Mostrando postagens com marcador Reforma Agrária. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Reforma Agrária. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 12 de março de 2014

Comer, ato revolucionário? (Satish Kumar)

l_1606_tattooed-banana


Refletir sobre o que nos alimenta pode nos levar a rebeldias como reforma agrária, mercados de agricultores, jardins operários, “slow food”, permacultura e agricultura florestal

Por Satish Kumar | Tradução Josemar Vidal Jr., editor de Tautologia Total

A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Comer alimentos apropriados é parte da solução de problemas como as mudanças climáticas e a fome no mundo. Na tradição cristã, festejar no Natal e jejuar na Quaresma são símbolos significantes da relação estreita entre as pessoas e os alimentos, entre liberdade e comedimento, entre celebração e solitude.

Mas festejar e jejuar não são opostos: são complementares. Quando nós praticamos a liberdade de um banquete e somos pessoas habituadas à pratica do jejum, muito provavelmente vamos aproveitar a festa sem abusos.Jejuar é uma grande habilidade. Quando, no romance de Herman Hesse, a bela cortesã Ka­mala pergunta a Siddhartha quais eram as suas qualidades para conquistar o seu amor, Siddhartha responde: “Pensar, esperar, jejuar”. Infelizmente, no mundo moderno, muitos de nós não sabem como esperar, como jejuar, ou, ainda, como banquetear.

Nós vivemos no mundo da comida congelada, junk food e pratos prontos. Esse é o mundo da produção em massa, dos empacotados e das redes de comercialização de alimentos. Esse é o mundo onde os conhecimentos e as técnicas de produzir comida foram esquecidos, e a arte de cozinhar é desvalorizada; onde o prazer de preparar as refeições em companhia é diminuído. Nós perdemos o controle das origens dos alimentos. Muitos não sabem dizer poucas palavras sobre como a comida é semeada, distribuída, tarifada, ou mesmo como é preparada.

O acesso à comida deveria ser um direito fundamental do ser humano, o alimento é um presente da natureza a todos. Alimentar as pessoas e todos os seres vivos é algo intrínseco à vida, à existência, mas, infelizmente, a comida tornou-se produto comercial e já não esta disponível à todos igualmente. O objetivo primeiro dos que trabalham com negócios alimentícios é fazer dinheiro, alimentar as pessoas se tornou algo secundário. Não admira vermos múltiplas crises, tais como o crescimento do custo dos alimentos, crescimento da obesidade, junto à malnutrição e fome.

O grande desafio com o qual precisamos nos deparar é percebermos o principal objetivo dos sistemas alimentares, que é suster a vida. A principal responsabilidade dos governos e dos homens de negócios é desenvolver políticas e práticas que atendam às necessidades alimentares de todos, em todo o mundo, ao mesmo tempo em que garantam a integridade e a sustentabilidade do planeta terra em si.

Cultivar, preparar e comer boa comida é um imperativo ecológico, e, como Thomas Morus muito bem pontua, a comida é mais do que apenas o combustível para o corpo; ela é fonte para a nossa nutrição espiritual, social, cultural e física.

As pessoas perguntam: “O que eu posso fazer para combater o aquecimento global, a degradação ambiental e as injustiças sociais?” A resposta dada por Thomas Morus e outros escritores é: “Vamos começar pela comida: vamos comer alimentos locais, orgânicos, sazonais e deliciosos. Vamos lidar com os alimentos com as nossas próprias mãos, e não deixar a sua produção apenas nas mãos das corporações.”

O ato de comer o alimento apropriado é parte da solução dos problemas de aquecimento global e fome. A comida é um microcosmo de um macrocosmo. Quando nós observamos as movimentações econômicas por trás dos alimentos vemos imediatamente a influência das corporações multinacionais, que transformam comida em produto, onde, da engenharia genética das sementes ao cultivo, o controle passou do homem do campo e dos agricultores para administradores e engenheiros. Se nos preocupamos com a agricultura industrial, agronegócio, terras cultiváveis, erosão do solo, crueldade com os animais, fast foods, fatty (gordurosas) foods, ou ainda, “não-foods“, temos que olhar para o nosso prato e o que esta nele. A comida em nossa dispensa e na nossa cozinha esta conectada com as mudanças climáticas, com a pobreza, bem como com a nossa própria saúde.

