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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gata, eu quero ver você parindo! (Ligia Moreiras Sena)

Aviso 1: Contém inúmeras vezes a palavra "vagina".
Aviso 2: Contém fotos de cicatrizes. Seja forte. Coragem.

"Então eu olhei aquela foto, aquela mãe com um bebê saindo de sua vagina, feliz, radiante, olhos arregalados, boca aberta, pai eufórico, parteira amparando, mãe segurando as costas do bebê em nascimento, e pensei: 'Tem alguma coisa errada... Por que eu tenho dois filhos e nunca imaginei que isso seria possível? Por que eu não sabia que parto não precisava ser daquele jeito azul, branco, frio?"
"Cheguei na casa da minha vizinha pra levar uns livros que ela tinha me emprestado. A filha dela de 16 anos estava assistindo um parto no Youtube! Um parto parto mesmo, mulher gemendo, pernas abertas, vagina à mostra. Choquei. Eu  nunca tinha visto um parto na vida! Fiquei meio sem jeito... e achei estranho estar sem jeito. Por que eu estava sem jeito de ver uma mulher dando à luz pela vagina? Eu não tenho filho nem vou ter, mas era só uma vagina, uma mulher em diferentes posições mas uma vagina. Pedi pra menina se eu podia ver também, ela disse que sim, fiquei por ali. Aí nasce o bebê... Eu não sei como nem porquê, mas fiquei emocionada. Eu nunca tinha visto um bebê sair pela vagina, nem a reação de uma mulher num nascimento daquele. Comecei a chorar. Senti uma alegria... Foi aí que comecei a ler sobre parto, caí no seu blog, caí na blogosfera partolesca, curto muito. Minha cunhada engravidou e tenho muito orgulho de ter sido eu a orientá-la durante a gestação, porque ninguém na minha família conhecia essas coisas. Nasceu num super parto lindo, com meu irmão e eu do lado. 'Parto vaginal', eu sempre conto, porque aprendi a importância disso".
"Foi de tanto ver foto de parto bonito que percebi que tinha sofrido uma violência irreparável".
"Minha filha tem 8 anos e adora ver vídeo de parto comigo. A gente faz "Óinnn" quando o bebê chega, a gente se abraça, é lindo. Quero mostrar pra ela que parto faz parte da vida, é natural, ao contrário do que foi comigo".
"Durante a gestação dela, quando a gente contava que eu estaria junto, que iria ver meu filho nascer, que iria ajudá-la no trabalho de parto, todo mundo da família me repreendia, dizendo que era ruim, que eu não veria minha esposa mais da mesma maneira, que as partes íntimas dela estariam diferentes, enfim. Perguntavam como eu tinha coragem, que grande parte dos homens desmaiava, ou não aguentava e saía. Realmente, na minha família, quase todos os homens passaram mal nos nascimentos dos filhos, mas porque ver cesárea deve mesmo ser foda. E todo mundo teve bebê por cesárea na minha família. Não, minhas avós não, mas o pessoal novo, todo mundo. Imagina! Cortar 7 camadas de tecido, músculo, sei lá mais o que, sangue, ponto, deve ser difícil. Mas não era o nosso caso, já que o Igor ia nascer naturalmente, por via vaginal. E eu fiquei, ajudei e tal. Só não ajudei mais porque chorei que nem menino pequeno. O Igor saindo e eu chorando de alegria. Minha esposa contou depois que eu apertei tanto os joelhos dela que ela até desconcentrou da dor do expulsivo, rsrsrs. E vi meu filho sair da vagina da minha mulher. Eu realmente nunca mais a vi como antes... Sempre tive muita admiração por ela. Ter visto meu filho nascer, ali, na dura, na real, me fez olhar com ainda mais admiração, com quase reverência. Tava ali uma coisa que eu não sabia fazer e nunca saberia, e ela fazia como se sempre tivesse feito: deixar meu filho sair. Que mulher, eu pensava. Num segundo estava dizendo que doía e no outro, tendo o filho parido no braço, estava rindo às gargalhadas. Dá até uma coisa contando..."

