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domingo, 25 de maio de 2014

A farsa do racismo “suave” (Douglas Belchior)

À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.
À esquerda, foto de Neymar em apoio a Daniel Alves; À direita foto de Ota Benga, Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906.

Muito mais que vulgaridade publicitária, difusão do “todos somos macacos”  revela tentativa de minimizar peso da discriminação racial

Por Douglas Belchior, em seu blog

A foto da esquerda todo mundo viu. É o craque Neymar com seu filho no colo e duas bananas, em apoio a Daniel Alves e em repulsa ao racismo no mundo do futebol.

Já a foto à direita, é do pigmeu Ota Benga, que ficou em exibição junto a macacos no zoológico do Bronx, Nova York, em 1906. Ota foi levado do Congo para Nova York e sua exibição em um zoológico americano serviu como um exemplo do que os cientistas da época proclamaram ser uma raça evolucionária inferior ao ser humano. A história de Ota serviu para inflamar crenças sobre a supremacia racial ariana defendida por Hitler. Sua história é contada no documentário The Human Zoo.

A comparação entre negros e macacos é racista em sua essência. No entanto muitos não compreendem a gravidade da utilização da figura do macaco como uma ofensa, um insulto aos negros.

Encontrei essa forte história num artigo sensacional que li dia desses, e que também trazia reflexões de James Bradley, professor de História da Medicina na Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele escreveu um texto com o título “O macaco como insulto: uma curta história de uma ideia racista”. Termina o artigo dizendo que “O sistema educacional não faz o suficiente para nos educar sobre a ciência ou a história do ser humano, porque se o fizesse, nós viveríamos o desaparecimento do uso do macaco como insulto.”

Não, querido Neymar. Não somos todos macacos. Ao menos não para efeito de fazer uso dessa expressão ou ideia como ferramenta de combate ao racismo.

Mas é bom separar: Uma coisa é a reação de Daniel Alves ao comer a banana jogada ao campo, num evidente e corriqueiro ato racista por parte da torcida; outra coisa é a campanha de apoio a Daniel e de denúncia ao racismo, promovida por Neymar.

No Brasil, a maioria dos jogadores de futebol advém de camadas mais pobres. Embora isso esteja mudando – porque o futebol mudou –, ainda é assim. Dentre esses, a maioria dos que atingem grande sucesso são negros. Por buscarem o sonho de vencer na carreira desde cedo, pouco estudam. Os “fora de série” são descobertos cada vez mais cedo e depois de alçados à condição de estrelas vivem um mundo à parte, numa bolha. Poucos foram ou são aqueles que conseguem combinar genialidade esportiva e alguma coisa na cabeça. E quando o assunto é racismo, a tendência é piorar.

E Daniel comeu a banana! Ironia? Forma de protesto? Inteligência? Ora, ele mesmo respondeu na entrevista seguida ao jogo:

“Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados.”

É uma postura. Não há o que interpretar. Ele elaborou uma reação objetiva ao racismo: Vamos ignorar e rir!

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Há um provérbio africano que diz: “Cada um vê o sol do meio dia a partir da janela de sua casa”. Do lugar de onde Daniel fala, do estrelato esportivo, dos ganhos milionários, da vida feita na Europa, da titularidade na seleção brasileira de futebol, para ele, isso é o melhor – e mais confortável, a se fazer: ignorar e rir. Vamos fazer piada! Vamos olhar para esses idiotas racistas e dizer: sou rico, seu babaca! Sou famoso! Tenho cinco Ferraris, idiota! Pode jogar bananas à vontade!

O racismo os incomoda. E os atinge. Mas de que maneira? Afinal, são ricos! E há quem diga que “enriqueceu, tá resolvido” ou que “problema é de classe”! O elemento econômico suaviza o efeito do racismo, mas não o anula. Nesse sentido, os racistas e as bananas prestam um serviço. Lembram a esses meninos que eles são negros e que o dinheiro e a fama não os tornam brancos!

Daniel Alves, Neymar, Dante, Balotelli e outros tantos jogadores de alto nível e salários pouca chance terão de ser confundidos com um assaltante e de ficar presos alguns dias como no caso do ator Vinícius; pouco provavelmente serão desaparecidos, depois de torturados e mortos, como foi Amarildo; nada indica que possam ter seus corpos arrastados por um carro da polícia como foi Cláudia ou ainda, não terão que correr da polícia e acabar sem vida com seus corpos jogados em uma creche qualquer. Apesar das bananas, dificilmente serão tratados como animais, ao buscarem vida digna como refugiados em algum país cordial, de franca democracia racial, assim como as centenas de haitianos o fazem no Acre e em São Paulo.

O racismo não os atinge dessa maneira. Mas os atinge. E sua reação é proporcional. Cabe a nós dizer que sua reação não nos serve! Não será possível para nós, negras e negros brasileiros e de todo o mundo, que não tivemos o talento (ou sorte?) para o estrelato, comer a banana de dinamite, ou chupar as balas dos fuzis, ou descascar a bainha das facas. Cabe a nós parafrasear Daniel, na invertida: “Não tem que ser assim! Nós precisamos mudar! Convivemos há 500 anos com a mesma coisa no Brasil. Temos que acabar com esses racistas retardados, especialmente os de farda e gravata”.

Quanto a Neymar, ele é bom de bola. E como quase todo gênio da bola, superacumula inteligência na ponta dos pés. Pousa com seu filho louro, sem saber que por ser louro, mesmo que se pendure num cacho de bananas, jamais será chamado de macaco. A ofensa, nesse caso, não fará sentido. Mas pensemos: sua maneira de rechaçar o racismo foi uma jogada de marketing ou apenas boa vontade? Seja o que for, não nos serve.

Sou negro, nascido em um país onde a violência e a pobreza são pressupostos para a vida da maior parte da população, que é negra. Querido Neymar – mas não: Luciano Hulk, Angélica, Reinaldo Azevedo, Aécio Neves, Dilma Rousseff, artistas e a imprensa que, de maneira geral, exaltou o “devorar da banana” e agora compartilham fotos empunhando a saborosa fruta, neste país, assim como em todo o mundo, a comparação de uma pessoa negra a um macaco é algo culturalmente ofensivo.

Eu como negro, não admito. Banana não é arma e tampouco serve como símbolo de luta contra o racismo. Ao contrário, o reafirma na medida em que relaciona o alvo a um macaco e principalmente na medida em que simplifica, desqualifica e pior, humoriza o debate sobre racismo no Brasil e no mundo.

O racismo é algo muito sério. Vivemos no Brasil uma escalada assombrosa da violência racista. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de esportistas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: escamotear seu real significado do racismo que gera desde bananas em campo de futebol até o genocídio negro que continua em todo o mundo.

Eu adoro banana. Aqui em casa nunca falta. E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? E, se somos, por que nos tratamos assim?

Mas não. E seguem vocês, “olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico”.

Portanto, nada de bananas, nada de macacos, por favor!

(Disponível em: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=17281)

Educação: o desafio da transexualidade (Márcia Acioli)

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Escolas e professores seguem pouco preparados para lidar com sexo. Incompreensão e preconceitos religiosos ampliam violência e sofrimentos. Programa pioneiro enfrenta problema

Por Márcia Acioli

A escola brasileira tem sido convocada a contribuir para o enfrentamento a diversas formas de violação de direitos. Organizações da sociedade civil cobram da escola educação em direitos humanos, acreditando, com isso, fortalecer a capacidade de fala e de participação de estudantes na conquista de direitos, e por consequência, a criação de clima favorável ao acolhimento de todos os perfis de estudantes que nela ingressam. O propósito é assegurar educação de qualidade mudando o panorama de violência, seja pelo fortalecimento dos sujeitos, seja pelo diálogo que a escola faz com a sua comunidade. Temas como trabalho infantil, exploração sexual, Estatuto da Criança e do Adolescente e diversidade entram na pauta das escolas como proposta das políticas de educação federal, estaduais, municipais e distrital.

Quando o assunto é sexo e sexualidade os desafios são maiores e os/as profissionais da educação nem sempre estão preparados/as. Raras vezes as escolas incorporam no seu dia a dia o trato com questões referentes à sexualidade ou identidade de gênero.

Mesmo na universidade a situação é difícil. Segundo Marcelo Caetano “o semestre passado (2012) foi o semestre que eu tive mais problemas com os professores em relação a isso, eu fiz sete matérias, eu tive que trancar seis, porque os professores não aceitavam [o nome social].” Revista Descolad@s, Inesc 2013.

Francisco (nome fictício), adolescente de 16 anos estuda no Distrito Federal. Seus amigos não sabem que ele nasceu com sexo feminino. Com muito respeito, seus professores o tratam pelo nome masculino. Assim mesmo ele tem muito medo de ser descoberto pelos colegas.