Uma reflexão profunda sobre o que comemos pode nos levar à reforma agrária, mercados de agricultores, Jardins Operários, Slow Food, comida artesanal, permacultura, agricultura florestal e muito mais. Nós devemos transformar nossa relação com a comida como um primeiro passo em direção às transformações sociais, econômicas e políticas. O pessoal e o político são dois lados da mesma moeda, nós não podemos manifestar um sem o outro. Quando nós começamos no plano pessoal e caminhamos em direção ao político, então há integridade no que falamos, fazemos e pedimos para que os outros façam. É claro que não podemos parar na vida pessoal. Nós precismos nos comunicar, organizar e construir um movimento popular que pressione governos e empresas a efetuarem mudanças.

Será que estamos prontos pra “por a mão na terra”? Temos tempo para assar nosso próprio pão e compartilhar nossas refeições em companhias agradáveis? Se nós não temos tempo para cozinhar e comer adequadamente, então nós não temos tempo para viver. Como Molière disse: “É boa comida, não boas palavras que me mantem vivo”.


*Satish Kumar é fundador e diretor do Instituo Schumacher e reconhecido como um pilar da militância pacifista.


(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/12/comer-e-o-comeco-ou-a-meta-esta-na-mesa/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Florianópolis já encara quem a captura (Felipe Amin Filomeno)