Infelizmente, por conta do meu trabalho/pesquisa atual, vejo/leio muito mais sobre partos trash repletos de violências terríveis e sobre cesarianas desnecessárias, em tom de revanche médica e repleta de tecnologia fria e impessoal, do que eu gostaria. Vejo fotos de mulheres amarradas à maca, ou inconscientes no exato momento do nascimento do filho, ou com o bebê no braço e um choro de quem se viu violentada. Tudo isso no momento que era para ser de extrema beleza, alegria, êxtase.
Vejo e leio relatos infindáveis da mais genuína dor, de mulheres que foram enganadas, humilhadas, xingadas, ludibriadas e que perderam o parto do próprio filho e que hoje carregam cicatrizes físicas e emocionais que não foram frutos de uma escolha.

Então, quando abro a rede social e dou de cara com umavagina parindo, sinto uma puta alegria. Quando, nos grupos maternos, alguém posta a foto do nascimento ou escreve: "Eu pari!", é como se uma pequena dose do antídoto necessário pra dar conta do tranco de estudar a violência no parto me fosse dada.
Por tudo isso, tenho a exata noção das coisas: sei exatamente qual dessas circunstâncias - parto violento x vaginaparindo com moça sorrindo - representa a visão do inferno, e não é a segunda alternativa. Nunca pensei na vagina como uma visão do inferno... Por que eu pensaria isso sobre a minha própria vagina, uai?! Gosto dela. Tenho carinho por ela. Somos amigas, puxa vida. Amigas muito íntimas. E entendo a amizade das outras mulheres com as próprias vaginas. A vagina alheia não é uma inimiga para mim. E seria ótimo se todo mundo vivesse essa love story vaginal. Talvez houvesse muito mais respeito por aí. Além, claro, de evitar coisas como isso que aconteceu, de chegarmos ao ponto de alguém publicar, num jornal de grande circulação, aos quatro ventos, o seu ódio pela vagina alheia. 

Li o texto da Tati Bernardi publicado na Folha de São Paulo com o título de "Gata, eu não quero ver a sua xota" e depois vi uma foto em que ela aparecia abraçada em um pênis de pelúcia (escrever "pênis de pelúcia" me dá uma super vontade de rir, acho que é a sonoridade da expressão). A primeira coisa que pensei, assim de cara, foi: "Caraca... Qual será o problema dela com a vagina, gente?!".
Aí fui ler o texto de novo.
E ela não usa a palavra VAGINA uma única vez!
Usa: xota; xoxota; xuranha; prexeca sofrida; ximbica e xereca.
Zero vagina.
Vagina zero (parece até o nome de um movimento... Imagina: '''Vagina Zero - Movimento de Valorização da Direita no Brasil").

Então eu vim aqui apenas para fazer um pedido: GATAS, EU QUERO VER VOCÊS PARINDO! 
Tá, eu sei que não sou ninguém, não publico em jornal de grande circulação e tal. Mas por favor, gatas, eu quero ver vocês parindo!
Não liguem para a Tati Bernardi. Alguma coisa lá não tá legal. Compaixão, minha gente!

Muita gente que está hoje na luta pela humanização do parto - alheio ou próprio, vagina sua ou vagina 
alheia - está nessa justamente por um dia ter visto uma foto de parto, um vídeo de parto, onde - olha que surpresa! - tinha umavagina parindo. Como as pessoas dos relatos que abrem esse texto. Não é surpreendente que encontremos vaginas em partos ainda hoje?! Muito surpreendente. Principalmente em um país onde os hospitais (aqueles lá mesmo que ela mencionou, os que "poderiam estar num guia de hotéis três estrelas de Miami. Quanto mais brega, mais eu confio: com salão de beleza e "concerto de piano" na recepção") batem os 98% de cesarianas. 
Ver um parto vaginal é, mesmo, um evento em extinção. E eu, como bióloga que sou, tenho uma queda por salvar o que está em extinção. 
Então, repito: gatas, não escondam suas vaginas parindo! Nós queremos ver!
Postem suas fotos, subam seus vídeos, mostrem seus partos!
Marquem o tio Miltinho de Passos de Itu! Deem um print na alegria que a vó Carminha de Serra Negra manifestou na timeline dela por ver que você deu a luz como ela! 
Libertem suas vaginas paridas!

E, moça, você que é uma escritora pop, por favor: deixe em paz a vagina alheia! Ela não te fez nada...

