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domingo, 25 de maio de 2014

Drogas: todo usuário seria um dependente? (Gabriela Leite)

Grande parte dos consumidores usa psicoativos apenas em festas ou finais de semana. Exatamente como no caso do álcool

Revisão de pesquisas contesta mais um tabu proibicionista, ao revelar que, assim como no caso do álcool, pode haver consumo moderado de cocaína e ecstasy

Por Gabriela Leite

Uma das bases do proibicionismo — a crença segundo a qual não há o que fazer, em relação às drogas, exceto bani-las — é o suposto mal intrínseco das substâncias psicoativas. Seu uso resultaria inevitavelmente em vício e dependência, provocando danos severos à saúde física e mental. Não haveria hipótese de consumo controlado ou responsável. No entanto, uma revisão criteriosa das pesquisas mais recentes feitas com usuários de drogas está revelando o contrário. Sua autora é a psicóloga italiana Grazia Zuffa, da ONG Forum Droghe [Fórum Drogas].

Contando com recursos da União Europeia, ela reexaminou estudos epidemiológicos e qualitativos que abordavam, em especial, o uso da cocaína. Os resultados, surpreendentes, foram expostos num Seminário de Especialistas, em Florença (20 a 22/6/2013) e estão sintetizados num sumário produzido pelo Transnational Institute, instituto de acadêmicos ativistas que pesquisam diversas áreas do conhecimento. A ideia essencial proposta pelo texto é superar a visão do uso de drogas como doença e tratar os usuários — ao menos, a grande maioria deles — como pessoas conscientes, ativas e capazes de cuidar de sua saúde.

Ao questionar as pesquisas anteriores sobre o uso da cocaína, Grazia detaca que parte delas é meramente quantitativa. Registram a quantidade de pessoas que fizeram uso dentro de algum período. A cocaína, por exemplo, foi consumida por 2,5 milhões de jovens europeus em 2013; e ecstasy por 1,8 milhão. Houve algum aumento e baixa no uso de drogas, com o passar dos anos. Mas estes números deixam de revelar um aspecto essencial da realidade: quais destas pessoas usaram apenas uma vez; quais continuaram a consumir por algum período e pararam; quantas fizeram uso contínuo; e quantas, por final, tornaram-se dependentes?

A análise de Grazia, que leva em conta o consumo na vida, no último ano e no último mês, mostra que apenas uma pequena parcela dos jovens torna o uso das drogas regular. E, entre os que o fazem, muitos deles só mantêm por algum período da vida — durante a universidade ou na idade em que vão frequentemente a festas, por exemplo.

Conversando com os usuários de drogas estimulantes, como a cocaína e o ecstasy, percebeu-se que eles próprios têm seu sistema de autorregulação, principalmente por terem consciência dos malefícios que a droga pode causar a sua saúde. Adotam regras auto-impostas — por exemplo, usar apenas nos finais de semana, ou não usar em momentos em que não se sentem bem. Outra atitude importante é perceber quando se está abusando e dar um passo para trás, interrompendo o consumo por algum momento. Como se percebeu, drogas deste tipo estão muito mais relacionadas com fases da vida e questões individuais.

Ninguém questiona todos estes pontos ao pensar no uso do álcool, droga legalizada e fortemente encorajada pela sociedade. Grande parte dos usuários, diferente do que acontece com a cocaína, tende a fazer um uso contínuo de bebidas alcoólicas durante toda a vida, mas costumam também se autorregular, ter períodos de uso mais e menos intenso, ou mesmo abstinência. É fácil reconhecer a diferença entre alguém que bebe socialmente e um alcoólatra; mas o uso de drogas ilegais é quase sempre visto como patológico. Uma mudança nessa visão seria, para os pesquisadores, muito necessária no combate aos riscos das drogas sem moralismo e distante da crença absurda de que a proibição irá acabar com seu uso.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/04/23/drogas-todo-usuario-seria-um-dependente/)

sábado, 3 de maio de 2014

ENTRE A REPÚBLICA E A CORPORAÇÃO DO MÉRITO E DA HIERARQUIA? - REFLETINDO SOBRE O MANIFESTO CONTRA A “PARIDADE” NA UFSC (João José Veras de Souza)

Por João José Veras de Souza (doutorando do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC)



Li o Manifesto (que adiante passo a identificar com o número 1) e o texto que lhe segue como explicativo “Manifesto à Comunidade Universitária. Eleição para Reitor.” Assinado por vários professores da UFSC(2). Li também o artigo do professor  Paulo C. Philippi – A crise da UFSC não está nas drogas(3) – que puxa o assunto (todos publicados na internet no blog do jornalista Moacir Pereira, do Grupo RBS), e li também um outro artigo de autoria do mesmo professor publicado na página da APUFSC, sob o titulo Democracia na UFSC (4). Entendo que o Manifesto para ser melhor compreendido deve ser lido considerando o conjunto do referidos escritos. Há laços que lhes dão unidade – nestes, os fundamentos avançam para além do jurídico – e possibilitam a sua melhor compreensão, alimento essencial para o debate.

A questão levantada é diversa  e riquíssima para análise. No entanto, vou me ater a alguns dos aspectos nela contidos que no momento me chamam mais atenção. Em síntese, as manifestações estão centradas na defesa do seguinte argumento: o processo informal de escolha da lista triplice para o cargo de reitor da UFSC não está atendendo a previsão da lei 9.192/95, no seu inciso III, que estabelece  peso de 70% para o voto dos docentes em relação aos discentes e servidores. Mesmo apesar de que na UFSC, desde a década de 80 e, inclusive, sob a égide da referida Lei, o voto é paritário, o Manifesto pugna pelo fim desta prática ante a sua patente ilegalidade. (cfe 1, 2, 3 e 4)

O fundamento básico contido especialmente no Manifesto é, como demonstrado, o juridico. Mas não se resume/limita a ele (cfe 2). As referidas manifestaçõs fazem um esforço argumentativo para justificar a razão de existir daquela previsão legal. Usam como principio fundamental  a importância da centralidade (de poder e de saber) sob o corpo docente na Universidade. Nesse sentido, aduzem ser o professor a sua base intelectual, portanto aquele que a pensa, razão pela qual defendem caber a ele o comando/liderança maior da instituição de ensino superior e, por tais razões, o direito de definir os seus destinos. (cfe 1, 2 e 3)

No artigo Democracia na UFSC, o professor Paulo C. Philippi, nesse sentido, é claro:

“A Universidade não é uma república. No processo de escolha do Reitor em uma autarquia pública o mestre possui o mérito de ser a base intelectual da universidade (o seu ‘corpo de governo’ nas palavras de Darcy Ribeiro), no sentido que ele é quem decide para aonde deve ir a universidade em suas metas de proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, produzir e difundir conhecimento. E esta é a grande razão para que sua opinião seja privilegiada neste processo em relação à dos demais segmentos. E não só pela Lei.”(cfe 4)

Mas existem outros argumentos que, embora não estejam explicitamente expressos no corpo do Manifesto, estão bastante presentes nos outros textos especialmente naquele – A Crise da UFSC Não Está nas Drogas – que pega a carona/mote do recente evento politico-policial chamado, por uns, de “O Levante do Bosque”, e, por outros, de “A Revolução dos Maconheiros”. De fato, o conjunto de textos referidos se insurgem contra a paridade na escolha do Reitor baseado em, pelo menos, três argumentos: i) o a favor da legalidade;ii) o a favor da manutenção do poder docente e sua autoridade meritocrática-institucional, e iii) o contra um suposto poder discente – ou “cidadania universitária”  – que supostamente quer transformar a UFSC numa “universidade popular”. (cfe 1, 2, 3 e 4)

Tenho para mim que todos os argumentos merecem ser problematizados tendo em conta  as idéias que se possa ter de poder, de saber e de ser numa sociedade democrática.

É fato inquestionável  a existência de uma Lei que, aos olhos de todos e por vontade popular (de toda a comunidade acadêmica) e também institucional, está sendo, em parte, desconsiderada – pontualmente no processo de escolha informal da lista tríplice. Na UFSC, há quase 20 anos que a paridade é a norma. Aliás, antes da lei – desde a década de 80 – que a paridade já era regra. Não se tem noticia que alguém tenha questionado judicialmente este fato. Nem as autoridades internas, nem externas, nem seus controles, nem a comunidade universitária. Aliás, este é um fato que se repete tal qual em 39 das 54 universidade púbicas brasileiras, portanto em quase 70%, delas, conforme dados levantados pela UNB em 2012 .

Este fenômeno coloca em xeque o poder da lei em relação à vontade popular e com a “conivência” das instituições.  Isto é juridica e socialmente significativo. Não pode ser desprezado. Talvez esteja aqui a realização concreta da vontade – efetivamente – autônoma da comunidade universitária. Devemos pensar mais a respeito para além daquilo que possa siginificar uma conveniência pontual de grupos de poder. De um modo importante, isto coloca  em questão a ideia de autonomia universitária na prática. O que, aliás, no sentido mais profundo, não revela autonomia nenhuma tendo em vista que, ao final e definitivamente, quem escolhe o reitor das universidades é o Chefe do Executivo Federal e não as suas comunidades.

Mas este não é o fundamento fonte/forte do manifesto. Como fazem questão de afirmar seus autores, não se trata especificamente de se questionar o cumprimento ou não da lei (cfe 2). O mais importante é o que a motiva e a justifica – o que a faz necessária no contexto universitário. Pelo que se pode observar, existem outras motivações que se substanciam na exata compreensão que os propositores do Manifesto – em relevo o professor Paulo C. Philippi – têm de poder, de saber e de ser no campo acadêmico institucional das universidades brasileiras. Vejamos.

O referido professor (cfe 3), aponta que há, embora minoritário, um poder estudantil em marcha dentro da UFSC – poder este voltado para a consecução de uma “universidade popular” – que está dando o ritmo à UFSC, causando, com isso, uma crise de autoridade na instituição. Para Paulo C. Philippi, o foco desse “levante” é o Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFH  aonde se pratica o voto universal, regime pelo qual a vontade do discente tem o mesmo peso que a do docente. Acusa o professor que se está criando na UFSC “Uma forma de populismo que, ainda que possível de ser admitido em uma república, é extremamente nocivo em uma casa hierárquica baseada na meritocracia como é o ambiente universitário” (cfe 3).Assim, para ele, o que está em curso é “um projeto para transformar a UFSC numa ‘universidade popular’” (cfe 3). Segundo entende, não é isso que a sociedade catarinense quer. Para ele, o Estado de Santa Catarina deve à meritocracia implantada na UFSC o seu alto nível de desenvolvimento. Noutras palavras, o professor está dizendo que uma ‘universidade popular” se destata por se revelar o inverso do que a UFSC tem sido até agora. (cfe 3)

Como é posta tal ordem de entendimento, a premissa básica lançada é a de que uma “universidade popular” (o professor Paulo C. Phillip chega a afirmar que não sabe exatamente o que seja isto – cfe 3) ou pelo menos aquela que seja pautada num poder estudantil ou numa “cidadania universitária”, é contrária às ideias de competência acadêmica (mérito), de autoridade (como exercício da transmissão do “respeito ao conhecimento, à ética, aos valores humanos…” – cfe 3), e de legalidade. Segundo entende o professor, “a universidade não é uma república” (cfe 3 e 4). Aqui o argumento é claro no sentido de que há incompatibilidade frontal entre a idéia de democracia, portanto de participação na ordem do poder, com a de transmissão de saber. A universidade não seria uma coisa pública mas uma coisa do professor, aquele que detém o saber. A universidade, por essa linha de entendimento, seria um centro de saber e não de poder. Como se fosse possível tal separação e como se não houvesse poder nos sistemas de saberes e de sua produção e reprodução.

