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domingo, 25 de maio de 2014

Educação: o desafio da transexualidade (Márcia Acioli)

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Escolas e professores seguem pouco preparados para lidar com sexo. Incompreensão e preconceitos religiosos ampliam violência e sofrimentos. Programa pioneiro enfrenta problema

Por Márcia Acioli

A escola brasileira tem sido convocada a contribuir para o enfrentamento a diversas formas de violação de direitos. Organizações da sociedade civil cobram da escola educação em direitos humanos, acreditando, com isso, fortalecer a capacidade de fala e de participação de estudantes na conquista de direitos, e por consequência, a criação de clima favorável ao acolhimento de todos os perfis de estudantes que nela ingressam. O propósito é assegurar educação de qualidade mudando o panorama de violência, seja pelo fortalecimento dos sujeitos, seja pelo diálogo que a escola faz com a sua comunidade. Temas como trabalho infantil, exploração sexual, Estatuto da Criança e do Adolescente e diversidade entram na pauta das escolas como proposta das políticas de educação federal, estaduais, municipais e distrital.

Quando o assunto é sexo e sexualidade os desafios são maiores e os/as profissionais da educação nem sempre estão preparados/as. Raras vezes as escolas incorporam no seu dia a dia o trato com questões referentes à sexualidade ou identidade de gênero.

Mesmo na universidade a situação é difícil. Segundo Marcelo Caetano “o semestre passado (2012) foi o semestre que eu tive mais problemas com os professores em relação a isso, eu fiz sete matérias, eu tive que trancar seis, porque os professores não aceitavam [o nome social].” Revista Descolad@s, Inesc 2013.

Francisco (nome fictício), adolescente de 16 anos estuda no Distrito Federal. Seus amigos não sabem que ele nasceu com sexo feminino. Com muito respeito, seus professores o tratam pelo nome masculino. Assim mesmo ele tem muito medo de ser descoberto pelos colegas.

Já a adolescente Ana Luiza (estudante de escola particular em Fortaleza), sofreu constrangimentos por ocasião de sua identificação na prova do ENEM. Ao receber total apoio da família se fortalece para seguir seus estudos. Diferente de uma amiga que, expulsa de casa, encontrou na prostituição a única oportunidade para a sua sobrevivência.

Portanto, é impensável a escola se esquivar da responsabilidade perante temas de tamanha importância que tanto afetam estudantes quanto profissionais e familiares. A transexualidade (falta de sintonia entre o corpo biológico e a identidade de gênero) ficou abafada por muito tempo e muitas pessoas permanecem sofrendo em suas respectivas solidões. A transexualidade ainda é percebida como aberração; no mínimo, uma patologia. São ideias equivocadas, vastamente desmentidas pela comunidade acadêmica tanto das áreas de saúde, quanto humanidades.

O 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica elaborado pela coordenação de Promoção dos Direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República revela que de 2011 para 2012 há um aumento significativo de violência contra a população LGBT, sendo que o Distrito Federal lidera o ranking. Os jovens de 15 a 29 anos representam 61% das pessoas afetadas pela violência homofóbica, de onde se conclui que a maior parte ainda está na escola; provavelmente no Ensino Médio.

Diante deste cenário, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco — e o ministério da Educação incorporaram a preocupação com as diversidades na escola. No entanto, é muito difícil emplacar o tema da transexualidade numa realidade repleta de pessoas conservadoras. Um dos maiores problemas é a relação promíscua entre religião e escola, a despeito o fato de o Brasil ser um estado laico. Os materiais produzidos pelo projeto Escola sem Homofobia, por exemplo, foram condenados à fogueira pelos fundamentalistas de plantão.

O grau de preconceito e de discriminação que vivem as pessoas transgênero, transexuais e travestis as leva a esconder seus sentimentos, suas identidades ou a evadir da escola. Como aponta Berenice Bento, as pessoas trans “sofrem evasão escolar” por meio de tecnologias cotidianas de exclusão. Seja pela violência transfóbica ou homofóbica, seja pela inadequação do trato pedagógico estudantes experimentam um massacre diário para sobreviverem à escola.

Propostas da Conferência Nacional de Educação Básica em relação à diversidade sexual são simples e viáveis como: evitar discriminações de gênero e diversidade sexual em livros didáticos; ter programas de formação em sexualidade e diversidade; promover a cultura do reconhecimento da diversidade de gênero, identidade de gênero e orientação sexual no cotidiano escolar; evitar o uso de linguagem sexista, homofóbica e discriminatória em material didático-pedagógico; inserir os estudos de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.

O projeto Eu te desafio a me amar é um convite amoroso para o aprofundamento no tema com uma abordagem delicada e séria. O projeto, que consta de uma extensa programação, propõe pautar o tema pelo olhar sensível e estético da fotógrafa Diana Blok e convida adolescentes do Ensino Médio de Brasília e professores de todas as modalidades de ensino a debaterem sexualidade e identidade de gênero a partir do vídeo da mesma autora.

Enfim, a vida escolar é decisiva para a formação e o desenvolvimento da criança e pode se dar em ambiente estimulante, tedioso ou excludente. Portanto, se a escola deseja ocupar seu lugar privilegiado na promoção de cidadania de crianças e adolescentes, não pode ignorar nenhum público. Precisa acolher, incluir e garantir o desenvolvimento pleno de todos os meninos e de todas as meninas, inclusive de todos os meninos que nasceram meninas e de todas as meninas que nasceram meninos e de todos os meninos e meninas que flutuam em busca de suas identidades e jeitos de caminhar na vida.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-desafio-da-transexualidade/)

sábado, 3 de maio de 2014

ENTRE A REPÚBLICA E A CORPORAÇÃO DO MÉRITO E DA HIERARQUIA? - REFLETINDO SOBRE O MANIFESTO CONTRA A “PARIDADE” NA UFSC (João José Veras de Souza)

Por João José Veras de Souza (doutorando do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC)



Li o Manifesto (que adiante passo a identificar com o número 1) e o texto que lhe segue como explicativo “Manifesto à Comunidade Universitária. Eleição para Reitor.” Assinado por vários professores da UFSC(2). Li também o artigo do professor  Paulo C. Philippi – A crise da UFSC não está nas drogas(3) – que puxa o assunto (todos publicados na internet no blog do jornalista Moacir Pereira, do Grupo RBS), e li também um outro artigo de autoria do mesmo professor publicado na página da APUFSC, sob o titulo Democracia na UFSC (4). Entendo que o Manifesto para ser melhor compreendido deve ser lido considerando o conjunto do referidos escritos. Há laços que lhes dão unidade – nestes, os fundamentos avançam para além do jurídico – e possibilitam a sua melhor compreensão, alimento essencial para o debate.

A questão levantada é diversa  e riquíssima para análise. No entanto, vou me ater a alguns dos aspectos nela contidos que no momento me chamam mais atenção. Em síntese, as manifestações estão centradas na defesa do seguinte argumento: o processo informal de escolha da lista triplice para o cargo de reitor da UFSC não está atendendo a previsão da lei 9.192/95, no seu inciso III, que estabelece  peso de 70% para o voto dos docentes em relação aos discentes e servidores. Mesmo apesar de que na UFSC, desde a década de 80 e, inclusive, sob a égide da referida Lei, o voto é paritário, o Manifesto pugna pelo fim desta prática ante a sua patente ilegalidade. (cfe 1, 2, 3 e 4)

O fundamento básico contido especialmente no Manifesto é, como demonstrado, o juridico. Mas não se resume/limita a ele (cfe 2). As referidas manifestaçõs fazem um esforço argumentativo para justificar a razão de existir daquela previsão legal. Usam como principio fundamental  a importância da centralidade (de poder e de saber) sob o corpo docente na Universidade. Nesse sentido, aduzem ser o professor a sua base intelectual, portanto aquele que a pensa, razão pela qual defendem caber a ele o comando/liderança maior da instituição de ensino superior e, por tais razões, o direito de definir os seus destinos. (cfe 1, 2 e 3)

No artigo Democracia na UFSC, o professor Paulo C. Philippi, nesse sentido, é claro:

“A Universidade não é uma república. No processo de escolha do Reitor em uma autarquia pública o mestre possui o mérito de ser a base intelectual da universidade (o seu ‘corpo de governo’ nas palavras de Darcy Ribeiro), no sentido que ele é quem decide para aonde deve ir a universidade em suas metas de proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, produzir e difundir conhecimento. E esta é a grande razão para que sua opinião seja privilegiada neste processo em relação à dos demais segmentos. E não só pela Lei.”(cfe 4)

Mas existem outros argumentos que, embora não estejam explicitamente expressos no corpo do Manifesto, estão bastante presentes nos outros textos especialmente naquele – A Crise da UFSC Não Está nas Drogas – que pega a carona/mote do recente evento politico-policial chamado, por uns, de “O Levante do Bosque”, e, por outros, de “A Revolução dos Maconheiros”. De fato, o conjunto de textos referidos se insurgem contra a paridade na escolha do Reitor baseado em, pelo menos, três argumentos: i) o a favor da legalidade;ii) o a favor da manutenção do poder docente e sua autoridade meritocrática-institucional, e iii) o contra um suposto poder discente – ou “cidadania universitária”  – que supostamente quer transformar a UFSC numa “universidade popular”. (cfe 1, 2, 3 e 4)

Tenho para mim que todos os argumentos merecem ser problematizados tendo em conta  as idéias que se possa ter de poder, de saber e de ser numa sociedade democrática.