Já a adolescente Ana Luiza (estudante de escola particular em Fortaleza), sofreu constrangimentos por ocasião de sua identificação na prova do ENEM. Ao receber total apoio da família se fortalece para seguir seus estudos. Diferente de uma amiga que, expulsa de casa, encontrou na prostituição a única oportunidade para a sua sobrevivência.

Portanto, é impensável a escola se esquivar da responsabilidade perante temas de tamanha importância que tanto afetam estudantes quanto profissionais e familiares. A transexualidade (falta de sintonia entre o corpo biológico e a identidade de gênero) ficou abafada por muito tempo e muitas pessoas permanecem sofrendo em suas respectivas solidões. A transexualidade ainda é percebida como aberração; no mínimo, uma patologia. São ideias equivocadas, vastamente desmentidas pela comunidade acadêmica tanto das áreas de saúde, quanto humanidades.

O 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica elaborado pela coordenação de Promoção dos Direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) da secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República revela que de 2011 para 2012 há um aumento significativo de violência contra a população LGBT, sendo que o Distrito Federal lidera o ranking. Os jovens de 15 a 29 anos representam 61% das pessoas afetadas pela violência homofóbica, de onde se conclui que a maior parte ainda está na escola; provavelmente no Ensino Médio.

Diante deste cenário, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco — e o ministério da Educação incorporaram a preocupação com as diversidades na escola. No entanto, é muito difícil emplacar o tema da transexualidade numa realidade repleta de pessoas conservadoras. Um dos maiores problemas é a relação promíscua entre religião e escola, a despeito o fato de o Brasil ser um estado laico. Os materiais produzidos pelo projeto Escola sem Homofobia, por exemplo, foram condenados à fogueira pelos fundamentalistas de plantão.

O grau de preconceito e de discriminação que vivem as pessoas transgênero, transexuais e travestis as leva a esconder seus sentimentos, suas identidades ou a evadir da escola. Como aponta Berenice Bento, as pessoas trans “sofrem evasão escolar” por meio de tecnologias cotidianas de exclusão. Seja pela violência transfóbica ou homofóbica, seja pela inadequação do trato pedagógico estudantes experimentam um massacre diário para sobreviverem à escola.

Propostas da Conferência Nacional de Educação Básica em relação à diversidade sexual são simples e viáveis como: evitar discriminações de gênero e diversidade sexual em livros didáticos; ter programas de formação em sexualidade e diversidade; promover a cultura do reconhecimento da diversidade de gênero, identidade de gênero e orientação sexual no cotidiano escolar; evitar o uso de linguagem sexista, homofóbica e discriminatória em material didático-pedagógico; inserir os estudos de gênero e diversidade sexual no currículo das licenciaturas.

O projeto Eu te desafio a me amar é um convite amoroso para o aprofundamento no tema com uma abordagem delicada e séria. O projeto, que consta de uma extensa programação, propõe pautar o tema pelo olhar sensível e estético da fotógrafa Diana Blok e convida adolescentes do Ensino Médio de Brasília e professores de todas as modalidades de ensino a debaterem sexualidade e identidade de gênero a partir do vídeo da mesma autora.

Enfim, a vida escolar é decisiva para a formação e o desenvolvimento da criança e pode se dar em ambiente estimulante, tedioso ou excludente. Portanto, se a escola deseja ocupar seu lugar privilegiado na promoção de cidadania de crianças e adolescentes, não pode ignorar nenhum público. Precisa acolher, incluir e garantir o desenvolvimento pleno de todos os meninos e de todas as meninas, inclusive de todos os meninos que nasceram meninas e de todas as meninas que nasceram meninos e de todos os meninos e meninas que flutuam em busca de suas identidades e jeitos de caminhar na vida.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-desafio-da-transexualidade/)

terça-feira, 8 de abril de 2014

Educação, o novo alvo do fundamentalismo (Cleomar Manhas)

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Em nome da moral conservadora, bancadas religiosas tentam detonar, no Congresso, projeto essencial para construir ensino público de excelência

Por Cleomar Manhas

O Plano Nacional de Educação está no Congresso Nacional desde dezembro de 2010, quando o ainda presidente Lula o enviou para apreciação e processo de votação. Passados três anos e alguns meses e muita discussão, ele foi votado na Câmara e no Senado, onde sofreu alterações e voltou à Câmara que acatará ou não o que foi modificado.

As entidades defensoras da política de educação, especialmente aquelas que lutam por educação de qualidade, estão acompanhando o processo desde então. E agora, no retorno à Câmara, foram surpreendidas pela oposição de vários grupos religiosos evangélicos neopentecostais e católicos conservadores, que se intitulam Pró-Vida.

O projeto apresentado à Câmara tinha no artigo segundo, inciso III a seguinte orientação: “Superação das desigualdades educacionais”. O relator, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR), acrescentou o seguinte texto : “(..) com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. Além disso, ele inovou adotando em seu texto a linguagem de gênero em detrimento do masculino genérico. E esses dois pontos são a causa da oposição, com direito a manifestações grosseiras e pouco democráticas.

Há alguns problemas no PNE que precisam ser sanados, para que de fato se tenha uma política de educação que resolva as desigualdades e promova educação de qualidade. Como, por exemplo, o que se entende por educação pública, pois do jeito como está cabe até mesmo os tais “cheques educação”, bolsas de estudos, convênios com instituições que não são fiscalizadas. Além do comprometimento da União com a necessária complementação orçamentária aos estados e municípios com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ), composto por insumos essenciais à universalização da educação de qualidade, com a garantia da aprendizagem.

Os mecanismos CAQi E CAQ foram criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para calcular quanto custa ter escolas com insumos tais como salários dignos aos/as profissionais da educação, número adequado de alunos/as por turma, insumos infraestruturais, ou seja, bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios de ciências e informática etc. O CAQi já foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, no entanto, como a maior parte dos municípios brasileiros são pequenos e com baixíssima arrecadação, se não houver a devida complementação da União isso não se realizará e não haverá aprendizado universalizado e educação de qualidade para os próximos dez anos.

Pesquisa realizada em 2010 pelo Unicef em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação detectou que há no Brasil 8,8 milhões de estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental em risco de exclusão escolar por estarem em idade superior a recomendada para a série que frequentam. Além de já se ter 3,7 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, sendo que 1,6 milhão encontram-se na faixa etária entre 15 e 17 anos, deveriam estar no ensino médio, mas abandonaram a escola antes disso, por inúmeras razões, que podem ser explicadas pelas diferentes desigualdades existentes, tais como: racial, de gênero, regional, de renda, ou ainda por preconceitos devido à orientação sexual, ou falta de acessibilidade para pessoas com deficiência nas escolas.

O que se poderia imaginar: que a sociedade como um todo se unisse para garantir recursos para a educação pública se realizar como educação de qualidade. E que os/as excluídos/as da escola ou em risco de exclusão fossem acolhidos/as e respeitados/as para que, ou retornassem, ou não evadissem da escola. Além disso, que se conseguisse, de fato, universalizar a aprendizagem que hoje é um grande problema, especialmente, entre a população de baixa renda.

No entanto, a principal pauta desses grupos agora mobilizados é a linguagem de gênero e a frase que diz que para superar as desigualdades educacionais é preciso enfatizar a promoção da igualdade racial, de gênero e orientação sexual.

Um deputado, cuja profissão é definida como “Ministro do Evangelho”, apresentou um voto em separado dizendo que as pessoas que defendem o que eles chamam de “ideologia de gênero” (sic) são antidemocráticos por não reconhecerem a heterossexualidade normativa. De acordo com suas palavras: “sob o pretexto de valorizar minorias sistemicamente marginalizadas, grupos articulados criam um verdadeiro açodamento na consciência civil, com discurso intransigente, linguagem chula e debates violentamente promovidos com vistas à suplantar quaisquer posições divergentes. A política de gênero sob o manto da diversidade e realização dos interesses da minoria propõe insistentemente uma verdadeira ditadura influenciativa (sic), que quer impor seus valores a todo custo, em todos os extratos sociais, com especial modo de agir sobre a infância.”

Veja-se que os grupos que não reconhecem a diversidade e que a sociedade é algo mais do que dizem os manuais da tal heterossexualidade normativa distorcem os fatos para os seus/suas fiéis, dizendo que os/as defensores/as dos diretos humanos impõem seus princípios a qualquer custo, não reconhecendo que a grande questão que se apresenta, especialmente na educação, é a superação das desigualdades e a construção, de fato, do Estado Laico, que apesar de estar em todas as constituições, desde 1891, ainda não se realizou.

O que se constata é que pensamentos obscurantistas como os dos grupos que se mobilizam contra o respeito às diferenças no Plano Nacional de Educação, ou das pessoas que responderam à pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) que a forma de as mulheres se vestirem ou comportarem as fazem sujeitas à violência sexual, contribuem para que as estatísticas de violência contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais aumentem. Além de servir como antídoto à necessidade premente de se construir políticas públicas para todos e todas, sem distinção.