Ah, sim. Antes de finalizar. Ver vaginas parindo na rede social, em um país tão moralista quanto o nosso, de mentalidade tão misógina, onde mulheres são constrangidas por amamentar em público, onde dar à luz naturalmente é ainda, muito infelizmente, um privilégio, é um grande avanço. Mostra que - sim! - estamos no caminho certo. Principalmente quando lembramos que cada foto de vagina parindo que vemos é uma cicatriz a menos. Especialmente aquelas que não foram desejadas.




Disponível em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2014/04/gata-eu-quero-ver-voce-parindo.html

terça-feira, 8 de abril de 2014

Educação, o novo alvo do fundamentalismo (Cleomar Manhas)

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Em nome da moral conservadora, bancadas religiosas tentam detonar, no Congresso, projeto essencial para construir ensino público de excelência

Por Cleomar Manhas

O Plano Nacional de Educação está no Congresso Nacional desde dezembro de 2010, quando o ainda presidente Lula o enviou para apreciação e processo de votação. Passados três anos e alguns meses e muita discussão, ele foi votado na Câmara e no Senado, onde sofreu alterações e voltou à Câmara que acatará ou não o que foi modificado.

As entidades defensoras da política de educação, especialmente aquelas que lutam por educação de qualidade, estão acompanhando o processo desde então. E agora, no retorno à Câmara, foram surpreendidas pela oposição de vários grupos religiosos evangélicos neopentecostais e católicos conservadores, que se intitulam Pró-Vida.

O projeto apresentado à Câmara tinha no artigo segundo, inciso III a seguinte orientação: “Superação das desigualdades educacionais”. O relator, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR), acrescentou o seguinte texto : “(..) com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. Além disso, ele inovou adotando em seu texto a linguagem de gênero em detrimento do masculino genérico. E esses dois pontos são a causa da oposição, com direito a manifestações grosseiras e pouco democráticas.

Há alguns problemas no PNE que precisam ser sanados, para que de fato se tenha uma política de educação que resolva as desigualdades e promova educação de qualidade. Como, por exemplo, o que se entende por educação pública, pois do jeito como está cabe até mesmo os tais “cheques educação”, bolsas de estudos, convênios com instituições que não são fiscalizadas. Além do comprometimento da União com a necessária complementação orçamentária aos estados e municípios com base no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e Custo Aluno Qualidade (CAQ), composto por insumos essenciais à universalização da educação de qualidade, com a garantia da aprendizagem.

Os mecanismos CAQi E CAQ foram criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para calcular quanto custa ter escolas com insumos tais como salários dignos aos/as profissionais da educação, número adequado de alunos/as por turma, insumos infraestruturais, ou seja, bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios de ciências e informática etc. O CAQi já foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, no entanto, como a maior parte dos municípios brasileiros são pequenos e com baixíssima arrecadação, se não houver a devida complementação da União isso não se realizará e não haverá aprendizado universalizado e educação de qualidade para os próximos dez anos.

Pesquisa realizada em 2010 pelo Unicef em parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação detectou que há no Brasil 8,8 milhões de estudantes das séries iniciais e finais do ensino fundamental em risco de exclusão escolar por estarem em idade superior a recomendada para a série que frequentam. Além de já se ter 3,7 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, sendo que 1,6 milhão encontram-se na faixa etária entre 15 e 17 anos, deveriam estar no ensino médio, mas abandonaram a escola antes disso, por inúmeras razões, que podem ser explicadas pelas diferentes desigualdades existentes, tais como: racial, de gênero, regional, de renda, ou ainda por preconceitos devido à orientação sexual, ou falta de acessibilidade para pessoas com deficiência nas escolas.

O que se poderia imaginar: que a sociedade como um todo se unisse para garantir recursos para a educação pública se realizar como educação de qualidade. E que os/as excluídos/as da escola ou em risco de exclusão fossem acolhidos/as e respeitados/as para que, ou retornassem, ou não evadissem da escola. Além disso, que se conseguisse, de fato, universalizar a aprendizagem que hoje é um grande problema, especialmente, entre a população de baixa renda.

No entanto, a principal pauta desses grupos agora mobilizados é a linguagem de gênero e a frase que diz que para superar as desigualdades educacionais é preciso enfatizar a promoção da igualdade racial, de gênero e orientação sexual.