É fato inquestionável  a existência de uma Lei que, aos olhos de todos e por vontade popular (de toda a comunidade acadêmica) e também institucional, está sendo, em parte, desconsiderada – pontualmente no processo de escolha informal da lista tríplice. Na UFSC, há quase 20 anos que a paridade é a norma. Aliás, antes da lei – desde a década de 80 – que a paridade já era regra. Não se tem noticia que alguém tenha questionado judicialmente este fato. Nem as autoridades internas, nem externas, nem seus controles, nem a comunidade universitária. Aliás, este é um fato que se repete tal qual em 39 das 54 universidade púbicas brasileiras, portanto em quase 70%, delas, conforme dados levantados pela UNB em 2012 .

Este fenômeno coloca em xeque o poder da lei em relação à vontade popular e com a “conivência” das instituições.  Isto é juridica e socialmente significativo. Não pode ser desprezado. Talvez esteja aqui a realização concreta da vontade – efetivamente – autônoma da comunidade universitária. Devemos pensar mais a respeito para além daquilo que possa siginificar uma conveniência pontual de grupos de poder. De um modo importante, isto coloca  em questão a ideia de autonomia universitária na prática. O que, aliás, no sentido mais profundo, não revela autonomia nenhuma tendo em vista que, ao final e definitivamente, quem escolhe o reitor das universidades é o Chefe do Executivo Federal e não as suas comunidades.

Mas este não é o fundamento fonte/forte do manifesto. Como fazem questão de afirmar seus autores, não se trata especificamente de se questionar o cumprimento ou não da lei (cfe 2). O mais importante é o que a motiva e a justifica – o que a faz necessária no contexto universitário. Pelo que se pode observar, existem outras motivações que se substanciam na exata compreensão que os propositores do Manifesto – em relevo o professor Paulo C. Philippi – têm de poder, de saber e de ser no campo acadêmico institucional das universidades brasileiras. Vejamos.

O referido professor (cfe 3), aponta que há, embora minoritário, um poder estudantil em marcha dentro da UFSC – poder este voltado para a consecução de uma “universidade popular” – que está dando o ritmo à UFSC, causando, com isso, uma crise de autoridade na instituição. Para Paulo C. Philippi, o foco desse “levante” é o Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFH  aonde se pratica o voto universal, regime pelo qual a vontade do discente tem o mesmo peso que a do docente. Acusa o professor que se está criando na UFSC “Uma forma de populismo que, ainda que possível de ser admitido em uma república, é extremamente nocivo em uma casa hierárquica baseada na meritocracia como é o ambiente universitário” (cfe 3).Assim, para ele, o que está em curso é “um projeto para transformar a UFSC numa ‘universidade popular’” (cfe 3). Segundo entende, não é isso que a sociedade catarinense quer. Para ele, o Estado de Santa Catarina deve à meritocracia implantada na UFSC o seu alto nível de desenvolvimento. Noutras palavras, o professor está dizendo que uma ‘universidade popular” se destata por se revelar o inverso do que a UFSC tem sido até agora. (cfe 3)

Como é posta tal ordem de entendimento, a premissa básica lançada é a de que uma “universidade popular” (o professor Paulo C. Phillip chega a afirmar que não sabe exatamente o que seja isto – cfe 3) ou pelo menos aquela que seja pautada num poder estudantil ou numa “cidadania universitária”, é contrária às ideias de competência acadêmica (mérito), de autoridade (como exercício da transmissão do “respeito ao conhecimento, à ética, aos valores humanos…” – cfe 3), e de legalidade. Segundo entende o professor, “a universidade não é uma república” (cfe 3 e 4). Aqui o argumento é claro no sentido de que há incompatibilidade frontal entre a idéia de democracia, portanto de participação na ordem do poder, com a de transmissão de saber. A universidade não seria uma coisa pública mas uma coisa do professor, aquele que detém o saber. A universidade, por essa linha de entendimento, seria um centro de saber e não de poder. Como se fosse possível tal separação e como se não houvesse poder nos sistemas de saberes e de sua produção e reprodução.

Esta questão coloca a existência de uma divergência de fundo entre aquilo que seria uma universidade baseada na meritocracia e na hierárquia em relação aquilo que seria uma universidade popular e democrática. Essa distinção traz, em si, a impossibilidade de convivência das oposições apontadas. Por este entendimento, a dupla popular/democracia é diametricamente incompatível com o par mérito/autoridade. Aqui parece residir uma espécie de preconceito diante do que seja considerado popular.O que é compreesível para quem  nutre uma visão hierárquica entre saberes. Nesse sentido, a idéia de popular/democrático remete oposição ao conhecimento e à falta de hierarquia. Com isso, um poder popular – que para o professor significa uma forma de populismo (cfe 3) – na universidade representaria o fim do conhecimento, como mérito, bem como da hierarquia como método do exercício do poder. Insisto: por essa forma de compreensão, com uma universidade popular, o saber seria substituido pelo poder. Seria assim mesmo? Estaria confundindo porque é confuso ou é confuso porque se está confundindo?

Como se apresenta, o conjunto dos escritos também levam a crer que há uma politização negativa na universidade que é perniciosa ao poder (pois refuta a idéia de autoridade), ao saber (desconsidera a idéia de meritocracia)  e ao ser (no que resulta a formação de indivíduos incompetentes e assim improdutivos). E essa politização negativa tem como foco de reprodução os alunos (alguns, a minoria – cfe 3) – limitados à condição de meros receptores dos conhecimentos acadêmicos – e a idéia que pregam de “universidade popular” em que seria exercida uma certa “cidadania universitária” (cfe 4).Sob tal  prisma, a politização negativa – que se expressa como uma forma de “populismo” (cfe 3)-  seria  nociva à universidade representando, assim, o seu fim “…como centro de dominio, produção e difusão do conhecimento”. (cfe 3) Não existe saber na discência.

A contrario sensu, no outro polo, teríamos a não-politização – ou a politização positiva – que na universidade faz bem ao poder (reafirma a autoridade institucional sobretudo na figura do professor), ao saber (coloca o mérito como o meio para se alcançar o conhecimento significativo) e ao ser (forma indivíduos competentes e produtivos ). E essa não-politização tem como foco de reprodução os professores, aqueles a quem cabe pensar e fazer a universidade.

Quanto ao suposto avanço do poder estudantil em relação ao poder docente (causando uma crise de autoridade na instituição), tenho para mim que há um latente equívoco por aqui. Em última análise, a paridade não retira o poder que o corpo docente tem nas universidades federais brasileiras. Ela apenas esgarça a possibilidade da comunidade universitária – em suas categorias discente e de servidores – de participar dos processos eleitorais nos quais só – e somente só – o professor poder ser o eleito. Salvo raríssima exceção, o professor continua sendo, de fato e de direito, o único integrante da comunidade universitária a ter o direito de ocupar cargos de direção nas instituições federais de ensino, como reitorias, centros de ensino e órgãos colegidos deliberativos e executivos (nestes, integrando sempre como maioria). O que resta de alternativa para os alunos e servidores é apenas a opção de escolher entre este ou aquele professor. Muito embora se propala que a universidade se baseia numa gestão em que a sua comunidade – e não um de seus segmentos – é o ator principal. É fato que o poder hierárquico – acadêmico e administrativo – ainda se encontra nas mãos dos professores, apesar da paridade informal. É possível, diante deste contexto, pensar que tal fato venha a ofender princípios democráticos relacionados à participação na condução dos destinos da instituição em todos os sentidos.

Ademais, convenhamos, essa paridade informal é precária não só sob o ponto de vista jurídico. No pólo em que realmente interessa, posto que decisivo, ela está adstrita ao crivo formal dos 70% da representação docente do Conselho Universitário – quem dá a última palavra no sistema decisório da IFES. Em verdade, afora a força simbólica desta paridade, o seu poder político se sustenta por um triz no despenhadeiro dos interesses.

É bom lembrar, ainda, que, para aquém da condição de eleitores/votantes, os discentes e os servidores não detém qualquer poder decisório importante na estrutura institucional da universidade. As associações de servidores, centros acadêmicos e diretório central dos estudantes existem como meio-instrumento coletivo de condução de pautas, manifestação e luta por seus interesses e direitos. Suas participações nos colegiados da instituição – estes que decidem – é extremamente minoritária não oferencendo, com isso, nenhum risco de, pelo número, fazer qualquer alteração institucional.  Mesmo no sistema paritário, sua força se limita a 1/3 dos votos, portanto ainda são, separadamente,a minoria no sistema eleitoral. O império dos professores continua intacto. Porque tamanho medo?

