Siddhartha quais eram as suas qualidades para conquistar o seu amor, Siddhartha responde: “Pensar, esperar, jejuar”. Infelizmente, no mundo moderno, muitos de nós não sabem como esperar, como jejuar, ou, ainda, como banquetear.

Nós vivemos no mundo da comida congelada, junk food e pratos prontos. Esse é o mundo da produção em massa, dos empacotados e das redes de comercialização de alimentos. Esse é o mundo onde os conhecimentos e as técnicas de produzir comida foram esquecidos, e a arte de cozinhar é desvalorizada; onde o prazer de preparar as refeições em companhia é diminuído. Nós perdemos o controle das origens dos alimentos. Muitos não sabem dizer poucas palavras sobre como a comida é semeada, distribuída, tarifada, ou mesmo como é preparada.

O acesso à comida deveria ser um direito fundamental do ser humano, o alimento é um presente da natureza a todos. Alimentar as pessoas e todos os seres vivos é algo intrínseco à vida, à existência, mas, infelizmente, a comida tornou-se produto comercial e já não esta disponível à todos igualmente. O objetivo primeiro dos que trabalham com negócios alimentícios é fazer dinheiro, alimentar as pessoas se tornou algo secundário. Não admira vermos múltiplas crises, tais como o crescimento do custo dos alimentos, crescimento da obesidade, junto à malnutrição e fome.

O grande desafio com o qual precisamos nos deparar é percebermos o principal objetivo dos sistemas alimentares, que é suster a vida. A principal responsabilidade dos governos e dos homens de negócios é desenvolver políticas e práticas que atendam às necessidades alimentares de todos, em todo o mundo, ao mesmo tempo em que garantam a integridade e a sustentabilidade do planeta terra em si.

Cultivar, preparar e comer boa comida é um imperativo ecológico, e, como Thomas Morus muito bem pontua, a comida é mais do que apenas o combustível para o corpo; ela é fonte para a nossa nutrição espiritual, social, cultural e física.

As pessoas perguntam: “O que eu posso fazer para combater o aquecimento global, a degradação ambiental e as injustiças sociais?” A resposta dada por Thomas Morus e outros escritores é: “Vamos começar pela comida: vamos comer alimentos locais, orgânicos, sazonais e deliciosos. Vamos lidar com os alimentos com as nossas próprias mãos, e não deixar a sua produção apenas nas mãos das corporações.”

O ato de comer o alimento apropriado é parte da solução dos problemas de aquecimento global e fome. A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Quando nós observamos as movimentações econômicas por trás dos alimentos vemos imediatamente a influência das corporações multinacionais, que transformam comida em produto, onde, da engenharia genética das sementes ao cultivo, o controle passou do homem do campo e dos agricultores para administradores e engenheiros. Se nos preocupamos com a agricultura industrial, agronegócio, terras cultiváveis, erosão do solo, crueldade com os animais, fast foods, fatty (gordurosas) foods, ou ainda, “não-foods“, temos que olhar para o nosso prato e o que esta nele. A comida em nossa dispensa e na nossa cozinha esta conectada com as mudanças climáticas, com a pobreza, bem como com a nossa própria saúde.

Uma reflexão profunda sobre o que comemos pode nos levar à reforma agrária, mercados de agricultores, Jardins Operários, Slow Food, comida artesanal, permacultura, agricultura florestal e muito mais. Nós devemos transformar nossa relação com a comida como um primeiro passo em direção às transformações sociais, econômicas e políticas. O pessoal e o político são dois lados da mesma moeda, nós não podemos manifestar um sem o outro. Quando nós começamos no plano pessoal e caminhamos em direção ao político, então há integridade no que falamos, fazemos e pedimos para que os outros façam. É claro que não podemos parar na vida pessoal. Nós precismos nos comunicar, organizar e construir um movimento popular que pressione governos e empresas a efetuarem mudanças.

Será que estamos prontos pra “por a mão na terra”? Temos tempo para assar nosso próprio pão e compartilhar nossas refeições em companhias agradáveis? Se nós não temos tempo para cozinhar e comer adequadamente, então nós não temos tempo para viver. Como Molière disse: “É boa comida, não boas palavras que me mantem vivo”.


*Satish Kumar é fundador e diretor do Instituo Schumacher e reconhecido como um pilar da militância pacifista.


(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/12/comer-e-o-comeco-ou-a-meta-esta-na-mesa/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Um 8 de março para homens (Marília Moschkovich)

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Não dê rosas, nem presentes: não é celebração comercial. Leia, assista a filmes, reflita. Participe de uma experiência de inversão

Por Marília Moschkovich

Há alguns anos nós, feministas que militamos na internet (sobretudo em blogs), reforçamos a máxima de que aquela rosa que muita gente distribui no dia 8 de março pode ficar pra vocês. Um bom texto que não sai de moda, nesta época, é o “Dispenso esta rosa”, da Marjorie Rodrigues (leia aqui). Muito confusos com essa recusa, alguns leitores têm me escrito desde a semana passada, tentando entender: afinal de contas, se dar parabéns junto a flores ou presentes não é bacana no dia 8 de março, o que podemos fazer para que não passe em branco?

Pra inventarmos maneiras de viver o 8 de março sem sermos machistas, precisamos entender o que é esse dia. Ao contrário do que dizemos no dia-a-dia, o 8 de março não é “Dia Internacional da Mulher”, mas sim o “Dia Internacional de Luta Pelos Direitos das Mulheres”. Dá pra sacar a diferença?