Esta questão coloca a existência de uma divergência de fundo entre aquilo que seria uma universidade baseada na meritocracia e na hierárquia em relação aquilo que seria uma universidade popular e democrática. Essa distinção traz, em si, a impossibilidade de convivência das oposições apontadas. Por este entendimento, a dupla popular/democracia é diametricamente incompatível com o par mérito/autoridade. Aqui parece residir uma espécie de preconceito diante do que seja considerado popular.O que é compreesível para quem  nutre uma visão hierárquica entre saberes. Nesse sentido, a idéia de popular/democrático remete oposição ao conhecimento e à falta de hierarquia. Com isso, um poder popular – que para o professor significa uma forma de populismo (cfe 3) – na universidade representaria o fim do conhecimento, como mérito, bem como da hierarquia como método do exercício do poder. Insisto: por essa forma de compreensão, com uma universidade popular, o saber seria substituido pelo poder. Seria assim mesmo? Estaria confundindo porque é confuso ou é confuso porque se está confundindo?

Como se apresenta, o conjunto dos escritos também levam a crer que há uma politização negativa na universidade que é perniciosa ao poder (pois refuta a idéia de autoridade), ao saber (desconsidera a idéia de meritocracia)  e ao ser (no que resulta a formação de indivíduos incompetentes e assim improdutivos). E essa politização negativa tem como foco de reprodução os alunos (alguns, a minoria – cfe 3) – limitados à condição de meros receptores dos conhecimentos acadêmicos – e a idéia que pregam de “universidade popular” em que seria exercida uma certa “cidadania universitária” (cfe 4).Sob tal  prisma, a politização negativa – que se expressa como uma forma de “populismo” (cfe 3)-  seria  nociva à universidade representando, assim, o seu fim “…como centro de dominio, produção e difusão do conhecimento”. (cfe 3) Não existe saber na discência.

A contrario sensu, no outro polo, teríamos a não-politização – ou a politização positiva – que na universidade faz bem ao poder (reafirma a autoridade institucional sobretudo na figura do professor), ao saber (coloca o mérito como o meio para se alcançar o conhecimento significativo) e ao ser (forma indivíduos competentes e produtivos ). E essa não-politização tem como foco de reprodução os professores, aqueles a quem cabe pensar e fazer a universidade.

Quanto ao suposto avanço do poder estudantil em relação ao poder docente (causando uma crise de autoridade na instituição), tenho para mim que há um latente equívoco por aqui. Em última análise, a paridade não retira o poder que o corpo docente tem nas universidades federais brasileiras. Ela apenas esgarça a possibilidade da comunidade universitária – em suas categorias discente e de servidores – de participar dos processos eleitorais nos quais só – e somente só – o professor poder ser o eleito. Salvo raríssima exceção, o professor continua sendo, de fato e de direito, o único integrante da comunidade universitária a ter o direito de ocupar cargos de direção nas instituições federais de ensino, como reitorias, centros de ensino e órgãos colegidos deliberativos e executivos (nestes, integrando sempre como maioria). O que resta de alternativa para os alunos e servidores é apenas a opção de escolher entre este ou aquele professor. Muito embora se propala que a universidade se baseia numa gestão em que a sua comunidade – e não um de seus segmentos – é o ator principal. É fato que o poder hierárquico – acadêmico e administrativo – ainda se encontra nas mãos dos professores, apesar da paridade informal. É possível, diante deste contexto, pensar que tal fato venha a ofender princípios democráticos relacionados à participação na condução dos destinos da instituição em todos os sentidos.

Ademais, convenhamos, essa paridade informal é precária não só sob o ponto de vista jurídico. No pólo em que realmente interessa, posto que decisivo, ela está adstrita ao crivo formal dos 70% da representação docente do Conselho Universitário – quem dá a última palavra no sistema decisório da IFES. Em verdade, afora a força simbólica desta paridade, o seu poder político se sustenta por um triz no despenhadeiro dos interesses.

É bom lembrar, ainda, que, para aquém da condição de eleitores/votantes, os discentes e os servidores não detém qualquer poder decisório importante na estrutura institucional da universidade. As associações de servidores, centros acadêmicos e diretório central dos estudantes existem como meio-instrumento coletivo de condução de pautas, manifestação e luta por seus interesses e direitos. Suas participações nos colegiados da instituição – estes que decidem – é extremamente minoritária não oferencendo, com isso, nenhum risco de, pelo número, fazer qualquer alteração institucional.  Mesmo no sistema paritário, sua força se limita a 1/3 dos votos, portanto ainda são, separadamente,a minoria no sistema eleitoral. O império dos professores continua intacto. Porque tamanho medo?

Por fim, no arcabouço das argumentaçõe dos escritos em questão, é, salvo melhor interpretação, possível se extrair – o que me parece igualmente expressivo – uma manifesta falta de consideração quanto ao papel do aluno como aquele que também pensa a universidade e contribui para o processo de construção – não só reprodução – de conhecimentos (se isto é certo nas graduações o é sobretudo nas pós-graduações). Os alunos vezes são tidos como se fossem  páginas brancas disponíveis a quaisquer anotações dos seus mestres. A sua condição cidadã – que se opera fortemente quando resolve escrever e interpretar por conta própria suas páginas – é colocada como um comportamento a ser reprimido posto que subversivo às ordens professorais próprias dos sistemas hierarquicos irreflexivos e por isto autoritários. É este ser-sujeito que esta universidade pretende “formar”? Da mesma maneira, os servidores são postos à completa invisibilidade, no  sistema de poder e saber, como se suas participações não fossem relevantes dentro do contexto da gestão acadêmica. A universidade não é só o professor, ela não é apenas de seu interesse – isto é o óbvio anotado sob as nossas cabeças – mas se todo o poder lhe for destinado – no caso específico de que estamos a pensar – de ser eleitor majoritário e único eleito – então é fácil concluir que o princípio da gestão democrática não passará de uma mera frase inócua. Aliás…

Pela democracia na UFSC: Resposta ao Manifesto que exige 70% de peso dos votos à categoria docente (Gabriel Martins)

Por Gabriel Martins*

Nas últimas semanas foi divulgado manifesto de servidores públicos da carreira de magistério superior da UFSC em que se exige que as eleições para reitor dessa universidade, a ocorrer em 2015, tenham os votos dos professores equivalentes a 70% dos votos totais, mesmo sendo os professores apenas 5% do total da comunidade universitária, composta também por estudantes e Técnicos-administrativos em Educação (TAEs). O documento foi divulgado na UFSC e na imprensa catarinense e responde pelos motivos dos pouco menos de 20% dos professores da UFSC terem encaminhado abaixo-assinado à Administração Central da universidade com a exigência do que interpretam ser o cumprimento das leis em torno das “eleições” para reitor na maior universidade de Santa Catarina.

No documento, assinado por 12 servidores, são expostos dois motivos centrais à exigência: (a) a legalidade e (b) o “mérito docente”. Carece o manifesto, portanto, de contextualização e, com base nessa mesma contextualização, falta ao manifesto elementos essenciais para a análise tanto da legalidade quanto do mérito, ao que me proponho aqui a examinar.

O contexto do manifesto

O abaixo-assinado foi elaborado no decorrer do desenvolvimento dos trabalhos de um Grupo de Trabalho (GT) designado pelo Conselho Universitário da UFSC (CUn) para revisar as regras para a consulta informal à comunidade universitária à escolha dos próximos reitor(a) e vice-reitor(a) da Instituição.

No decorrer dos trabalhos do GT foi divulgado um texto chamando a comunidade universitária para debater as formas legais possíveis de consulta, sendo apontada a discrepância dos regramentos formais, que não atendem a critérios democráticos por considerarem que cidadãos brasileiros se distinguem quando estão na Universidade. Para esclarecer os aspectos centrais dessa questão, abordarei aqui tanto a legalidade quanto o “mérito docente”, de modo a deixar claro que não há qualquer ilegalidade em os professores não terem peso 70% nas “eleições” para reitor. Viso também deixar claro que o alegado “mérito docente”, que justificaria o fato de os professores serem os únicos capazes de escolher o reitor das universidades, não tem consistência dentro das universidades brasileiras, conforme estão regradas pela Constituição de 1988. Ou seja, ou os autores do manifesto exigem o cumprimento integral das leis e aceitam que o “mérito docente” não é condizente com os argumentos apontados, ou defendem o “mérito docente” e contrariam a lei. Mas analisemos primeiro a legislação para as “eleições” de reitor nas Instituições Federais de Ensino Superior.

A legislação para as “eleições” para reitor

Em primeiro momento é relevante esclarecer: não existem, legalmente, eleições para reitor nas universidades brasileiras. A lei 5.540 de 1968 – período de exceção do Estado Brasileiro, que vivenciava naquele momento um processo ditatorial que perduraria por cerca de 21 anos – aponta que o cargo de reitor é exclusivamente nomeado pela presidência da República. Com o passar dos anos os decretos que melhor instruíam essa nomeação se alteraram e hoje o que perdura afirma que a presidência nomeia a reitoria das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir do quadro de professores da própria instituição e que tenham título de doutorado. Para a escolha desse nome, a universidade elabora uma lista com três nomes de sua preferência, e em ordem de preferência, no que se chama lista tríplice.

Quem elabora a lista tríplice é o órgão deliberativo máximo da universidade no caso da UFSC é o CUn. O CUn tem de encaminhar a lista tríplice a partir de determinados regramentos. Os nomes são auto-indicados, ou seja, tem de haver o compromisso do professor doutor de querer ser reitor. Os nomes auto-indicados (candidatos) são votados pelo CUn, em um processo em que cada conselheiro universitário vota em somente um nome e os três mais votados compõem, em ordem de votação, a lista tríplice a ser encaminhada ao Ministério da Educação (MEC). O CUn é, por força de lei, formado pelo mínimo de 70% de professores.

Mas é possível também, por questões tanto de legalidade quanto de legitimidade, que o CUn faça uma consulta pública aos demais membros da comunidade universitária. Sem esse procedimento, seria possível o mais corrosivo mal a uma democracia: a perpetuação do poder, pois todos os professores do CUn são, por força de lei federal, indicados pelo reitor. Isso ocorre porque da mesma forma como é a presidência da República quem de fato escolhe a reitoria da universidade, é atribuição da reitoria a escolha dos diretores de centros de ensino e pró-reitores. E é atribuição dos diretores dos Centros de Ensino a escolha dos representantes docentes no Conselho Universitário. Ou seja, o reitor, por força de lei, nomeia 70% do Conselho Universitário.

Desse modo, se competir tão somente ao CUn a indicação da lista tríplice a ser encaminhada ao MEC, pode facilmente ocorrer a perpetuação de poder, pois 70% do CUn é, por lei, nomeado pelo reitor e esses mesmos 70% indicam o reitor.

As consultas são, desse modo, adotadas tanto para a escolha dos nomes da lista tríplice, quanto para a designação de Diretores dos Centros de Ensino, Coordenadorias de Curso etc.