Por fim, no arcabouço das argumentaçõe dos escritos em questão, é, salvo melhor interpretação, possível se extrair – o que me parece igualmente expressivo – uma manifesta falta de consideração quanto ao papel do aluno como aquele que também pensa a universidade e contribui para o processo de construção – não só reprodução – de conhecimentos (se isto é certo nas graduações o é sobretudo nas pós-graduações). Os alunos vezes são tidos como se fossem  páginas brancas disponíveis a quaisquer anotações dos seus mestres. A sua condição cidadã – que se opera fortemente quando resolve escrever e interpretar por conta própria suas páginas – é colocada como um comportamento a ser reprimido posto que subversivo às ordens professorais próprias dos sistemas hierarquicos irreflexivos e por isto autoritários. É este ser-sujeito que esta universidade pretende “formar”? Da mesma maneira, os servidores são postos à completa invisibilidade, no  sistema de poder e saber, como se suas participações não fossem relevantes dentro do contexto da gestão acadêmica. A universidade não é só o professor, ela não é apenas de seu interesse – isto é o óbvio anotado sob as nossas cabeças – mas se todo o poder lhe for destinado – no caso específico de que estamos a pensar – de ser eleitor majoritário e único eleito – então é fácil concluir que o princípio da gestão democrática não passará de uma mera frase inócua. Aliás…

Pela democracia na UFSC: Resposta ao Manifesto que exige 70% de peso dos votos à categoria docente (Gabriel Martins)

Por Gabriel Martins*

Nas últimas semanas foi divulgado manifesto de servidores públicos da carreira de magistério superior da UFSC em que se exige que as eleições para reitor dessa universidade, a ocorrer em 2015, tenham os votos dos professores equivalentes a 70% dos votos totais, mesmo sendo os professores apenas 5% do total da comunidade universitária, composta também por estudantes e Técnicos-administrativos em Educação (TAEs). O documento foi divulgado na UFSC e na imprensa catarinense e responde pelos motivos dos pouco menos de 20% dos professores da UFSC terem encaminhado abaixo-assinado à Administração Central da universidade com a exigência do que interpretam ser o cumprimento das leis em torno das “eleições” para reitor na maior universidade de Santa Catarina.

No documento, assinado por 12 servidores, são expostos dois motivos centrais à exigência: (a) a legalidade e (b) o “mérito docente”. Carece o manifesto, portanto, de contextualização e, com base nessa mesma contextualização, falta ao manifesto elementos essenciais para a análise tanto da legalidade quanto do mérito, ao que me proponho aqui a examinar.

O contexto do manifesto

O abaixo-assinado foi elaborado no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos de um Grupo de Trabalho (GT) designado pelo Conselho Universitário da UFSC (CUn) para revisar as regras para a consulta informal à comunidade universitária à escolha dos próximos reitor(a) e vice-reitor(a) da Instituição.

No decorrer dos trabalhos do GT foi divulgado um texto chamando a comunidade universitária para debater as formas legais possíveis de consulta, sendo apontada a discrepância dos regramentos formais, que não atendem a critérios democráticos por considerarem que cidadãos brasileiros se distinguem quando estão na Universidade. Para esclarecer os aspectos centrais dessa questão, abordarei aqui tanto a legalidade quanto o “mérito docente”, de modo a deixar claro que não há qualquer ilegalidade em os professores não terem peso 70% nas “eleições” para reitor. Viso também deixar claro que o alegado “mérito docente”, que justificaria o fato de os professores serem os únicos capazes de escolher o reitor das universidades, não tem consistência dentro das universidades brasileiras, conforme estão regradas pela Constituição de 1988. Ou seja, ou os autores do manifesto exigem o cumprimento integral das leis e aceitam que o “mérito docente” não é condizente com os argumentos apontados, ou defendem o “mérito docente” e contrariam a lei. Mas analisemos primeiro a legislação para as “eleições” de reitor nas Instituições Federais de Ensino Superior.

A legislação para as “eleições” para reitor

Em primeiro momento é relevante esclarecer: não existem, legalmente, eleições para reitor nas universidades brasileiras. A lei 5.540 de 1968 – período de exceção do Estado Brasileiro, que vivenciava naquele momento um processo ditatorial que perduraria por cerca de 21 anos – aponta que o cargo de reitor é exclusivamente nomeado pela presidência da República. Com o passar dos anos os decretos que melhor instruíam essa nomeação se alteraram e hoje o que perdura afirma que a presidência nomeia a reitoria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir do quadro de professores da própria instituição e que tenham título de doutorado. Para a escolha desse nome, a universidade elabora uma lista com três nomes de sua preferência, e em ordem de preferência, no que se chama lista tríplice.

Quem elabora a lista tríplice é o órgão deliberativo máximo da universidade no caso da UFSC é o CUn. O CUn tem de encaminhar a lista tríplice a partir de determinados regramentos. Os nomes são auto-indicados, ou seja, tem de haver o compromisso do professor doutor de querer ser reitor. Os nomes auto-indicados (candidatos) são votados pelo CUn, em um processo em que cada conselheiro universitário vota em somente um nome e os três mais votados compõem, em ordem de votação, a lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação (MEC). O CUn é, por força de lei, formado pelo mínimo de 70% de professores.

Mas é possível também, por questões tanto de legalidade quanto de legitimidade, que o CUn faça uma consulta pública aos demais membros da comunidade universitária. Sem esse procedimento, seria possível o mais corrosivo mal a uma democracia: a perpetuação do poder, pois todos os professores do CUn são, por força de lei federal, indicados pelo reitor. Isso ocorre porque da mesma forma como é a presidência da República quem de fato escolhe a reitoria da universidade, é atribuição da reitoria a escolha dos diretores de centros de ensino e pró-reitores. E é atribuição dos diretores dos Centros de Ensino a escolha dos representantes docentes no Conselho Universitário. Ou seja, o reitor, por força de lei, nomeia 70% do Conselho Universitário.

Desse modo, se competir tão somente ao CUn a indicação da lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, pode facilmente ocorrer a perpetuação de poder, pois 70% do CUn é, por lei, nomeado pelo reitor e esses mesmos 70% indicam o reitor.

As consultas são, desse modo, adotadas tanto para a escolha dos nomes da lista tríplice, quanto para a designação de Diretores dos Centros de Ensino, Coordenadorias de Curso etc.

As consultas, a legalidade e a legitimidade

Com a lógica de o CUn indicar os nomes para reitor e o reitor indicar os nomes para o CUn, que é o que obriga a legislação brasileira, as chances de constituição de uma oligarquia na gestão de todas as instâncias da universidade são imensas. Apesar de legal, tal medida não é, contudo, legítima. Imaginemos o que ocorreria se atual administração da UFSC passasse a exigir a lei e nomeasse novos diretores dos Centros de Ensino e representantes docentes para o CUn. A atual reitoria teria, portanto, automaticamente 70% de todas as cadeiras do CUn, que indicaria os novos nomes, em ordem de preferência, para a reitoria a partir de 2016. E ninguém se surpreenderia com uma reeleição ou com a condução de um de seus aliados políticos para a nova gestão, que então indicaria 70% do CUn, que indicaria o novo reitor, e assim, ad eternum, até a completa degeneração das instâncias democráticas e acadêmicas. Ou até o levante da universidade.

A fim de evitar comoções ou degenerações deletérias, as universidades adotam, desde os anos 60, o processo de consulta, que se assemelha a uma eleição. As consultas, contudo, não necessariamente substituem a indicação do CUn, mas indicam o que pensa a comunidade universitária, orientando e legitimando a escolha do Conselho. Na UFSC, as consultas datam de 1991. Nos anos 70, houve colégios eleitorais, sendo o de 1976 emblematicamente composto por 21 professores, 3 estudantes e 1 representante da FIESC. Os estudantes se recusaram a votar.

Atualmente todas as IFES brasileiras realizam consulta à sua comunidade, antes da elaboração da lista tríplice, e, em curiosa proporção, 70% das IFES realiza consulta com peso de votos paritários, ou seja, 33% dos votos da consulta é relativo a cada categoria (professores, TAEs e estudantes).

As consultas formais e informais

Há, conforme orientação do MEC, duas formas de consulta: as consultas formais e as consultas informais. A palavra formal diz respeito, é importante ressaltar, ao termo forma não ao termo legítimo, como pode, por vezes, parecer. O que diferencia, portanto, as consultas formais das consultas informais não é a formalidade do ato de consultar, ou quem realiza a consulta, mas o fato de que as consultas formais têm a forma pré-estabelecida de 70% dos votos válidos serem de servidores docentes (professores) e os outros 30% entre as restantes categorias. As consultas formais podem ter como consequência a possibilidade do colegiado eleitoral responsável por elaborar os documentos de encaminhamento da lista tríplice, havendo, portanto, a delegação de uma atividade do CUn para outro fórum.

A consulta informal, por seu turno, é um processo de consulta sem forma definida (por isso, reitero, o termo informal, que quer dizer aqui, sem forma) e que, desse modo, pode ter qualquer forma, sem haver desrespeito às normas postas. A maioria das consultas informais é paritária, mas nada impossibilita ou impede a consulta universal, ou seja, a instituição de uma forma de consulta que considera que o voto de qualquer indivíduo da comunidade universitária valha o mesmo que o de outro indivíduo, independente do vínculo estabelecido.