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8 de março não é uma data comercial como o dia das mães, dia dos pais, dia das crianças. Não foi definida por associações comerciais para vender mais rosas  em março e alavancar vendas que sem a data talvez ficassem um pouco lentas (já repararam como os dias das mães, pais e crianças são estrategicamente distribuídos no calendário? pois é).

A data de 8 de março foi reivindicada com muita luta, ao longo de muitas décadas, como dia de luta pelos direitos das mulheres. É neste dia que celebramos as conquistas da luta feminista através dos séculos. Essa celebração nos lembra que nem sempre as coisas foram como hoje, e também que podemos perder esses avanços, dependendo das disputas políticas de nosso tempo. Ao mesmo tempo, refletimos sobre outras transformações que ainda estão por vir, que desejamos que venham, e pensamos sobre como podemos promovê-las. O 8 de março é um dia de informação, reflexão e luta política.

No auge da minha criatividade de quem passou o carnaval descansando e longe da folia, listei algumas ideias de coisas bacanas pra fazer no dia 8 de março. Certamente todas elas são mais produtivas para os direitos das mulheres do que dar parabéns e oferecer rosas, e definitivamente alguma delas é possível de ser feita por você.

Por e-mail (marilia@mariliamoscou.com.br) ou Twitter (@MariliaMoscou), peço que me contem também, a partir do domingo, o que foi que fizeram no dia 8. Pretendo traçar uma pequena coletânea de atitudes dos homens em prol da luta das mulheres na semana que vem! Vamos à lista:

1. Participar de alguma marcha ou manifestação de 8 de março

Como homem, é importante que você possa mostrar que entende que esse é um dia de luta e que apoia publicamente essa luta. As marchas costumam ser bem tranquilas, com grupos diferentes e bandeiras bem diversificadas. É uma experiência legal pra quem anda com alguma curiosidade sobre qual é a cara do feminismo nos dias de hoje, que reivindicações são feitas, etc. Dando uma busca por “Ato 8 de março 2014″ no Google, é possível encontrar informações sobre as marchas programadas para diferentes lugares.

2. Ler (ou começar a ler) um livro de uma escritora feminista

Não precisa chafurdar na teoria e encarar logo O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir, claro. As escritoras de literatura são excelentes para se começar. Por meio da literatura muitas questões sobre os direitos e as vidas de mulheres em várias épocas são muito bem trabalhadas. Meus livros preferidos pra esse começo são os seguintes:

- Três Vidas (Gertrude Stein)

- O Conto da Aia (Margaret Atwood)

- Um teto todo seu (Virginia Woolf)

- Persépolis (MarjaneSatrapi) [quadrinho]

- O País das Mulheres (Gioconda Belli)

- As boas mulheres da china (Xinran)

- Barragem contra o Pacífico (Marguerite Duras)

- A casa dos espíritos (Isabel Allende)

- Flor da Neve e o leque secreto (Lisa See)

3. Assistir filmes que tragam uma perspectiva feminista sobre as mulheres

Faça uma panelada de pipoca, ajeite uma bebida maneira e vamos lá. Eu indico aqui alguns filmes bacanas, de ficção ou não, mas há realmente muitos filmes feministas bons por aí. Alguns deles que você talvez nem imaginasse que fossem feministas! Se você jogar “filmes feministas” no Google, ele retorna boas listas pelas quais você pode se pautar, também. Minhas sugestões:

- Que bom te ver viva (Lúcia Murat, 1989)

- A excêntrica família de Antônia (MarleenGorris, 1995)

- Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991)

- Tomboy (CélineSciamma, 2011)

- XXY (Lucía Puenzo, 2007)

- Pequena Miss Sunshine (Jonathan Dayton & Valerie Faris, 2006)

- A Vida Secreta das Abelhas (Gina Prince-Bythewood, 2008)

- A Cor Púrpura (Steven Spielberg, 1985)

- Além do bem e do mal (Liliana Cavani, 1977)

- Philomena (Stephen Frears, 2013)

- Em nome de Deus (Peter Mullan, 2002)

- As horas (Stephen Daldry)

4. Participar de alguma outra atividade proposta para o dia, que envolva informação, reflexão e debate

Na cidade de São Paulo, a prefeitura lançou uma listinha muito bacana cheia de atividades interessantes para o 8 de março. Nessas atividades, muitos aspectos do “ser mulher” serão debatidos, apresentados, pensados. Vale a pena conferir a programação extensa e escolher uma atividadezinha pra participar (veja a lista aqui). Eu mesma vou dar um workshop curto voltado para homens nesse dia, também em Sampa (inscrições e informações aqui).

Se você não está em Sampa, uma busca no Google por “8 de março atividades” vai retornar diversas possibilidades; adicionando o nome de sua cidade à busca dá pra ter uma ideia de eventos próximos. Se nada disso funcionar, procure por coletivos feministas e setoriais de mulheres de partidos de esquerda, que esses grupos sempre têm ideias legais de atividades para a data. As ONGs ligadas aos direitos das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e direitos humanos também costumam propor encontros e debates legais no dia. Fique atento!