O que se precisa é a defesa intransigente de políticas que sigam o princípio apresentado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-novo-alvo-do-fundamentalismo/)

sábado, 5 de abril de 2014

Outra visão sobre Ninfomaníaca (Bruno Lorenzatto)

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Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente

Por Bruno Lorenzatto*

Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.

Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).

Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.

(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)

Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.

Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.

Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.


* Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/26/outra-visao-sobre-ninfomaniaca/)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Estupro: onde mora o perigo? (Marcos Aurélio Souza)

Slut Walk São Paulo

Percepção sobre crimes sexuais poupa família, criminaliza rua e engana. Em cada quatro casos, três ocorrem na casa das vítimas

Por Marcos Aurélio Souza

A recente pesquisa divulgada pelo IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência” teve um papel pedagógico nas discussões públicas sobre o tema da violência sexual no Brasil. Trouxe para luz do dia a obtusidade agressiva e animalesca que se esconde nos porões da consciência individual de muita gente. Detectou concepções que revelam completa incapacidade de alguns para viver em sociedades, seja qual for seu grau de educação formal.

Um dado importante da pesquisa, dentre outros igualmente fundamentais para entender ou estimar em que ponto está a percepção do brasileiro sobre as condições de violência contra mulher, diz respeito à ideia de que a culpa pela violência sexual sofrida pela mulher reside nela mesma, em particular pelo modo como se veste.

Ao serem perguntados se mulheres que usam roupa mostrando o corpo merecem ser atacadas, nada menos que 65,1% dos entrevistados afirmaram que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Mais ainda. Para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria menos estupros.

Os números ganharam repercussão nas redes sociais e um movimento #NãoMereçoSerEstuprada iniciado pela jornalista Nana Queiroz ajudou a disseminar o debate, nem sempre com opiniões razoáveis. Segundo Nana, “amanheci de uma noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua, mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada”. Nana, no entanto, ganhou reforço de peso na sua luta corajosa. A presidenta Dilma Roussef usou seu twitter para apoiá-la. E mais recentemente personagens como Daniela Mercury emprestaram sua imagem em um nítido apoio ao movimento.

Ao mesmo tempo em que a pesquisa do IPEA ganhou tanta repercussão, uma nota técnica1 também do instituto, e que infelizmente não ganhou a mesma visibilidade, divulga números essenciais para evidenciar que a percepção da culpabilidade feminina pela agressão sexual sofrida é apenas isso, uma percepção, e está anos luz da brutal realidade, em termos de violência sexual, de fato vivenciada pelas mulheres. O submundo de abusos mostrado por essa nota é bem mais alarmante.

O estudo foi produzido a partir dos dados do Sinan (Sistema de Agravos de Notificação) base gerenciada pelo Departamento de análise de Situação de Saúde, vinculado ao Ministério da Saúde. Em 2011, as notificações tratando de violência doméstica e sexual foram incorporadas ao sistema. Apoiando-se nelas, os pesquisadores debruçaram-se para trazer à tona um diagnóstico que foge do senso comum sobre a violência sexual praticada contra a mulher.

Como já esperado, a quase totalidade das vítimas de abusos sexuais é mulher, sendo 88,5%. Entretanto, um dado valioso, diz respeito à faixa etária. Nada menos que metade das vítimas são crianças até 13 anos de idade. Se somados com jovens e adolescentes de 14 a 17 anos (19,4% do total) crianças e adolescentes perfazem o total de pouco mais de 70% das vítimas. Bem, o que não surpreende é que quase 100% dos agressores sejam homens.

Se 70% dos agredidos são crianças, jovens e adolescentes, cabe uma questão. Onde essa violência ocorre? Se você fez essa pergunta, provavelmente já tem a resposta. É no lar. Dentro de casa. São 79% dos casos entre crianças; 67%, entre adolescentes e 65% dos casos entre adultos. E se você chegou até aqui, saiba que poderá se assustar um pouco mais. Entre crianças, apenas 12,6% dos casos de violência são praticados por desconhecidos. Isso mesmo. Os atos de violência sexual praticados contra criança acontecem na inviolabilidade do lar, por pessoas conhecidas ou muito próximas das vítimas. Os números se distribuem do seguinte modo: em 11,8% dos casos, o agressor é o pai; 12,3%, o padrasto; 7,1%, namorado; por fim, 32,2% amigo.

Ou seja, o perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa. Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas.

Naturalmente, não se pode dizer que crianças se vistam de um modo provocativo ou tenham comportamento sedutor a tal ponto que leve as pessoas mais próximas a elas a distúrbios emocionais que resultem em um impulso para a prática de violência sexual. Tudo isso se torna estarrecedor, porque essas vítimas podem sofrer violência durante anos a fio, sem a possibilidade de manifestação do seu martírio.

Isso significa que a resposta positiva dos brasileiros sobre roupas ou comportamentos como determinantes do estupro está calcada numa terrível ignorância que, se por um lado esconde a realidade tal como é, também serve de conveniente sonífero. Sua função é evitar que nossa sociedade se depare com uma visão terrível: há um mundo de mutilação física e psicológica acontecendo debaixo de nossos tetos, envolvendo maridos, ex-maridos, amantes, amigos, conhecidos, e não sabemos absolutamente o que fazer. Parodiando Zé Geraldo, tudo isso acontecendo e a gente aqui na praça dando milho aos pombos.

O estudo conclui com outro dado igualmente assustador. Estima-se que mais de meio milhão de pessoas são estupradas no Brasil anualmente. Dessas, apenas 10% dos casos chegam à polícia. As razões para isso devem ser evidentes, dado que o aparato policial não está preparado para lidar de forma humana com essas mulheres. Os números desse estudo deveriam ser mais aprofundados e deveriam articular entes públicos e a sociedade para enfrentar e quebrar, de forma corajosa, esse pacto de silêncio que insiste em vitimizar todos nós.



1Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/estupro-onde-mora-o-perigo/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Um 8 de março para homens (Marília Moschkovich)

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Não dê rosas, nem presentes: não é celebração comercial. Leia, assista a filmes, reflita. Participe de uma experiência de inversão

Por Marília Moschkovich

Há alguns anos nós, feministas que militamos na internet (sobretudo em blogs), reforçamos a máxima de que aquela rosa que muita gente distribui no dia 8 de março pode ficar pra vocês. Um bom texto que não sai de moda, nesta época, é o “Dispenso esta rosa”, da Marjorie Rodrigues (leia aqui). Muito confusos com essa recusa, alguns leitores têm me escrito desde a semana passada, tentando entender: afinal de contas, se dar parabéns junto a flores ou presentes não é bacana no dia 8 de março, o que podemos fazer para que não passe em branco?

Pra inventarmos maneiras de viver o 8 de março sem sermos machistas, precisamos entender o que é esse dia. Ao contrário do que dizemos no dia-a-dia, o 8 de março não é “Dia Internacional da Mulher”, mas sim o “Dia Internacional de Luta Pelos Direitos das Mulheres”. Dá pra sacar a diferença?

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8 de março não é uma data comercial como o dia das mães, dia dos pais, dia das crianças. Não foi definida por associações comerciais para vender mais rosas  em março e alavancar vendas que sem a data talvez ficassem um pouco lentas (já repararam como os dias das mães, pais e crianças são estrategicamente distribuídos no calendário? pois é).

A data de 8 de março foi reivindicada com muita luta, ao longo de muitas décadas, como dia de luta pelos direitos das mulheres. É neste dia que celebramos as conquistas da luta feminista através dos séculos. Essa celebração nos lembra que nem sempre as coisas foram como hoje, e também que podemos perder esses avanços, dependendo das disputas políticas de nosso tempo. Ao mesmo tempo, refletimos sobre outras transformações que ainda estão por vir, que desejamos que venham, e pensamos sobre como podemos promovê-las. O 8 de março é um dia de informação, reflexão e luta política.

No auge da minha criatividade de quem passou o carnaval descansando e longe da folia, listei algumas ideias de coisas bacanas pra fazer no dia 8 de março. Certamente todas elas são mais produtivas para os direitos das mulheres do que dar parabéns e oferecer rosas, e definitivamente alguma delas é possível de ser feita por você.

Por e-mail (marilia@mariliamoscou.com.br) ou Twitter (@MariliaMoscou), peço que me contem também, a partir do domingo, o que foi que fizeram no dia 8. Pretendo traçar uma pequena coletânea de atitudes dos homens em prol da luta das mulheres na semana que vem! Vamos à lista:

1. Participar de alguma marcha ou manifestação de 8 de março

Como homem, é importante que você possa mostrar que entende que esse é um dia de luta e que apoia publicamente essa luta. As marchas costumam ser bem tranquilas, com grupos diferentes e bandeiras bem diversificadas. É uma experiência legal pra quem anda com alguma curiosidade sobre qual é a cara do feminismo nos dias de hoje, que reivindicações são feitas, etc. Dando uma busca por “Ato 8 de março 2014″ no Google, é possível encontrar informações sobre as marchas programadas para diferentes lugares.