As consultas, a legalidade e a legitimidade

Com a lógica de o CUn indicar os nomes para reitor e o reitor indicar os nomes para o CUn, que é o que obriga a legislação brasileira, as chances de constituição de uma oligarquia na gestão de todas as instâncias da universidade são imensas. Apesar de legal, tal medida não é, contudo, legítima. Imaginemos o que ocorreria se atual administração da UFSC passasse a exigir a lei e nomeasse novos diretores dos Centros de Ensino e representantes docentes para o CUn. A atual reitoria teria, portanto, automaticamente 70% de todas as cadeiras do CUn, que indicaria os novos nomes, em ordem de preferência, para a reitoria a partir de 2016. E ninguém se surpreenderia com uma reeleição ou com a condução de um de seus aliados políticos para a nova gestão, que então indicaria 70% do CUn, que indicaria o novo reitor, e assim, ad eternum, até a completa degeneração das instâncias democráticas e acadêmicas. Ou até o levante da universidade.

A fim de evitar comoções ou degenerações deletérias, as universidades adotam, desde os anos 60, o processo de consulta, que se assemelha a uma eleição. As consultas, contudo, não necessariamente substituem a indicação do CUn, mas indicam o que pensa a comunidade universitária, orientando e legitimando a escolha do Conselho. Na UFSC, as consultas datam de 1991. Nos anos 70, houve colégios eleitorais, sendo o de 1976 emblematicamente composto por 21 professores, 3 estudantes e 1 representante da FIESC. Os estudantes se recusaram a votar.

Atualmente todas as IFES brasileiras realizam consulta à sua comunidade, antes da elaboração da lista tríplice, e, em curiosa proporção, 70% das IFES realiza consulta com peso de votos paritários, ou seja, 33% dos votos da consulta é relativo a cada categoria (professores, TAEs e estudantes).

As consultas formais e informais

Há, conforme orientação do MEC, duas formas de consulta: as consultas formais e as consultas informais. A palavra formal diz respeito, é importante ressaltar, ao termo forma não ao termo legítimo, como pode, por vezes, parecer. O que diferencia, portanto, as consultas formais das consultas informais não é a formalidade do ato de consultar, ou quem realiza a consulta, mas o fato de que as consultas formais têm a forma pré-estabelecida de 70% dos votos válidos serem de servidores docentes (professores) e os outros 30% entre as restantes categorias. As consultas formais podem ter como consequência a possibilidade do colegiado eleitoral responsável por elaborar os documentos de encaminhamento da lista tríplice, havendo, portanto, a delegação de uma atividade do CUn para outro fórum.

A consulta informal, por seu turno, é um processo de consulta sem forma definida (por isso, reitero, o termo informal, que quer dizer aqui, sem forma) e que, desse modo, pode ter qualquer forma, sem haver desrespeito às normas postas. A maioria das consultas informais é paritária, mas nada impossibilita ou impede a consulta universal, ou seja, a instituição de uma forma de consulta que considera que o voto de qualquer indivíduo da comunidade universitária valha o mesmo que o de outro indivíduo, independente do vínculo estabelecido.

A consulta informal pode ser organizada por qualquer órgão ou entidade, e não há restrição legal para ser organizada por colegiado por delegação do CUn, desde que, após a consulta, os resultados sejam meramente norteadores. Ou seja, após a consulta, o CUn realiza uma eleição e elabora a lista tríplice, sem delegar qualquer atividade a outro grupo, colegiado ou órgão. Dessa forma, a despeito do afirmado de que esta consulta seria obrigação do CUn e que a consulta informal seria “terceirização” das atividades daquele Conselho, o que ocorre é justamente o contrário: com a consulta formal o CUn abdica de formular a lista tríplice, e com a consulta informal, o resultado da consulta volta ao CUn, que procede a formação da lista tríplice sem estar obrigado a consentir com os resultados da consulta.

O GT Democracia UFSC e a proposta polêmica

A crítica recebida de “terceirização das atividades do CUn” ao haver a sugestão de revisão das normas da consulta informal à comunidade é infundada, pois conforme ressaltei acima, o GT instituído pelo próprio CUn em análise à legislação vigente apontou para a necessidade de o CUn, diante de sua responsabilidade de envio da lista tríplice ao MEC, realizar anterior consulta à comunidade universitária, a fim de atender aos anseios dessa mesma comunidade, em acordo com os princípios democráticos e considerando que todos os membros da comunidade universitária possuem igualdade de condições de discernir, dentre os candidatos possíveis, quais os que possuem o mais relevante mérito de formular um programa legítimo perante a comunidade que representará por quatro anos.

Há quase 221 anos atrás a França escandalizava o mundo com a regulamentação do voto universal (para homens, diga-se de passagem). No mundo todo houve inúmeras teorizações sobre o valor dos homens ricos em detrimento dos homens pobres. Julgava-se que alguém sem posses era alguém incapaz de decidir por seu próprio futuro. Em verdade o que estava em jogo era a possibilidade de tributação da riqueza, que somente seria proposta por quem não fosse parte dos mais ricos. Hoje ninguém contesta o voto universal, extensivo agora (nada mais justo) às mulheres e a todos aqueles que são considerados passiveis de responderem por seus próprios atos. Ou seja, se um indivíduo é passível de responder por seus atos, ele é também passível de responder e opinar sobre o futuro de sua comunidade. Isso só não ocorre nas ditaduras.

Na Revolução Francesa, considerou-se que o voto era um direito inalienável de todo o ser humano, sendo equiparado ao direito à vida, por ser considerado o direito de decidir livremente por sua própria vida em sociedade.

Considerando todos esses aspectos, além dos conceitos de cidadania, o GT denominado “Democracia” propôs o voto universal, pois se para escolher o Presidente da República que é quem de fato nomeia os reitores, todos os membros da comunidade universitária com mais 16 anos têm o voto de mesmo peso, porque então para escolher quem integrará a lista tríplice a ser enviada para esse mesmo presidente seria diferente?

O voto universal não coloca em xeque que quem será o reitor ou reitora será um professor de magistério superior com título de doutorado, o que quer dizer que toda a apelação para que os professores decidam (sozinhos, ou praticamente sozinhos) o futuro da universidade não tem cabimento, pois só essa categoria pode ser dirigente máximo das universidades brasileiras, conforme largamente argumentado no Relatório Final do GT Democracia UFSC, disponível na página www.gtdemocracianaufsc.wordpress.com

A argumentação em torno do que aqui chamo de “mérito docente” do manifesto redigido pelos 12 professores da UFSC utiliza-se de vasto arsenal para apontar como somente os docentes podem direcionar as universidades em um protesto que não levava em consideração que a proposição de voto universal é, infelizmente, limitada ao voto, não a quem pode se eleger. Ou seja, independente da forma de consulta, somente professores do magistério com título de doutor podem assumir o cargo de reitor.

O vasto arsenal argumentativo em defesa do “mérito docente” era, portanto, irrelevante, a não ser que se considerasse que nem mesmo votar as demais categorias seriam capazes. Apesar de desnecessário, seu uso foi além de exagerada, carregado de sérios problemas, os quais não posso me furtar de comentar.

Quem é a base intelectual da universidade

No manifesto que circulou um pouco na universidade e um pouco mais na mídia se afirma que “O professor é a base intelectual da universidade. É ele quem cria as disciplinas e os programas de graduação e pós-graduação e quem estabelece e coordena os projetos de pesquisa e extensão. É o professor o responsável pelo domínio, produção e difusão do saber e pela formação dos nossos quadros, necessários ao desenvolvimento do país”. Há aqui, no entanto, afirmações bastante imprecisas.

(I)Em primeiro momento a produção do saber humano não é responsabilidade, nem, muito menos, exclusividade da docência. O professor não fundou o saber e a humanidade produz conhecimento em muitas outras áreas que não são abrangidas pela universidade.

(II)Se a produção do conhecimento não é exclusividade dos professores universitários, o ensino também não é atividade de um único sujeito. Não existe ensino sem aprendizagem, e esse processo de ensinar em nada se assemelha a uma transmissão de conhecimentos a um sujeito desprovido de saberes. O ensino-aprendizagem é um processo mais amplo em que os estudantes são tão sujeitos quanto os docentes, ainda que com momentos predominantes distintos.

(III) Se não é exclusividade docente a produção do conhecimento e o domínio do processo de ensino-aprendizagem, tampouco lhe são exclusivas as atividades de pesquisa e extensão. Conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as atividades de ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis. Ou seja, não podem as universidades desenvolver atividades exclusivamente de ensino, ou de pesquisa ou de extensão. Além disso, os projetos de pesquisa têm de visar ao desenvolvimento do conhecimento e dos saberes humanos, que retornarão ao processo de ensino-aprendizagem, e os projetos de extensão apontam para outras formas de disseminação e desenvolvimento do conhecimento, que igualmente refluem ao processo de ensino-aprendizagem.

Se são indissociáveis, todas essas atividades fazem parte de um grande processo que é a produção, sistematização e socialização dos conhecimentos humanos em quaisquer áreas, e esse grande processo tem, em seus momentos constitutivos outros sujeitos que não professores, isso significa que o professor não é a base intelectual da universidade, mas uma dessas bases. Ora, se são indissociáveis as atividades de ensino, pesquisa e extensão e existem projetos de pesquisa e projetos de extensão que são coordenados e desenvolvidos por técnicos-administrativos em Educação (TAEs), isso quer dizer que essa categoria é muito mais que um mero suporte técnico e administrativo, mas é também parte constitutiva da produção, sistematização e socialização de conhecimentos.

São inúmeros os projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos pelos TAEs da UFSC hoje, e variam de áreas técnicas, às ciências humanas, além de muitos projetos de pesquisa e extensão na área artística. Disso devem saber todos na universidade, ou ao menos todos aqueles que veem a universidade como algo mais que um grande colégio de estudantes letárgicos a receberem conhecimentos transmitidos por seres iluminados. A universidade, não somente as “boas universidade do mundo”, é um local de universalização do conhecimento, não somente no que diz respeito a quem “recebe” este conhecimento, mas em relação também a quem produz e sistematiza muito mais que disciplinas, mas saberes humanos.

* Gabriel Martins trabalha como Administrador no Centro de Ciências da Educação da UFSC, onde atua como Coordenador Administrativo desde que deixou o cargo de Coordenador de Apoio Pedagógico junto à Pró-reitoria de Graduação. Graduado e mestre em Administração pela UFSC, está no último ano do doutorado na UFRJ. É atualmente também coordenador de pesquisas aprovadas pela UFSC nas áreas de Políticas Públicas e coordena atualmente projetos de extensão nas áreas de literatura e teatro. Desde abril 2013 é conselheiro universitário e foi designado presidente do GT Democracia UFSC, cujo Relatório Final propondo o voto universal para a próxima consulta para reitor da UFSC foi entregue no dia 10 de abril de 2014.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Educação, o novo alvo do fundamentalismo (Cleomar Manhas)

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Em nome da moral conservadora, bancadas religiosas tentam detonar, no Congresso, projeto essencial para construir ensino público de excelência

Por Cleomar Manhas

O Plano Nacional de Educação está no Congresso Nacional desde dezembro de 2010, quando o ainda presidente Lula o enviou para apreciação e processo de votação. Passados três anos e alguns meses e muita discussão, ele foi votado na Câmara e no Senado, onde sofreu alterações e voltou à Câmara que acatará ou não o que foi modificado.

As entidades defensoras da política de educação, especialmente aquelas que lutam por educação de qualidade, estão acompanhando o processo desde então. E agora, no retorno à Câmara, foram surpreendidas pela oposição de vários grupos religiosos evangélicos neopentecostais e católicos conservadores, que se intitulam Pró-Vida.