5. Faça um experimento de inversão

Essa proposta é muito mais ousada do que os outros itens da lista, claro. A ideia é viver como se fosse mulher, em algum aspecto do teu cotidiano, durante um dia. Você pode passar o dia usando sapato de salto alto, por exemplo. Fazer maquiagem feminina, tentar fazer as unhas, fazer depilação com cera nas pernas, usar vestido, ou trocar as tarefas diárias com uma mulher que conviva com você (mãe, irmã, esposa, namorada, amiga, etc). Seja criativo e depois me conte como foi! O lado mais bacana dessa experiência, porém, é discuti-la com as próprias mulheres dos teus círculos sociais. Escute o que elas tem a dizer sobre a experiência delas cotidianamente fazendo o que você fez por um dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/uncategorized/um-8-de-marco-para-homens/)

“É hora de repartir a riqueza” (Entrevista de Márcio Pochmann por Mariana Desidério)

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Márcio Pochmann sustenta: políticas sociais dos últimos dez anos são positivas, mas insuficientes; Reforma Tributária pode abrir caminho para mudanças profundas

Entrevista a Mariana Desidério, no Brasil de Fato

O Brasil diminuiu a desigualdade nos últimos anos e milhões de pessoas deixaram a pobreza. Porém, o país ainda está entre os vinte mais desiguais do mundo. Para avançar, uma das mudanças urgentes é a reforma tributária.

É o que diz Márcio Pochmann, um dos principais economistas do país. “Aqui, são os ricos que reclamam dos impostos, mas quem paga mais são os pobres”, afirmou em entrevista ao Brasil de Fato. Segundo ele, há uma grande resistência dos mais ricos em mudar essa estrutura. “Um exemplo foi a tentativa de mudar a cobrança do IPTU em São Paulo”, diz.

Pochmann é professor da Unicamp e presidente da Fundação Perseu Abramo. Foi secretário de desenvolvimento na prefeitura de Marta Suplicy em São Paulo e presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Nesta conversa, ele fala ainda sobre a importância política dos trabalhadores que saíram da pobreza nos últimos anos e analisa o fenômeno dos rolezinhos. “São manifestações que mostram a falta de espaços públicos”.

O Bolsa Família, maior programa de distribuição de renda do governo federal, completou dez anos. Porém, continuamos como um país muito desigual. Por que isso permanece?
Em 1980, nós éramos a oitava economia capitalista do mundo, tínhamos praticamente metade da população vivendo em condições de pobreza e estávamos entre os três países mais desiguais do mundo. Essa situação praticamente permaneceu durante mais de vinte anos. Foi só num período mais recente que nós conseguimos reduzir a pobreza e a desigualdade. Hoje, nós estamos entre os quinze países mais desiguais do mundo. Houve uma redução importante. E isso num período difícil em termos internacionais, devido a crise econômica de 2008.

O que dificulta que esse processo avance mais?
Existem dificuldades do ponto de vista político e cultural. Nós temos, no Brasil, uma classe média tradicional que tem uma série de assistentes na casa: trabalhadores domésticos, babá, segurança. É um conjunto de pessoas que serve à classe média e aos ricos com base em baixos salários. Com o combate à pobreza e a redução da desigualdade, essa classe média tradicional vai perdendo a capacidade de abrigar todos esses serviços. E aí há uma reação, uma resistência no interior da sociedade. E tem o preconceito também. Em geral, um segmento muito pequeno da sociedade tinha acesso ao uso do transporte aéreo, de poder viajar para outros países, por exemplo. Hoje, segmentos com menor renda também podem ter acesso. Isso gera um desconforto.

Quais medidas ainda precisam ser tomadas para diminuir essa desigualdade?
A reforma tributária certamente é uma delas. No Brasil, historicamente se arrecadou recursos tirando impostos dos pobres e se gastou mais recursos para segmentos mais privilegiados da população. Olhando os governos de 2002 para cá, o que nós tivemos foi uma melhora no perfil do gasto público. Ele se voltou mais para os segmentos mais pobres. Isso é fundamental. Mas ainda há o ponto de vista da arrecadação. Da onde vem o imposto? Nós temos no Brasil uma estrutura tributária regressiva. Os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos do que os mais ricos.

Há perspectivas de melhorar essa conta?
O caso de São Paulo me parece exemplar. Aqui houve a proposta de reajustes diferenciados do IPTU, de acordo com o grau de elevação nos valores dos imóveis. Mas isso gerou uma reação dos meios de comunicação, dos muito ricos, que praticamente impediram na justiça a possibilidade de se melhorar o perfil da arrecadação de impostos no município. A gente percebe que, no Brasil, quem mais critica os impostos são os mais ricos, justamente os que pagam menos. Nós temos aqui em São Paulo o impostômetro, que fica no centro da cidade. Na realidade nós precisaríamos de impostômetro nas favelas. Porque é lá que se paga imposto e praticamente quase nada se recebe do Estado.

Os mais pobres têm consciência de que pagam mais impostos?
Os mais ricos têm mais consciência, até porque o tipo de impostos que eles pagam são conhecidos, são sobre propriedade. Você recebe o carnê e sabe quanto paga de imposto.  A maior parte dos pobres no Brasil não tem propriedade. Então eles não têm identificação nenhuma de quanto pagam. Os impostos que os mais pobres pagam são os chamados impostos indiretos, que já estão vinculados ao preço final de um produto. Você não sabe quanto paga, por isso não gera esse questionamento.

