quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Marina e as regras do jogo (Demétrio Magnoli)

(Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,marina-e-as-regras-do-jogo-,1078940,0.htm)

Demétrio Magnoli* - O Estado de S.Paulo


"Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar." A frase, do ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de morte para a Rede, a "vã" esperança partidária de Marina Silva. Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na "ferida" jurídico-administrativa, mas a "ferida" política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária - algo que não temos, pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.

A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões em 2010, sob a forma de compensações fiscais às emissoras de TV e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente rotulados como "gratuitos" e utilizados pelos partidos. O projeto do PT de reforma política, que almeja introduzir o financiamento público de campanha, tem a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos profissionais.

A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais se encontra no princípio antidemocrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos - e, eventualmente, disputar eleições. "Não cabe estabelecer critério de plantão para esse ou aquele partido", explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos: "Abre-se um precedente muito perigoso". De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis - e para preservar o segundo o nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.

Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém, mas acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação.

A privatização do Estado é o outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. "Não tem conversa, a lei é peremptória", enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da coerência do conjunto do sistema.

No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN, PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN - a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014, pois, afinal, o País não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o Irã é aqui.

Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos "negócios do Brasil". Mas, como atestado de uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso ameaçador, quase intransponível.

Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios. Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria uma rendição disfarçada por discursos de indignação - e Marina contrataria um despachante astuto para tornar viável a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma "anticandidatura" de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos e a privatização do Estado.

Estou sonhando?

*Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@uol.com.br

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Crack: novos estudos desmentem os mitos

(Disponível em http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/crack-novos-estudos-desmentem-os-mitos/)

Nos EUA, uma pesquisa intrigante revela: ideia da “dependência para sempre” é absurda; deve-se oferecer oportunidades, ao invés de estigmatizar usuários

No New York Times, com tradução do blog Desentorpecendo a Razão

Muito antes de ele trazer pessoas para seu laboratório, na Universidade de Columbia, para fumar crack, Carl Hart viu os efeitos da droga em primeira mão. Crescendo na pobreza, ele assistiu os parentes se tornarem viciados em crack, vivendo na miséria e roubando de suas mães. Amigos de infância acabaram em prisões e necrotérios.

Esses viciados pareciam escravizados pelo crack, como ratos de laboratório que não conseguiam parar de pressionar a alavanca para obter mais cocaína, mesmo quando eles estavam morrendo de fome. O crack fornecia a poderosa dopamina ao centro de recompensa do cérebro, de modo que os viciados não poderiam resistir a uma outra dose.

Pelo menos era assim que Dr. Hart pensava quando ele começou a sua carreira de pesquisador na década de 1990. Como outros cientistas, ele esperava encontrar uma cura para o vício neurológico, algum mecanismo de bloqueio da atividade da dopamina no cérebro, de modo que as pessoas não sucumbissem ao desejo de outra forma irresistível para a cocaína, heroína e outras drogas altamente viciantes.

Mas, depois, quando ele começou a estudar os viciados, ele viu que as drogas não eram tão irresistíveis, afinal.
“Oitenta a 90 por cento das pessoas que usam crack e metanfetamina não ficam viciadas”, diz o Dr. Hart, professor associado de psicologia. “E o pequeno número de pessoas que se tornam viciadas não se parecem com as populares caricaturas de zumbis.”

Dr. Hart recrutou viciados oferecendo-lhes a chance de fazer 950 dólares, enquanto fumavam crack feito a partir de cocaína farmacêutica. A maioria dos entrevistados, assim como os viciados que ele conheceu crescendo em Miami, eram homens negros de bairros de baixa renda. Para participar, eles tinham que viver em uma enfermaria de hospital por várias semanas durante o experimento.

No início de cada dia, com pesquisadores assistindo através de um espelho unidirecional, uma enfermeira colocava uma certa dose de crack em um tubo – a dose variava diariamente. Apesar de fumar, o participante ficava de olhos vendados para que não pudesse ver o tamanho da dose desse dia.

Em seguida, depois do uso inicial, eram oferecidas a cada participante mais oportunidades, durante o dia, para fumar a mesma dose. Mas, a cada vez que a oferta era feita, os participantes também podiam optar por uma recompensa diferente, a qual poderiam obter quando finalmente deixassem o hospital. Às vezes, a recompensa era de US $ 5 em dinheiro, e às vezes era um voucher de R $ 5 para mercadoria em uma loja.