A consulta informal pode ser organizada por qualquer órgão ou entidade, e não há restrição legal para ser organizada por colegiado por delegação do CUn, desde que, após a consulta, os resultados sejam meramente norteadores. Ou seja, após a consulta, o CUn realiza uma eleição e elabora a lista tríplice, sem delegar qualquer atividade a outro grupo, colegiado ou órgão. Dessa forma, a despeito do afirmado de que esta consulta seria obrigação do CUn e que a consulta informal seria “terceirização” das atividades daquele Conselho, o que ocorre é justamente o contrário: com a consulta formal o CUn abdica de formular a lista tríplice, e com a consulta informal, o resultado da consulta volta ao CUn, que procede a formação da lista tríplice sem estar obrigado a consentir com os resultados da consulta.

O GT Democracia UFSC e a proposta polêmica

A crítica recebida de “terceirização das atividades do CUn” ao haver a sugestão de revisão das normas da consulta informal à comunidade é infundada, pois conforme ressaltei acima, o GT instituído pelo próprio CUn em análise à legislação vigente apontou para a necessidade de o CUn, diante de sua responsabilidade de envio da lista tríplice ao MEC, realizar anterior consulta à comunidade universitária, a fim de atender aos anseios dessa mesma comunidade, em acordo com os princípios democráticos e considerando que todos os membros da comunidade universitária possuem igualdade de condições de discernir, dentre os candidatos possíveis, quais os que possuem o mais relevante mérito de formular um programa legítimo perante a comunidade que representará por quatro anos.

Há quase 221 anos atrás a França escandalizava o mundo com a regulamentação do voto universal (para homens, diga-se de passagem). No mundo todo houve inúmeras teorizações sobre o valor dos homens ricos em detrimento dos homens pobres. Julgava-se que alguém sem posses era alguém incapaz de decidir por seu próprio futuro. Em verdade o que estava em jogo era a possibilidade de tributação da riqueza, que somente seria proposta por quem não fosse parte dos mais ricos. Hoje ninguém contesta o voto universal, extensivo agora (nada mais justo) às mulheres e a todos aqueles que são considerados passiveis de responderem por seus próprios atos. Ou seja, se um indivíduo é passível de responder por seus atos, ele é também passível de responder e opinar sobre o futuro de sua comunidade. Isso só não ocorre nas ditaduras.

Na Revolução Francesa, considerou-se que o voto era um direito inalienável de todo o ser humano, sendo equiparado ao direito à vida, por ser considerado o direito de decidir livremente por sua própria vida em sociedade.

Considerando todos esses aspectos, além dos conceitos de cidadania, o GT denominado “Democracia” propôs o voto universal, pois se para escolher o Presidente da República que é quem de fato nomeia os reitores, todos os membros da comunidade universitária com mais 16 anos têm o voto de mesmo peso, porque então para escolher quem integrará a lista tríplice a ser enviada para esse mesmo presidente seria diferente?

O voto universal não coloca em xeque que quem será o reitor ou reitora será um professor de magistério superior com título de doutorado, o que quer dizer que toda a apelação para que os professores decidam (sozinhos, ou praticamente sozinhos) o futuro da universidade não tem cabimento, pois só essa categoria pode ser dirigente máximo das universidades brasileiras, conforme largamente argumentado no Relatório Final do GT Democracia UFSC, disponível na página www.gtdemocracianaufsc.wordpress.com

A argumentação em torno do que aqui chamo de “mérito docente” do manifesto redigido pelos 12 professores da UFSC utiliza-se de vasto arsenal para apontar como somente os docentes podem direcionar as universidades em um protesto que não levava em consideração que a proposição de voto universal é, infelizmente, limitada ao voto, não a quem pode se eleger. Ou seja, independente da forma de consulta, somente professores do magistério com título de doutor podem assumir o cargo de reitor.

O vasto arsenal argumentativo em defesa do “mérito docente” era, portanto, irrelevante, a não ser que se considerasse que nem mesmo votar as demais categorias seriam capazes. Apesar de desnecessário, seu uso foi além de exagerada, carregado de sérios problemas, os quais não posso me furtar de comentar.

Quem é a base intelectual da universidade

No manifesto que circulou um pouco na universidade e um pouco mais na mídia se afirma que “O professor é a base intelectual da universidade. É ele quem cria as disciplinas e os programas de graduação e pós-graduação e quem estabelece e coordena os projetos de pesquisa e extensão. É o professor o responsável pelo domínio, produção e difusão do saber e pela formação dos nossos quadros, necessários ao desenvolvimento do país”. Há aqui, no entanto, afirmações bastante imprecisas.

(I)Em primeiro momento a produção do saber humano não é responsabilidade, nem, muito menos, exclusividade da docência. O professor não fundou o saber e a humanidade produz conhecimento em muitas outras áreas que não são abrangidas pela universidade.

(II)Se a produção do conhecimento não é exclusividade dos professores universitários, o ensino também não é atividade de um único sujeito. Não existe ensino sem aprendizagem, e esse processo de ensinar em nada se assemelha a uma transmissão de conhecimentos a um sujeito desprovido de saberes. O ensino-aprendizagem é um processo mais amplo em que os estudantes são tão sujeitos quanto os docentes, ainda que com momentos predominantes distintos.

(III) Se não é exclusividade docente a produção do conhecimento e o domínio do processo de ensino-aprendizagem, tampouco lhe são exclusivas as atividades de pesquisa e extensão. Conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as atividades de ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. Ou seja, não podem as universidades desenvolver atividades exclusivamente de ensino, ou de pesquisa ou de extensão. Além disso, os projetos de pesquisa têm de visar ao desenvolvimento do conhecimento e dos saberes humanos, que retornarão ao processo de ensino-aprendizagem, e os projetos de extensão apontam para outras formas de disseminação e desenvolvimento do conhecimento, que igualmente refluem ao processo de ensino-aprendizagem.

Se são indissociáveis, todas essas atividades fazem parte de um grande processo que é a produção, sistematização e socialização dos conhecimentos humanos em quaisquer áreas, e esse grande processo tem, em seus momentos constitutivos outros sujeitos que não professores, isso significa que o professor não é a base intelectual da universidade, mas uma dessas bases. Ora, se são indissociáveis as atividades de ensino, pesquisa e extensão e existem projetos de pesquisa e projetos de extensão que são coordenados e desenvolvidos por técnicos-administrativos em Educação (TAEs), isso quer dizer que essa categoria é muito mais que um mero suporte técnico e administrativo, mas é também parte constitutiva da produção, sistematização e socialização de conhecimentos.

São inúmeros os projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos pelos TAEs da UFSC hoje, e variam de áreas técnicas, às ciências humanas, além de muitos projetos de pesquisa e extensão na área artística. Disso devem saber todos na universidade, ou ao menos todos aqueles que veem a universidade como algo mais que um grande colégio de estudantes letárgicos a receberem conhecimentos transmitidos por seres iluminados. A universidade, não somente as “boas universidade do mundo”, é um local de universalização do conhecimento, não somente no que diz respeito a quem “recebe” este conhecimento, mas em relação também a quem produz e sistematiza muito mais que disciplinas, mas saberes humanos.

* Gabriel Martins trabalha como Administrador no Centro de Ciências da Educação da UFSC, onde atua como Coordenador Administrativo desde que deixou o cargo de Coordenador de Apoio Pedagógico junto à Pró-reitoria de Graduação. Graduado e mestre em Administração pela UFSC, está no último ano do doutorado na UFRJ. É atualmente também coordenador de pesquisas aprovadas pela UFSC nas áreas de Políticas Públicas e coordena atualmente projetos de extensão nas áreas de literatura e teatro. Desde abril 2013 é conselheiro universitário e foi designado presidente do GT Democracia UFSC, cujo Relatório Final propondo o voto universal para a próxima consulta para reitor da UFSC foi entregue no dia 10 de abril de 2014.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Educação, o novo alvo do fundamentalismo (Cleomar Manhas)

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Em nome da moral conservadora, bancadas religiosas tentam detonar, no Congresso, projeto essencial para construir ensino público de excelência

Por Cleomar Manhas

O Plano Nacional de Educação está no Congresso Nacional desde dezembro de 2010, quando o ainda presidente Lula o enviou para apreciação e processo de votação. Passados três anos e alguns meses e muita discussão, ele foi votado na Câmara e no Senado, onde sofreu alterações e voltou à Câmara que acatará ou não o que foi modificado.

As entidades defensoras da política de educação, especialmente aquelas que lutam por educação de qualidade, estão acompanhando o processo desde então. E agora, no retorno à Câmara, foram surpreendidas pela oposição de vários grupos religiosos evangélicos neopentecostais e católicos conservadores, que se intitulam Pró-Vida.

O projeto apresentado à Câmara tinha no artigo segundo, inciso III a seguinte orientação: “Superação das desigualdades educacionais”. O relator, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR), acrescentou o seguinte texto : “(..) com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. Além disso, ele inovou adotando em seu texto a linguagem de gênero em detrimento do masculino genérico. E esses dois pontos são a causa da oposição, com direito a manifestações grosseiras e pouco democráticas.