2. Ler (ou começar a ler) um livro de uma escritora feminista

Não precisa chafurdar na teoria e encarar logo O Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir, claro. As escritoras de literatura são excelentes para se começar. Por meio da literatura muitas questões sobre os direitos e as vidas de mulheres em várias épocas são muito bem trabalhadas. Meus livros preferidos pra esse começo são os seguintes:

- Três Vidas (Gertrude Stein)

- O Conto da Aia (Margaret Atwood)

- Um teto todo seu (Virginia Woolf)

- Persépolis (MarjaneSatrapi) [quadrinho]

- O País das Mulheres (Gioconda Belli)

- As boas mulheres da china (Xinran)

- Barragem contra o Pacífico (Marguerite Duras)

- A casa dos espíritos (Isabel Allende)

- Flor da Neve e o leque secreto (Lisa See)

3. Assistir filmes que tragam uma perspectiva feminista sobre as mulheres

Faça uma panelada de pipoca, ajeite uma bebida maneira e vamos lá. Eu indico aqui alguns filmes bacanas, de ficção ou não, mas há realmente muitos filmes feministas bons por aí. Alguns deles que você talvez nem imaginasse que fossem feministas! Se você jogar “filmes feministas” no Google, ele retorna boas listas pelas quais você pode se pautar, também. Minhas sugestões:

- Que bom te ver viva (Lúcia Murat, 1989)

- A excêntrica família de Antônia (MarleenGorris, 1995)

- Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991)

- Tomboy (CélineSciamma, 2011)

- XXY (Lucía Puenzo, 2007)

- Pequena Miss Sunshine (Jonathan Dayton & Valerie Faris, 2006)

- A Vida Secreta das Abelhas (Gina Prince-Bythewood, 2008)

- A Cor Púrpura (Steven Spielberg, 1985)

- Além do bem e do mal (Liliana Cavani, 1977)

- Philomena (Stephen Frears, 2013)

- Em nome de Deus (Peter Mullan, 2002)

- As horas (Stephen Daldry)

4. Participar de alguma outra atividade proposta para o dia, que envolva informação, reflexão e debate

Na cidade de São Paulo, a prefeitura lançou uma listinha muito bacana cheia de atividades interessantes para o 8 de março. Nessas atividades, muitos aspectos do “ser mulher” serão debatidos, apresentados, pensados. Vale a pena conferir a programação extensa e escolher uma atividadezinha pra participar (veja a lista aqui). Eu mesma vou dar um workshop curto voltado para homens nesse dia, também em Sampa (inscrições e informações aqui).

Se você não está em Sampa, uma busca no Google por “8 de março atividades” vai retornar diversas possibilidades; adicionando o nome de sua cidade à busca dá pra ter uma ideia de eventos próximos. Se nada disso funcionar, procure por coletivos feministas e setoriais de mulheres de partidos de esquerda, que esses grupos sempre têm ideias legais de atividades para a data. As ONGs ligadas aos direitos das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e direitos humanos também costumam propor encontros e debates legais no dia. Fique atento!

5. Faça um experimento de inversão

Essa proposta é muito mais ousada do que os outros itens da lista, claro. A ideia é viver como se fosse mulher, em algum aspecto do teu cotidiano, durante um dia. Você pode passar o dia usando sapato de salto alto, por exemplo. Fazer maquiagem feminina, tentar fazer as unhas, fazer depilação com cera nas pernas, usar vestido, ou trocar as tarefas diárias com uma mulher que conviva com você (mãe, irmã, esposa, namorada, amiga, etc). Seja criativo e depois me conte como foi! O lado mais bacana dessa experiência, porém, é discuti-la com as próprias mulheres dos teus círculos sociais. Escute o que elas tem a dizer sobre a experiência delas cotidianamente fazendo o que você fez por um dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/uncategorized/um-8-de-marco-para-homens/)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Natal em Humaitá: “Matem os Índios um por um” (Alceu Castilho)