Quando a dose de crack era relativamente alta, o participante, normalmente, escolhia continuar a fumar durante o dia. Mas quando a dose era menor, era mais provável a escolha do prêmio alternativo.

“Eles não se encaixavam na caricatura do viciado em drogas que não conseguem resistir à próxima dose”, disse Hart. “Quando eles receberam uma alternativa para parar, eles fizeram decisões econômicas racionais.”

Quando a metanfetamina substituiu o crack como o grande flagelo da droga nos Estados Unidos, Dr. Hart trouxe viciados em metanfetamina em seu laboratório para experimentos semelhantes – e os resultados mostraram decisões igualmente racionais. Ele também verificou que quando aumentou a recompensa alternativa para US $ 20, os viciados em metanfetamina e crack escolheram o dinheiro. Os participantes sabiam que iriam receber o dinheiro somente no fim do experimento, semanas depois, mas eles ainda estavam dispostos a esperar, abrindo mão do prazer imediato da droga.

As descobertas feitas Dr. Hart o fizeram repensar tudo o que ele tinha visto na juventude, como ele relata em seu novo livro, Alto Preço. É uma combinação fascinante de memórias e ciência: cenas dolorosas de privação e violência acompanhadas por análise serena do histórico de dados e resultados de laboratório. Ele conta histórias horripilantes – sua mãe o atacou com um martelo, seu pai encharcado com um pote de calda fervente – mas então ele olha para as tendências que são estatisticamente significativas.

Sim, diz ele, algumas crianças foram abandonadas pelos pais viciados em crack, mas muitas famílias de seu bairro foram dilaceradas antes do crack – incluindo a sua. (Ele foi criado em grande parte por sua avó.) Sim, os primos se tornaram viciados em crack, vivendo em um galpão abandonado, mas tinham abandonado a escola e estavam desempregados, muito antes do crack.

“Parece haver muitos casos em que as drogas ilícitas têm pouco ou nenhum papel para a ocorrência daquelas situações degradantes”, escreve o Dr. Hart, agora com 46 anos. Crack e metanfetamina podem ser especialmente problemáticas em alguns bairros pobres e áreas rurais, mas não porque as próprias drogas são tão potentes.

“Se você está vivendo em um bairro pobre privado de todas as opções, há uma certa racionalidade em continuar a tomar uma droga que vai lhe dar algum prazer temporário”, disse o Dr. Hart em uma entrevista, argumentando que a caricatura de viciados em crack escravizados vem de uma má interpretação das famosas experiências com ratos.

“O principal fator é o ambiente, se você está falando de seres humanos ou ratos”, disse Hart. “Os ratos que continuam pressionando a alavanca para a obtenção de cocaína são os que foram criados em condições solitárias e não têm outras opções. Mas quando você enriquece o seu ambiente, dando-lhes acesso a doces e deixando-os brincar com outros ratos, eles deixam de pressionar a alavanca”.

“Guerreiros contra as drogas” podem ser céticos em relação a seu trabalho, mas alguns outros cientistas estão impressionados. “O argumento geral de Carl é persuasivo e referendado pelos dados”, disse Craig R. Rush , um psicólogo da Universidade de Kentucky que estuda o abuso de estimulantes. “Ele não está dizendo que o abuso de drogas não é prejudicial, mas ele está mostrando que as drogas não transformam as pessoas em lunáticos. Elas podem parar de usar drogas quando são fornecidos reforçadores alternativos”.

Uma avaliação semelhante vem de Dr. David Nutt , especialista britânico sobre abuso de drogas . “Eu tenho uma grande simpatia com a visão de Carl”, disse Nutt, professor de neuropsicofarmacologia do Imperial College London. “O vício sempre tem um elemento social, e este é ampliado em sociedades com poucas opções de trabalho ou de outras formas de encontrar satisfação.”

Então, por que manter o foco tanto em medicamentos específicos? Uma razão é a conveniência: É muito mais simples para os políticos e jornalistas se concentrarem nos males das drogas do que lidar com os grandes problemas sociais. Mas o Dr. Hart também coloca parte da culpa sobre os cientistas.

“Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos”, disse Hart. “Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que temos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Oh no - Monoral

"You might be the one
How should I know
I'll drown you with wine
And tear you apart
I'm wondering why
They come back again
Cause It's always the same
It's always the same"

"Mensalão": o erro grosseiro do STF

"Mensalão": o erro grosseiro do STF

O voto histórico do ministro Celso de Mello, que reabriu, nesta quarta-feira, o debate sobre o “Mensalão” no STF, não desenhou apenas uma risca de giz contra o ataque aos direitos civis. Ele pode ter criado condições para questionar um consenso que a mídia construiu ao longo dos últimos oito anos.
O que há de errado com o sistema político brasileiro? Atos individuais, comandados por mentes corrompidas, que deformam nossa “democracia”? Ou algo mais profundo: leis e práticas que permitem a grandes empresas formar bancadas parlamentares, influir decisivamente na escolha dos governantes, sequestrar a política?
O julgamento do “Mensalão” é decisivo porque coloca as duas hipóteses claramente em choque. A grande maioria dos brasileiros crê que se tratou de um desvio de dinheiro público. Há cerca de dois anos, os jornalistas Raimundo Pereira e Lia Imanishi tentam mostrar, por meio de uma série de reportagens publicadas na revista “Retrato do Brasil“, que esta visão é ingênua. Dirigentes do PT transferiram cerca de R$ 55 milhões, arrecadados junto a empresas, para correligionários e aliados, de forma ilegal. Deveriam ser condenados por isso. Mas o STF não investigou tais atos. Preferiu criar uma ficção: a de que os petistas teriam subtraído estas somas do Banco do Brasil. 
Tal escolha não foi fortuita. Crimes eleitorais, relacionados a financiamento de campanhas, são corriqueiros na política brasileira. Para enfrentá-los seria preciso mudar o sistema político — proibindo, em especial, que as empresas sustentem e submetam, a seus interesses particulares, os partidos e seus membros. Haveria uma pequena revolução. Centenas de dirigentes partidários, de todo o espectro ideológico, seriam punidos. Muito mais importante: o poder econômico perderia um instrumento essencial para definir prioridades do Estado e fechar contratos favorecidos. Ao invés de enfrentar tal tema, o STF preferiu encarcerar alguns indivíduos. É truque antigo: sacrificar bodes expiatórios sempre ajudou a distrair atenções e manter injustiças.

O Poder na Sombra (Por Marcelo Degrazia)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/o-poder-na-sombra/)

Já não basta eleger ou derrubar governos: Estados vigiam, mas quem decide são as corporações. Movimentos sociais saberão reagir?

Por Marcelo Degrazia*

A recente intimidação do GCHQ, a inteligência secreta inglesa, ao jornal The Guardian e a invasão da NSA, a inteligência secreta dos EUA, nos arquivos da Petrobras criam uma boa ocasião para refletir sobre terrorismo, livre-mercado, democracia, liberdade de expressão e independência de imprensa.

Não é absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois tipos de terrorismo, o disseminado e o concentrado. O primeiro está a cargo de grupos como Taliban, Al-Qaeda e outros. Empregam a violência extrema em nome de Deus ou da Nação, quando não em nome de ambos, e o resultado é a morte de inocentes, como no Afeganistão, Síria e Iraque, só para ficarmos nos exemplos mais atuais. Prometem democracia e a melhora das condições de vida em seus territórios, mas ao tomar o poder promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são cometidos os maiores crimes contra a humanidade.

O terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o terror oficial, com lei e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo acabado disso, a Inglaterra fica só um pouquinho atrás. Não é apenas gratidão pelo apoio recebido na Segunda Guerra Mundial, é sobretudo alinhamento político, econômico e financeiro com a grande potência para extrair mais e melhores dividendos. Ao invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara do servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros ganhos de mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.

Alguns analistas classificam isso de nova face do imperialismo, outros de neocolonialismo. O nome não importa, é o velho movimento expansionista do capitalismo versão ocidental, cuja índole se assemelha à invasão das Américas. Após a invasão do Iraque, Tony Blair veio a público dizer o que todo o mundo já sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria suficiente para derrubar seu gabinete.