140205-OcupaFloripa
Em meio à ostentação e apetite dos que privatizam terras e bens públicos, emergem ocupações de sem-teto e lutas pelo Comum
Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Ana Rita MayerOcupação Amarildo de Souza
Florianópolis é uma cidade belíssima por sua paisagem natural e, por isso, há décadas atrai turistas do Brasil e da América do Sul nas temporadas de verão. Em anos mais recentes, a cidade também ganhou destaque pela alta qualidade de vida que proporciona a seus habitantes – comparativamente a outras cidades brasileiras – e pela visita ocasional de celebridades. Em especial, a praia de Jurerê Internacional, no norte da Ilha de Santa Catarina, virou referência internacional para a habitação e o turismo de luxo. Ali, celebridades são vistas saindo de automóveis Ferrari em direção a festas em mansões. Esta reputação glamurosa não combina com a notícia de que, em 16 de dezembro de 2013, movimentos sociais do campo e da cidade, juntamente a mais de 60 famílias, ocuparam um latifúndio situado às margens da SC-401, rodovia que leva às praias do norte da ilha – incluindo Jurerê. Hoje, num passeio de carro de apenas cinco minutos é possível sair de uma mansão à frente do mar em Jurerê e chegar ao conjunto de barracas de madeira e lona, que formam a ocupação denominada “Amarildo de Souza”. Estas duas realidades, aparentemente opostas, estão organicamente relacionadas. Elas são produtos contraditórios da acumulação por expropriação, que historicamente caracteriza a economia política de Florianópolis e a liga a processos de exploração e resistência em curso no Brasil e no mundo.
Jurerê Internacional - Florianópolis
Jurerê Internacional – Florianópolis
Um pouco de teoria…
Um dos conceitos mais importantes em economia política é o de “acumulação primitiva”, o qual se refere à acumulação de capital que não resulta do modo de produção capitalista, mas é seu ponto de partida. É o processo pelo qual os meios de produção foram originalmente acumulados sob controle de uma determinada classe social que, então, tornou-se capitalista. A forma mais clássica de acumulação primitiva – geralmente ensinada em cursos de história no ensino médio, quando se fala sobre a Revolução Industrial – foi o cercamento de terras de propriedade comum, praticado por latifundiários ingleses amparados pelo Estado, no final do século XVIII. Este cercamento deixou camponeses sem terra e os transformou em proletários disponíveis para as indústrias nascentes. Karl Marx, no entanto, apontou também outras formas de acumulação primitiva através das quais a propriedade comum, coletiva ou do Estado se tornou propriedade privada: os saques e invasões feitos através das colonizações, o endividamento público e o sistema de crédito.
Em tempos contemporâneos, o geógrafo marxista David Harvey introduziu o termo “acumulação por expropriação” para se referir ao processo que Marx chamou de “acumulação primitiva” e, com isso, mostrar que não se trata de algo prévio ao capitalismo, mas sim de um processo integral ao seu funcionamento até a atualidade. As privatizações de empresas públicas a preços abaixo do seu valor real, a supressão da agricultura familiar pelo agronegócio e o aumento da carga tributária para pagar uma dívida pública inchada por juros elevados são exemplos atuais de acumulação por expropriação. Nestes casos, a acumulação não cria valor novo: ela se dá através da transferência de valor já existente na esfera pública ou comum para a esfera privada. Isto se dá, muitas vezes, através de mecanismos não econômicos, como o Estado (que privatiza, que subsidia o agronegócio, que cobra tributos regressivos).
Frequentemente, a acumulação por expropriação gera oportunidades para o “rentismo”. Na economia política de língua inglesa, “rent” é um pagamento a um fator de produção (terra, trabalho ou capital) acima de seu custo de oportunidade. “Rent” é uma remuneração excessiva derivada da escassez (natural ou criada) de um dado fator de produção. Por exemplo, se o fator de produção “trabalho” está organizado na forma de guildas, a ação política dos trabalhadores pode forçar um aumento excessivo da sua remuneração. No caso da terra, a acumulação por expropriação pode tornar a terra escassa, permitindo a seus proprietários a cobrança de aluguel exorbitante. Quando a “rent” é recebida por um agente privado, este é denominado “rentier” – o rentista.
Nos parágrafos abaixo, vou mostrar como a geo-economia de Florianópolis é marcada pela acumulação por expropriação, capitaneada por uma elite rentista e conservadora, à qual se contrapõem movimentos sociais em defesa dos espaços públicos e do meio-ambiente.
Florianópolis, cidade da acumulação por expropriação e do rentismo
O hino municipal de Florianópolis, de autoria do poeta Zininho, começa com os versos “Um pedacinho de terra, perdido no mar!… Num pedacinho de terra, beleza sem par…”. Estes versos nos mostram, artisticamente, duas características fundamentais da economia política da cidade: a escassez do espaço (um “pedacinho de terra”) e sua utilidade econômica para o turismo e a construção civil (derivada de sua “beleza sem par”). Em função disto, em Florianópolis – mais do que em outros lugares – a privatização e a monopolização do espaço geram vantagens econômicas extraordinárias. O hotel pode ter um serviço de quarto excelente, mas se da janela do quarto o hóspede não enxerga o mar, o valor da diária cai lá embaixo. O terreno com vista para o mar é o principal ativo do empresário hoteleiro. Análoga é a situação da indústria local da construção civil.
Este é o rentismo da paisagem, manifesto claramente em um projeto privado para a construção de um hotel de luxo numa área de Florianópolis conhecida como Ponta do Coral. A área foi privatizada por decreto em 1980 por Jorge Bornhausen, governador “biônico”, indicado não democraticamente pelo regime militar. Conforme artigo do Diário Catarinense (31/05/2013), a “venda foi contestada, uma vez que precisaria de aprovação da Assembleia Legislativa (conforme previsto pela Constituição Estadual em vigor na época), o que não ocorreu. A atitude provocou revolta na sociedade, que passou a protestar considerando a venda um ato nulo”. Em 2005, uma lei aprovada na Câmara de Vereadores, e sancionada pelo então prefeito Dário Berger, autorizou um aterro numa faixa de 33 metros no entorno da península. Este enorme aterrro – ainda que público – viabilizaria a construção de um hotel muito maior do que seria possível na ausência de aterro. Na prática, esta legislação – considerada posteriormente inconstitucional pela Secretaria de Patrimônio da União – implicava a privatização do mar. Acumulação primitiva, nua e crua, baseada em privilégios políticos, pois um pobre pescador que pedisse à prefeitura autorização para aterrar área marítima em frente ao seu rancho certamente teria o pedido negado.