Um deputado, cuja profissão é definida como “Ministro do Evangelho”, apresentou um voto em separado dizendo que as pessoas que defendem o que eles chamam de “ideologia de gênero” (sic) são antidemocráticos por não reconhecerem a heterossexualidade normativa. De acordo com suas palavras: “sob o pretexto de valorizar minorias sistemicamente marginalizadas, grupos articulados criam um verdadeiro açodamento na consciência civil, com discurso intransigente, linguagem chula e debates violentamente promovidos com vistas à suplantar quaisquer posições divergentes. A política de gênero sob o manto da diversidade e realização dos interesses da minoria propõe insistentemente uma verdadeira ditadura influenciativa (sic), que quer impor seus valores a todo custo, em todos os extratos sociais, com especial modo de agir sobre a infância.”

Veja-se que os grupos que não reconhecem a diversidade e que a sociedade é algo mais do que dizem os manuais da tal heterossexualidade normativa distorcem os fatos para os seus/suas fiéis, dizendo que os/as defensores/as dos diretos humanos impõem seus princípios a qualquer custo, não reconhecendo que a grande questão que se apresenta, especialmente na educação, é a superação das desigualdades e a construção, de fato, do Estado Laico, que apesar de estar em todas as constituições, desde 1891, ainda não se realizou.

O que se constata é que pensamentos obscurantistas como os dos grupos que se mobilizam contra o respeito às diferenças no Plano Nacional de Educação, ou das pessoas que responderam à pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas (IPEA) que a forma de as mulheres se vestirem ou comportarem as fazem sujeitas à violência sexual, contribuem para que as estatísticas de violência contra mulheres, gays, lésbicas, travestis, transexuais aumentem. Além de servir como antídoto à necessidade premente de se construir políticas públicas para todos e todas, sem distinção.

O que se precisa é a defesa intransigente de políticas que sigam o princípio apresentado por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/educacao-o-novo-alvo-do-fundamentalismo/)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Estupro: onde mora o perigo? (Marcos Aurélio Souza)

Slut Walk São Paulo

Percepção sobre crimes sexuais poupa família, criminaliza rua e engana. Em cada quatro casos, três ocorrem na casa das vítimas

Por Marcos Aurélio Souza

A recente pesquisa divulgada pelo IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência” teve um papel pedagógico nas discussões públicas sobre o tema da violência sexual no Brasil. Trouxe para luz do dia a obtusidade agressiva e animalesca que se esconde nos porões da consciência individual de muita gente. Detectou concepções que revelam completa incapacidade de alguns para viver em sociedades, seja qual for seu grau de educação formal.

Um dado importante da pesquisa, dentre outros igualmente fundamentais para entender ou estimar em que ponto está a percepção do brasileiro sobre as condições de violência contra mulher, diz respeito à ideia de que a culpa pela violência sexual sofrida pela mulher reside nela mesma, em particular pelo modo como se veste.

Ao serem perguntados se mulheres que usam roupa mostrando o corpo merecem ser atacadas, nada menos que 65,1% dos entrevistados afirmaram que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Mais ainda. Para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria menos estupros.

Os números ganharam repercussão nas redes sociais e um movimento #NãoMereçoSerEstuprada iniciado pela jornalista Nana Queiroz ajudou a disseminar o debate, nem sempre com opiniões razoáveis. Segundo Nana, “amanheci de uma noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua, mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada”. Nana, no entanto, ganhou reforço de peso na sua luta corajosa. A presidenta Dilma Roussef usou seu twitter para apoiá-la. E mais recentemente personagens como Daniela Mercury emprestaram sua imagem em um nítido apoio ao movimento.

Ao mesmo tempo em que a pesquisa do IPEA ganhou tanta repercussão, uma nota técnica1 também do instituto, e que infelizmente não ganhou a mesma visibilidade, divulga números essenciais para evidenciar que a percepção da culpabilidade feminina pela agressão sexual sofrida é apenas isso, uma percepção, e está anos luz da brutal realidade, em termos de violência sexual, de fato vivenciada pelas mulheres. O submundo de abusos mostrado por essa nota é bem mais alarmante.

O estudo foi produzido a partir dos dados do Sinan (Sistema de Agravos de Notificação) base gerenciada pelo Departamento de análise de Situação de Saúde, vinculado ao Ministério da Saúde. Em 2011, as notificações tratando de violência doméstica e sexual foram incorporadas ao sistema. Apoiando-se nelas, os pesquisadores debruçaram-se para trazer à tona um diagnóstico que foge do senso comum sobre a violência sexual praticada contra a mulher.