Hoje fala-se muito da nova classe média. Há uma nova classe social em ascensão?
O que nós tivemos foi uma leva de 40 milhões de pessoas que eram considerados trabalhadores muito pobres, miseráveis, e que se transformaram em trabalhadores não pobres. Pessoas que passaram a ter um salário melhor, ter acesso à previdência social, direitos trabalhistas, creche, ampliaram o consumo. É semelhante ao que já ocorreu em outros países. Na França na década de 1950, de cada dez operários, um tinha automóvel. No final dos anos 1970, de cada dez, dez tinham automóvel. Ou seja, eles melhoraram de renda, passaram a ter um consumo que antes era visto como somente para os ricos, mas eles jamais deixaram de ser operários, trabalhadores, não mudaram de classe social.

A inclusão dessas pessoas se deu principalmente pelo consumo. Quais as conseqüências disso?
O consumo em geral é a porta de entrada. Estamos tratando de segmentos pauperizados para quem a adição de renda permite realizar demandas, até estimuladas pelos meios de comunicação, que anteriormente eram reprimidas. É natural que isso ocorra, não vejo nenhum mal. A preocupação maior é que, em algum momento, esse segmento que emergiu vai governar o Brasil. É um segmento em expansão, mais ativo, com uma série de demandas e anseios. E ele olha para a estrutura de representação que nós temos hoje, e ela não os representa.

Como assim?
Os partidos não conseguem representar esses novos segmentos, assim como os sindicatos, as associações de bairro, as instituições estudantis. Nós tivemos mais de 20 milhões de empregos abertos e a taxa de sindicalização não aumentou. Nós tivemos mais de um milhão de jovens, em geral de famílias humildes, que ascenderam ao ensino superior, através do Prouni, mas eles não foram participar das discussões estudantis. Alguma coisa está estranha. Há certo descompasso entre as instituições de representação de interesses e esses segmentos que estão emergindo. E essa é a tensão na política de hoje, saber para onde vai isso. Porque, embora não seja um contingente homogêneo, é um grupo de pessoas que, organizadamente, fará a diferença na política no Brasil. E esse é um desafio.

Vimos recentemente o fenômeno dos rolezinhos. O que esses eventos mostram sobre o momento do país?
A impressão que eu tenho é que esses movimentos expressam uma insatisfação. Acho que há neles uma crítica relativa ao grau de riqueza que o país tem, mas que não dá acesso plenamente para essa população. São manifestações que desejam mais, que cobram dos governos serviços de melhor qualidade. E não só serviços públicos. Temos hoje problemas seríssimos de serviços no país. Há uma crítica inegável aos serviços bancários no Brasil, aos serviços de telecomunicações, de saúde privada. Estamos num momento em que essa tensão em torno da questão dos serviços se associou à emergência desses novos segmentos da população. São pessoas que estão satisfeitas com a ascensão, mas querem mais.

No caso dos rolezinhos, qual seria a demanda?
Acho que é uma tensão em torno da questão do espaço público. É uma visão que se tem de que o shopping center é hoje um dos poucos espaços em que você tem segurança, tem lugares para caminhar. O que infelizmente a cidade não tem, não tem calçadas decentes, não tem um espaço público. O sonho de muitos prefeitos anteriormente era construir muitos espaços públicos, áreas de lazer, de entretenimento. Hoje isso se perdeu em nome da privatização do espaço público. É uma tensão também em torno de como ocupar o tempo livre, porque hoje praticamente inexistem oportunidades coletivas, públicas e adequadas para isso.

Dá para dizer que essa é uma das principais preocupações do jovem hoje?
Em parte sim. Mas nós ainda temos questões graves na juventude brasileira. Ainda temos um problema de desemprego. Não é um desemprego comparado ao de países europeus como Espanha e Grécia. É muito menor. Mas ainda há um problema de inserção no mercado de trabalho. Também tem a questão da qualidade do emprego. Temos empregos de baixa qualidade, principalmente para os jovens mais pobres. Ao mesmo tempo, uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostra que o jovem também não quer só emprego e renda. Ele quer também um outro horizonte de vida, que ele não consegue se observar na realidade que nós vivemos hoje.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=16589)

Dois caminhos para garantir velhice digna (Léa Maria Aarão Reis)

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Num país em que se vive mais, surgem alternativas opostas: garantir cuidados públicos de qualidade ou apostar na indústria de medicamentos

Por Léa Maria Aarão Reis* na Carta Maior

“Dizer ‘coma de forma saudável’ em um país subdesenvolvido soa como uma piada. Significa comer frutas quatro vezes por dia, folhas, alimentos orgânicos, sem agrotóxicos. É um discurso que se deve fazer, sim, para alertar as pessoas, mas a prática é difícil. De qualquer modo, o Brasil está comendo melhor, as pessoas fazem mais exercícios e isso é parte da prevenção secundária de doenças.”

A observação é do médico Ernani Saltz, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Federal Cardoso Fontes do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro. Ele atende a um grande número de mulheres e homens idosos por força da sua especialização, que trata do câncer, hoje considerado uma moléstia “crônico-degenerativa” por conta da longevidade esticada, como ele lembra.

Saltz coordenou a Campanha Nacional de Combate ao Câncer incluída na Campanha Nacional de Combate ao Fumo e comenta também: “A vida saudável é cara; há sempre um medicamento para vender ao idoso e um laboratório oferecendo remédio para tudo. O idoso acaba hipermedicado. Ora, não existe experiência médica sobre uma pessoa que toma seis, sete remédios ao mesmo tempo; ela ainda não foi realizada e não se sabe qual o resultado da interação desses diversos medicamentos no organismo.” Ele ressalta: “A indústria farmacêutica está vendendo a ideia de que, para cada transtorno, inclusive para a infelicidade, temos um remédio. Às vezes, as pessoas estão tristes por causa de um fato muito concreto, mas a sociedade não aceita.”