O projeto apresentado à Câmara tinha no artigo segundo, inciso III a seguinte orientação: “Superação das desigualdades educacionais”. O relator, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR), acrescentou o seguinte texto : “(..) com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. Além disso, ele inovou adotando em seu texto a linguagem de gênero em detrimento do masculino genérico. E esses dois pontos são a causa da oposição, com direito a manifestações grosseiras e pouco democráticas.

Há alguns problemas no PNE que precisam ser sanados, para que de fato se tenha uma política de educação que resolva as desigualdades e promova educação de qualidade. Como, por exemplo, o que se entende por educação pública, pois do jeito como está cabe até mesmo os tais “cheques educação”, bolsas de estudos, convênios com instituições que não são fiscalizadas. Além do comprometimento da União com a necessária complementação orçamentária aos estados e municípios com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ), composto por insumos essenciais à universalização da educação de qualidade, com a garantia da aprendizagem.

Os mecanismos CAQi E CAQ foram criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para calcular quanto custa ter escolas com insumos tais como salários dignos aos/as profissionais da educação, número adequado de alunos/as por turma, insumos infraestruturais, ou seja, bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios de ciências e informática etc. O CAQi já foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, no entanto, como a maior parte dos municípios brasileiros são pequenos e com baixíssima arrecadação, se não houver a devida complementação da União isso não se realizará e não haverá aprendizado universalizado e educação de qualidade para os próximos dez anos.

Pesquisa realizada em 2010 pelo Unicef em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação detectou que há no Brasil 8,8 milhões de estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental em risco de exclusão escolar por estarem em idade superior a recomendada para a série que frequentam. Além de já se ter 3,7 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, sendo que 1,6 milhão encontram-se na faixa etária entre 15 e 17 anos, deveriam estar no ensino médio, mas abandonaram a escola antes disso, por inúmeras razões, que podem ser explicadas pelas diferentes desigualdades existentes, tais como: racial, de gênero, regional, de renda, ou ainda por preconceitos devido à orientação sexual, ou falta de acessibilidade para pessoas com deficiência nas escolas.

O que se poderia imaginar: que a sociedade como um todo se unisse para garantir recursos para a educação pública se realizar como educação de qualidade. E que os/as excluídos/as da escola ou em risco de exclusão fossem acolhidos/as e respeitados/as para que, ou retornassem, ou não evadissem da escola. Além disso, que se conseguisse, de fato, universalizar a aprendizagem que hoje é um grande problema, especialmente, entre a população de baixa renda.

No entanto, a principal pauta desses grupos agora mobilizados é a linguagem de gênero e a frase que diz que para superar as desigualdades educacionais é preciso enfatizar a promoção da igualdade racial, de gênero e orientação sexual.

Um deputado, cuja profissão é definida como “Ministro do Evangelho”, apresentou um voto em separado dizendo que as pessoas que defendem o que eles chamam de “ideologia de gênero” (sic) são antidemocráticos por não reconhecerem a heterossexualidade normativa. De acordo com suas palavras: “sob o pretexto de valorizar minorias sistemicamente marginalizadas, grupos articulados criam um verdadeiro açodamento na consciência civil, com discurso intransigente, linguagem chula e debates violentamente promovidos com vistas à suplantar quaisquer posições divergentes. A política de gênero sob o manto da diversidade e realização dos interesses da minoria propõe insistentemente uma verdadeira ditadura influenciativa (sic), que quer impor seus valores a todo custo, em todos os extratos sociais, com especial modo de agir sobre a infância.”

Veja-se que os grupos que não reconhecem a diversidade e que a sociedade é algo mais do que dizem os manuais da tal heterossexualidade normativa distorcem os fatos para os seus/suas fiéis, dizendo que os/as defensores/as dos diretos humanos impõem seus princípios a qualquer custo, não reconhecendo que a grande questão que se apresenta, especialmente na educação, é a superação das desigualdades e a construção, de fato, do Estado Laico, que apesar de estar em todas as constituições, desde 1891, ainda não se realizou.

O que se constata é que pensamentos obscurantistas como os dos grupos que se mobilizam contra o respeito às diferenças no Plano Nacional de Educação, ou das pessoas que responderam à pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) que a forma de as mulheres se vestirem ou comportarem as fazem sujeitas à violência sexual, contribuem para que as estatísticas de violência contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais aumentem. Além de servir como antídoto à necessidade premente de se construir políticas públicas para todos e todas, sem distinção.

O que se precisa é a defesa intransigente de políticas que sigam o princípio apresentado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-novo-alvo-do-fundamentalismo/)

domingo, 30 de março de 2014

Santa Catarina: por que Universidade Federal está ocupada (Caio Teixeira)

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Um relato da operação truculenta e ilegal da PF, que invadiu câmpus da UFSC, agrediu alunos, desrespeitou a reitoria e fez lembrar ditadura. Reitoria segue ocupada em protesto

No Crítica da Espécie

Quando tomei conhecimento da invasão da Universidade Federal de Santa Catarina terça-feira (25/3) por policiais federais não identificados, já imaginei o teor das notícias da mídia no dia seguinte tentando dividir os atores em os que são a favor da maconha e os contra. Afinal, uma das formas mais comuns de manipular informações é desviar o foco do principal para uma falsa polêmica e esta mídia é a mesma que apoiou o golpe militar em 64. Vamos reler os fatos.

Em primeiro lugar os policiais que iniciaram a ação, não se identificaram como tal, tampouco tinham ordem judicial para prender gente. Sem se identificar, não estão efetuando uma prisão, estão realizando sequestro exatamente como os que são lembrados às vésperas do aniversário de 50 anos da ditadura militar. Nem o carro em que estavam era identificado. São práticas típicas da polícia política da ditadura. Como saber se o estudante estava sendo preso ou sequestrado? Quem sabe até por narcotraficantes? Além do mais qualquer operação policial dentro de uma Universidade Federal deve ser comunicada à Reitoria antes e negociada de comum acordo. Ninguém pode invadir uma Universidade e sequestrar estudantes. Isto acontecia, repito, na ditadura quando tínhamos um Estado sem leis e os direitos individuais estavam suspensos.

E também vamos parar com o moralismo de tratar maconha como se fosse pior que drogas legais, tipo cigarro, que mata e ninguém se importa. É que o tabaco enche os cofres de multinacionais que o exploram diretamente e da indústria de medicamentos e equipamentos médicos usados para tratar da epidemia de câncer provocada por esta droga.

Polícia que não se identifica está agindo como bandido, fora da lei, e foi tratada como bandido pelos estudantes até descobrirem do que se tratava. Ouvi o tal delegado no rádio dizendo-se ofendido pela nota da Reitoria que repudia a invasão, chamando a reitora de irresponsável e acusando-a de querer transformar a UFSC numa “república de maconheiros”. Disse quase a mesma coisa no Jornal Nacional (está ficando famoso). Exatamente o mesmo discurso da imprensa comercial. Aqui vale uma observação. O delegado Cassiano é muito jovem, deve ter passado nesses últimos concursos que são disputados por uma nova categoria chamada de concurseiros.

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Nada posso afirmar do delegado pois não o conheço. Mas conheço muitos outros.  Estas pessoas são na maioria jovens que, tão logo recebem o diploma, se ocupam unicamente de estudar e viajar pelo Brasil fazendo concursos, em geral, às expensas da família já que, para tanta atividade, não é possível trabalhar. Um dia são aprovados e passam a ser um juiz, um procurador, um delegado, investidos de autoridade de Estado sem que tenham experimentado a vida real. Muitos desses conhecem o mundo pelas páginas da Veja, assinada pelos pais.  Quanto ao delegado, espera-se que o Ministro da Justiça e o Ministério Público Federal abram inquérito e processem este delegado  por desacato e total despreparo emocional para o exercício da função. A Polícia Federal há muito tempo é um órgão sério empenhado como poucos no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco e não merece ser julgada por atos despropositados e preconceituosos como este. Irresponsável ao extremo é o delegado que mandou lançar gás lacrimogênio e outros artefatos do gênero contra estudantes desarmados na hora da saída das crianças do Colégio Aplicação, que fica a uns cinquenta metros do Centro de Ciências Humanas onde se deu o triste episódio.

Li no jornal que o delegado está substituindo o superintendente – presumivelmente em férias. Dá a impressão de que aproveitou a ausência do titular e da momentânea investidura no Poder para buscar seu minuto de fama armando uma operação espetacular.  Para que? Para capturar os donos do tráfico? Não. Para vasculhar a praia de Jurerê Internacional, onde foram presos magnatas do tráfico há pouco tempo pela própria Polícia Federal? Não. Para pegar os traficantes que abastecem de crack os morros de Florianópolis? Também não. A operação desastrosa tinha por objetivo  pegar “perigosos” estudantes de Ciências Humanas que fumavam um baseado sem colocar em risco a vida de ninguém!Para isso o delegado foi responsável pela invasão de um campus universitário, cheio de jovens estudantes, por soldados armados! Ainda bem que os estudantes também estavam armados com suas câmeras. O vídeo abaixo mostra o poder de fogo de uma lente afiada.


A Polícia Federal não tinha nada mais importante para fazer? A sociedade brasileira espera muito mais dessa instituição. Espera que prenda os óbvios donos da droga apreendida no helicóptero dos Perrela. Espera uma operação para desvendar os casos de corrupção ambiental que saltam aos olhos de qualquer cidadão de Florianópolis. Espera que prenda o presidente da Assembléia Legislativa de SC, envolvido em crimes de colarinho branco. Ocorre que criminosos grandes são sempre protegidos pela mídia e tratados como vítimas quando investigados. Lembram do banqueiro Daniel Dantas que, preso por corrupção, com mandado judicial, tentou subornar o Delegado Federal? Para a mídia, o banqueiro foi vítima e o delegado, bandido. Talvez o estudante sequestrado, por portar alguns cigarros de maconha, seja a chave para desbaratar uma quadrilha internacional de tráfico de drogas! Uau! Não sejam ridículos. Todos sabem que um mero usuário final compra a droga na esquina e jamais vai levar aos magnatas do tráfico, simplesmente porque não tem a menor ideia de quem sejam. Quem tem obrigação de saber é a polícia e para tanto deve fazer como faz com a corrupção, planejando e executando por anos operações de inteligência conjuntamente com o Ministério Público e a Justiça Federal, tudo dentro da lei. A Polícia Federal sabe fazer isto muito bem.

O delegado Cassiano, no entanto não tinha nenhum interesse em combater o tráfico na raiz, como deveria ser sua atribuição. Se tivesse esta intenção, o último lugar provável para encontrar alguma conexão seria a Universidade. Ele atuou com abuso de poder, que é crime, pois não tinha mandado para invadir uma universidade federal. Atuou aparentemente para atender interesse particular e não público (fama momentânea e espaço na mídia, sabe-se lá com que outras intenções) o que pode configurar, se apurado, crime de prevaricação. Efetuou prisão de forma clandestina pois não se identificou como polícia, o que também é crime. Somente quando a confusão foi formada os policiais se apresentaram como tal, de acordo com todos os depoimentos de professores e estudantes que presenciaram o fato.