Os EUA, assim como muitos Estados nesta época de nuvem informática, estão desenvolvendo uma rede imperial de acesso às informações privadas, coisa que bancos, lojas de departamento, redes de telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a polícia e a Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de serpentes, Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula infantil, mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia em conceitos como democracia e livre-mercado.

John Gray, em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global, já havia denunciado a contradição de uma liberdade de mercado organizada pela intervenção legal do Estado. A acusação feita pelo ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova material do crime. Mas possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar qualquer argumento a favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos da Petrobras escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da natureza capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.

O dedo acusador da roupa transparente do rei é o fim do conceito de livre-mercado e elimina qualquer reflexão de ética associada ao sistema econômico capitalista, justamente por este não se estruturar a partir de princípios éticos nem conter em seu horizonte de ação qualquer objetivo social. No início dos anos 1970, a revelação de espionagem do diretório do partido Republicano por parte do governo Nixon resultou na queda deste. Mas alguma coisa não permitiu ou não forçou a queda de Blair nem de Bush nem de Obama. Por quê?

“Guerra ao terror”

Muito já se falou que o 11 de Setembro, se não foi obra arquitetada pelos próprios falcões na Casa Branca, foi o motivo esperado pelos EUA para uma nova investida militar, com o objetivo de abrir mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA, através de Bush, se declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por extensão, contra o terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente Médio.

Foi uma declaração unilateral contra uma organização, numa curiosa assimetria, pois a guerra quente é sempre Estado contra Estado, ou uma força dentro dele contra ele mesmo, como a da Secessão, por exemplo. Mas servia aos propósitos de vender armas dos fabricantes apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento maior e mais barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma região com centenas de milhões de consumidores.

Nesse movimento, passaram por cima das determinações da ONU e da recomendação dos países contrários à invasão, mataram milhares de civis inocentes, destruíram parte da riqueza do país (para a reconstrução com dinheiro a juros de banqueiros ocidentais e a instalação de empresas dos aliados de seu governo), torturaram soldados (que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as leis no império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de setembro serviu como o grande ponto de virada na democracia anglófila, com o consequente avanço do terrorismo de Estado e a diminuição das garantias individuais.

Que democracia?

Na democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por um punhado de atenienses livres não levavam em conta a vontade nem as condições da imensa maioria da população, pelo simples motivo de que eram escravos ou mulheres. Ou seja, democracia de alguns para alguns.

Hoje, se quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e ainda fazem a política, a realpolitik, deixando de lado todo traço quixotesco de idealismo, os dois grandes modelos seriam as experiências dos ingleses e dos norte-americanos, ou a democracia anglófila. São séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a América Latina e a Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir melhor experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em bastiões da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que pesem a experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial contemporâneo dos EUA.

Como podem as duas sociedades com a experiência mais larga nesse regime assistir impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis das garantias individuais através de práticas totalitárias? Quando o mundo assiste indiferente a essa escalada do terror concentrado de Estados ocidentais, os partidários da realpolitik já podem estufar o peito e dizer, como os generais da última ditadura brasileira: vivemos numa democracia relativa.

O relativismo da democracia atual estaria caracterizado não apenas por essa prática invasiva no âmbito privado e no público, mas também por outra característica bem especial. Na época dos impérios, dos reis absolutistas, das ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do mandatário do poder se deu pela força ou por acordos de camarilha, com o aval dos sacerdotes, das igrejas e mesquitas, dos suseranos, líderes provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a participação do povo, a não ser como massa de manobra, como exemplificam as revoluções burguesas e o voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o seu requinte: o sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de império, cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.

No ambiente político atual, em que os compradores de votos para reeleição e os mensalistas da governabilidade também agem livremente para assegurar os seus privilégios e os de seus apoiadores na sombra, podemos afirmar que a democracia age de baixo para cima apenas para legitimar o exercício do poder. Mas, pelo que temos assistido nos últimos anos, por aqui e sobretudo naquelas duas democracias seculares, nem as eleições nem as leis são suficientes para obrigar a conduta dos governantes.