Como já esperado, a quase totalidade das vítimas de abusos sexuais é mulher, sendo 88,5%. Entretanto, um dado valioso, diz respeito à faixa etária. Nada menos que metade das vítimas são crianças até 13 anos de idade. Se somados com jovens e adolescentes de 14 a 17 anos (19,4% do total) crianças e adolescentes perfazem o total de pouco mais de 70% das vítimas. Bem, o que não surpreende é que quase 100% dos agressores sejam homens.

Se 70% dos agredidos são crianças, jovens e adolescentes, cabe uma questão. Onde essa violência ocorre? Se você fez essa pergunta, provavelmente já tem a resposta. É no lar. Dentro de casa. São 79% dos casos entre crianças; 67%, entre adolescentes e 65% dos casos entre adultos. E se você chegou até aqui, saiba que poderá se assustar um pouco mais. Entre crianças, apenas 12,6% dos casos de violência são praticados por desconhecidos. Isso mesmo. Os atos de violência sexual praticados contra criança acontecem na inviolabilidade do lar, por pessoas conhecidas ou muito próximas das vítimas. Os números se distribuem do seguinte modo: em 11,8% dos casos, o agressor é o pai; 12,3%, o padrasto; 7,1%, namorado; por fim, 32,2% amigo.

Ou seja, o perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa. Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas.

Naturalmente, não se pode dizer que crianças se vistam de um modo provocativo ou tenham comportamento sedutor a tal ponto que leve as pessoas mais próximas a elas a distúrbios emocionais que resultem em um impulso para a prática de violência sexual. Tudo isso se torna estarrecedor, porque essas vítimas podem sofrer violência durante anos a fio, sem a possibilidade de manifestação do seu martírio.

Isso significa que a resposta positiva dos brasileiros sobre roupas ou comportamentos como determinantes do estupro está calcada numa terrível ignorância que, se por um lado esconde a realidade tal como é, também serve de conveniente sonífero. Sua função é evitar que nossa sociedade se depare com uma visão terrível: há um mundo de mutilação física e psicológica acontecendo debaixo de nossos tetos, envolvendo maridos, ex-maridos, amantes, amigos, conhecidos, e não sabemos absolutamente o que fazer. Parodiando Zé Geraldo, tudo isso acontecendo e a gente aqui na praça dando milho aos pombos.

O estudo conclui com outro dado igualmente assustador. Estima-se que mais de meio milhão de pessoas são estupradas no Brasil anualmente. Dessas, apenas 10% dos casos chegam à polícia. As razões para isso devem ser evidentes, dado que o aparato policial não está preparado para lidar de forma humana com essas mulheres. Os números desse estudo deveriam ser mais aprofundados e deveriam articular entes públicos e a sociedade para enfrentar e quebrar, de forma corajosa, esse pacto de silêncio que insiste em vitimizar todos nós.



1Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf

(Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/estupro-onde-mora-o-perigo/)

quinta-feira, 27 de março de 2014

Para romper a masmorra do individualismo (Katia Marko)

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Há uma dimensão filosófico-psicológica na construção de comunidades pós-familiares. Vidas estimulantes só são possíveis se nos descobrimos no olhar do outro

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Ilustração de Kevin McDowell

O mundo está em constante transformação. O novo força o seu nascimento. O velho resiste e tenta de todas as formas voltar ao que não será mais. Nesse cabo de guerra, alguns passos são dados para trás. Os defensores da tradição, família, propriedade e autoritarismo inventam marchas. Mas, apesar deles, a cada dia que descubro uma iniciativa de outro viver volto a acreditar que estamos no caminho da realização da nova mulher e do novo homem.

Aliás, esta foi justamente a missão definida pelos 40 moradores da Comunidade Osho Rachana (www.oshorachana.com.br), onde moro desde 2008, durante todo um final de semana de conversa sobre o que somos e o que queremos enquanto um coletivo de pessoas que decidiram viver juntas. “Ser uma comunidade rebelde que busca a realização da nova mulher e do novo homem, inspirados na visão do Osho”. Utopia? Pode ser, mas penso que quem abriu mão do seu horizonte utópico, se adaptou à fatalidade individualista do capitalismo.