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Como ruralistas, madeireiros e comerciantes atiçaram a população contra indígenas num rincão amazônico, provocando destruição e instalando estado de apartheid
Reportagem de Alceu Castilho, em A Pública
Cena 1. Terra Indígena Tenharim, km 123 da Rodovia Transamazônica, sul do Amazonas. 27 de dezembro de 2013. De um lado da ponte sobre o Rio Marmelos, de Manicoré para Humaitá, centenas de homens, 50 deles armados. Do lado de Humaitá, 100 guerreiros da etnia Tenharim, 50 de cada lado da estrada. Também armados. Zelito Tenharim, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), está no grupo que liga do orelhão para o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a presidente da Funai também participam da conversa. E ouvem, ao fundo, os gritos da multidão. Todos ouvem a exigência do cacique Léo Tenharim: a Polícia Federal deve ser mandada para o local em meia hora, “senão vai ter derramamento de sangue”. Naquele momento, o grupo liderado por comerciantes, madeireiros e pecuaristas de Apuí e do distrito de Santo Antônio do Matupi avançava sobre a ponte e queimava os postos de pedágio em Terra Indígena. Quando chega a PF, dispersam. Os Tenharim assistem à cena. Os mais velhos somem para o meio da mata. “Quando viram aqueles homens de preto acharam que era o fim do mundo”, conta Zelito, rememorando o episódio. Mulheres e crianças também fogem. Nove ficam perdidos: três mães, com três crianças de colo, duas crianças de 2 anos e um menino de 10 anos, Laudinei Tenharim. Dias depois são resgatados, traumatizados, com febre e ferimentos. Na sexta-feira, 3 de janeiro, sete famílias ainda estavam no meio do mato.
Cena 2. Agência do Banco do Brasil de Humaitá. Primeiro dia útil de 2014. À frente do repórter da Pública, na fila de hora e meia para o caixa, dois pecuaristas, pai e filho, ambos de chapéu de palha. O pai com corrente de ouro na camiseta semiaberta, relógio de ouro, pulseira de ouro. Na ponta da corrente, Jesus Cristo. Chega um amigo e senta ao lado do pai. Eles conversam, sem se preocupar em baixar o tom de voz, sobre o assunto que domina a cidade naqueles dias: os indígenas, ou “índios”, como dizem. “Você pode matar uns dois ou três”, raciocina o amigo. “Mas cinquenta?” Ele continua: “Joga o carro em um, em outro, mas e aí?” Depois passam a falar de negócios. O pecuarista conta, com orgulho, que somente entre o Natal e o Ano Novo vendeu mil arrobas de boi. Em outro grupo, um comerciante, um amigo e um policial rodoviário federal. O comerciante conta que participou do confronto com a polícia, na noite de Natal. Mas recuou após o primeiro tiro de borracha. O policial observa que bala de borracha mata. O amigo expressa a teoria de que os americanos “mataram os índios deles e vêm aqui defender os nossos”. O comerciante acha que os incêndios ateados no fim do ano – em prédios e carros indígenas – valeram a pena. O amigo contesta: “Valia se eles não pisassem mais aqui em Humaitá”.
Cena 3. No dia do Natal, desde as 8 horas da manhã, um carro de som do Xexéu, dono da boate Xexelândia, passa conclamando os moradores a fazer protesto. Não se trata mais de exigir investigações policiais, como querem os parentes de Luciano Ferreira Freire, Stef Pinheiro e Aldeney Ribeiro Salvador, desaparecidos na região no dia 16 de dezembro; todos ali já elegeram “os índios” como culpados. A balsa que liga a Avenida Transamazônica à Rodovia Transamazônica, atravessando o Rio Madeira, é o ponto de encontro dos manifestantes desde a véspera, quando os moradores bloquearam o acesso à balsa. Comerciantes do município bancam pizza, cachorro-quente, transporte. Lá estão também os parentes dos desaparecidos. As mulheres passam mal: a mãe de Luciano, a mulher de Aldeney. Uma, com hipertensão. Outra, com princípio de infarto. No fim da tarde os manifestantes percorrem a cidade gritando: “Vamos queimar”. “Vamos queimar os carros dos índios”. As viaturas e ambulâncias deixam o local. Perto da balsa, Luzineide Freire, irmã de Luciano, se vê sozinha de repente. Contrária às depredações, ela ouve os gritos daqueles que estão ali perto, em frente da Funasa, queimando a Sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Depois, contaria: “Parecia filme”.
Cena 4. No dia 2 de janeiro, e somente naquela quinta-feira, as famílias de Luciano, Aldeney e Stef recebem um pedido dos policiais federais: eles querem roupas usadas dos desaparecidos para que os cachorros possam farejar as pistas. Dezoito dias após a notícia do sumiço. “Dezoito dias!”, exclama Luzineide Freire, irmã de Luciano. A avó de Luciano, que o criou, já tinha lavado quase tudo – por sorte uma camiseta do Corinthians escapou do tanque. “É um descaso total, uma lentidão muito grande”, diz a irmã. Os parentes sentem-se isolados, sem apoio. Luzineide e sua mãe saíram de Porto Velho com as roupas do corpo. E ficaram dependendo da ajuda de amigos. “A gente está a ver navios”, define ela. “E o dia não espera, passa rápido”.
Cena 5. O ano de 2014 começa e a entrada da sede da Funai, em Humaitá, continua sob escombros. Um funcionário trabalha como porteiro de ninguém, em meio aos vidros e pedaços de carro. À frente, os dez veículos da fundação destruídos, queimados no início da noite de Natal. Nas carrocerias, restaram apenas os botijões de gás para contar a história. Os vizinhos contam que o momento mais tenso foi quando houve explosões, em meio aos coquetéis molotov e os tanques de gasolina dos carros destruídos. “Não tinha como não chorar”, conta Claudinei, morador da casa ao lado. “Queriam invadir por aqui”, completa Maria, sua mulher, em pânico por causa das crianças. Ao lado da Funai, no estacionamento, uma voadeira e três motos: todas queimadas. Diante do cordão formado pelos policiais, os manifestantes atiravam pedras e rojões e jogavam as garrafas com gasolina nos carros. O comandante do 54º Batalhão de Infantaria da Selva mandou fechar os postos de combustível para deter os incêndios. Motoqueiros, porém, ofereciam o que tinha em seus tanques. Um caminhão-pipa do Exército estava por ali. “Mas não tinha como chegar”, lembra Claudinei. O prédio se salvou, mas os funcionários da Funai tiveram de fugir para Porto Velho. A perícia? A perícia ainda não foi feita. O local do crime ainda não foi isolado.
Cena 6. Na frente da sede da Funasa, em plena Avenida Transamazônica, uma Hilux queimada, continua no local. Na mesma noite de Natal, os incendiários saíram da sede da Funai e passaram na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai). Dona Nirla Belfort dos Santos, vizinha da Casai, conta que quase queimaram o imóvel.“Tinha um que dizia: ‘Toca fogo’”. Diante dos apelos dos vizinhos, desistiram. Mas seguiram adiante para incendiar a sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que fica no mesmo terreno da Funasa. O prédio está em ruínas. “Uma amiga ia fazer cirurgia, não pode”, conta Naiara Santos, de 24 anos, Tenharim. “Os exames foram queimados. Há pessoas com câncer, sem atendimento”. Ao fundo do terreno, mais três carros queimados. Perto do muro, um carro da Funasa com um vidro quebrado e uma inscrição na lateral, feita com o dedo na poeira: “Índio”. O local do crime também não foi isolado para perícia. Na orla, no Terminal Hidroviário de Humaitá, mais um alvo: o barco N/M Kagwahiwa, responsável pelo atendimento às comunidades ribeirinhas. Queimado.
Cena 7. Diante do caos, o comandante do 54º Batalhão de Infantaria da Selva, tenente-coronel Antonio Prado, decide abrigar os 115 indígenas – a maioria Tenharim – que estavam na cidade nesse período de Natal. O comandante recebe uma ligação de um general, que avisa: “Não toque em um fio de cabelo dos índios”. Manifestantes revoltam-se com a proteção dada pelo coronel. Querem capturar sua mulher. Para protegê-la, cem soldados do Exército vigiam a Vila Militar, onde moram as famílias dos militares. Ficam deitados no chão. Os moradores da vila ficam uma semana sem poder sair de casa. No quartel, uma das três Tenharim grávidas dá à luz, em pleno Natal.
Cena 8. Na véspera do Réveillon, o prefeito Dedei Lôbo cancela os festejos na orla do Rio Madeira, que forma, junto com a Avenida Transamazônica, o cinturão básico que delineia a cidade de Humaitá. Por mensagens pelo celular e pelo Facebook, os moradores articulam uma invasão: “Às 17 horas, queimar a prefeitura”. “A cidade todinha tava sabendo”, contam os humaitenses. Note-se que, neste caso, os fatos nada têm a ver com questão indígena. Os policiais rodam freneticamente pela cidade e vigiam as entradas. Em especial a que vem de Porto Velho e a que sai para a Transamazônica, por uma balsa. Na beira do Rio Madeira, no início da noite, a prefeitura não foi queimada, e os policiais ainda estão lá. Bem do lado do rio, uma pequena fogueira. Ao lado, uma placa: “Perigo. Alta tensão”.
Cena 9. Cerca de 500 pessoas, com a maioria absoluta de mulheres e muitas crianças, participam do ato anual pela paz em Humaitá, promovido pela igreja católica, no dia 1º de janeiro. Os locutores apresentam dados sobre violência e pedem justiça e eficiência nas investigações. “Queremos paz, não a guerra”, diz o locutor. “Queremos nossos maridos vivos”, “Queremos igualdade para todos”, ecoam as faixas na caminhada com a presença dos parentes dos desaparecidos. Ao lado da praça Dom Miguel D’Aversa, entre a Câmara Municipal e a Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, de frente para o Rio Madeira, o bispo Francisco Merkel faz o discurso final. “A ocupação da Amazônia teve mortes, estupros e muito sofrimento”, diz o bispo. Passado um tempo, veio “o pedágio, o confronto”. E dá o recado: “Não podemos fazer justiça. A justiça é um monopólio do Estado. O que temos é o direito de cobrar o Estado, a União, os estados, os municípios, o judiciário, a polícia, para que cumpram suas funções. O problema deste país é que não cumprimos as funções que nos competem. Um clima de injustiça não gera paz”.
Pública passou uma semana em Humaitá – uma cidade onde nem os Tenharim, nem os Parintintin, nem os Jihaui podem pisar, sob pena de serem espancados e mortos. Não apenas por comerciantes e pecuaristas, mas por moradores que, como eles, vivem na pobreza. Por trás dessas cenas de insurreição, detonada pela suspeita de que os indígenas seriam os responsáveis pelo desaparecimento dos três brancos, a Pública descobriu uma teia de conflitos e contradições que desembocou, primeiro, na culpabilização dos indígenas, antes de qualquer investigação séria – cobrada por eles e pelos parentes dos desaparecidos. Em segundo lugar, na violência. No rastro dessa desastrosa história em que a versão dos indígenas quase sempre é ignorada, deparou com diversos – e antagônicos – pontos de vista. Em todos eles há uma denúncia em comum: a omissão do Estado.
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Condenados pelo preconceito, indígenas vivem apartheid

Antonio Mendes Leal, o Seu Tonico, 67 anos, era amigo de Ivan Tenharim, o cacique de 45 anos que caiu da moto e morreu, no dia 3 de dezembro. Conhecia-o desde que ele tinha 15 anos. “Era um cara muito bom, nunca vi ninguém falar dele”. No hotel de Seu Tonico, na Rodovia Transamazônica, Ivan pagava R$ 30,00 para ficar com a família, no quarto com duas camas e armador de redes. Quando ia sozinho, o que era mais raro, pagava R$ 15,00.
Em geral o cacique ia uma vez por mês a Humaitá, para compras e para resolver documentação. Por exemplo, no cartório, para registrar nascimentos. A morte do cacique Ivan Tenharim foi um momento-chave nos conflitos do fim de ano. Parte dos indígenas levantou a hipótese de que não teria sido um acidente, o que foi repercutido pelo então coordenador da Funai na região, Ivã Bocchini, que seria exonerado no início de janeiro. Esse fato acabou sendo visto pela população de Humaitá como motivo – uma suposta vingança – para o desaparecimento dos três brancos. Bocchini e os outros funcionários da Funai tiveram de se refugiar em Porto Velho.
Seu Tonico chamava a mãe de Ivan Tenharim de comadre. “Ela gosta muito de mim”, ele conta. Diante dos acontecimentos do fim de ano, porém, recusa-se a receber novamente indígenas em seu hotel. “Prefiro perda total a tê-los aqui”. Ele atribui o desaparecimento dos três brancos aos indígenas e diz que os Tenharim eram bons “até o pedágio”, cobrado daqueles que atravessam a Terra Indígena. “Aí vieram os moleques para estudar aqui, beber, fumar droga”, diz. Ao lado do ex-vereador Cícero Pedro dos Santos, o Cição, conta histórias sucessivas de “abusos” em relação ao pedágio. Segundo ele, as outras etnias não causariam problema nenhum. “De toda maneira, sendo índio eu não quero aqui. Nunca”.
O pedágio se tornou central na narrativa sobre os Tenharim. Mesmo Dom Francisco Merkel, o bispo de Humaitá, considera a cobrança central para a origem do confronto. Difícil achar um morador favorável à cobrança do que os Tenharim definem como compensação. Um deles fez questão de entregar à reportagem um recibo de um Toyota, com carimbo dos indígenas. “Cem reais”, revolta-se. “Cem reais!” O madeireiro Nelson Vanazzi considera o frete da Transamazônica “o mais caro do Brasil”. “Os madeireiros do 180 estão a cada dia com mais prejuízo”, afirma.
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No momento, Humaitá vive um apartheid. Após ficarem presos no quartel, nos dias que seguiram ao Natal, os Tenharim voltaram antes do Ano Novo para a Terra Indígena. Não podem retornar a Humaitá, mesmo que trabalhem na prefeitura. Não podem comprar alimentos ou remédios. A hostilidade da maioria dos moradores ouvidos ocorre no plural, em relação a todos os indígenas, não apenas aos que acusam de algum crime.
 A dor dos parentes
Do lado dos parentes dos desaparecidos, mais dor. A casa da avó de um deles, o vendedor Luciano, virou uma espécie de QG dos parentes, em Humaitá. Lá estão a mãe e a irmã dele, Luzimar e Luzineide, de Porto Velho. E lá passam o dia outros parentes, como Célia Leal, mulher de Aldeney. O terceiro desaparecido, Stef, é de Apuí, um município vizinho.
Muito chocadas, as mulheres não falam muito. Ficam atentas às notícias e procuram dar força umas às outras. Com os boatos, se acostumaram. (Houve várias notícias falsas sobre o encontro de corpos esquartejados, “esquartejados vivos”, e assim por diante.)
Luzimar e Luzineide contam que só na quinta-feira, dia 2, receberam uma visita do prefeito. A pedido dos parentes. “Só hoje”, repetia Luzineide. Ele levou uma psicóloga e uma assistente social. Luzineide: “Hoje”. No mesmo dia em que a Polícia Federal foi pegar as roupas usadas para o trabalho dos cães. “Hoje”.
Luciano é descrito pelas duas como um homem tranquilo, caseiro. Ele fez 30 anos na véspera de Natal. A mãe mostra-se mais atordoada. E emocionada: “Meu coração diz que o filho está vivo”. Alguém fala dos índios. Ela reage balançando a cabeça e fazendo um barulho com os lábios: “Não posso nem ouvir a palavra índio, brrr”. Embora critique o que considera proteção excessiva aos indígenas, a irmã de Luciano, Luzineide se posiciona contra os protestos violentos – e incendiários – do fim de ano. “Morte não se paga com morte. Para isso tem a justiça. Quero que eles paguem. Só isso. O que queremos é paz”.
Célia aponta Aldeney, gerente da Eletrobrás, como um romântico, um namorado à moda antiga. “Homens choram de saudade dele, os cunhados choram”, conta Célia. Aldeney mora em Humaitá, mas tem casa no “180”, o distrito de Santo Antônio de Matupi, e todo fim de semana viaja para ficar com ela. Devota de Nossa Senhora Aparecida, Célia diz que conversa com Deus para ganhar força. Por isso, a passeata promovida pela Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, no dia 1º, lhe fez bem. “A gente se viu só”, diz.