Há alguns problemas no PNE que precisam ser sanados, para que de fato se tenha uma política de educação que resolva as desigualdades e promova educação de qualidade. Como, por exemplo, o que se entende por educação pública, pois do jeito como está cabe até mesmo os tais “cheques educação”, bolsas de estudos, convênios com instituições que não são fiscalizadas. Além do comprometimento da União com a necessária complementação orçamentária aos estados e municípios com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ), composto por insumos essenciais à universalização da educação de qualidade, com a garantia da aprendizagem.

Os mecanismos CAQi E CAQ foram criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para calcular quanto custa ter escolas com insumos tais como salários dignos aos/as profissionais da educação, número adequado de alunos/as por turma, insumos infraestruturais, ou seja, bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios de ciências e informática etc. O CAQi já foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, no entanto, como a maior parte dos municípios brasileiros são pequenos e com baixíssima arrecadação, se não houver a devida complementação da União isso não se realizará e não haverá aprendizado universalizado e educação de qualidade para os próximos dez anos.

Pesquisa realizada em 2010 pelo Unicef em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação detectou que há no Brasil 8,8 milhões de estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental em risco de exclusão escolar por estarem em idade superior a recomendada para a série que frequentam. Além de já se ter 3,7 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, sendo que 1,6 milhão encontram-se na faixa etária entre 15 e 17 anos, deveriam estar no ensino médio, mas abandonaram a escola antes disso, por inúmeras razões, que podem ser explicadas pelas diferentes desigualdades existentes, tais como: racial, de gênero, regional, de renda, ou ainda por preconceitos devido à orientação sexual, ou falta de acessibilidade para pessoas com deficiência nas escolas.

O que se poderia imaginar: que a sociedade como um todo se unisse para garantir recursos para a educação pública se realizar como educação de qualidade. E que os/as excluídos/as da escola ou em risco de exclusão fossem acolhidos/as e respeitados/as para que, ou retornassem, ou não evadissem da escola. Além disso, que se conseguisse, de fato, universalizar a aprendizagem que hoje é um grande problema, especialmente, entre a população de baixa renda.

No entanto, a principal pauta desses grupos agora mobilizados é a linguagem de gênero e a frase que diz que para superar as desigualdades educacionais é preciso enfatizar a promoção da igualdade racial, de gênero e orientação sexual.

Um deputado, cuja profissão é definida como “Ministro do Evangelho”, apresentou um voto em separado dizendo que as pessoas que defendem o que eles chamam de “ideologia de gênero” (sic) são antidemocráticos por não reconhecerem a heterossexualidade normativa. De acordo com suas palavras: “sob o pretexto de valorizar minorias sistemicamente marginalizadas, grupos articulados criam um verdadeiro açodamento na consciência civil, com discurso intransigente, linguagem chula e debates violentamente promovidos com vistas à suplantar quaisquer posições divergentes. A política de gênero sob o manto da diversidade e realização dos interesses da minoria propõe insistentemente uma verdadeira ditadura influenciativa (sic), que quer impor seus valores a todo custo, em todos os extratos sociais, com especial modo de agir sobre a infância.”

Veja-se que os grupos que não reconhecem a diversidade e que a sociedade é algo mais do que dizem os manuais da tal heterossexualidade normativa distorcem os fatos para os seus/suas fiéis, dizendo que os/as defensores/as dos diretos humanos impõem seus princípios a qualquer custo, não reconhecendo que a grande questão que se apresenta, especialmente na educação, é a superação das desigualdades e a construção, de fato, do Estado Laico, que apesar de estar em todas as constituições, desde 1891, ainda não se realizou.

O que se constata é que pensamentos obscurantistas como os dos grupos que se mobilizam contra o respeito às diferenças no Plano Nacional de Educação, ou das pessoas que responderam à pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) que a forma de as mulheres se vestirem ou comportarem as fazem sujeitas à violência sexual, contribuem para que as estatísticas de violência contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais aumentem. Além de servir como antídoto à necessidade premente de se construir políticas públicas para todos e todas, sem distinção.

O que se precisa é a defesa intransigente de políticas que sigam o princípio apresentado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-novo-alvo-do-fundamentalismo/)

domingo, 16 de março de 2014

Cinco histórias brasileiras longe do Fla-Flu (Rodrigo Vianna)

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Milhões de famílias humildes estão colocando filhos na Universidade. Entrevistei cinco delas e descobri que ir muito além do que pensam oposição e governo 

Por Rodrigo Vianna, em seu blog

Durante mais de um mês, rodamos atrás de boas histórias por esse Brasil: Goiás (foto ao lado), Santa Catarina, Pernambuco, São Paulo. O objetivo era encontrar famílias que, pela primeira vez, tivessem conseguido colocar um filho na Universidade.

Não foi difícil achar. Longe do Fla-Flu histérico na internet, há um novo Brasil que se desenha. O filho de pescadores virou advogado (e já trabalha num escritório – no centro de Florianópolis). A filha de um catador de latinhas estuda para se formar veterinária em São Paulo. O lavrador goiano conseguiu transformar o filho em engenheiro. O produtor rural pernambucano (a família vive no meio do sertão, em Bodocó) mandou a filha pra São Paulo, e hoje ela é dentista…

Tudo isso aconteceu nos últimos dez anos. Enquanto muita gente reclamava dos aeroportos lotados de “gente feia”, tripudiava do “Bolsa Esmola”, e falava mal do PROUNI (que enche as universidades de “vagabundos”)… Enquanto isso, o povão arregaçou as mangas e aproveitou as brechas que se abriram. Mas não venham os governistas mais empolgados achar que esse povo se ajoelha no chão pra agradecer Lula e o PT. Conversei com as famílias, entrei nas casas: a maioria está feliz, mas sabe dos imensos problemas do nosso país. E quer mudança. Mais mudança. O que não significa andar pra trás, com discurso de “menos Estado”…

Esse novo Brasil (construído pelas bordas, e longe dos holofotes) é resultado, sim, de políticas públicas claramente inclusivas. Mas se desenha também graças ao esforço individual, à solidariedade e à garra das famílias mais humildes. Esse povo brasileiro é admirável: longe das Sherazade, da violência policial, dos colunistas urubulinos e dos comentaristas que falam do Brasil sem sair da frente do computador, há um outro país que nos enche de esperança.

É o que você pode conferir a seguir, em 5 reportagens da série “Eles Chegaram Lá” – que foi ao ar no “Jornal da Record. Produção: Rosana Mamani. Edição: Ângela Canguçu. Reportagem: Rodrigo Vianna (com participação de Jairo Bastos, em Pernambuco.) Imagens: Edgar Luchetta (São Paulo – apoio técnico de André Carvalho), Fabio Varela (Brasília/Goiás – apoio técnico de Fernando Gommes), Márcio Ramos (Santa Catarina). Coordenação: Helio Matosinho. Chefia de Redação: Thiago Contreira.




Pra começar, conheça a história de Almiro – o filho de lavradores na região de Anápolis (GO), que se formou em Engenharia; ele trabalha para indústrias importantes, dá aulas no SENAI e faz pós-graduação no ITA. O pai segue a plantar tomate e banana. Almiro estudou em faculdade particular, com bolsa do PROUNI.

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Djuliane é filha de um catador de latinhas em São Paulo. Na infância, rodava pelas ruas, no carrinho puxado pelo pai, cercada por papelão e garrafas. Hoje está na Universidade. Um amigo da família ajuda a pagar o curso, em faculdade particular. Você também vai conhecer o José – filho de empregada doméstica que só sabe assinar o nome (mas dotada de uma garra impressionante), ele acaba de se formar em Administração.

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O cenário é belíssimo: a praia da Pinheira, litoral catarinense. O pescador Manoel acorda todo dia às 4h da manhã. E vai pro mar. Isso há quase 50 anos. A novidade é que ele e a mulher (batalhadora, ao lado do marido) conseguiram colocar dois filhos na Universidade: Marcos estudou com bolsa do PROUNI, e já se formou em Direito. Marcelo está terminando o curso de Engenharia de Pesca, numa faculdade pública: a Universidade do Estado de Santa Catarina.

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O pai é pedreiro, a mãe é costureira. Os dois só estudaram o básico. O filho Neemias é pintor de paredes. E não aceitou o “destino” traçado. Com mais de 40 anos e 6 filhos pra criar, Neemias conseguiu entrar na faculdade particular, estuda Engenharia, graças a uma bolsa do Educafro – entidade que apóia o esforço de negros para chegar à Universidade. No Brasil, o número de negros no ensino superior saltou de pouco mais de 2%, para 15% nos últimos dez anos. Cotas, solidariedade, esforço individual: tudo fez diferença. Conheça também o Bruno:  filho de uma cozinheira, ele acaba de se formar em RH.

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A família vive em Bodocó, no meio da caatinga. Edivaldo, um dos filhos do casal de pequenos produtores rurais, migrou pra São Paulo: virou pedreiro, encarregado de obras. Anos depois, levou a irmã Elane pra São Paulo. Ela começou trabalhando como faxineira numa faculdade na zona leste. Conseguiu bolsa da universidade e, enquanto limpava salas e arrumava cadeiras, foi cursando Odontologia. Hoje, a filha do sertão é dentista em São Paulo.