À exceção de um Collor, que caiu muito mais por vontade do Congresso do que pela voz das ruas (o povo outra vez feito massa de manobra), os governantes nessas democracias relativas parecem garantir com os votos a impunidade; nada de muito grave lhes ocorrerá até o fim de seus mandatos. Democracia de baixo para cima é isso; de cima para baixo: autocracias, oligarquias… O interesse do povo só é levado em conta quando se traduz em consumo, quando pode garantir lucro financeiro para as corporações e ganho político para os governos.

Mídia sem independência

Basta acompanhar o noticiário da grande imprensa. A qualquer ameaça de restrição da liberdade de informar, com todo acerto, chovem protestos. Mas esse não é o ponto nevrálgico. Ao contrário, diríamos até que para os grandes órgãos de comunicação a defesa da liberdade de expressão tem servido para uma estratégia cabotina de encobrimento de outro dado real. É verdade que algumas decisões judiciais, contra o bom senso e os dispositivos constitucionais, têm cerceado o direito público à informação, em especial nos assuntos que envolvem o Estado, seja na pessoa de seus servidores e governantes, seja nas políticas imperiais de guerra ou de favorecimento econômico, como foram os assaltos às economias atingidas pela crise de 2008. Crise aliás provocada pelos agentes econômicos com a conivência dos governantes, em especial do bastião liberalista Alan Greenspan, para quem muitos queriam dar o Nobel de Economia…

O bom argumento, o da liberdade de expressão, tem no entanto se prestado para a chamada grande mídia escamotear um valor que nos parece tão ou mais importante: a independência da imprensa. Quando ela se alinha de maneira acrítica com um candidato; quando sempre amplifica as más notícias do governo de um determinado partido; quando evita aprofundar assuntos polêmicos como os crimes ecológicos, a falta de abertura para bancos asiáticos, a descriminalização da maconha, a reforma agrária etc; quando evita qualquer apoio a políticas, valores e esforços dos “pequenos” contra os valores hegemônicos do capitalismo; quando retira de seu horizonte a “cultura” em favor de produtos culturais meramente de consumo; quando evita escancarar condutas socialmente nocivas de seus patrocinadores; quando suprime a crítica aos políticos que apoiaram nas eleições passadas ou aos que ainda podem de alguma forma lhes ser úteis no futuro; quando não defende maior abertura de concessões para novos veículos de comunicação; quando se alinha e dissemina a política agressiva de um governo que lhe favorece; quando embarca em campanhas nacionalistas que servem para interesses de grandes corporações ou do governo com o qual tem trocas vantajosas; quando evita abordar os podres do grande concorrente ou até mesmo problemas internos como demissões em massa de seus quadros; quando se alinha ou silencia diante de um esforço de guerra injusta do Estado.

Quando a velha mídia, ao abandonar sua função primordial de fiscalização e crítica aos governos e às sociedades, se alinha com o poder em nome de lucros financeiros e de seu próprio empoderamento, ocorre o que podemos chamar de falta de independência. Então cabe a pergunta, sobretudo em sociedades de democracia relativa como são as nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma mídia sem independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta assim a liberdade de informar?

Menos mal que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma mídia dissidente, através de publicações impressas, mas sobretudo revistas e jornais online e blogs. São espaços sem grandes recursos financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado a reflexão dos temas espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de maneira superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria imprensa, a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa acolhida nessas “pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos, defendam seus interesses, notamos nesses novos espaços maior liberdade de expressão com mais independência. Não é por outro motivo que, volta e meia, ouvimos algum arauto do poder advogar a regulamentação da internet, o nosso pequeno grande reino da liberdade.

Poder na sombra

A conclusão inquietante de tudo isso é que já não importa mais derrubar o governo. Quando Nixon caiu em virtude de sua espionagem no Watergate, as corporações, em especial as financeiras (que recém começariam, no início dos anos 1970, a criar o que hoje conhecemos por mercado financeiro internacional), ainda não tinham atingido o grau de maturidade e força que só foi possível pela desregulamentação dos mercados e pela globalização.