Um dos meus escritores favoritos, o uruguaio Eduardo Galeano, fala sobre isso no excelente livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”. Segundo ele, “a ditadura da sociedade de consumo exerce um totalitarismo simétrico ao de sua irmã gêmea, a ditadura da organização desigual do mundo. A maquinaria da igualação compulsiva atua contra a mais bela energia do gênero humano, que se reconhece em suas diferenças e através delas se vincula.”

Ainda, segundo Galeano, “o melhor que o mundo tem está nos muitos mundos que o mundo contém, as diferentes músicas da vida, suas dores e cores: as mil e uma maneiras de viver e de falar, crer e criar, comer, trabalhar, dançar, brincar, amar, sofrer e festejar, que temos descoberto ao longo de milhares e milhares de anos. A igualação, que nos uniformiza e nos apalerma, não pode ser medida. Não há computador capaz de registrar os crimes cotidianos que a indústria da cultura de massas comete contra o arco-íris humano e o humano direito à identidade. Quem não tem, não é: quem não tem carro, não usa sapato de marca ou perfume importado, está fingindo existir. Economia de importação, cultura de impostação: no reino da tolice, estamos todos obrigados a embarcar no cruzeiro do consumo, que sulca as agitadas águas do mercado.”

A vida em comunidade, seja o modelo que for, é um respiro nessas águas agitadas. Recentemente, vi uma notícia que estão chegando ao Brasil as cohousings, que surgiram na Dinamarca nos anos 70 e hoje são comuns principalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. São condomínios com casas privativas, mas com espaços comunitários. Ainda se mantêm o modelo nuclear familiar, mas já avança para compartilhar a biblioteca, a horta, a oficina, a lavandaria, a brinquedoteca, o refeitório, a sala de TV e, em alguns casos, até os carros.

Na comunidade em que moro, além dos espaços em comum, as casas são divididas por amigos e não famílias. Os casais moram em casas separadas e se encontram quando querem ficar juntos realmente. Além do material, dividimos nossas emoções. Temos dois encontros semanais para limparmos e aprofundarmos as relações. Fazemos terapia e meditação coletivamente na nossa busca de autoconhecimento.

Mas o conceito de comunidade ainda hoje é controverso e suscita fantasias, como por exemplo a falta de privacidade e “liberdade”, palavra tão cara para o mercado. Nas periferias, a noção de cooperação e solidariedade é muito comum. Cresci numa vila de chão de terra e casas de madeira, onde vizinhos se ajudavam e se preocupavam uns com os outros. As crianças brincavam na rua e eram cuidadas e alimentadas pelas mães de todos. Quando preciso, mutirões aconteciam e ainda acontecem para construir o quarto pro novo filho ou neto. Ou seja, a visão de comunidade é bem mais ampla e tem uma significação transformadora.

No livro “O espírito comum”, Raquel Paiva apresenta a concepção de comunidade como um instrumento cultural. No prefácio, o professor Muniz Sodré explica que para a autora “comunidade não é um simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista da questão comunitária tem foros políticos, não na concepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.”

Raquel também aprofunda a perspectiva psicológica que comporta relações sociais que vão desde a amizade à intimidade pessoal, à comunicação ou comunhão de idéias. “Para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência. Ou seja, compartilhar o espaço, existir com o outro funda a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro.”

No capítulo “Inclinar-se para o outro”, dos que mais gosto, a professora recorda que está contida na proposta de clinámen, do pré-socrático Epicuro, a idéia de encontro, atualmente resgatada com frequência. “Segundo Epicuro, dois átomos estão em queda livre no espaço, e nesse percurso se encontram, chocando-se. O preciso instante do encontro, denominado clinámen por Epicuro, é por demais importante porque define a nova trajetória dos átomos, que passam a ter seus rumos alterados.”

O francês Jean-Luc Nancy, a propósito dessa imagem, argumenta que para fazer o mundo não bastam simplesmente os átomos. É necessário um clinámen. É necessário uma inclinação, uma pendência de um na direção do outro. A comunidade é o clinámen do indivíduo. “Isto porque ela é capaz de colocar os indivíduos, os sujeitos, que estariam encerrados em si mesmos, em relação. A comunidade representa a possibilidade, nesta compreensão, de resgate do que há de mais verdadeiro e natural no sujeito”, explica Raquel.