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=16725)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Por que a Suécia está revendo a privatização do ensino

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Escolas introduziram publicidade maciça, pressão sobre professores e estímulo permanente à competição. Resultados lastimáveis estão levando defensores da “novidade” a pedir desculpas públicas

Na Rede Democrática

Quando uma das maiores empresas privadas de educação faliu, alguns meses atrás, deixou 11 mil alunos a ver navios e fez com que o governo da Suécia repensasse a reforma neoliberal da educação, feita nos moldes da privataria com o Estado financiando a entrega dos serviços públicos aos oligopólios capitalistas e assim causando graves prejuízos para os trabalhadores e a população.

No país de crescimento mais acelerado da desigualdade econômica entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os aspectos básicos do mercado escolar desregulamentado estão agora sendo reconsiderados, levantando interrogações sobre o envolvimento do setor privado em outras áreas, como a de saúde.

Duas décadas após o início de seu experimento de “livre” mercado na educação, cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam agora escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Essa proporção é quase o dobro da média mundial. Quase metade desses alunos estudam em escolas parcial ou totalmente controladas por empresas de “private equity”, que compram participações em outras empresas.

Na expectativa das eleições do ano que vem, políticos de todos os matizes estão questionando o papel dessas empresas, acusadas de privilegiar o lucro em detrimento da educação, com práticas como deixar alunos decidirem quando aprenderam o suficiente para passar e não manter registro de notas.

O oposicionista Partido Verde – que, a exemplo dos moderados, apoia há muito as escolas de gestão privada, mas que agora defende um recuo – divulgou um pedido público de desculpas num jornal sueco no mês passado sob o título “Perdoe-nos, nossa política desencaminhou nossas escolas”.

No início da década de 1990, os pais recebiam vales do Estado para pagar a escola de sua preferência. A existência de escolas privadas foi autorizada pela primeira vez, e elas podiam até ter fim lucrativo.

O Reino Unido absorveu muitos aspectos desse sistema, embora não tenha chegado a permitir que escolas custeadas com dinheiro público visassem lucro. Empresas de educação suecas alcançaram países tão distantes como a Índia.

A falência, neste ano, da JB Education, controlada pela empresa dinamarquesa de “private equity” Axcel, foi o maior, mas não o único, caso do setor educacional sueco.

O fechamento da JB custou o emprego de quase mil pessoas e deixou mais de 1 bilhão de coroas suecas (US$ 150 milhões) em dívidas. Os alunos de suas escolas ficaram abandonados.

Uma em cada quatro escolas de ensino médio é deficitária e, desde 2008, o risco de insolvência subiu 188% e é 25% superior à média das empresas suecas, disse a consultoria UC. “São poucos os setores que exibem cifras tão ruins como essas”, disse a UC. Parte do problema resulta da distribuição etária da população, com os números totais das escolas secundárias sofrendo queda significativa desde 2008 e pouca probabilidade de voltar ao antigo nível por uma geração ou mais.

A permissividade do ambiente regulatório também contribuiu. A Suécia substituiu um dos sistemas escolares mais rigidamente regulamentados do mundo por um dos mais desregulamentados, o que levou a escândalos como um caso de 2011 em que um pedófilo condenado pôde abrir várias escolas de forma absolutamente legal.

“Eu disse muitas vezes que é mais fácil abrir uma escola do que uma barraca de cachorro-quente”, disse Eva-Lis Siren, diretora do sindicato de professores Lärarförbundet, o maior da Suécia.

As escolas privadas introduziram muitas práticas antes exclusivas do mundo corporativo, como bônus por desempenho para funcionários e divulgação de anúncios no sistema de metrô de Estocolmo. Ao mesmo tempo, a concorrência pôs os professores sob pressão para dar notas mais altas e fazer marketing de suas escolas.

No início, disseram que a participação privada na educação se daria por meio de escolas geridas individualmente e em nível local. Poucos vislumbraram que haveria empresas de “private equity” e grandes corporações administrando centenas de unidades. “Era uma coisa que não estava sequer nos sonhos mais delirantes das pessoas”, tenta se justificar Staffan Lundh, responsável por questões escolares no governo do primeiro-ministro na época e que hoje dirige a Skolverket, a agência sueca de escolas.

É tão obvio que envolvimento do setor privado e a queda da qualidade estão diretamente ligados que a Skolverket já começa a “vê indícios” de que as reformas de mercado contribuíram para aprofundar o fosso do desempenho escolar.

O referencial Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês) da OCDE pinta um quadro sombrio, em que a Suécia ocupa atualmente classificação inferior à da Rússia em matemática.

Vinte e cinco por cento dos garotos de 15 anos não conseguem entender um texto factual básico, disse Anna Ekstrom, diretora da Skolverket. Um estudo da agência divulgado no ano passado mostrou um diferencial crescente entre estudantes, em que um número cada vez maior deles não preenche os requisitos necessários para ingressar no ensino médio.

Uma pesquisa da GP/Sifo realizada neste ano com mil pessoas mostrou que 58% são amplamente favoráveis a proibir a geração de lucro em áreas financiadas com dinheiro público, como a educação.

O ministro da Educação, Jan Bjorklund, de centro-direita, dirigente do segundo maior partido da coalizão de governo, formada por quatro partidos, disse que empresas de “private equity” também deveriam ser vetadas como controladoras de empresas do setor de assistência médica, inclusive de assistência aos idosos.

“Acho que acreditamos cegamente demais na possibilidade de mais escolas privadas garantirem maior qualidade da educação”, disse Tomas Tobé, diretor da comissão de educação do Parlamento e porta-voz de educação do governista Partido Moderado. Como são “ingênuos” os neoliberais…

O fechamento de escolas e a piora dos resultados tiraram o brilho de um modelo de educação admirado e imitado em todo o mundo pelos mesmos privatistas e neoliberais que propagandeiam o mercado capitalista como uma espécie de solução milagrosa para todos problemas da sociedade, quando na verdade é o capitalismo quem gera todos os problemas e desigualdades sociais ao concentar toda a riqueza, poder e oportunidades nas mãos de uma classe dominante privilegiada, as custas da miséria, exploração e exclusão de grande parte da humanidade e do empobrecimento crescente dos povos.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/por-que-a-suecia-esta-revendo-a-privatizacao-do-ensino/)

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Para somar-se às redes da Ciência Livre (Ladislau Dowbor)

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Ladislau Dowbor propõe a professores e pesquisadores: crie um blog, compartilhe conhecimentos, ajude a superar a era propriedade intelectual

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Henri Matisse, Alegria de Viver

Na virada do milênio, decidi repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um balanço. Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas, relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje a ele, que ajudou a montar meu primeiro site. Alguns já chamam este tipo de ajuda de filhoware.

Decidi fazer este pequeno balanço porque pode ser útil a muita gente que se debate com a transição. Deixem-me dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de arquitetura do trabalho intelectual.

O ponto de partida foi o meu blog, http://dowbor.org, hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.

Deixem-me lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50 milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora. Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE (China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira ainda muito tímida.

Isto dito, eu que não sou nenhum MIT, constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte, esperando que as informações sejam úteis:

1. A criação de um blog individual de professor representa um investimento extremamente pequeno, comparando com o benefício obtido, sobretudo porque hoje temos estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.

2. Ter um blog não é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog científico como o meu é, na realidade, muito mais uma biblioteca de fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu precise acompanhar e administrar. Não é muito distinto, nesse aspecto, de uma estante em minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar meu texto com uma palavra-chave no computador, do que localizá-lo na estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu blog, não precisa pedir o livro emprestado, nem perder tempo dele e meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.

3. Produção científica e divulgação deixam de constituir processos separados. O artigo ou livro que o professor escreve, ou que recebeu e quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português, pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles encontraram simplesmente porque colocaram palavras-chaves na busca por internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada, mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai para a 6ª edição pela editora: uma coisa não atrapalha a outra, a editora encontra o seu interesse também.

4. O essencial não está na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente. Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação em geral.

5. O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros. Coloco no blog, na seção Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta sobre energia, recomendo que leiam, em meu site o artigo de Ignacy Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para alunos.

6. Como professor, recebo frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço suficientemente minha área para saber que se trata de um ótimo trabalho. Normalmente, ninguém o leria, pois o aluno não é conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons trabalhos de pessoas menos conhecidas.

7. Tudo isto está baseado no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido, que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao mesmo tempo que permite que o artigo seja imediatamente acessível para fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.

8. Um aspecto muito enriquecedor do processo é que me permite utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada produção. Associo ao que escrevo ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso ou animações gráfica, livremente – pois do lado de quem lê haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem, ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem utilizada é muito útil.

9. Trata-se de uma ferramenta em que o universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez de o professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos online sobre o tema, desenvolverão sua capacidade de pesquisar no imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados. Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.

10. O processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores. Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A minha solução é que publico, sim, em periódicos formalmente avaliados como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e pelo qual não me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada 24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas condições, francamente, não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e 50 dólares por artigo e por acesso. Mais de 15 mil cientistas norte-americanos já boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não atualizar seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital – um para pontos, outro para leitores.