Na virada do século 19 para o 20, ele lembra, a expectativa de vida no Brasil era de 35 anos. As pessoas morriam de infecções e de acidentes. Hoje, no sul e no sudeste do país essa expectativa é igual à da Bélgica. “O país passou da fase da mortalidade infantil para a da doença crônico-degenerativa.”

As linhas entre meia idade, juventude, envelhecimento e velhice começam a se apagar. Muita gente madura atua com energia e vitalidade e vive conforme suas expectativas. Já as novas gerações dão mais atenção à saúde preventiva – o que não ocorria antes. Para garantir um futuro confortável para os novos velhos de agora é importante promover campanhas e ações educativas para desconstrução de estereótipos, para a valorizar e estimular a participação deles na sociedade. Vale lembrar que, segundo relatório recente do Banco Mundial do fim de 2013, a produtividade nos mercados de trabalho pode aumentar em até 25% com a inclusão dos idosos no processo.

Da parte da sociedade é preciso reivindicar e estimular a criação de centros de convivência para os mais velhos e o aprofundamento das políticas públicas de saúde existentes, embora elas tenham dado um passo adiante no Brasil, de onze anos para cá, com as diversas ações inclusivas do governo. Também é necessário resistir à indústria da doença, que despreza a preservação da saúde e cuja clientela preferencial é composta pelos idosos, mais vulneráveis à dependência da figura do médico onipotente e às drogas químicas.

O programa Farmácia Popular que distribui medicamentos de uso contínuo aos idosos é um exemplo. Outro, a inclusão obrigatória nos planos de saúde privada de determinados tratamentos necessários à grande maioria dos mais velhos – fisioterapia em geral, fisioterapia cardíaca, RPG.

Mas é necessário mais: apoiar, por exemplo, a prática dos chamados cuidados de longa duração. O estado tem obrigação, segundo a Organização Mundial de Saúde, de fornecê-los, assim como apoio social para as pessoas com alguma limitação severa. Considerado pela OMS como direito humano fundamental, esta prática tem sido formalizada em acordos internacionais. A responsabilidade dos cuidados de longa duração, serviço que já faz parte do sistema de seguridade social em países desenvolvidos, deve ser “compartilhada entre estado, família e mercado privado”, assinala a demógrafa Ana Amélia Camarano no volume ”Cuidados de longa duração para a população idosa / um novo risco social a ser assumido?” (Ipea/2010.)

O estado deve aumentar os investimentos no desenvolvimento de programas domiciliares e comunitários eficazes, de custos mais baixos, para atender à população necessitada, é o que registra Camarano. “Qualidade de vida desperta anseio por mais qualidade de vida, por mais e melhores serviços”, acaba de lembrar a presidenta Dilma Roussef em seu discurso em Davos.

Outro aspecto de saúde pública relacionado aos idosos é apontado pelo neurologista e psiquiatra Marco Aurelio Negreiros, com vasta clientela de indivíduos de mais idade, no Rio de Janeiro. Ele chama a atenção para o fato de, às vezes, ser o próprio paciente idoso quem busca as tais “soluções mágicas” através de pílulas. O próprio paciente reforça a cultura da indústria médica da hipermedicalização.

“As substâncias que causam dependência e contidas em tranquilizantes, benzodiazepínicos e medicamentos com tarja preta, quando receitados de forma exagerada – para dizer o mínimo – são muito usadas pelos idosos. Proporcionam conforto químico, mas tornam o idoso dependente. Acalmam e aplacam a ansiedade, mas não tratam o distúrbio. Geram depressão e distúrbios da memória,” ele diz. O uso excessivo de benzodiazepínicos, típico da cultura brasileira, no entender de Negreiros, é caso de saúde pública. Eles não são mais tão usados na Europa nem nos Estados Unidos, onde o assunto vem sendo discutido cada vez mais amiúde apesar do lobby agressivo da indústria farmacêutica.

Os benzodiazepínicos têm efeitos prejudiciais cognitivos que ocorrem com frequência nos idosos e também podem piorar um quadro de demência. Em 2012, um estudo concluiu que a utilização de benzodiazepínicos por pessoas com 65 anos ou mais está associada ao aumento de aproximadamente 50% no risco de demência.

O psiquiatra americano Peter Breggin, da Universidade de Ithaca, estado de Nova Iorque, reforça: ”Atualmente, as pessoas usam estas drogas para a ansiedade, para a obesidade, para a menopausa, para tudo. Elas são as mais complicadas na hora de abandoná-las. É mais difícil deixá-las do que a sair do vício do álcool ou de opiáceos.”

No Brasil, segundo Negreiros, há até pessoas físicas vendendo essa medicação. “Certa vez, um paciente me contou,” diz ele, “que comprava benzodiazepínicos sem receita médica com alguém que os vendia em seu apartamento. Como se fosse uma boca de fumo de benzodiazepínicos.”

“A opinião corrente, infelizmente,” diz por sua vez Ernani Saltz, “é a de que os remédios e os exames são mágicos. Na medicina, o exame mais sofisticado é hoje relegado ao segundo plano: o exame físico. Poucos médicos examinam de fato o paciente. As pessoas se referem a esta prática como a dos ‘médicos de antigamente’ e isso é terrível.”