Ponta do Coral - Florianópolis.
Ponta do Coral – Florianópolis.
O caso da área da Ocupação Amarildo de Souza é também desconcertante. Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC, Alexandre Botelho, na ação de reintegração de posse da área de cerca de 900 hectares, movida pelo “proprietário”, este demonstrou, com documentos (cinco escrituras públicas), a propriedade de apenas 9,8 hectares (cerca de 1% da área cercada). Além disso, a maioria dos barracos instalados pelos ocupantes está às margens da rodovia SC-401, numa faixa de terra onde passava a antiga estrada Virgílio Várzea – terra pública, portanto. Cercamentos típicos do século XVII ocorrendo em pleno século XXI.
A construção civil e a hotelaria não são, entretanto, as únicas atividades importantes na Ilha de Santa Catarina. Muito antes de ser capital turística do Mercosul e lócus de um “boom” imobiliário, Florianópolis já era capital do Estado de Santa Catarina, repleta de órgãos públicos federais, estaduais e municipais. Transfira-se a capital para outra cidade e Florianópolis enfrentará um longo período de depressão econômica, carente que ficará dos investimentos e despesas públicas assim como dos salários do funcionalismo. Aqui também, o rentismo domina, pois o “alto funcionalismo público” – onde estão os grandes salários, os generosos “auxílio-moradia” e a influência política – é formado por verdadeiras guildas medievais no século XXI. Neste caso, é a escassez de altos cargos no Estado e o acesso restrito a estes que garante a “rent” na forma de altos salários e prestígio político.
Em primeiro lugar, há os funcionários mais antigos, que ingressaram no serviço público antes da Constituição de 1988 mais por favores políticos do que por concurso público. Em segundo lugar, há os funcionários em cargos comissionados, ainda hoje nomeados legalmente por critérios políticos. Em terceiro lugar, há o funcionalismo concursado, que é apenas parcialmente meritocrático. Digo parcialmente, porque ser aprovado nos concorridos concursos públicos para altos cargos é mais acessível para quem já é da classe média, para quem teve formação básica de qualidade e para quem não precisa trabalhar e tem tempo para estudar. Além disso, uma vez aprovado no concurso público, a progressão dentro da “corporação” depende de mais do que competência técnica e experiência. Para virar desembargador, por exemplo, um juiz depende de decisão – necessariamente política – tomada pelo governador do Estado.
Ocupação Amarildo de Souza - Florianópolis
Ocupação Amarildo de Souza – Florianópolis
Assim, a elite de Florianópolis é formada por grandes proprietários de imóveis, construtores, hoteleiros e altos funcionários públicos empregados nos três poderes. Com a modernização da cidade e a atração de pessoas de outras regiões, esta elite incorpora novos membros (do cirurgião plástico ao empresário do ramo de tecnologia), mas aquele permanece como seu “núcleo duro”. Entre as famílias “tradicionais” de Florianópolis, facilmente se encontra, na mesma família, pessoas em todas aquelas posições: o hoteleiro é irmão de um construtor, ambos filhos de um grande proprietário de imóveis, cujo cunhado é fiscal de tributos. E há uma simbiose entre estas categorias da elite florianopolitana. Com uma breve pesquisa no Google, encontra-se processos judiciais contra grandes proprietários de imóveis acusados de subornar funcionários públicos para que agências do Estado aluguem seus imóveis por valores acima dos de mercado. A elite de Florianópolis é, portanto, por definição, oligárquica e rentista.
Há também uma colaboração entre a elite e a imprensa local, responsável por reproduzir entre os habitantes da ilha a visão de mundo conservadora que corresponde ao rentismo.  Na colunas de opinião dos jornais locais, são frequentes as críticas a iniciativas do atual prefeito César Souza Júnior contra a acumulação por expropriação. Entre elas, o cancelamento de alvará que a administração anterior havia concedido para a construção do enorme hotel na Ponta do Coral e o aumento do IPTU e do ITBI para penalizar a especulação imobiliária e socializar parte dos ganhos econômicos dos grandes proprietários de imóveis. Para o conservador florianopolitano, a acumulação por exproriação é “empreendedorismo e desenvolvimento” e quem defende o espaço público e o meio-ambiente contra a acumulação por expropriação é “socialista eco-chato”.
Esta estrutura social e padrão de acumulação de capital condicionam a política local. As diversas lutas pela justiça social em Florianópolis – do movimento pela conversão da Ponta do Coral em área pública verde ao movimento dos estudantes pelo passe livre no transporte público – tem, como denominador comum, a resistência contra a acumulação por expropriação e a proteção dos espaços comuns. Talvez por isso, o discurso socialista de partidos de esquerda, focado na exploração do proletariado industrial, não tenha ressonância na população de Florianópolis e explique a pequena dimensão destes partidos na política local. Florianópolis não é o ABC paulista; nossa mobilização popular é mais pós-moderna.
Florianópolis como cidade brasileira e global 
O caso de Florianópolis interessa não apenas aos seus habitantes, pois é manifestação extrema de processos sociais que marcam o Brasil e o mundo atual. Não é por acidente que a ocupação no norte da ilha foi denominada por seus líderes de Ocupação Amarildo de Souza, o ajudante de pedreiro que virou mártir da onda de protestos que tomou o Brasil em meados de 2013. Assim como a ocupação, os protestos pelo país foram motivados largamente pela defesa do espaço público das cidades. Estes conflitos, em Florianópolis e no Brasil, integram — junto com o “Occupy Wall Street”, o movimento anti-austeridade na Europa e as lutas contra a usurpação de terras na África — uma onda mundial de resistência contra a acumulação por expropriação.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/florianopolis-ja-encara-quem-a-captura/)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