O delegado, que talvez se sentisse melhor trabalhando no DOI-CODI do regime golpista, realizou uma “operação” pirotécnica ilegal em conluio com a Polícia de Choque, que evidentemente estava a par e a postos para o assalto e operações dessa natureza não se realizam sem preparação logística prévia. O governador, que comanda a Polícia Militar, está devendo explicações embora a autointitulada “imprensa profissional” tenha esquecido de fazer esta ligação, colocando como centro do problema não os atos abusivos do delegado e da polícia, mas reduzindo-a a uma simples questão de ser a favor ou contra a maconha. Uma das formas mais comuns de manipulação da informação pela imprensa comercial é desviar o foco da atenção do principal para um problema secundário de ordem moral sobre o qual as pessoas já tem opinião formada. Dessa forma, o debate fica resumido a uma briga de torcidas de times de futebol na qual ninguém vai abrir mão do seu time. Enquanto isso, o que deveria ser debatido, fica fora da pauta.

Por fim, uma última observação. Não deixa de ser curioso que o delegado tenha escolhido para sua operação ilegal justamente o momento em que os saudosos da ditadura se assanham, incentivadas por Veja, Rede Globo e outros veículos de comunicação que apoiaram o golpe militar. Assistimos há alguns dias até mesmo a tentativa de realização de uma patética marcha, com cartazes pedindo expressamente a volta da ditadura. A ação isolada deste delegado despreparado deve ser veementemente repudiada por toda a sociedade catarinense e principalmente pelos seus próprios colegas que tem prestado, via de regra, excelentes serviços ao país.

Quando você, que está lendo este texto, se posicionar sobre a invasão da UFSC, preocupe-se em dizer se é a favor ou contra uma polícia que age fora da lei e dos limites impostos ao Estado pela Constituição, para proteger os cidadãos. Esta é a questão principal deste debate. Os cinco cigarros de maconha só estão ai para desviar sua atenção. Não fique chapado com as interpretações da “imprensa profissional”. Ela é muito mais poderosa que a maconha para confundir sua percepção da realidade.

Inúmeras manifestações contra a ditadura estão sendo organizadas em todo o país. Elas tem por objetivo repudiar qualquer tentativa de assaltar o poder para atender interesses particulares de pessoas ou grupos minoritários. As que vão ocorrer em Florianópolis são a melhor oportunidade que temos para dizer não ao autoritarismo e repudiarmos qualquer forma de ataque à democracia, como o que ocorreu na UFSC. Muita gente prefere que fiquemos discutindo a maconha em vez de lembrarmos nosso passado para evitar que ele volte. Que nos encontremos todos na rua, dia primeiro de abril às 17 horas.

Cartaz Manifestação

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/santa-cataria-por-que-universidade-federal-esta-ocupada/)

sábado, 29 de março de 2014

Legalizar a planta, para combater o crime (Jean Wyllys)

Relatório-sugere-possibilidade-de-legalização-da-maconha-nas-Américas

Deputado que propõe nova lei sobre drogas sustenta: baseada em hipocrisia, política atual favorece quadrilhas, violência, corrupção policial e consumo irresponsável

Por Jean Wyllys, em Carta Capital

Eu sou contra a liberação da maconha. Sempre fui. E o projeto que protocolei também é contra a liberação. Atualmente, a maconha no Brasil está liberada, apesar de formalmente proibida. A escalada do poder do tráfico é prova irrefutável que, sim, ela e outras drogas estão liberadas!

Mesmo em meio a uma caríssima guerra às drogas, o Estado permitiu, se fazendo de cego, que o crime organizado dominasse áreas inteiras, se instalasse e se fortalecesse com toda sorte de armamento e influência política dentro do próprio Estado. A CPI das milícias, empreendida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ) é outra prova inconteste da influencia das facções criminosas dentro do próprio Estado. Mas nada disto parece claro a quem defende o fortalecimento de uma lei antidrogas cara, fascista e homicida.

Vivendo acima da lei, tais facções experimentam a verdadeira reserva de mercado, e seus agentes públicos, responsáveis pela manutenção da tranquilidade de seu funcionamento, são muito bem pagos. Assim o Estado, informalmente, já pratica a liberação e o controle sobre o comércio de drogas. Contraditório, não? Pois é, não parece a muitos.

Este não é um privilégio nosso, do Brasil. Nos EUA, a “lei seca”, da década de 1930, fomentou a criação de um circuito de violência, reforçou o poder do crime organizado, enriqueceu gangsteres como Al Capone (e lhes trouxe grande fama), e submeteu a população ao consumo de bebidas produzidas sem qualquer controle de qualidade e com consequências diretas à saúde pública.

Este sistema continua funcionando no Brasil – importando, distribuindo, vendendo e brigando pelo poder -, e cada pessoa que é presa ou executada sem direito de defesa pela polícia ou por uma facção rival é substituída por outra sem atrapalhar ou impedir a continuidade do circuito. Em geral os mortos são quase sempre pobres, favelados, e na maioria dos casos jovens e negros. Quase sempre são aqueles que têm a menor responsabilidade e os menores lucros. Milhares de pessoas morrem por causa disso, milhares vivem armadas, clandestinas, exercendo a violência, muitas são presas e, na cadeia, submetidas a condições desumanas e a situações de violência idênticas ou piores às que sofriam em “liberdade”, mas o sistema continua funcionando.

Esta parte é confundida pelo próprio Estado com o todo de uma comunidade pobre, como uma favela. Imediatamente, o pobre – e desses, a quase totalidade são negros e pardos em nosso país – é associado com o tráfico. O pobre que já não tem acesso à educação (e nem vamos falar em educação de qualidade! Esta está ainda mais distante dele, localizada nas escolas públicas dos bairros mais abastados!), aos serviços básicos do Estado, à formação profissional, ao ensino superior e aos aparelhos culturais, muitas vezes é convencido pelo traficante que fazer o “aviãozinho” é a única forma de mobilidade social.

Vem à mente o trecho de uma música que talvez resuma, totalmente, o argumento do tráfico: “quer viver pouco como um rei, ou muito como um zé?”. O Estado que libera a venda das drogas é responsável direto por esta decisão, afinal, quem, ali em meio à busca pela sobrevivência e sem qualquer outra expectativa, irá vislumbrar algo diferente do que o traficante lhe tenta convencer?

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Vez por outra (quer dizer, sempre, mas em geral só ficamos sabendo quando uma ínfima parte das ocorrências surge na mídia) um caso decorrente desta confusão entre pobreza e criminalidade por parte do próprio Estado, especialmente de seu braço forte, ou seja, a polícia, nos choca. Onde está Amarildo, pedreiro que desapareceu de dentro de uma Unidade de Polícia Pacificadora sem nunca ter, formalmente, saído de dentro dela, sem ter ficha criminal, sem ser acusado por crime, enfim, inocente à luz da lei? Por que Cláudia Silva Ferreira foi baleada pela polícia – que apresentou diversas versões contraditórias para o fato – jogada em um porta-malas como se uma coisa qualquer fosse, e, após ser arrastada por meio quilômetro, foi novamente atirada no mesmo porta-malas, sem que tivesse sequer o direito de ser socorrida no banco traseiro da viatura, ou melhor, em uma ambulância?

Ora, não é esta mais uma prova inconteste de que, na visão do Estado, o pobre negro, morador da favela e vítima do tráfico sequer tem direito de um socorro digno? Quem mais seria levado ao hospital em um porta-malas?

Resumindo-me: O comércio de drogas, independente de qual for, é sim liberado no Brasil, e isto ninguém pode negar. A criminalização da pobreza e a formação dos guetos marginalizados é também outro fato inconteste. A solução é regulamentar, como fez o Uruguai recentemente. Tirar o usuário recreativo da situação de criminoso, equiparável ao grande traficante, e permitir que ele compre com segurança ou que tenha seu próprio cultivo, não dependendo de ninguém para satisfazer seu consumo. Ora, não é lógico que isto afeta diretamente a relação entre traficantes e consumidores?

Alterar toda esta estrutura de poder e marginalização é o primeiro passo para o combate efetivo e inteligente ao tráfico de drogas e tudo aquilo que ele financia – a violência, a corrupção, e a exploração sexual e do trabalho através do tráfico humano. Alterar esta estrutura implica, também, em não atirar nas cadeias tantas pessoas pobres flagradas com uma quantidade qualquer de maconha. Pessoas que não cometeram qualquer crime contra a vida ou a propriedade, mas que lotam presídios e que acabam sendo formados em uma espécie de “escola do crime”. Afinal, saindo da cadeia a realidade é ainda mais difícil e marginalizada, e a ascensão no mundo do crime se abre como caminho natural para alguns.

Onde quero chegar, afinal?

Segurança pública e combate ao tráfico são duas áreas cercadas por preconceitos e achismos que não sobrevivem à mínima informação. Ainda assim são perpetuados pela repetição. Mexer nesta estrutura exige coragem e responsabilidade. Coragem porque mexer com preconceitos implica em virar alvo de toda sorte de flecha raivosa de gente mal informada, reacionária ou mesmo mal intencionada. Responsabilidade porque todos os fatores envolvidos exigem igual atenção. Soluções simplistas, como aumentar penas, “explodir favelas” e prender menores de idade apenas acentuam problemas e não trazem nenhum resultado – e nem nunca trouxeram!

Cabe à imprensa, que atua como mediadora da informação, a interpretando e repassando ao seu público, a responsabilidade de, no mínimo, não fomentar novos (e velhos) preconceitos, mesmo que por acidente. Responsabilidade com a notícia é, por exemplo, não focar na questão da anistia de presos pelo porte de drogas (e apenas de drogas, não vale para crimes violentos ou associações criminosas!) dando a isto um peso maior que o que realmente importa no projeto, que é a formação de uma política de segurança pública que não penalize os mais pobres como forma de esconder dos mais ricos a baixa eficiência de seu trabalho.

Alguns veículos de imprensa, ao darem atenção primária à anistia de presos por tráfico de maconha, especificamente, criam – de forma acidental ou mesmo intencional – a imagem de que a função do projeto é a de defender bandidos ou de esvaziar cadeias. É assim que o leitor, expectador ou ouvinte vai entender. E é sobre isto que ele formará sua opinião. Não, senhores da imprensa, o foco é outro! As consequências ao sistema prisional são secundárias! Aos que cometeram esta falha por acidente, é hora de redobrar o cuidado. Aos que o fizeram intencionalmente, meu lamento pelo eterno compromisso com a desinformação.

O foco aqui não é perdoar presos. O foco aqui é investir em reintegração à sociedade, políticas públicas, responsabilidade do Estado e na aplicação correta dos recursos da segurança pública.

O foco aqui é tirar o jovem negro e pobre, o mesmo que tem morre quase três vezes mais que o jovem branco pobre do estigma de ser criminoso, mesmo quando ele refuta o tráfico e se esforça quase que de forma sobre humana para reverter aquela situação de pobreza por meio da educação.

O foco aqui é outro. É hora de deixar a inocência de lado, de achar que o mesmo modelo falido de combate ao tráfico, que nunca funcionou em canto algum do mundo, vai milagrosamente trazer um bom resultado! É hora da imprensa mostrar sua responsabilidade nisto, sendo sensível ao que é principal e o que é secundário, e ajudando a população, sobretudo a mais pobre – e consequentemente, a mais prejudicada pela política de segurança pública vigente -, a formar uma opinião balizada dos fatos.

É chegada a hora!