“Temos que examinar e apalpar os pacientes; mas a prática caiu em desuso. Há uma fantasia corrente de que os exames radiológicos e de laboratório vão resolver tudo – e não resolvem. Há uma falsa segurança das pessoas ao se submeter a eles. Ouvir e examinar, apalpar os pacientes e, eventualmente, encontrar alguma lesão precoce, apenas a mão experiente do médico e o seu conhecimento são capazes de descobrir.”

Houve um movimento de alegada falta de equipamentos médicos em cidades do interior do país, por parte de alguns profissionais da saúde, ano passado, quando se iniciou o programa Mais Médico que se inclui com destaque nas ações públicas da saúde favorecendo também os novos velhos brasileiros: seis mil e 600 profissionais atuando em mais de duas mil cidades do país e beneficiando 23 milhões de indivíduos. Em março próximo, 13 mil médicos atenderão a 45 milhões de pessoas – crianças, moços e idosos. São os dados apresentados pela presidenta Dilma Rousseff no seu discurso de fim de ano.

Se por um lado há situações em que há falta de equipamentos – como mamógrafos, por exemplo – por outro, em alguns locais distantes de centros urbanos, não existem técnicos nem médicos capacitados para operar as máquinas com eficiência e analisar com precisão os exames.

Os estrangeiros e os brasileiros contratados para o Mais Médicos são orientados para trabalharem na saúde da família e na medicina geral. É o que ocorre em Cuba, por exemplo, onde os estudantes se formam apesar da carência de recursos materiais. O oposto de alguns jovens médicos – nem todos eles, é claro – formados nas universidades brasileiras os quais, em seguida, com a prática vigente, acabam sendo parceiros da indústria farmacêutica no mercantilismo da saúde (principalmente da saúde dos idosos e das crianças) e no desinteresse pelo paciente.

Nos recentes resultados do exame de suficiência aplicado pelo Conselho de Medicina de São Paulo quase 60% dos formandos foram reprovados. Segundo o próprio Cremesp a deficiência se deu na “solução de eventos frequentes no cotidiano da prática médica.” Muitos desses jovens médicos demonstraram não conhecer o diagnóstico ou tratamento adequados para situações comuns e problemas de saúde tais como pneumonia, tuberculose, hipertensão e atendimento de urgência – vários deles, distúrbios que atingem com frequência os mais velhos.

E 67% dos formandos não souberam afirmar que o grau de redução da pressão arterial é o principal fator determinante na diminuição do risco cardiovascular em paciente hipertenso – geralmente pacientes mais idosos.

Atualmente, há uma procura maior por parte dos estudantes de Medicina, no país, pela especialidade da Geriatria. “Investir” no idoso, adotando expressão mercantil própria do sistema neoliberal, se torna “bom negócio”. Que seja assim desde que o negócio beneficie ricos e pobres em atendimento adequado e digno. Todos os indivíduos, ricos e pobres, desejam envelhecer ativos, com saúde e reivindicam qualidade de vida.

Como anota Saul Leblon nesta página, “a desigualdade continua obscena, mas as placas tectônicas se movem.” Isto se aplica à velhice dourada dos bairros elegantes e dos condomínios de luxo aos idosos das favelas e das comunidades dos conjuntos populares. Aos velhos pacientes do SUS e aos dos planos privados de saúde.

A professora de Psicologia Social da PUC-RJ, Teresa Creuza Negreiros, costuma descrever a nossa época como o mundo do “aperta botão e passa cartão”. Um mundo que pode ser vivido pelo idoso com maior dificuldade, como ela diz, o que não significa que a maioria deles se furte a ele: “O velho não é mais o estorvo que era no passado; não é um cidadão de segunda classe e não deseja se ver excluído.”

*Autora do livro Novos velhos – viver e envelhecer bem (Ed. Record)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/dois-caminhos-para-garantir-velhice-digna/)

Florianópolis já encara quem a captura (Felipe Amin Filomeno)