“Tem que matar um por um”

Sobre a noite de Natal, parece haver um consenso em Humaitá: teriam matado os indígenas se eles estivessem na rua. “Tem de matar um por um”, afirmava uma motoqueira, no dia 30, em um bar perto da balsa. Também são muitos os que justificam os incêndios contra bens públicos relacionados aos indígenas. “Achei que foi bem empregado terem feito isso aí”, diz Seu Tonico, sobre os incêndios. “Moleques andavam tudo noiados aí, de carro novo”. Boa parte dos moradores de Humaitá se refere ao quebra-quebra com naturalidade, minimizando a violência. Para eles, se tratou de uma forma de “chamar a atenção” das autoridades.
Essa expressão foi uma das mais utilizadas no período em que a Pública esteve no município. Mais comum que ela, só as frases sobre os “privilégios e regalias” que seriam desfrutados pelos indígenas. Do discurso não fazem parte as muitas outras ilegalidades em que a região é pródiga: crimes ambientais, grilagem, matanças e perseguições.
Em um hotel lotado de policiais, a reportagem foi procurada por um indígena que acabara de ser expulso de casa. Não quis dar o nome, por segurança. “Queriam queimar minha casa”, contou. Esse Tenharim nunca morou na aldeia. E mesmo assim sofre retaliações. Na porta do hotel, de moto, um rapaz de camiseta branca nos encarava. Diante de um olhar interrogativo, saiu, deu uma volta. Dali a pouco passava novamente. E nos olhava com ódio.
Mesmo entre os que pensam de outra forma, os preconceitos contra os indígenas se revelam facilmente. “Se não deixarem voltar [para Humaitá] é uma ignorância”, afirma Raimundo Nonato do Nascimento, vizinho da sede da Funai. Em seguida, acrescenta que conhece “índios que trabalham”, reproduzindo o discurso da “preguiça”, que estigmatiza os indígenas.
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Em terra tenharim, o clamor é por investigação policial

Um dos únicos a não fazer nenhum senão em relação aos indígenas foi o taxista que levou a reportagem à Terra Indígena Tenharim Marmelos. “Estão no direito deles”, repetiu várias vezes durante o percurso. Ali, a Públicafoi recebida por um grupo de 20 indígenas, na manhã da quinta-feira, dia 3 de janeiro.
Ao ouvirem do repórter as declarações de Seu Tonico, de que não aceitará mais indígenas em seu hotel, os Tenharim ficaram em silêncio. Com os olhares fixos, chocados. Aquele era o lugar onde eles ficavam em Humaitá. Não disfarçaram a decepção e não souberam o que dizer. Mas falaram sobre os desaparecimentos, negando qualquer responsabilidade.
Mais do que isso: “Por que a Polícia Federal não abre outras linhas de investigação?”, perguntava o cacique Ivanildo Tenharim. Ao contrário dos moradores de Humaitá, que os acusam sem exigir provas, eles querem uma apuração mais ampla dos desaparecimentos. “A PF está focada na aldeia e não mexe com os principais”, dizem. “Com certeza quem fez isso está achando graça”.
Até o momento, nem imprensa nem a polícia aventam a possibilidade de outra linha de investigação. E os Tenharim apresentam outras hipóteses que mereceriam a atenção dos investigadores. Falam de homens suspeitos que utilizam a Rodovia do Estanho, que liga a Transamazônica a Machadinho D’Oeste, em Rondônia, e segue para o Mato Grosso. A rodovia começa logo após a Terra Indígena, no quilômetro 150 – muito perto de onde policiais localizaram um carro queimado que acreditam ser dos desaparecidos. “É uma via de concentração de fugitivos”, afirmam. Eles contam que esses homens teriam uma base em Santo Antônio do Matupi, no distrito de Manicoré, mais conhecido como “180” – já que fica nesse quilômetro da Transamazônica. Eles e muitas pessoas em Humaitá chamam o “180” de “vila dos sem-lei”. É a terra de madeireiros, dos pecuaristas, símbolo da fronteira agropecuária do sul do Amazonas.
Os Tenharim também reivindicam segurança na reserva; segurança para os indígenas que residem em Humaitá; segurança para quem vai temporariamente para a cidade; um Grupo de Trabalho que aja para solucionar o problema. Doze servidores precisam voltar ao trabalho – entre eles o próprio Ivanildo, coordenador de Educação Escolar Indígena de Humaitá. “Estamos preocupados com o trabalho, não com o emprego”, diz ele. “Temos prazos que podemos perder”.
Zelito Tenharim, funcionário da Funai, reivindica a liberação de recursos para que a Coordenação Regional do Madeira – cuja sede foi destruída no Natal – volte a funcionar. Ele exige a segurança dos funcionários públicos e dos indígenas. “Que priorizem esta situação que estamos passando”.
Também há pessoas em tratamento que precisam ir ao médico todo mês. Caso dos hipertensos, como a mãe de Domá Tenharim. “Não tem ninguém para medir a pressão dela”, diz ele. Os indígenas estão usando medicamentos tradicionais, “mas o efeito é muito lento”. Mesmo antes dos atentados aos prédios faltavam medicamentos, principalmente de média e alta complexidade. Por isso, em relação aos casos mais complexos, os Tenharim já resolveram: querem ser atendidos apenas em Porto Velho.
O cacique Aurélio Tenharim faz questão de assinalar que não é por medo que estão deixando de ir a Humaitá. “Estamos dando um tempo. A gente não quer confronto nem tragédia”. Por isso eles pedem que os órgãos que trabalham com a população indígena atendam na aldeia.
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Pedágio ou compensação ambiental?