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/legalizar-a-planta-para-combater-o-crime/)

domingo, 10 de novembro de 2013

Por que Belo Monte avança (Biviany Rojas e Raul Telles do Valle)

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Como Suspensão de Segurança, lei criada durante a ditadura, permite que usina continue sendo construída, apesar de decisões judiciais em contrário

Por Biviany Rojas e Raul Telles do Valle, no Instituto Socioambiental

O avanço inquestionável da construção da usina de Belo Monte só é possível porque ainda subsiste entre nós o instrumento processual da Suspensão de Segurança (SS).

Criado pela lei 4.348 de junho de 1964 com o intuito de controlar politicamente as decisões judiciais contrárias ao regime militar, esse entulho autoritário permite a tribunais suspenderem decisão de instância inferior diante do perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Em resumo, permite aos Presidentes dos Tribunais cassarem decisões que julguem impertinentes, mesmo que estas não façam mais do que aplicar a lei em vigor no país.

Podemos afirmar que Belo Monte só está sendo implantada porque existe a Suspensão de Segurança. Essa não é a primeira nem a segunda vez que decisões judiciais bem fundamentadas, emitidas por juízes concursados e no pleno exercício de suas funções, são cassadas por tribunais superiores por representarem “ameaça à ordem e economia públicas”, independentemente do mérito jurídico das decisões.

Em 2006, a presidente do STF à época, Ministra Ellen Gracie, suspendeu decisão da 3ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que determinava que os povos indígenas atingidos pela usina fossem ouvidos, como determina a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Ela, no entanto, acolhendo recurso da Advocacia Geral da União (AGU), entendeu que a continuidade do licenciamento, mesmo que viciado, era importante para a manutenção da “ordem e economia públicas”. A opinião e os direitos dos povos indígenas seriam assuntos secundários, que eventualmente algum dia, quando julgado o conteúdo da ação, seriam analisados seriamente pelo Judiciário. Mas não naquele momento. Em 2012 o Ministro Ayres Britto reiterou essa decisão, quando o mesmo assunto voltou à sua mesa, novamente por meio da SS. Nessa ocasião, o presidente do STF prometeu que o julgamento de mérito da ação resolveria as controvérsias. Passados 15 meses, a ação sobre oitivas indígenas sequer foi novamente pautada pelo STF.

Em 2010, o leilão que escolheu a empresa construtora também só ocorreu por meio da Suspensão de Segurança. Apesar da Licença Prévia ter sido emitida em sentido contrário ao parecer técnico dos analistas do Ibama, o certame estava marcado normalmente. Analisando por mais de um mês o caso, o juiz de Altamira decidiu que não se podia fazer um leilão com base numa licença que, no mínimo, tinha graves problemas a serem resolvidos. Em poucas horas, sem ouvir o MPF, o então presidente do TRF1, desembargador Jirair Meguerian, decidiu, baseado em recortes de jornais e longas visitas da AGU, que:

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“Sopesados os interesses em conflito, entendo que a decisão impugnada poderá acarretar prejuízo maior ao meio ambiente – caso o governo federal tenha que lançar mão de energia termoelétrica (sabidamente mais cara e poluente) devido à escassez de energia hidrelétrica –, além de impor prolongado retardamento na conclusão de obra de interesse nacional”.

O Ibama outorgou sua licença ambiental – apesar do parecer desfavorável dos técnicos do órgão – acompanhada de um amplo conjunto de condições a serem observadas pelo empreendedor, que à época sequer havia sido escolhido. Essas condições seriam a “garantia” de que a obra seguiria os padrões mínimos de sustentabilidade previstos em nossa legislação. Ou seja, que sua implantação não significaria a expulsão das populações indígenas que vivem na região, a implosão das precárias condições urbanas dos municípios vizinhos pela chegada de milhares de imigrantes, que o Rio Xingu continuaria a ter um mínimo de vida correndo em suas águas. Para tanto, diversas medidas precisavam ser tomadas, várias delas ainda antes de se instalar o primeiro vergalhão de aço da barragem.

Três anos depois, a realidade é que as obras, financiadas com recursos públicos do BNDES, estão a todo vapor, mas o mesmo não pode ser dito das obrigações socioambientais que deveriam acompanhá-las. Por exemplo, o aterro sanitário de Altamira deveria ter sido entregue em junho de 2012, mas um acordo entre a Norte Energia e o Ibama prorrogou o prazo para junho deste ano. Até agora as obras não foram finalizadas. Já a transferência do lixão deveria ter começado em dezembro de 2011, mas obras só iniciaram em janeiro deste ano.

Outra obrigação fundamental é a construção de um novo sistema de abastecimento de água potável e de uma rede que garanta 100% da coleta e tratamento de esgoto em Altamira, a qual deveria ter sido iniciada em julho de 2011. As obras começaram com dois anos de atraso, e para estarem prontas no prazo originalmente previsto terão que bater todos os recordes mundiais de velocidade para empreendimentos do gênero. Se a usina estiver pronta antes do aterro e do sistema de esgoto estarem em pleno funcionamento, a parte do reservatório do Rio Xingu, vizinha da cidade de Altamira, corre o sério risco de virar um lago podre, algo vedado pela atual legislação ambiental.

Esses são apenas alguns exemplos de um amplo conjunto de obrigações da empresa responsável que se encontram em condição de inadimplência, reconhecida inclusive pelo Ibama, que as monitora, mas não age com a contundência necessária para o caso. Essa situação, evidente a qualquer um que tenha a boa vontade de entender o caso, fez com que o desembargador federal Souza Prudente, julgando uma apelação do Ministério Público Federal (MPF), reconhecesse que a inadimplência da empresa estava a gerar danos irreversíveis para a população:

“Ainda não foram implementadas todas as medidas que deveriam ser adotadas antes mesmo da edição da Licença Prévia, que foi emitida mediante a estipulação de condicionantes, as quais, mesmo não sendo cumpridas, foram transferidas para a Licença de Instalação, a demonstrar que, a seguir essa reprovável prática, certamente, deverão ser transferidas para a fase seguinte (Licença de Operação) sem qualquer perspectiva de que um dia serão efetivamente implementadas”.

Fundamentado nos próprios pareceres técnicos de analistas do Ibama, que afirmam com todas as letras haver “descompasso entre as obras de construção da UHE Belo Monte e a implementação das medidas mitigadoras e compensatórias”, Souza Prudente decidiu que as obras deveriam ser paralisadas até que as medidas socioambientais prometidas fossem realmente implementadas. Para tanto, baseou-se fartamente na legislação brasileira e na própria licença ambiental concedida.

Nem mesmo a empresa havia sido notificada da decisão – apesar de haver recebido um fax e um e-mail do próprio tribunal – e ela foi derrubada pelo presidente do TRF1. Qual o argumento? O de que haveria uma decisão anterior proibindo a paralisação da obra, pois ela é importante para a economia nacional. Mas e o descumprimento da legislação nacional? Isso é secundário.

Belo Monte não é a único caso em que a Suspensão de Segurança pôde garantir a continuidade dos planos governamentais enquanto a legislação brasileira é descumprida. Casos de grande repercussão foram as Suspensões de Segurança que garantiram a realização do leilão da Vale do Rio Doce em 1997 e a recente licitação do Estádio Maracanã. Decisões judiciais que pararam as obras da UHE Jirau, em Rondônia, e da UHE Teles Pires, no Mato Grosso, em razão de irregularidades no licenciamento ambiental – que vão desde a ausência de estudo de impacto sobre os indígenas à alteração do local da barragem sem atualização dos estudos ambientais –, foram suspensas através da Suspensão de Segurança.

O uso repetido e inescrupuloso do Poder Judiciário pelos interesses governamentais por meio da Suspensão de Segurança leva a crer que a situação irá se repetir em relação às próximas grandes obras planejadas para a Amazônia, como o complexo de usinas do Rio Tapajós.

Por meio da Suspensão de Segurança, ignorar ilegalidades passou a ser uma situação de “normalidade institucional”. Com o aval da cúpula do Judiciário, o empreendedor de grandes obras só precisará cumprir as regras estabelecidas se lhe for conveniente.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/por-que-belo-monte-avanca/)

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mídia democrática: Argentina 4 x 0 Brasil (Pedro Ekman)

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Desde a aprovação da Lei de Meios, multiplicaram-se, no país vizinho, TVs e rádios públicas e comunitárias. Fatos e números mostram resultados concretos da garantia do Direito à Comunicação

Por Pedro Ekman*, no Intervozes

A Argentina comemorou quatro anos de vida da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual 26.522, popularmente conhecida como lei de meios, no dia 10 de outubro. Os resultados produzidos pela lei construída para democratizar a comunicação no país saltam aos olhos, mesmo que o monopólio siga com todos os esforços para interditar a aplicação integral da regra.

O Grupo Clarín recusa-se a cumprir o artigo 161 da lei e mantém uma batalha judicial para que não seja obrigado a compartilhar o espaço que ocupa no sistema de comunicações com outras vozes. O artigo é um dos principais instrumentos de desconcentração da propriedade dos meios e de promoção da diversidade e da pluralidade, pois define que cada grupo deve ter, no máximo, 24 licenças de TV a cabo e 10 licenças de serviços abertos (TV aberta, rádios AM e FM). Estabelece, ainda, que aqueles que excederem esse limite devem apresentar um plano de adequação devolvendo as licenças que tiver em excesso para que todos possam ter o direito a ocupar esse espaço que, afinal de contas, é público.

O Clarín possui nada menos que 240 licenças de TV a cabo, 9 de rádios AM, 1 de FM e 4 de TV aberta. Depois de ter vista a falência da estratégia de chamar a lei de meios de “lei mordaça”, dado o amplo apoio popular ao instrumento multiplicador de vozes, o grupo monopólico se resignou a defender que tinha direito de ficar com todas as licenças, mesmo que isso não fosse o mais democrático. O Clarín agora reivindica abertamente o direito de ter o monopólio que adquiriu ao longo da história, porém a história agora é outra.

Mesmo com boa parte do espectro radiodifusor nas mãos do monopólio, a lei já criou um ambiente com uma diversidade de vozes que faz inveja a países como o Brasil. Os números do que já foi feito em 4 anos dão a dimensão da mudança. Desde a aprovação da lei de meios, foram instaladas, na Argentina, 152 rádios em escolas de primeiro e segundo graus, 45 TVs e 53 rádios FM universitárias. Se, no Brasil, os povos originários lutam para não perder direitos constitucionais, no país vizinho eles já passaram a ter o seu primeiro canal na TV aberta e 33 canais de rádio. A posse de meios de comunicação por parte desses povos era proibida antes da nova lei entrar em vigor.

Além de distribuir o espaço de forma mais equilibrada e plural, a lei de meios também começa a transformar radicalmente a economia setor. Mais de 65% do país está coberto por cooperativas de operadoras de TV a cabo e a distribuição gratuita de 1 milhão e duzentos mil codificadores digitais já possibilita a cobertura de 82,5% do território com TV digital aberta. Mais de 4.200 horas de conteúdos e 900 séries de ficção foram produzidas com fomento federal e distribuídas em mais de 30 canais nacionais e estaduais. A Argentina agora conta com 9 polos de produção audiovisual e 100.000 novos postos de trabalho no setor.