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Em meio à ostentação e apetite dos que privatizam terras e bens públicos, emergem ocupações de sem-teto e lutas pelo Comum
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Ana Rita MayerOcupação Amarildo de Souza
Florianópolis é uma cidade belíssima por sua paisagem natural e, por isso, há décadas atrai turistas do Brasil e da América do Sul nas temporadas de verão. Em anos mais recentes, a cidade também ganhou destaque pela alta qualidade de vida que proporciona a seus habitantes – comparativamente a outras cidades brasileiras – e pela visita ocasional de celebridades. Em especial, a praia de Jurerê Internacional, no norte da Ilha de Santa Catarina, virou referência internacional para a habitação e o turismo de luxo. Ali, celebridades são vistas saindo de automóveis Ferrari em direção a festas em mansões. Esta reputação glamurosa não combina com a notícia de que, em 16 de dezembro de 2013, movimentos sociais do campo e da cidade, juntamente a mais de 60 famílias, ocuparam um latifúndio situado às margens da SC-401, rodovia que leva às praias do norte da ilha – incluindo Jurerê. Hoje, num passeio de carro de apenas cinco minutos é possível sair de uma mansão à frente do mar em Jurerê e chegar ao conjunto de barracas de madeira e lona, que formam a ocupação denominada “Amarildo de Souza”. Estas duas realidades, aparentemente opostas, estão organicamente relacionadas. Elas são produtos contraditórios da acumulação por expropriação, que historicamente caracteriza a economia política de Florianópolis e a liga a processos de exploração e resistência em curso no Brasil e no mundo.
Jurerê Internacional - Florianópolis
Jurerê Internacional – Florianópolis
Um pouco de teoria…
Um dos conceitos mais importantes em economia política é o de “acumulação primitiva”, o qual se refere à acumulação de capital que não resulta do modo de produção capitalista, mas é seu ponto de partida. É o processo pelo qual os meios de produção foram originalmente acumulados sob controle de uma determinada classe social que, então, tornou-se capitalista. A forma mais clássica de acumulação primitiva – geralmente ensinada em cursos de história no ensino médio, quando se fala sobre a Revolução Industrial – foi o cercamento de terras de propriedade comum, praticado por latifundiários ingleses amparados pelo Estado, no final do século XVIII. Este cercamento deixou camponeses sem terra e os transformou em proletários disponíveis para as indústrias nascentes. Karl Marx, no entanto, apontou também outras formas de acumulação primitiva através das quais a propriedade comum, coletiva ou do Estado se tornou propriedade privada: os saques e invasões feitos através das colonizações, o endividamento público e o sistema de crédito.
Em tempos contemporâneos, o geógrafo marxista David Harvey introduziu o termo “acumulação por expropriação” para se referir ao processo que Marx chamou de “acumulação primitiva” e, com isso, mostrar que não se trata de algo prévio ao capitalismo, mas sim de um processo integral ao seu funcionamento até a atualidade. As privatizações de empresas públicas a preços abaixo do seu valor real, a supressão da agricultura familiar pelo agronegócio e o aumento da carga tributária para pagar uma dívida pública inchada por juros elevados são exemplos atuais de acumulação por expropriação. Nestes casos, a acumulação não cria valor novo: ela se dá através da transferência de valor já existente na esfera pública ou comum para a esfera privada. Isto se dá, muitas vezes, através de mecanismos não econômicos, como o Estado (que privatiza, que subsidia o agronegócio, que cobra tributos regressivos).
Frequentemente, a acumulação por expropriação gera oportunidades para o “rentismo”. Na economia política de língua inglesa, “rent” é um pagamento a um fator de produção (terra, trabalho ou capital) acima de seu custo de oportunidade. “Rent” é uma remuneração excessiva derivada da escassez (natural ou criada) de um dado fator de produção. Por exemplo, se o fator de produção “trabalho” está organizado na forma de guildas, a ação política dos trabalhadores pode forçar um aumento excessivo da sua remuneração. No caso da terra, a acumulação por expropriação pode tornar a terra escassa, permitindo a seus proprietários a cobrança de aluguel exorbitante. Quando a “rent” é recebida por um agente privado, este é denominado “rentier” – o rentista.
Nos parágrafos abaixo, vou mostrar como a geo-economia de Florianópolis é marcada pela acumulação por expropriação, capitaneada por uma elite rentista e conservadora, à qual se contrapõem movimentos sociais em defesa dos espaços públicos e do meio-ambiente.
Florianópolis, cidade da acumulação por expropriação e do rentismo
O hino municipal de Florianópolis, de autoria do poeta Zininho, começa com os versos “Um pedacinho de terra, perdido no mar!… Num pedacinho de terra, beleza sem par…”. Estes versos nos mostram, artisticamente, duas características fundamentais da economia política da cidade: a escassez do espaço (um “pedacinho de terra”) e sua utilidade econômica para o turismo e a construção civil (derivada de sua “beleza sem par”). Em função disto, em Florianópolis – mais do que em outros lugares – a privatização e a monopolização do espaço geram vantagens econômicas extraordinárias. O hotel pode ter um serviço de quarto excelente, mas se da janela do quarto o hóspede não enxerga o mar, o valor da diária cai lá embaixo. O terreno com vista para o mar é o principal ativo do empresário hoteleiro. Análoga é a situação da indústria local da construção civil.
Este é o rentismo da paisagem, manifesto claramente em um projeto privado para a construção de um hotel de luxo numa área de Florianópolis conhecida como Ponta do Coral. A área foi privatizada por decreto em 1980 por Jorge Bornhausen, governador “biônico”, indicado não democraticamente pelo regime militar. Conforme artigo do Diário Catarinense (31/05/2013), a “venda foi contestada, uma vez que precisaria de aprovação da Assembleia Legislativa (conforme previsto pela Constituição Estadual em vigor na época), o que não ocorreu. A atitude provocou revolta na sociedade, que passou a protestar considerando a venda um ato nulo”. Em 2005, uma lei aprovada na Câmara de Vereadores, e sancionada pelo então prefeito Dário Berger, autorizou um aterro numa faixa de 33 metros no entorno da península. Este enorme aterrro – ainda que público – viabilizaria a construção de um hotel muito maior do que seria possível na ausência de aterro. Na prática, esta legislação – considerada posteriormente inconstitucional pela Secretaria de Patrimônio da União – implicava a privatização do mar. Acumulação primitiva, nua e crua, baseada em privilégios políticos, pois um pobre pescador que pedisse à prefeitura autorização para aterrar área marítima em frente ao seu rancho certamente teria o pedido negado.