“O Brasil não será democrático se não democratizar a terra” (Entrevista com João Pedro Stédile)

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, completa trinta anos neste mês de janeiro. Sua criação foi formalizada durante um encontro realizado em Cascavel, no Paraná, entre 20 e 23 de janeiro de 1984, com a presença de quase oitenta pessoas, de diversas partes do País. Entre elas encontrava-se João Pedro Stédile, que havia começado a participar de ações em defesa da reforma agrária por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Teologia da Libertação.
Na entrevista abaixo, Stédile, que faz parte da coordenação nacional do MST, analisa algumas das principais mudanças ocorridas em três décadas e as perspectivas do movimento. Ele afirma que defensores da reforma agrária são minoria no governo da presidente Dilma Rousseff, que estaria privilegiando cada vez mais o agronegócio. Na avaliação dele, é uma política errada, uma vez que o agronegócio promove a concentração de terras e “dá lucro para alguns, mas condena milhões à pobreza”.
O MST surgiu numa conjuntura muita diferente. O Brasil era mais rural, o agronegócio estava menos estruturado, a produção de alimentos era precária, os índices de pobreza rural e urbana eram mais altos. De lá para cá, o agronegócio se tornou altamente competitivo, a produção de alimentos cresceu e o Brasil é apontado como uma potência mundial. Faz sentido continuar insistindo na bandeira da reforma agrária?
A reforma agrária está na ordem do dia como necessidade para construirmos uma sociedade democrática e ter o desenvolvimento social. A terra é um bem da natureza e todos os brasileiros que quiserem trabalhar na terra tem esse direito. Não é justo nem democrático que a propriedade da terra esteja cada vez mais concentrada. Em torno de 1% dos proprietários controlam metade de todas as terras. E agora, pior, estão entregando a propriedade para empresas estrangeiras em detrimento das necessidades do povo. O Brasil nunca será democrático se não democratizar o acesso à terra, para que as pessoas tenham trabalho, renda e dignidade.