11. Com pequenos conselhos de alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais evidentes de comunicação. Abri a possibilidade de qualquer pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil “colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento, permite fazer circular o material. Portanto, minha biblioteca virtual não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com todos os interessados, mesmo que não me conheçam.

12. Uma virtude básica do processo, que precisa ser entendida, é que os textos circulam não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular é o que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de construção científica.

13. Finalmente acho que, da mesma forma que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde, Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros – precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de copyright só teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição. Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.

Permito-me aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu blog, hoje um WordPress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho. Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, como organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no começo até montar um formato adequado para professor), fiquem à vontade; eventualmente, posso até recomendar pessoas capazes de ajudá-los. Vamos encher este país de ciência, de boa ciência, progressista, transformadora.

Quanto ao medo das pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável, descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é relevante ou não”.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/para-somar-se-as-redes-da-ciencia-livre/)

sábado, 23 de novembro de 2013

Universidade, entre agroecologia e agronegócio (Luciana Jacob)

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Qual deveria ser o papel do ensino superior de Agricultura, num mundo que enfrenta fome e crise socioambiental planetária?

Por Luciana Jacob | Fotografia: Jorge Luiz Campos

Como instituição social que é, a universidade expressa a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade, em suas atividades de ensino, pesquisa e extensão e em sua gestão. Assim, tal qual a sociedade, a universidade é constituída não só por diferentes visões de mundo, como principalmente por visões conflitantes: a produção de conhecimento e sua incorporação nos currículos universitários são processos atravessados por relações de poder.

A articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a formação de profissionais para as demandas explícitas do mercado. Isto fica evidente nas formas curriculares, na escolha de quais conhecimentos devem fazer parte da formação e tornar-se objetos de pesquisa e, principalmente, nas ausências que denunciam o descaso legado a projetos contra-hegemônicos. As atividades universitárias foram atingidas por forças que amplificaram sua condição de dependência à globalização neoliberal, afastando-se das demandas sociais necessárias para um projeto democrático de país. Elas têm se aproximado do mundo empresarial, relegando a segundo plano o interesse público.

Social e historicamente construídos, os saberes produzidos pela universidade são eleitos por determinados grupos sociais como legítimos, credíveis e merecedores de serem reproduzidos a determinados grupos sociais.

Que saberes e grupos sociais são incluídos e quais são excluídos da universidade e, em decorrência, quais divisões sociais são produzidas e reforçadas? Qual o significado da ausência de determinados saberes na universidade? É um silêncio genuíno ou fruto de um silenciamento, ou seja, de uma imposição epistemológica?

A degradação ambiental, o risco de colapso ecológico e o avanço da desigualdade e da pobreza são sinais muito graves da crise do mundo globalizado. Na agricultura, assistimos à perda da soberania alimentar, à fome, à violência no campo, à perda de diversidade genética e dos solos, ao avanço da concentração de terras, ao desmatamento, ao envenenamento por agrotóxicos. Paralelamente, temos assistido a uma ofensiva aterradora de setores conservadores do Congresso Nacional sobre os direitos fundamentais de indígenas, contra o Código Florestal e a Lei de Biossegurança. Presenciamos a aprovação indiscriminada de transgênicos, sem os estudos necessários e a devida responsabilidade social e científica.

De modo predominante, a universidade contribui para a manutenção do paradigma hegemônico, formando pessoas aptas a lhe dar continuidade e produzir conhecimento que alimenta e fortalece seus preceitos. Na área de Ciências Agrárias, as atividades acadêmicas geralmente se articulam em torno do paradigma do agronegócio como cânone de desenvolvimento do país. E, como sabemos, a razão que permeia o agronegócio tem como características o capitalismo e a globalização neoliberal; a total dependência de insumos finitos e externos ao sistema agrícola; a simplificação genética; a concentração de terras e riquezas; entre outros – aspectos completamente avessos à sustentabilidade socioambiental.

A organização das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulgou recentemente o Relatório de 2013 sobre Comércio e Meio Ambiente, intitulado “Acorde antes que seja tarde demais: torne a agricultura verdadeiramente sustentável agora para a segurança alimentar em um clima em mudança” (em tradução livre do inglês). O relatório, para além de alertar sobre os danos do paradigma hegemônico de produção agrícola, aponta a adoção da agroecologia como fundamental para evitar o agravamento da crise socioambiental e prováveis crises alimentares futuras – exatamente o oposto do que vem sendo desenvolvido pela grande parte das universidades brasileiras.

A construção de uma racionalidade ambiental para o enfrentamento destes problemas – em oposição à racionalidade econômica – exige a elaboração de novos saberes e, principalmente, a participação dos grupos historicamente silenciados e que mais sofrem as consequências nefastas da crise da modernidade na construção destes saberes. No espaço da universidade, isto implica a internalização das discussões socioambientais nas atividades de ensino e pesquisa, a abertura do diálogo com outras formas de saber e o repensar do papel da extensão universitária na perspectiva que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia de saberes.

Assento esta ideia em três pressupostos. A abundância de conhecimento no mundo é muito superior ao o conhecimento disponível em um currículo de determinada área. Além disso, a escolha de quais conhecimentos são legítimos e válidos é feita pelos grupos sociais dominantes e que assim o são pois historicamente oprimiram os grupos sociais hoje excluídos. Por fim, esta relação de poder guarda em si a força da hierarquização: os saberes que não passam nesse crivo são considerados alternativos, lendas, crenças, locais, ou seja, são descredibilizados.

Como avançar na construção de conhecimento socioambiental destinado à transformação social, quando a cultura e os saberes de camponeses e camponesas foram marginalizados e deslegitimados? Como dissolver o muro que tem separado a universidade das lutas sociais de modo geral e, especificamente, da agroecologia e soberania alimentar?

Proponho três alternativas que, se não completas e definitivas, se configuram como desafios para estas transformações.

Primeiro: mudanças nas prioridades da universidade – o que, como e para quem pesquisar e ensinar – não se operam de forma desconectada das estruturas sociais. Embora possa ser espaço de resistência, questionamento e promoção de transformação social, a universidade é sobretudo reprodutora de paradigmas mais amplos e funciona de acordo com dinâmicas sociais que por vezes a transcendem. Assim, não há possibilidade de se construir conhecimento contra-hegemônico de forma descolada dos grupos que mais sofrem as violências do conhecimento hegemônico nem à revelia de outros setores da sociedade. Há a necessidade de se avançar para uma ecologia de saberes que, segundo Boaventura, é o confrontamento da monocultura do saber e do rigor científico pela identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em práticas sociais.

O segundo é que as mudanças não podem ser implementadas apenas por alguns, mas é pela força de alguns poucos que elas ganharão projeção institucional. Sua promoção faz sentido em contextos específicos, com lutas conectadas com a história de cada instituição, apesar de fortalecerem e serem fortalecidas por lutas mais amplas, de outros grupos sociais, de outros lugares, de outros movimentos, de outras escalas e outras identidades culturais – ou seja, inserida em uma globalização contra-hegemônica.

O terceiro é que não há possibilidade de se pensar a inclusão de saberes socioambientais na universidade sem que isto seja tratado em termos epistemológicos e metodológicos. Epistemológicos porque promover o debate sobre sustentabilidade na universidade requer uma ecologia de saberes que luta contra a injustiça cognitiva. E metodológicos, uma vez que a inserção deste saber, pela sua própria complexidade, está imbricado também no questionamento crítico acerca dos métodos e estruturas em que se pauta atualmente o ensino superior.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/universidade-entre-agroecologia-e-agronegocio/)

domingo, 3 de novembro de 2013

Educação: a hora das alternativas (Davi Lira)

Rede Românticos Conspiradores lança manifesto, articula conferência nacional e prepara-se para abrir debate amplo sobre saídas educacionais, diante de modelo esgotado

Por Davi Lira, no Porvir

Para serem perenes, “os projetos inovadores de educação precisam se encontrar e conversar mais entre si”. Foi com essa mensagem, enviada pela internet para uma série de educadores brasileiros em 2008, que o fundador da Escola da Ponte de Portugal, José Pacheco, deu início à construção dos Românticos Conspiradores, uma rede colaborativa de militantes que luta pela transformação da educação no Brasil. Depois de longos cinco anos, a rede conseguiu não apenas aproximar as pessoas e entidades que desenvolvem projetos inovadores – geralmente relacionados à educação integral -, como se articulou a ponto de criar um manifesto público. O documento, que detalha as principais “transformações” sugeridas pelo grupo (mais informações abaixo), vai ser entregue ao Ministério da Educação (MEC) no dia 19 de novembro em Brasília, durante a abertura da I Conane (Conferência Nacional de Alternativas para uma nova Educação).

Vai ser na conferência, que vai se estender até o dia 21 de novembro, que representantes de projetos bem sucedidos de educação integral e inovadora buscarão estreitar mais os laços e detalharão suas realizações. Entre os projetos a serem apresentados no encontro estão os bens sucedidos: Gente, uma escola do Rio de Janeiro que não tem paredes; o Projeto Âncora, uma comunidade de aprendizagem em Cotia (SP); e as iniciativas pedagógicas voltadas à autonomia do aluno desenvolvidas pela escola municipal Amorim Lima, em São Paulo. Dessa forma, os organizadores esperam que com o manifesto em mãos e as boas práticas à vista, eles possam sensibilizar o MEC, a sociedade brasileira e outros educadores simpáticos à causa.