Ponta do Coral - Florianópolis.
Ponta do Coral – Florianópolis.
O caso da área da Ocupação Amarildo de Souza é também desconcertante. Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC, Alexandre Botelho, na ação de reintegração de posse da área de cerca de 900 hectares, movida pelo “proprietário”, este demonstrou, com documentos (cinco escrituras públicas), a propriedade de apenas 9,8 hectares (cerca de 1% da área cercada). Além disso, a maioria dos barracos instalados pelos ocupantes está às margens da rodovia SC-401, numa faixa de terra onde passava a antiga estrada Virgílio Várzea – terra pública, portanto. Cercamentos típicos do século XVII ocorrendo em pleno século XXI.
A construção civil e a hotelaria não são, entretanto, as únicas atividades importantes na Ilha de Santa Catarina. Muito antes de ser capital turística do Mercosul e lócus de um “boom” imobiliário, Florianópolis já era capital do Estado de Santa Catarina, repleta de órgãos públicos federais, estaduais e municipais. Transfira-se a capital para outra cidade e Florianópolis enfrentará um longo período de depressão econômica, carente que ficará dos investimentos e despesas públicas assim como dos salários do funcionalismo. Aqui também, o rentismo domina, pois o “alto funcionalismo público” – onde estão os grandes salários, os generosos “auxílio-moradia” e a influência política – é formado por verdadeiras guildas medievais no século XXI. Neste caso, é a escassez de altos cargos no Estado e o acesso restrito a estes que garante a “rent” na forma de altos salários e prestígio político.
Em primeiro lugar, há os funcionários mais antigos, que ingressaram no serviço público antes da Constituição de 1988 mais por favores políticos do que por concurso público. Em segundo lugar, há os funcionários em cargos comissionados, ainda hoje nomeados legalmente por critérios políticos. Em terceiro lugar, há o funcionalismo concursado, que é apenas parcialmente meritocrático. Digo parcialmente, porque ser aprovado nos concorridos concursos públicos para altos cargos é mais acessível para quem já é da classe média, para quem teve formação básica de qualidade e para quem não precisa trabalhar e tem tempo para estudar. Além disso, uma vez aprovado no concurso público, a progressão dentro da “corporação” depende de mais do que competência técnica e experiência. Para virar desembargador, por exemplo, um juiz depende de decisão – necessariamente política – tomada pelo governador do Estado.
Ocupação Amarildo de Souza - Florianópolis
Ocupação Amarildo de Souza – Florianópolis
Assim, a elite de Florianópolis é formada por grandes proprietários de imóveis, construtores, hoteleiros e altos funcionários públicos empregados nos três poderes. Com a modernização da cidade e a atração de pessoas de outras regiões, esta elite incorpora novos membros (do cirurgião plástico ao empresário do ramo de tecnologia), mas aquele permanece como seu “núcleo duro”. Entre as famílias “tradicionais” de Florianópolis, facilmente se encontra, na mesma família, pessoas em todas aquelas posições: o hoteleiro é irmão de um construtor, ambos filhos de um grande proprietário de imóveis, cujo cunhado é fiscal de tributos. E há uma simbiose entre estas categorias da elite florianopolitana. Com uma breve pesquisa no Google, encontra-se processos judiciais contra grandes proprietários de imóveis acusados de subornar funcionários públicos para que agências do Estado aluguem seus imóveis por valores acima dos de mercado. A elite de Florianópolis é, portanto, por definição, oligárquica e rentista.
Há também uma colaboração entre a elite e a imprensa local, responsável por reproduzir entre os habitantes da ilha a visão de mundo conservadora que corresponde ao rentismo.  Na colunas de opinião dos jornais locais, são frequentes as críticas a iniciativas do atual prefeito César Souza Júnior contra a acumulação por expropriação. Entre elas, o cancelamento de alvará que a administração anterior havia concedido para a construção do enorme hotel na Ponta do Coral e o aumento do IPTU e do ITBI para penalizar a especulação imobiliária e socializar parte dos ganhos econômicos dos grandes proprietários de imóveis. Para o conservador florianopolitano, a acumulação por exproriação é “empreendedorismo e desenvolvimento” e quem defende o espaço público e o meio-ambiente contra a acumulação por expropriação é “socialista eco-chato”.
Esta estrutura social e padrão de acumulação de capital condicionam a política local. As diversas lutas pela justiça social em Florianópolis – do movimento pela conversão da Ponta do Coral em área pública verde ao movimento dos estudantes pelo passe livre no transporte público – tem, como denominador comum, a resistência contra a acumulação por expropriação e a proteção dos espaços comuns. Talvez por isso, o discurso socialista de partidos de esquerda, focado na exploração do proletariado industrial, não tenha ressonância na população de Florianópolis e explique a pequena dimensão destes partidos na política local. Florianópolis não é o ABC paulista; nossa mobilização popular é mais pós-moderna.
Florianópolis como cidade brasileira e global 
O caso de Florianópolis interessa não apenas aos seus habitantes, pois é manifestação extrema de processos sociais que marcam o Brasil e o mundo atual. Não é por acidente que a ocupação no norte da ilha foi denominada por seus líderes de Ocupação Amarildo de Souza, o ajudante de pedreiro que virou mártir da onda de protestos que tomou o Brasil em meados de 2013. Assim como a ocupação, os protestos pelo país foram motivados largamente pela defesa do espaço público das cidades. Estes conflitos, em Florianópolis e no Brasil, integram — junto com o “Occupy Wall Street”, o movimento anti-austeridade na Europa e as lutas contra a usurpação de terras na África — uma onda mundial de resistência contra a acumulação por expropriação.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/florianopolis-ja-encara-quem-a-captura/)
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