Che Guevara acreditava que a tarefa suprema e última da revolução era criar um homem/mulher novo, um homem/mulher comunista, negação dialética do indivíduo da sociedade capitalista, transformado em homem-mercadoria alienado, ou capaz de se tornar, um homem carniceiro. “O homem/mulher comunista deve ser, necessariamente, mais rico interiormente e mais responsável, ligado aos outros por um vínculo de solidariedade real, de fraternidade universal concreta, que se reconhece na sua obra e que, uma vez quebradas as correntes da alienação, atingirá a consciência plena do seu ser social, a sua total realização como criatura humana.”

Uma nova humanidade está em gestação. Apesar de muitos, amanhã vai ser outro dia.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/para-romper-a-masmorra-do-individualismo/)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Em quadrinhos, a desconcertante lógica do rolezinho (Ricardo Coimbra)

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Um jovem artista plástico capta e expõe, em tiras irreverentes, o que a maioria das análises sociológicas não conseguiu enxergar
Por Ricardo Coimbra
(para conhecer mais da obra do autor, clique aqui)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/01/16/em-quadrinhos-a-desconcertante-logica-do-rolezinho/)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Natal em Humaitá: “Matem os Índios um por um” (Alceu Castilho)

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Como ruralistas, madeireiros e comerciantes atiçaram a população contra indígenas num rincão amazônico, provocando destruição e instalando estado de apartheid
Reportagem de Alceu Castilho, em A Pública
Cena 1. Terra Indígena Tenharim, km 123 da Rodovia Transamazônica, sul do Amazonas. 27 de dezembro de 2013. De um lado da ponte sobre o Rio Marmelos, de Manicoré para Humaitá, centenas de homens, 50 deles armados. Do lado de Humaitá, 100 guerreiros da etnia Tenharim, 50 de cada lado da estrada. Também armados. Zelito Tenharim, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), está no grupo que liga do orelhão para o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a presidente da Funai também participam da conversa. E ouvem, ao fundo, os gritos da multidão. Todos ouvem a exigência do cacique Léo Tenharim: a Polícia Federal deve ser mandada para o local em meia hora, “senão vai ter derramamento de sangue”. Naquele momento, o grupo liderado por comerciantes, madeireiros e pecuaristas de Apuí e do distrito de Santo Antônio do Matupi avançava sobre a ponte e queimava os postos de pedágio em Terra Indígena. Quando chega a PF, dispersam. Os Tenharim assistem à cena. Os mais velhos somem para o meio da mata. “Quando viram aqueles homens de preto acharam que era o fim do mundo”, conta Zelito, rememorando o episódio. Mulheres e crianças também fogem. Nove ficam perdidos: três mães, com três crianças de colo, duas crianças de 2 anos e um menino de 10 anos, Laudinei Tenharim. Dias depois são resgatados, traumatizados, com febre e ferimentos. Na sexta-feira, 3 de janeiro, sete famílias ainda estavam no meio do mato.
Cena 2. Agência do Banco do Brasil de Humaitá. Primeiro dia útil de 2014. À frente do repórter da Pública, na fila de hora e meia para o caixa, dois pecuaristas, pai e filho, ambos de chapéu de palha. O pai com corrente de ouro na camiseta semiaberta, relógio de ouro, pulseira de ouro. Na ponta da corrente, Jesus Cristo. Chega um amigo e senta ao lado do pai. Eles conversam, sem se preocupar em baixar o tom de voz, sobre o assunto que domina a cidade naqueles dias: os indígenas, ou “índios”, como dizem. “Você pode matar uns dois ou três”, raciocina o amigo. “Mas cinquenta?” Ele continua: “Joga o carro em um, em outro, mas e aí?” Depois passam a falar de negócios. O pecuarista conta, com orgulho, que somente entre o Natal e o Ano Novo vendeu mil arrobas de boi. Em outro grupo, um comerciante, um amigo e um policial rodoviário federal. O comerciante conta que participou do confronto com a polícia, na noite de Natal. Mas recuou após o primeiro tiro de borracha. O policial observa que bala de borracha mata. O amigo expressa a teoria de que os americanos “mataram os índios deles e vêm aqui defender os nossos”. O comerciante acha que os incêndios ateados no fim do ano – em prédios e carros indígenas – valeram a pena. O amigo contesta: “Valia se eles não pisassem mais aqui em Humaitá”.