Centenas de comunicadores também surgiram nos últimos quatros anos. E para comemorar a política pública que tem tornado efetivo o direito à comunicação e transformado milhões de consumidores em comunicadores ativos não se restringiu a um tradicional ato público, eles foram reunidos no Primeiro Encontro de Comunicação dos Territórios. Nele, compartilharam experiências que estão sendo construídas do extremo norte do país à Patagônia, não mais apenas na cidade de Buenos Aires. O evento aconteceu na antiga Escola de Guerra Naval, hoje transformada no Espaço da Memória e de Defesa dos Direito Humanos. Não há como descrever a emoção de ver os corredores onde 5.000 pessoas foram torturadas, mortas e desaparecidas pela ditadura tomados por pessoas que comemoravam a vitória da democracia. Some-se a isso o fato do espaço não se dedicar apenas à memória, mas também à defesa dos direitos humanos, o que faz dele um espaço vivo que abriga, além do Arquivo Nacional da Memória a Universidade da Madres de Mayo, a produção de um dos canais de TV Públicos e diversas outras estruturas de organizações de ativistas defensores de direitos humanos.

A mesa que abriu os trabalhos estava composta pelo Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério do Trabalho Emprego e Seguridade Social, Ministério de Relações Exteriores, Comissão Nacional de Comunicação e Autoridade de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSCA) e pelo Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (INTA). A composição nos dá a dimensão do que é trabalhar os diretos humanos como uma política de Estado e não apenas como uma pasta secundária. O INTA é o instituto equivalente à EMBRAPA no Brasil. Se levarmos em conta que foi o INTA o setor que mais mobilizou comunicadores para o evento, conseguiremos entender o que de fato significa construir políticas públicas que considerem a comunicação como direito e não como um negócio comercial. Um país que assume essa postura permite que se torne uma ferramenta importante não apenas para jornalistas e produtores audiovisuais, mas também para camponeses, povos originários e cidadãos.

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*Pedro Ekman é integrante da Coordenação Executiva do Intervozes

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/midia-democratica-argentina-4-x-0-brasil/)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Assim os ricos evitam impostos (Clair Maria Hickmann, Dão Real dos Santos e Marcelo Ramos Oliveira)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/assim-os-ricos-evitam-impostos/)

Breve roteiro para começar a compreender três mecanismos principais da fuga fiscal: leis que privilegiam, comércio exterior fraudulento e paraísos fiscais

Por Clair Maria Hickmann, Dão Real dos Santos e Marcelo Ramos Oliveira* no Le Monde Diplomatique Brasil

A demanda por recursos públicos é cada vez maior. A briga pela apropriação do “bolo” é quase uma guerra. Nas recentes manifestações públicas brasileiras, surgiram novas e diversas demandas, desde o “passe livre”, saúde, educação, até melhorias do serviço público em geral. A resposta dos governantes é sempre a mesma: “Não há recurso público”. Mas será que realmente não existem recursos suficientes para atender às demandas da sociedade?

Inicialmente, cabe dizer que a aplicação e a origem dos recursos públicos são sempre uma decisão política. Ao governo cabe dizer onde os recursos serão investidos, e isso também significa dizer onde não serão aplicados. Cabe igualmente ao governo dizer de onde e de quem os recursos serão retirados, e de quem não serão cobrados, ou seja, quem vai e quem não vai pagar a conta. E governo aqui deve ser lido em sua acepção mais ampla, envolvendo todo seu conjunto de instituições. Trata-se, enfim, de uma opção política.

Uma alternativa para aumentar os recursos públicos disponíveis é fechar seus diversos ralos. No lado dos gastos e despesas, é necessário melhorar o controle e a gestão da coisa pública para evitar desvios com corrupção, além de melhorar a qualidade da alocação dos recursos. Já no lado dos ingressos, é urgente combater os buracos negros no campo tributário, que fazem que muitos recursos públicos deixem de ingressar nos cofres estatais.

Vejamos, portanto, alguns ralos do dinheiro público no campo tributário. Estes  ocorrem em no mínimo três dimensões. A primeira está no espaço da legalidade formal, em que leis e outras peças normativas exoneram as classes mais abastadas de contribuir com o custo do Estado. Outra se refere aos mecanismos de evasão ou elisão que proporcionam tantos espaços para os planejamentos tributários, sobretudo pela desregulamentação dos fluxos internacionais comerciais e financeiros, paraísos fiscais e países com tributação favorecida. Há ainda uma terceira dimensão, que compreende os mais variados mecanismos técnicos que impedem ou dificultam a cobrança dos créditos tributários devidamente lançados. Esse terceiro aspecto envolve ainda a dificuldade de manutenção dos créditos nas esferas de julgamento e os diversos artifícios de “blindagem patrimonial” usados por devedores “poderosos”.

Cada uma dessas três dimensões, embora se materialize de forma distinta no campo fático, decorre de uma mesma causa e produz efeitos convergentes. A submissão da política aos interesses daquelas minorias privilegiadas que detêm a maior fatia das riquezas sociais produz a apropriação do público pelo privado, perpetuando um círculo vicioso difícil de ser quebrado e que pode ser representado na expressão “tem poder quem tem dinheiro e tem dinheiro quem tem poder”. O efeito, portanto, não poderia ser outro senão a ampliação contínua das brechas e dos mecanismos para que esses setores não sejam alcançados pela tributação. Segundo Antonio David Cattani, em A riqueza desmistificada (Marcavisual, 2013), “corporações e indivíduos em condições socioeconômicas privilegiadas, em especial os super-ricos, têm capacidade de manejar uma série de expedientes que lhes permitem não obedecer aos regramentos válidos para todos, [...] elisão e evasão fiscais, ocultação de bens são práticas mais facilmente utilizadas por aqueles capazes de usar seus incomensuráveis recursos para evitar que a tributação estatal recaia sobre suas fortunas”.

A dimensão da legalidade define formalmente a abrangência da “mão” do Estado, aonde e como ela pode ir com o intuito de buscar os recursos que financiem sua atuação. É nessa dimensão que as classes dominantes constroem os conceitos ideológicos que regerão e dominarão a sociedade. Um exemplo disso é a contestação geral de que a carga tributária, atualmente em torno de 35% do PIB, é muito alta, o que reforça em todos uma ideia de consenso a legitimá-la, levando a crer que todos os brasileiros pagam em torno desse percentual. Todavia, vemos que a carga não recai uniformemente, mas, de modo paradoxal, concentra-se sobre as camadas menos aquinhoadas da sociedade.1 É difícil explicar, segundo princípios de equidade e de justiça fiscal, que alguns tipos de renda tenham tratamento diferenciado simplesmente em razão de sua origem. É o caso da isenção do Imposto de Renda na distribuição de lucros e dividendos. Por outro lado, rendimentos oriundos do trabalho são tributados normalmente.

Renúncia fiscal – JCP

Entre tantos casos de construções legais de renúncias e benefícios fiscais, escolhemos escrever nesta edição sobre a dos juros sobre o capital próprio (JCP). Esse mecanismo permite que as empresas paguem a seus sócios juros sobre o capital investido, criando com isso uma despesa fictícia na pessoa jurídica que reduz o lucro tributável de Imposto de Renda e da contribuição social sobre o lucro em 34%. Além disso, o acionista contemplado com a distribuição dos JCP é privilegiado ao ser tributado com uma alíquota única de 15% de Imposto de Renda na fonte. No final dessa conta, há uma renúncia fiscal de 19% no recolhimento de Imposto de Renda. Trata-se, na verdade, de uma modalidade de distribuição dos lucros mascarada por um artifício fiscal.

Destaque-se aqui, novamente, o privilégio na tributação do rendimento do capital (juros sobre o capital próprio), que paga apenas 15%, e ainda exclusivamente na fonte, o que quer dizer que esse rendimento não é levado à incidência da tabela progressiva, cuja alíquota chega a 27,5%. Trata-se de mais uma forma “legal” de burlar o princípio constitucional da progressividade, criado para tornar a tributação mais justa.

Nas contas do governo federal, os JCP não são considerados renúncia fiscal. No entanto, é importante esclarecer que, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, a renúncia fiscal compreende também “alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado”.2

Qual será o valor dessa renúncia fiscal?Seguramente, alguns bilhões. E o valor das outras tantas renúncias e privilégios tributários existentes nas três esferas de governo?

Por que o governo não revela o montante dessas renúncias? A sociedade pode e deve exigir dos governantes a divulgação desses valores. Será necessário o povo ir às ruas para reivindicar a transparência dessas renúncias fiscais que já deveriam ser divulgadas?

Evasão ou elisão fiscal

Uma segunda dimensão é aquela definida pela omissão do Estado em exercer sua jurisdição delimitando as áreas de atuação dos agentes econômicos que se aproveitam para se evadir de suas obrigações tributárias por meio dos mais variados esquemas. O “jeitinho brasileiro” é pródigo em inventar “esquemas” e “interpretações” em que a forma é mais importante que a substância, de modo a possibilitar a fuga dos tributos. O uso de paraísos fiscais, pelos quais transitam apenas papéis para transferir lucros e impostos de um ponto a outro do planeta, é a ponta do iceberg da fuga dos capitais de suas legítimas obrigações tributárias.

Nas exportações

Uma prática muito comum das grandes corporações é criar uma filial ou empresa coligada em um paraíso fiscal e/ou país com baixa tributação e transferir seus lucros para esses locais. Grandes empresas exportadoras de commodities (ferro, soja, sucos) e de outras atividades vendem suas mercadorias para suas próprias filiais, localizadas em paraísos fiscais, a um preço muito baixo, reduzindo o lucro no Brasil. Essas filiais, por sua vez, refaturam o mesmo produto para o cliente final, porém agora a preço de mercado. A mercadoria vai direto ao cliente final, mas o lucro fica na filial brasileira localizada no paraíso fiscal, onde não paga tributo algum ou paga muito pouco. Nesse caso, sob o aspecto formal, o adquirente da mercadoria é uma empresa, por exemplo, da Suíça, mas o destino final da mercadoria é outro país. Os recursos que ingressam no Brasil são aqueles faturados para o paraíso fiscal, e não aqueles que o cliente final efetivamente pagou.

O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC)3 tem divulgado que o maior comprador dos produtos brasileiros é a China, seguido dos Estados Unidos. Mas esse estudo considera que o país comprador é aquele do destino da mercadoria. Contudo, se fosse feito um levantamento para identificar o país adquirente, de acordo com os documentos fiscais, o resultado seria chocante, porque Suíça e Ilhas Cayman, provavelmente, apareceriam como os dois maiores compradores das exportações brasileiras. Para o resultado do comércio exterior, isso pode não ser relevante, mas para os cofres públicos brasileiros representa uma enorme perda de arrecadação tributária.

Bem, você pode dizer que o lucro da filial brasileira no exterior deve ser tributado no Brasil. Sim, de fato, e a legislação brasileira assim prevê. Mas aí começa outro problema que parece interminável: essas corporações interpretam que essa tributação somente pode ocorrer quando o lucro for efetivamente disponibilizado no Brasil (quando será?) e recorreram à Justiça, fazendo que essa discussão se prolongue por mais de dez anos. Sabe-se que a pressão desses grupos é grande para ganhar a disputa e até para mudar a legislação. Alegam que o “Brasil precisa incentivar a expansão das empresas brasileiras no exterior”. Não nos parece que deva ser essa a política do Brasil, quando temos carência enorme de capital e financiamento de infraestrutura.

Nas importações

Nas operações de importação, ocorrem práticas semelhantes, porém em sentido contrário. Grandes empresas, principalmente multinacionais, importam mercadorias, bens e serviços por intermédio de uma companhia vinculada e/ou localizada em um paraíso fiscal. O preço da mercadoria, porém, é superfaturado para aumentar o custo brasileiro e, em consequência, reduzir o lucro tributável. O objetivo final é o mesmo: transferir lucros para um local onde a tributação seja nula ou muito baixa.