Até aí, com a chave do cofre num bolso e as restrições legais ao capital no outro bolso, o presidente de uma grande potência como os EUA ainda não era apenas um mero agente de relações públicas. O mundo vivia à véspera da criação dos eurodólares via City de Londres, antes de Reagan e sua Guerra nas Estrelas e antes das privatizações de Thatcher e do consenso de Washington com o Bush pai, mas já iniciara o recuo das conquistas do Estado de bem-estar social. A acumulação de capital transbordou do bolso, as regras rígidas foram flexibilizadas, as corporações ganharam um gigantismo e um poder de corromper, impor e rasgar códigos como nunca tinha sido imaginado e muito menos admitido pelos políticos mais conservadores.

Hoje as corporações compram presidentes e ministros em todos os continentes, compram governos inteiros na África, transformam populações de países pobres em cobaias de suas experiências com remédios e demais produtos farmacêuticos e alimentares, ainda ou sobretudo quando esses produtos, com componentes cancerígenos, são proibidos em seus países de origem.

Hoje essas corporações compram decisões judiciais, eliminam advogados, jornalistas, funcionários do ministério público, juízes, investigadores. Hoje elas indicam e demitem secretários de Estado, elegem deputados, apontam governadores e senadores. Hoje elas decidem a ocasião e a intensidade das crises, e ainda escolhem os bodes expiatórios (as vítimas que devem ser chutadas para fora do mercado, como o Lehman Brothers). Hoje esses agentes maquiam os balanços, driblam os impostos ou forçam sua redução, elegem paraísos fiscais e, com a conivência de seus congêneres financeiros, escolhem o melhor caminho para escapar da malha fina. E ainda compram o silêncio e até mesmo a conivência da grande imprensa corporativa, associada ao projeto comum de garantir o lucro máximo.

Hoje o poder está na mão dessas corporações, já não vale mais a pena forçar a queda de um governo, ainda mais se esse governo, além de corrupto e corruptor, está ali justamente para fazer o jogo que lhes interessa. Máfia? Teoria da Conspiração? Cada um escolha o nome que menos perturbe o seu sono, mas a verdade parece uma só: tenham o nome que tiver, são essas feras que, na sombra, governam muitos de nossos caminhos e decidem afinal a música que deve tocar.

Até quando será assim, se os movimentos sociais serão capazes de trocar o disco ao invés de dançar sempre conforme a música, não sabemos. Mas que não vivemos num mundo plenamente democrático, disso já não resta a menor dúvida. E com o requinte das eleições (pois dessa válvula de escape, reguladora e legitimadora do sistema econômico, nem os donos do poder querem abrir mão) não precisam mais de césares, imperadores, reis, czares. Nem mesmo de gente como Stálin, Hitler, Mussolini, Roosevelt, Getúlio, Perón & Cia., porque o enfraquecimento dos Estados nacionais (entenda-se: os Estados periféricos) e a representação política de fancaria realizam o trabalho sujo de aplainar o caminho para o avanço das corporações.

Não nos iludamos, esse tipo de gente nunca gostou de democracia, e por uma razão muito simples: não gostam de povo, a não ser como massa consumidora e/ou de manobra. Será uma ditadura, um totalitarismo, essa democracia consentida e relativa? Em todo caso, não cheirará melhor do que hoje. Outro requinte: terá a sua imprensa livre…

Será que voltarão fantasmas como socialismo, comunismo, revolução, ideologia, Estado forte, intelectuais orgânicos, luddismo…? Ou será que as sociedades, organizadas em torno de valores como cooperativismo, solidariedade, compartilhamento e uma distribuição melhor da riqueza humana, tudo interligado a uma ética ecológica, conseguirão encontrar melhores alternativas a esse estado de coisas?

Quanto à intimidação no The Guardian, foi para inglês ver… Quer dizer, foi para americano ver. O episódio na verdade é uma piada no tom do velho humour britânico, e ilustra o juízo que os ingleses fazem dos norte-americanos. Quem, em pleno século XXI, acreditaria numa pantomima dessas. O GCHQ sabe que os seus compatriotas desconfiam que os dados procurados pela inteligência secreta não terminam ali, no disco rígido nem no pendrive, mas já correm feito vírus por outros sistemas da cibercultura.

A piada é que eles acham que os americanos não sabem disso…

* Marcelo Degrazia é escritor, autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blogue Concerto de Letras.
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