Ivanildo conta que a Secretaria Especial de Saúde Indígena fez um levantamento, antes da destruição de sua sede, e constatou que há muita desnutrição, entre crianças e idosos. No dia da visita da reportagem à aldeia as crianças comiam milho e mandioca. Dias depois Aurélio disse que já tinha acabado a carne de caça e pesca.
Das 14 escolas, só duas são de alvenaria. Três são de madeira. O resto funciona em casas, cedidas pela comunidade. Estudante de Pedagogia na Universidade Federal do Amazonas, Ivanildo quer a produção de material didático específico. Mas são necessários técnicos. “Hoje os indígenas que têm escolaridade conseguem por esforço individual, não por apoio do governo”.
Diante desse quadro de abandono, os indígenas tomam suas próprias providências como a cobrança do “pedágio”, que consideram um termo inadequado. “Para nós é cobrança de compensação pelo usufruto da TI Tenharim”, define o cacique Aurélio Tenharim. Ele diz que a cobrança, distribuída por todas as famílias, não veio para enriquecê-los, mas para mitigar os problemas trazidos pela Transamazônica: “Ela trouxe matança, doença, prostituição, escravos, invasão; é um imposto ambiental e social”.
Segundo ele, um levantamento do impacto social desde a abertura da rodovia foi feito e entregue pelos Tenharim ao Ministério Público Federal no Amazonas e à Funai. “Está documentado que isso foi analisado e proposto para o governo. Não tivemos resposta”, conta.
Os Tenharim já anunciaram que vão reconstruir os postos e recomeçar as cobranças em fevereiro. Enquanto isso, em Humaitá, o comerciante Fernando Pereira de Maria afirma que se o governo não tirar o pedágio vai ter de manter policiamento. “Senão vai ter enfrentamento”, afirma. Fernando é dono do restaurante Na Brasa, na avenida Transamazônica, um dos únicos da cidade. Como tal, acaba reunindo personagens centrais dos conflitos em Humaitá. Por ali costumavam comer Luciano, Aldeney e Stef, os três desaparecidos. E também o cacique Ivan Tenharim.

Dando nomes aos bois

Os Tenharim dão nomes aos que incitaram a violência em Humaitá. Comerciantes, madeireiros, políticos. Entre eles Adimilson Nogueira (DEM), prefeito de Apuí, o vice-prefeito de Humaitá, Herivânio Freitas (PTN), e três vereadores de Humaitá, Manicoré e Apuí. Entre os empresários, mencionam donos de supermercado e donos de hotéis. No caso do 180, a “vila dos sem-lei”, os Tenharim apontam Eduardo Gervásio, líder dos produtores rurais. “Ele chamou a população do 180 para invadir a aldeia”, denunciam. “O pessoal já vinha anunciando há dois dias que ia queimar”, conta Zelito Tenharim. De imediato a gente ligou para a presidência (da Funai). Mas a proteção demorou muito. Pensamos: será que isso vai acontecer mesmo? E deu no que deu”.
Zelito e Aurélio Tenharim contam detalhes sobre a ligação para o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, e sobre conversa telefônica naquele dia 27 de dezembro, com a participação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati. “Todos eles ouviram o cacique Léo dizer: ‘Se as autoridades não se posicionarem, vai haver derramamento de sangue”.
A primeira a ser contatada, naquele dia, foi a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que funciona durante 24 horas. Os manifestantes, vindos de Santo Antônio do Matupi e de Apuí, chegaram às 10 horas do dia 27. “As casas pegavam fogo e o povo gritava na estrada”, relatam. Os guerreiros receberam a seguinte instrução: “Não atirem enquanto eles não atirarem”. Ninguém atirou.
Os indígenas observam que são chamados de bandidos e sequestradores pelos brancos de Humaitá, “mas em nenhum momento, mesmo eles invadindo patrimônio público utilizado pelos indígenas, a gente revidou”. E destacam: “Apenas ficamos na aldeia. Porque a gente tem controle da comunidade”.
As fotos reunidas pelos Tenharim da destruição da sede da Funai mostram pessoas mascaradas, ou com o rosto coberto por capacetes. Segundo os indígenas, são principalmente jagunços, contratados pelos comerciantes e fazendeiros. Também dizem que os donos de supermercado deram R$ 1.000 para cada um dos homens que lideraram os incêndios em Humaitá. “Eles que fizeram aquele estrago na Funai, no Sesai, no barco e aqui na estrada”, afirmam. “O resto da população ficava assistindo, fazendo número”.
Aurélio Tenharim é incisivo a respeito: “Foram contratados. Não é uma versão, são fatos”. Eles dizem que ficaram sabendo do pagamento aos jagunços por uma pessoa que foi chamada para fazer o serviço e se recusou. “Quase foi linchado por isso”, contam os Tenharim. “E o pessoal que gosta de indígenas contou que viram arrecadar”.
Um nome desponta como um dos mais mencionados entre os que incitaram a violência: o empresário conhecido como Neguinho dos Cachorros, dono de açougue e dono da Agroboi. A reportagem o procurou na Agroboi, em Santo Antônio do Matupi, mas ele não estava.
Na cidade, a versão é a de que não havia ninguém de fora durante os incêndios, que eram pessoas de Humaitá, conhecidas. Os Tenharim também apontam um segurança de banco entre os agressores. Uma foto mostra esse homem sendo imobilizado pela polícia. A Polícia Federal também investiga os líderes da rebelião. Ao contrário da investigação sobre os desaparecimentos, ela está sendo feita em silêncio. Até agora não chegou aos jornais.
Macondo é aqui
Em meio a fatos concretos, como o pedágio, e o desaparecimento de três pessoas, Humaitá virou uma espécie de Macondo, em meio ao milagre da multiplicação de boatos. A cidade imaginária do colombiano Gabriel García Márquez move-se a partir do fatalismo.
Como ninguém aventa a possibilidade de que não tenham sido os indígenas os responsáveis pelos três desaparecimentos, eles são retratados como vilões. E os moradores repetem as mesmas frases, as mesmas histórias sobre eles. Que andam de Hilux. Que são ricos. Que não pegam fila de banco nem de hospital. Que queimam todos os corpos das pessoas que matam.
O boato mais popular era o dos pajés. Que um pajé tinha informado que um carro preto atropelara Ivan Tenharim. E por isso os Tenharim tinham matado as pessoas do primeiro carro preto que viram. O repórter comenta com a advogada Altanira Ulchoa, amiga dos parentes dos desaparecidos, que não há pajés entre eles. Ela retruca: “Têm pajés, sim. O Seu Ramos disse que tem pajé lá e que se chama Sadam”. Ela fala com ênfase, arregalando os olhos. E não está brincando: realmente acredita que haveria um pajé chamado Sadam.
Aos boatos se soma a desinformação. E um sentimento de inveja em relação ao que seriam “privilégios” e “regalias” dos indígenas. As duas palavras são muito citadas. Na saída de um cartório, um ex-advogado da prefeitura fez questão de falar das tais regalias: “usam brinquinhos, caminhonetes”. “Se misturaram muito”. Outro morador criticou o uso de piercing.Uma crítica muito recorrente é ao fato de eles dizerem, segundo os brancos, que “são federais”. Ou seja, que só a Polícia Federal poderia prendê-los.
Os Tenharim respondem com um misto de indignação e sarcasmo a algumas das acusações. “Onde é que tem um Hilux?”, perguntava Aurélio Tenharim na sexta-feira, 3 de janeiro. Ele teve uma Saveiro queimada. “Os índios que possuem carro têm porque trabalham com eles. Um dos Tenharim mostrou a casa sem cobertura. “Não tenho dinheiro para comprar um Eternit, imagina Hilux”, disse Moisés Tenharim.
Em setembro, o procurador Julio José Araujo Junior, do Ministério Público Federal, informava sobre as “péssimas condições de conservação” da Casa de Saúde Indígena, “oferecendo riscos de contaminação e desconforto aos pacientes em tratamento”, sendo urgente nova estrutura de acomodação “para garantir condições dignas de internação e eficiência nos tratamentos”. O mesmo Ministério Público proibiu, após o Natal, a veiculação de conteúdo racista nos sites e blogs da região. Eles se tornaram uma central de boatos – e de propagação do ódio contra indígenas. No limite da incitação à violência.
Na sede da rádio comunitária, a FM 104, comandada pelo madeireiro Nelson Vanazzi, a Polícia Federal entrou e inquiriu o locutor. Para a indignação de Vanazzi, que acusou os policiais de truculência.
A SEGUNDA PARTE DESTA REPORTAGEM SERÁ PUBLICADA AMANHÃ

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/natal-em-humaita-matem-os-indios/)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O vagão para mulheres só anda para trás (Marília Moschkovich)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/o-vagao-para-mulheres-so-anda-para-tras/)

Segregar transporte público é sugerir, como outrora, que mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela dos homens…

Por Marília Moschkovich, na coluna Mulher Alternativa

No Rio de Janeiro já funciona há 7 anos, no metrô, um vagão exclusivo para mulheres. Desde o meio deste ano, o metrô do DF adotou a mesma medida e um projeto de lei tramita no estado de São Paulo para que o mesmo seja feito. O “vagão rosa”, como é conhecido em alguns lugares, já foi implementado no Japão, Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Malásia e em Dubai. Geralmente funcionam assim: nos horários de pico apenas ou prioritariamente mulheres podem ocupar o espaço do vagão. Isso garantiria, a princípio, que não fossem assediadas nos trens.

O fato de apenas países de cultura sabidamente machista terem implementado esse tipo de política pública não é uma coincidência. Observando um pouco mais de perto a questão, fica claro que além de não resolver nada e reforçar a heteronormatividade e o próprio machismo, os vagões exclusivos ainda fomentam uma outra forma de opressão de gênero. Acompanhem meu raciocínio.