“Trata-se de um movimento articulado pela sociedade civil. Queremos com o encontro, trocar conhecimentos e congregar uma força mais consistente em prol da inovação da educação no país. Nossa intenção prática é começarmos uma conversa com o Ministério da Educação com vistas a efetivar mudanças na educação pública. Por isso, que destacaremos casos consistentes que podem servir de inspiração para esse movimento de mudanças que defendemos”, afirma Talita Porto, do coletivo Gaia Brasília, e uma das organizadoras do Conane.

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Para garantir a presença do ministro da educação Aloisio Mercadante, a comitiva do Conante, incluindo o educador José Pacheco, conseguiu se reunir na última semana com ele. Na ocasião, segundo os organizadores, o ministro se prontificou a participar da solenidade de abertura do encontro. Lá, eles esperam que ele dê uma indicação sobre alguma ação concreta que o MEC pode fazer no sentido de estimular a adoção dessas novas práticas inovadoras no âmbito das escolas formais. Como o evento não contará com transmissão on-line das palestras, é preciso ir pessoalmente conferir os debates. A boa notícia é que ainda existem vagas abertas. Para participar, é preciso pagar R$ 100. O valor não inclui hospedagem nem alimentação. (veja a programação completa)

Ainda durante o I Conane, está previsto o lançamento do documentário Quando sinto que já sei, realizado com recursos arrecadados via crowndfunding. O doc questiona a educação formal tradicional e traz uma série de entrevistas com educadores que propõem uma abordagem mais inovadora nas práticas de ensino e aprendizagem. Assista ao teaser feito pelos realizadores Antonio Lovato, Raul Perez e Anderson Lima:

 Manifesto

Elaborado de forma colaborativa durante cinco anos de discussões virtuais e presenciais, o manifesto pela educação intitulado Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País teve a contribuição de cerca de 2 mil pessoas que compõe o grupo Românticos Conspiradores além de outros participantes. Depois da triagem de sugestões, o grupo conseguiu condensar os desejos dos militantes em oito páginas. Todo o documento está disponível para consulta pública desde o final de setembro. Simpatizantes à causa ainda podem apoiar virtualmente o movimento, assinando a petição on-line a favor do manifesto através da comunidade do Avaaz.

Buscando detalhar todos os pontos que são levantados pelo documento que propõe colocar em prática mudanças significativas na educação brasileira, o Porvir repassa um resumo dos 19 pontos levantados pelo manifesto. Confira, reflita e deixe o seu comentário:

“Mudar a Escola, Melhorar a Educação: Transformar um País

1. Políticas Públicas em Educação previamente discutidas, aprovadas e supervisionadas pela comunidade;

2. Assegurar às escolas a dignidade de um estatuto de autonomia;

3. Revisão do tipo de gestão das escolas, passando de uma tradição hierárquica e burocrática para decisões colegiadas, coletivas, colaborativas e horizontais, envolvendo a participação da comunidade;

4. Implantação de comunidades de aprendizagem concebidas por um projeto educativo coletivo, baseado num projeto local de desenvolvimento, consubstanciado numa lógica comunitária;

5. Uma educação integral em tempo integral para todos os estudantes;

6. Que a instituição escolar ressignifique seu papel, passando a atuar comolocus de construção de conhecimentos e vivências;

7. Que se garanta aos profissionais da Educação, que assim o desejem, prevenção, assistência e apoio terapêutico, gratuito e constante;

8. A formação de uma rede colaborativa de comunicação, onde participem família, educadores, educandos, membros de comunidades de aprendizagem, mídia, etc;

9. Considerar que não se pode ser desconsiderado o desenvolvimento afetivo e emocional do educando;

10. A universalização do ensino e a garantia da matrícula em todos os níveis da educação;

11. Que a universidade se distancie de práticas de formação incompatíveis com necessidades educacionais do nosso século;

12. Reelaboração da cultura pessoal e profissional do educador através da vivência de práticas inovadoras em educação;

13. Reconhecimento público aos profissionais da educação, traduzido também em salários dignos;

14. Fim do desperdício decorrente de más políticas públicas em educação;

15. Erradicação da evasão escolar;

16. Implantação efetiva de uma política da juventude que contemple o espírito empreendedor, o protagonismo juvenil e o desenvolvimento dos valores humanos;

17. Que a educação domiciliar e outros modos de desenvolver aprendizagem sejam permitidos às famílias que assim o desejarem, desde que garantida a coerência e a qualidade dos percursos de aprendizagem do educando à luz de um projeto educativo;

18. Substituição de reprovação, da aprovação automática e da recuperação, paralela ou ao final de um período, pela prática de uma avaliação formativa, contínua e sistemática capaz de permitir que o aprendizado caminhe junto com o desenvolvimento do pensar;

19. Ampliação do uso da mediação escolar, da justiça restaurativa e de técnicas similares, para que os conflitos sejam resolvidos pela própria escola dentro da proposta de Cultura de Paz (Unesco)”.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Educar para o trabalho ou para o convívio?

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/educar-para-o-trabalho-ou-para-o-convivio/)

Criada há nove anos, comunidade em Porto Alegre repensa agora formação de suas crianças, para valorizar singularidades e superar concepções produtivistas

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: Cândido Portinari, Cambalhota (1958)

A Comunidade Osho Rachana comemora nove anos de existência este mês. Durante este tempo, experimentamos diferentes formas de conviver. Algumas pessoas que ajudaram a construir o projeto já não estão mais; outras, chegaram. Crianças nasceram. Novos sonhos foram despertados. Um deles vem sendo gestado há alguns anos: a possibilidade de uma outra educação para nossos filhos.

A primeira vez que a bailarina Ana Thomaz esteve conosco foi há três anos. Na época, a semente da ideia da desescolarização foi plantada. No início do mês, ela retornou com suas duas filhas e criou um turbilhão em nossas mentes e corações. Sua simplicidade, autenticidade e paixão nos tocaram profundamente. Foi uma semana de muito debate, descobertas e reavaliações.

Ana vem aplicando a desescolarização com seus filhos, sem a pretensão de criar um movimento ou convencer multidões da sua verdade. Mas ao observar a doçura, inteligência e solidariedade de suas meninas, comprova-se a veracidade da sua prática. Segundo ela, o princípio da desescolarização é a valorização das singularidades. “É na singularidade que aceitamos a diferença e nos unimos verdadeiramente, sem interesses, muletas, especulações. É na diferença que a vida acontece de modo potente”, explica.

Uma das principais críticas que Ana Thomaz faz à escola é a constituição de corpos impotentes. Crianças que vão perdendo a vitalidade e a alegria, sentadas em classes escolares que não despertam sua criatividade. “Um corpo desequilibrado, descoordenado, impotente, cria uma cultura desequilibrada, descoordenada e impotente. Enquanto não reorganizarmos nossa condição biológica, enquanto não colarmos nossa existência à sua força criadora, todas as mudanças em nossa cultura serão só a melhora do que está ruim, e continuaremos a nos destruir, a perder a grande possibilidade da vida plena e potente.”

Inspirada na teoria do biólogo chileno Humberto Maturana, Ana defende que o corpo é a potência. “Não esse corpo que estamos acostumados a pensar, mas um corpo que é o todo, e como sabemos, o todo é mais do que a soma de suas partes. As partes são muitas, pois não temos ideia do que pode um corpo.” Para exemplificar, ela cita: físico, emocional, cognitivo, energético, anímico, espiritual, instinto, intuição, mente, intelecto, consciente, inconsciente, subconsciente, percepção sensorial, percepção cinestésica, e muitas outras “partes” inseparáveis que formam o todo, o corpo.

Segundo ela, se não temos todas as partes ativas, vivas, acordadas, não somos o todo. “Os bebês, as crianças pequenas, mesmo sem saberem de nada, estão inteiras em seus corpos. Em nossa cultura, vamos desinvestindo partes do nosso todo, e assim crescemos pela metade. E se não temos o todo ativado, não temos corpo, só partes dele. Nos tornamos impotentes, e por isso buscamos o poder.”

Instigada pelas ideias apresentadas, fui pesquisar mais sobre a visão do biólogo. Encontrei um artigo de Adriano J.H. Vieira, “Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento”. O autor explica que, acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e nos desafia a buscar uma educação que resgate a biocentralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.

Na visão de Maturana, um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim. “A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar”. Para Maturana isso se dá de forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas relações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões.”

Estas foram algumas das questões apresentadas por Ana. Ao compartilhar sua vivência, práticas e conhecimentos, muitas lacunas foram abertas, e ainda mais possibilidades. Muito do que ela expôs já faz parte da nossa realidade e busca, em nossas práticas terapêuticas e meditativas. Mas, com certeza, precisamos avançar bastante na relação com as crianças. Afinal, como também defendia Jung, “quem não se envolve, não se desenvolve”. E o medo ou as barreiras que nos impedem de nos envolvermos mais verdadeiramente com nossos filhos nos dizem muito de nós mesmos.
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