Na sua avaliação, o agronegócio não contribui para o desenvolvimento do País?
O agronegócio é uma falácia. É um modelo de produção que interessa aos grandes fazendeiros e às empresas transnacionais que controlam o comércio mundial. Nos último dez anos tivemos uma enorme concentração da propriedade da terra e da produção agrícola. Cerca de 80% das terras são utilizadas apenas para soja, milho, cana, pasto e eucalipto. Tudo para exportação. É um modelo que dá lucro para alguns, mas condena à pobreza milhões. Veja o caso do Mato Grosso, tido como modelo: mais de 80% dos alimentos consumidos pelo povo dali têm que vir de outros Estados. Nós temos 40 milhões de brasileiros que dependem do Bolsa Família para comer e 18 milhões de trabalhadores adultos que não sabem ler. Foram fechadas 20 mil escolas no meio rural e os índices de pobreza não diminuíram. Essa é a consequência do agronegócio.
A maioria da população tem uma imagem favorável do agronegócio.
Ela pode até apoiar, enganada pela propaganda permanente. As consequências perversas do agronegócio atingem a toda população, quando destrói o meio ambiente e altera o clima até nas cidades, quando só produz usando venenos. Esses venenos destroem a biodiversidade, contaminam as águas e os alimentos.
A capacidade do MST para mobilizar pessoas e organizar ocupações de terras diminuiu. O Programa Bolsa Família é apontado como uma das principais causa dessa mudança. Outra causa seria o mercado de trabalho, que se tornou mais favorável à mão de obra menos qualificada, especialmente no setor da construção civil. Concorda com essa avaliação?
A diminuição das ocupações se deve a uma conjugação de diversos fatores. Do lado do latifúndio, houve uma avalanche de capital que foi para agricultura atraído pelos preços das commodities – que dão elevados lucros, aumentam o preço das terras e, com isso, bloqueiam a reforma agrária. Do lado dos trabalhadores, os salários aumentaram nas cidades, o que reforçou o êxodo rural. Há um bloqueio da reforma também no Judiciário e no Congresso, que não consegue nem regulamentar a lei que proíbe trabalho escravo. E tem a inoperância do governo, que abandonou as desapropriações. Os trabalhadores, percebendo que as desapropriações estão paradas, acabam desanimando, pois vêem seus parentes ficarem durante cinco, oito anos debaixo da lona preta, esperando por terra, sem solução. Mas tudo isso é conjuntural.
Acha que essa situação é passageira?
Sim. O problema da pobreza do campo e do número de trabalhadores rurais sem terra não foi resolvido. A retomada da luta, com mais força, é apenas uma questão de tempo.
A presidente Dilma Rousseff deixou claro desde a campanha eleitoral que não está preocupada com a criação de novos assentamentos, como quer o MST. O objetivo dela é reduzir a pobreza, com a elevação dos índices de produção das famílias já assentadas. Como vê isso?
O governo Dilma é hegemonizado pelos interesses do agronegócio. Os setores do governo que ainda defendem a reforma agraria são minoritários. O Estado brasileiro, por meio do Judiciário, do Congresso, das leis e a mídia, é controlado pela burguesia, que usa esses instrumentos para impedir a reforma. Nesse governo, a incompetência e a má vontade política são impressionantes. Há dois anos, durante uma reunião do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, a presidenta nos prometeu que iria priorizar assentamento de famílias sem terra nos projetos de irrigação do Nordeste, que é onde vivem os mais pobres. Pois bem, há 86 mil lotes vagos nos projetos há existentes, nos quais o governo poderia assentar 86 mil famílias. Mas ninguém toma providências.
Por que?
Porque, no botim dos partidos, o Ministério da Integração foi gerido a serviço das oligarquias nordestinas.
Como vê a situação dos assentamentos já existentes?
Enfrentam muitos problemas. Um deles é o da moradia. Temos um déficit de mais de 150 mil casas. Também é preciso ampliar os programas de compra direta de alimentos e da merenda escolar, uma conquista obtida durante o governo Lula. Ainda há falta de escolas no meio rural, porque o MEC continua incentivando as prefeituras a levarem as crianças para cidade, com o oferecimento de vans.
A presidente Dilma assinou um decreto determinando que os recursos destinados aos assentamentos sejam transferidos diretamente para as famílias beneficiadas, em vez de passarem antes por cooperativas, como acontecia. Isso não vai enfraquecer as cooperativas e a organização dos assentados? Acha que a medida está relacionada às afirmações de que o MST sobrevivia com o dinheiro repassado às cooperativas?
Isso é irrelevante. Os recursos de crédito nunca passaram por cooperativas e associações. O assentado precisa sempre fazer o contrato direto no banco. A não ser, em raros casos, de existência de cooperativa de crédito rural.
Ao mesmo tempo que se verifica o refluxo das ações na zona rural, aumentam as manifestações urbanas e surgem novas organizações. Como vê isso? O que achou das manifestações ocorridas em junho?
Toda mobilização social na política é muito positiva. E o lugar natural do povo participar ativamente da política é a rua. É o lugar para se manifestar, lutar e defender seus direitos e interesses. Vimos as mobilizações com bons olhos e, na maioria das cidades, nossa militância também participou. Elas deram um sinal de que precisamos de mudanças.
Que tipo de mudanças?
Nas áreas de moradia, transporte público, educação, saúde para todos, reforma agrária. Para fazer as mudanças, porém, precisamos de uma reforma política, que garanta a representatividade do povo na administração do Estado. A política foi sequestrada pelo financiamento privado das campanhas, que deixa todos os eleitos reféns de seus financiadores. Por isso, nós, dos movimentos sociais, estamos pautando a necessidade de lutarmos por uma reforma politica, que democratize a forma de eleger os representantes.
É possível fazer a reforma com esse Congresso?
Claro que não. Diante disso, estamos articulados numa grande plenária nacional de movimentos populares e entidades da sociedade para lutarmos por uma constituinte soberana e exclusiva, convocada para promover a reforma política. Durante todo esse ano vamos fazer um mutirão de debates e na semana do 7 de Setembro faremos um plebiscito popular, para que o povo vote e diga se quer ou não uma assembleia constituinte.
Acompanhe o blog pelo Twitter – @Roarruda

(Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/ha-86-mil-lotes-vagos-no-nordeste-e-ninguem-toma-providencias-diz-stedile/)
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...