Assédio, em todos os níveis

Quem nunca viveu ou viu uma situação de assédio em transporte público lotado? Em geral os assediadores aproveitam-se da superlotação dos trens para agir. Na cabeça dessas criaturas bizarras, as mulheres são corpos disponíveis, que existem no mundo para agradá-los. Essa é a faceta mais perversa do machismo estrutural, reproduzida e reforçada por homens que muitas vezes, na melhor das intenções, se dizem feministas: a ideia de que eles podem pautar o corpo e o comportamento das mulheres de alguma forma. Esse princípio está por trás de textos machistas do escritor Xico Sá, de versos de Vinicius de Moraes, mas também orienta ações como a de estupradores e assediadores (físicos e verbais) em todos os dias de nossas vidas.

Recentemente a força que esse princípio tem na cultura brasileira ficou evidente, quando os resultados da campanha “Chega de Fiu-Fiu”, do blog ThinkOlga, foram divulgados. Houve muita resistência de diversos homens em aceitar que aquela cantadinha que parece inofensiva acaba limitando a liberdade das mulheres de andarem como quiserem, por onde quiserem, na hora que quiserem. A grande maioria se recusa ainda a entender que nós mulheres não queremos sua opinião sobre como nos vestimos, sobre nossa aparência física, exceto em alguns contextos muito específicos. Quer dizer: novamente, as mulheres existem para os homens, na cabeça de tais espíritos sem luz.

O assédio é frequente, em diversos níveis. Qualquer mulher sabe disso, na pele. Então por que uma medida que (em tese) visa combater o assédio é mal-vista por tantas feministas? As feministas endoidaram de vez?

Os problemas da política dos vagões exclusivos

Para o azar de quem nos odeia, nós feministas ainda não perdemos de vez o bom senso. Vejam só: ao propor a separação de homens e mulheres como solução para o assédio, a política dos vagões exclusivos pressupõe três coisas – e é nessas três coisas que reside a opressão de gênero da questão.

Em primeiro lugar, os vagões exclusivos culpabilizam as mulheres pelo próprio assédio. A questão é abordada como se elas fossem o problema da coisa toda. Essa pressuposição fica clara na ideia de que as mulheres devem ser separadas da “população normal” (ou seja: homens; vejam lá Simone de Beauvoir com seu Segundo Sexo). Separar as mulheres – que são em geral as vítimas da agressão – significa dar liberdade aos algozes.

Quer dizer, os homens que assediam podem continuar assediando em outros espaços, sem que isso tenha nenhum tipo de punição. São comuns os relatos de recusa da segurança do metrô – e das polícias civil e militar – em tomar providências em casos de assédio. Muito comuns. Não é preciso ser nenhum gênio para encontrá-los no bom e velho Google (fica a dica).

Ao mesmo tempo as mulheres, que sofrem as agressões, são confinadas a um espaço limitado. Quer dizer: além dos assédios que limitam nossa liberdade, as políticas públicas que deveriam combatê-los fazem o mesmo. Não faz o menor sentido, não tem a menor lógica. Para sermos livres precisamos ser menos livres – é isso, mesmo?

Esse tipo de inversão cruel e bizarra acontece em várias outras situações de culpabilização das mulheres. Nas sociedades de cultura machista como a nossa, as mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela sexualidade dos homens também. Assim, quando sofrem agressões, a solução é limitar, fiscalizar e controlar o corpo e as atitudes delas. Jamais o comportamento dos homens.

Daqui derivamos mais uma pressuposição problemática das políticas de vagões exclusivos: a de que seria natural dos homens não se controlarem sexualmente. Essa pressuposição é problemática em todos os níveis possíveis. Pra começo de conversa, porque trata o assédio e o estupro como se fossem parte do sexo, como se estivessem relacionados a desejo sexual e não a uma opressão e a uma questão de poder (três textos excelentes sobre isso, se você ainda não leu: no Biscate Social Club, na revista Fórum e no Bidê Brasil).

Além desse problemão, a proposta de segregar vagões nos diz que o fato de alguém “ser homem” (o que quer que isso queira dizer – falo brevemente disso em seguida) faz com que necessariamente vá assediar e estuprar mulheres. Não preciso dizer o quão irreal é essa suposição, certo? Há muitos homens que não estupram e um bom tanto que não assediam, nem o farão ao longo de sua vida. Só não arrisco dizer que são maioria ou minoria porque, de fato, não há dados estatística e sociologicamente confiáveis sobre isso (lembrando que ser condenado criminalmente por algo não significa que a pessoa realmente fez, nem que quem não foi condenado deixou de fazer).

Ainda mais fora da realidade do que isso, é a terceira suposição implícita nas políticas de vagões exclusivos para mulheres: a de que homens necessariamente têm desejo sexual por mulheres, e vice-versa. Chamamos essa pressuposição de “heteronormatividade”, e ela aparece também em vários outros contextos em nossa sociedade.

Separar as mulheres dos homens no transporte público, além de tudo que já mencionei, ainda reforça essa ideia retrógrada e surreal de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”, o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são exceção, aberração, etc. Ou seja, no fim das contas, políticas como essa do vagão exclusivo estão muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir. Sacaram?

Ao criar esse vagões, assumimos que não haverá “desejo sexual” (ainda supondo que seja essa a questão do assédio – que, sabemos, não é) entre mulheres. Nem entre homens. Fingimos que também não existem vários tipos de assédio contra outras minorias no transporte público e no resto da sociedade brasileira (quem lembra de um adolescente que foi jogado de um trem por skinheads que encasquetaram que ele era gay, há uns anos atrás, em São Paulo?). Não vou nem me atrever a tocar na questão dos estupros corretivos a gays e lésbicas.

Dentro dessas minorias outras, talvez a que mais de ferre com essa separação dos vagões sejam os homens e mulheres trans*. Além dessas três suposições problemáticas das políticas de vagões exclusivos, então, temos mais um problema grave que elas alimentam: como definir quem é mulher e quem não é? Quem tem esse poder?

Na semana passada, uma mulher foi expulsa do vagão exclusivo no metrô do DF porque os seguranças do metrô “decidiram” que ela não era mulher. A definição dessa categoria – “mulher” – não é nada simples, e filósofas, antropólogas e militantes feministas de diversas áreas e profissões debatem exaustivamente a questão há décadas. Certamente na legislação dos vagões não há uma definição sequer sobre o que qualifica alguém de “mulher” e portanto dá acesso ao tal vagão exclusivo.

A classificação acaba sendo feita arbitrariamente pela aparência, portanto. Mas é a aparência que define se alguém é ou não é mulher? Definitivamente, não. O que define o gênero das pessoas é a identidade que cada um constrói para si com o passar dos anos. Dar aos seguranças do metrô o poder de definir quem é mulher, é retirar de cada um a possibilidade de viver sua identidade e sua expressão de gênero. É uma forma de dominação das mais abusivas e cruéis.

Sem nem entrar na discussão de que a identidade de gênero não precisa ser binária (homem ou mulher), e nem fixa para a vida toda, já temos bastante motivo ver que os vagões exclusivos são uma violência contra quaisquer pessoas que não sejam homens cissexuais, de aparência e comportamento lidos como suficientemente “masculinos”.

O vagão exclusivo para mulheres é, portanto, um retrocesso para as relações e opressões de gênero de todos os tipos, já tão consolidadas na cultura brasileira. Tudo o que não precisamos agora, enquanto tramitam o estatuto do nascituro e outros absurdos no Congresso, é de retrocesso.

Antes que eles deixem de existir (Janara Lopes)

(Disponivel em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/antes-que-eles-deixem-de-existir/)

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Em viagem pelo planeta, fotógrafo registra imagens de civilizações ameaçadas — porque são “exóticas” aos olhos do Ocidente e não se submetem a mundo dominado pela mercadoria
Por Janara Lopes, no Ideafixa
O fotógrafo Jimmy Nelson andou pela Etiópia, Indonésia, Papua Nová Guiné, Quênia, Tanzânia, Nova Zelândia, Mongólia, Sibéria, Nepal, China, Vanuatu, Argentina, Equador, Namíbia, Índia, Sibéria e na Península de Chukotka. Tudo isso para registrar todas as tribos que ainda resistem mundo afora, e que estão prestes a se extinguir.
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“Em 2009, meu plano era entrar em contato com tribos isoladas, e com visual único. Eu queria testemunhar as suas tradições, juntar-me a eles em seus rituais e descobrir como o resto do mundo está ameaçando seu modo de vida para sempre. Mais importante que isso, eu queria criar um documento fotográfico estético ambicioso que resistisse ao tempo. Um corpo de trabalho que fosse um registro etnográfico insubstituível de um mundo que está desaparecendo rapidamente.”, conta Jimmy Nelson.
Before They Pass Away (Antes Que Deixem de Existir) é o nome registro rico e cinematográfico que virou livro.
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