Há uma legislação específica de “preço de transferência” que limita essas operações, mas sua aplicação é complexa e muito questionada juridicamente, e as discussões nos tribunais arrastam-se por muitos anos. Vale lembrar que se trata de planejamentos tributários internacionais, elaborados pelas maiores empresas e por grandes bancas de advogados, e a influência desses grupos no meio político e no financiamento de campanhas eleitorais é bastante conhecida.

Além disso, a legislação tributária nunca alcança todas as situações, muitas vezes por falta de vontade política, outras porque as empresas estão sempre criando novos artifícios para burlar o fisco.

Paraísos fiscais, o grande buraco negro mundial

Recentemente, em nível internacional, tanto os países do G20 como os do G8 reconhecem que a exagerada desregulamentação dos fluxos comerciais e financeiros internacionais, promovida pela globalização para dar eficácia à fragmentação dos processos produtivos pelo mundo, tem de fato produzido uma profunda erosão das bases tributárias em todos os países, na medida em que permite que as grandes corporações possam transferir com facilidade grande parte de seus lucros para os paraísos fiscais. Segundo estudos produzidos por organizações internacionais,4 esse fenômeno faz que essas grandes corporações empresariais não paguem mais do que 5% de impostos sobre seus lucros globais obtidos ao redor do mundo, e os estudos visam propor medidas para reduzir esses impactos negativos. Paradoxalmente, na próxima reunião marcada pela Organização Mundial do Comércio, para dezembro deste ano, em Bali, na Indonésia, está prevista a assinatura do Acordo de Facilitação de Comércio Internacional, medida fortemente influenciada pelo interesse das grandes empresas e que objetiva impor aos Estados nacionais inúmeras restrições ao seu poder de controlar ou fiscalizar tais fluxos, dificultando, assim, ainda mais o combate à evasão fiscal.

Limitações administrativas

Finalmente, a terceira dimensão pela qual se esvaem recursos públicos é aquela das limitações definidas na área administrativa. São construções ideológicas, escondidas sob o manto da tecnicidade, que, por exemplo, definem que as administrações tributárias devem ser eficientes e eficazes, acima de tudo sobre os pequenos contribuintes, enquanto relevam ações mais contundentes sobre os maiores. Os créditos tributários lançados enfrentam mil e uma dificuldades para sua conversão em recursos recolhidos. As infindáveis possibilidades de recursos administrativos e judiciais é um dos grandes problemas: o contribuinte pode recorrer a diversas instâncias administrativas e depois ainda discutir a causa na Justiça. Com isso, as cobranças arrastam-se por mais de quinze anos. E, quando finalmente a dívida é cobrada, o devedor já não tem mais patrimônio em seu nome ou o transferiu para algum paraíso fiscal, o que no mercado é conhecido como “blindagem patrimonial”. Outra dificuldade é a inimputabilidade penal pelo pagamento, o que significa que, caso o sonegador seja autuado pelo fisco, ele pode pagar a dívida e então seu crime deixa de ser crime. Aliás, não precisa nem pagar tudo, pode parcelar.

Conclusão

Os elementos apresentados aqui são apenas parte dos inúmeros mecanismos legais, estruturais, culturais e jurídicos que não fazem outra coisa que não colocar uma parcela significativa das riquezas a salvo de qualquer tributação, desmentindo o clássico aforismo de Thomas Fuller, de que por mais alto que se esteja, a lei sempre estará acima, como demonstra Cattani. A dificuldade de cobrar tributos daqueles com maior capacidade contributiva ou a opção política de não fazê-lo fragilizam a capacidade dos Estados de promover políticas públicas voltadas para o bem comum, seja, de um lado, pela falta de recursos, ou, de outro, pela necessidade de adotar a alternativa mais fácil de construir e manter um sistema tributário altamente regressivo, baseado em tributos sobre o consumo que, comprovadamente, retiram a maior parte dos recursos das classes que mais necessitam, aumentando a desigualdade e a precarização das condições de vida dos mais pobres e forçando a alocação dos gastos sociais muito mais para ações compensatórias do que para promover acréscimo de bem-estar.



*Clair Maria Hickmann: Membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF - www.ijf.org.br)

Dão Real dos Santos: Membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF - www.ijf.org.br)

Marcelo Ramos Oliveira: Membro do Instituto de Justiça Fiscal (IJF - www.ijf.org.br)



1 Fátima Gondim Farias e Marcelo Lettieri Siqueira,“Bases tributárias brasileiras: penalizando os pobres e beneficiando os rentistas”. In: A sociedade justa e seus inimigos, Tomo, Porto Alegre, 2012.
2 Lei Complementar n. 101/2000, em seu art. 14, § 1o.
3 Ver: .<www.mdic.gov.br/arquivoswnl_1365787109.pdf>.
4 Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em julho de 2013, divulgou seu relatório de proposição de ações denominado “Action plan on base erosion and profit shifting” [Plano de ação sobre erosão na base e deslocamento de lucros]. Disponível em: .<http://dx.doi.org/10.1787/9789264202719-en> . Ainda que o assunto seja complexo, as organizações sociais ligadas ao tema da justiça fiscal têm sérias críticas à limitação de sua abrangência.

sábado, 19 de outubro de 2013

Constitute: uma incursão do Google no mundo da política? (Vinicius Vermiglio)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/constitute-uma-incursao-do-google-no-mundo-da-politica/)

Ferramenta permite acessar 177 Constituições e compará-las, tema por tema. De que modo isso pode ser importante para debate público?

Por  Vinícius Vermiglio, no Amalgama

No último dia 23 de setembro, o blog oficial do Google anunciou o lançamento de uma nova ferramenta online: o projeto Constitute. A ferramenta permite acesso a 177 constituições e pretende auxiliar na redação de novos documentos similares a estes, já que todo ano aproximadamente 5 novas constituições são escritas e mais de vinte são revisadas.

O projeto Constitute possui uma interface clean, intuitiva e bastante eficiente. É possível fazer o download em PDF das constituições ou acessá-las no próprio site. Mas o grande destaque do projeto é o mecanismo de busca. Nele é possível cruzar dados por países, por continentes e até mesmo por datas. Na busca a pesquisa por tópicos é dividida em 11 categorias cada uma com seus respectivos submenus. E ainda para comparação ou para passagens que você desejar guardar, a ferramenta possui a opção de fixar o trecho desejado.

No caso da Constituição do Brasil, só é possível encontrar o documento vigente (escrito em 1988), mas o projeto indica que terá todas as constituições já escritas em todos os países. No acervo do site, a mais velha data de 1789, a Constituição pertencente aos Estados Unidos da América.

OK. Mas o que podemos fazer com isso tudo? Conversamos brevemente com o cientista político, assessor da Anistia Internacional Brasil, professor na Casa do Saber e colaborador do Amálgama, Maurício Santoro, a fim de entender melhor o projeto.

*

O que o acesso prático e nessa interface pode fazer pelas pessoas? Tanto para o cidadão comum, quando para jornalistas, cientistas políticos, professores…
Maurício: Todas as pessoas deveriam ter ao menos o conhecimento básico da Constituição de seu país. No caso de pessoas cujo trabalho ou ativismo requeira um nível maior de informação, é ainda mais importante o domínio do texto constitucional. É por ele que as pessoas têm a possibilidade inicial de saber onde começam e terminam as responsabilidades de cada nível de governo e o que é garantido aos cidadãos. É o ponto de partida para qualquer processo de cobrança e demandas ao Estado. Não adianta, por exemplo, pleitear ao governo federal o que é competência dos municípios, ou querer que o Legislativo faça o que é responsabilidade do Judiciário.

Por que o acesso prático a outras constituições pode ajudar na redação de outras constituições ainda por vir?
O método comparativo é uma das principais ferramentas de análise política desde a Antiguidade. Conhecer as constituições dos outros países é um instrumento importante para reformar nossa própria Carta Magna, identificando omissões ou aprendendo com as nações que encontraram maneiras mais eficazes de organizar seus próprios textos constitucionais.

O que uma constituição mal redigida pode fazer pelo seu país?
Constituição determina as normas políticas básicas de um país, como a forma de organização do Estado (poder central, estados, municípios), as relações entre os poderes etc. Uma constituição confusa criará zonas de indefinição que irão atrapalhar a administração governamental e as políticas públicas, aumentando o risco de conflitos políticos sérios. Provavelmente resultaria também na dificuldade de consolidar vários direitos.

O que faz uma Constituição ter mais ou menos força? Pressão popular, políticos íntegros…?
Os direitos sócio-econômicos estabelecidos na Constituição brasileira são um itinerário do rumo que o Brasil quer ser, e seu exercício se faz, evidentemente, nas possibilidades de recursos disponíveis à sociedade. Contudo, esse sempre é um campo de luta – por exemplo, o direito à saúde implica que o SUS deve bancar tratamentos experimentais para doenças raras? Nesse sentido, o texto constitucional é um importante marco para os movimentos sociais, as demandas políticas e os processos judiciais. A Constituição está viva, sua interpretação muda com o tempo e há transformações da sociedade, mesmo que o texto permaneça o mesmo – e o brasileiro muda com frequência, para o bem e para o mal.

Quais são os interesses do Google em ajudar a financiar um projeto assim?
O site é uma parceria do Google com várias universidades americanas e em sua declaração oficial eles anunciaram que a motivação foi o grande número de constituições criadas ou reformadas nos últimos 5 anos, e o desejo de ajudar as pessoas engajadas nessas mudanças. Também citam a importância desse conhecimento comparado para os cidadãos de democracias já estabelecidas. São propósitos interessantes e que ajudam a atrair mais visitantes ao Google, aprofundando ainda mais o papel de referência desse mecanismo de busca.

O Constitute Project é financiado pelo Google Ideas e as fundações voltadas para projetos de desenvolvimento tecnológico Indigo Trust e ICaoquadrado. O realizador do projeto é a Universidade do Texas, em Austin. Engenharia e web-design da Psycle e Miranker Lab.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Marina e as regras do jogo (Demétrio Magnoli)

(Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,marina-e-as-regras-do-jogo-,1078940,0.htm)

Demétrio Magnoli* - O Estado de S.Paulo


"Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar." A frase, do ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de morte para a Rede, a "vã" esperança partidária de Marina Silva. Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na "ferida" jurídico-administrativa, mas a "ferida" política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária - algo que não temos, pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.

A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões em 2010, sob a forma de compensações fiscais às emissoras de TV e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente rotulados como "gratuitos" e utilizados pelos partidos. O projeto do PT de reforma política, que almeja introduzir o financiamento público de campanha, tem a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos profissionais.

A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais se encontra no princípio antidemocrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos - e, eventualmente, disputar eleições. "Não cabe estabelecer critério de plantão para esse ou aquele partido", explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos: "Abre-se um precedente muito perigoso". De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis - e para preservar o segundo o nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.

Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém, mas acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação.

A privatização do Estado é o outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. "Não tem conversa, a lei é peremptória", enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da coerência do conjunto do sistema.

No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN, PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN - a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014, pois, afinal, o País não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o Irã é aqui.

Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos "negócios do Brasil". Mas, como atestado de uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso ameaçador, quase intransponível.

Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios. Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria uma rendição disfarçada por discursos de indignação - e Marina contrataria um despachante astuto para tornar viável a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma "anticandidatura" de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos e a privatização do Estado.

Estou sonhando?

*Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@uol.com.br
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