Cena 3. No dia do Natal, desde as 8 horas da manhã, um carro de som do Xexéu, dono da boate Xexelândia, passa conclamando os moradores a fazer protesto. Não se trata mais de exigir investigações policiais, como querem os parentes de Luciano Ferreira Freire, Stef Pinheiro e Aldeney Ribeiro Salvador, desaparecidos na região no dia 16 de dezembro; todos ali já elegeram “os índios” como culpados. A balsa que liga a Avenida Transamazônica à Rodovia Transamazônica, atravessando o Rio Madeira, é o ponto de encontro dos manifestantes desde a véspera, quando os moradores bloquearam o acesso à balsa. Comerciantes do município bancam pizza, cachorro-quente, transporte. Lá estão também os parentes dos desaparecidos. As mulheres passam mal: a mãe de Luciano, a mulher de Aldeney. Uma, com hipertensão. Outra, com princípio de infarto. No fim da tarde os manifestantes percorrem a cidade gritando: “Vamos queimar”. “Vamos queimar os carros dos índios”. As viaturas e ambulâncias deixam o local. Perto da balsa, Luzineide Freire, irmã de Luciano, se vê sozinha de repente. Contrária às depredações, ela ouve os gritos daqueles que estão ali perto, em frente da Funasa, queimando a Sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Depois, contaria: “Parecia filme”.
Cena 4. No dia 2 de janeiro, e somente naquela quinta-feira, as famílias de Luciano, Aldeney e Stef recebem um pedido dos policiais federais: eles querem roupas usadas dos desaparecidos para que os cachorros possam farejar as pistas. Dezoito dias após a notícia do sumiço. “Dezoito dias!”, exclama Luzineide Freire, irmã de Luciano. A avó de Luciano, que o criou, já tinha lavado quase tudo – por sorte uma camiseta do Corinthians escapou do tanque. “É um descaso total, uma lentidão muito grande”, diz a irmã. Os parentes sentem-se isolados, sem apoio. Luzineide e sua mãe saíram de Porto Velho com as roupas do corpo. E ficaram dependendo da ajuda de amigos. “A gente está a ver navios”, define ela. “E o dia não espera, passa rápido”.
Cena 5. O ano de 2014 começa e a entrada da sede da Funai, em Humaitá, continua sob escombros. Um funcionário trabalha como porteiro de ninguém, em meio aos vidros e pedaços de carro. À frente, os dez veículos da fundação destruídos, queimados no início da noite de Natal. Nas carrocerias, restaram apenas os botijões de gás para contar a história. Os vizinhos contam que o momento mais tenso foi quando houve explosões, em meio aos coquetéis molotov e os tanques de gasolina dos carros destruídos. “Não tinha como não chorar”, conta Claudinei, morador da casa ao lado. “Queriam invadir por aqui”, completa Maria, sua mulher, em pânico por causa das crianças. Ao lado da Funai, no estacionamento, uma voadeira e três motos: todas queimadas. Diante do cordão formado pelos policiais, os manifestantes atiravam pedras e rojões e jogavam as garrafas com gasolina nos carros. O comandante do 54º Batalhão de Infantaria da Selva mandou fechar os postos de combustível para deter os incêndios. Motoqueiros, porém, ofereciam o que tinha em seus tanques. Um caminhão-pipa do Exército estava por ali. “Mas não tinha como chegar”, lembra Claudinei. O prédio se salvou, mas os funcionários da Funai tiveram de fugir para Porto Velho. A perícia? A perícia ainda não foi feita. O local do crime ainda não foi isolado.
Cena 6. Na frente da sede da Funasa, em plena Avenida Transamazônica, uma Hilux queimada, continua no local. Na mesma noite de Natal, os incendiários saíram da sede da Funai e passaram na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai). Dona Nirla Belfort dos Santos, vizinha da Casai, conta que quase queimaram o imóvel.“Tinha um que dizia: ‘Toca fogo’”. Diante dos apelos dos vizinhos, desistiram. Mas seguiram adiante para incendiar a sede da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que fica no mesmo terreno da Funasa. O prédio está em ruínas. “Uma amiga ia fazer cirurgia, não pode”, conta Naiara Santos, de 24 anos, Tenharim. “Os exames foram queimados. Há pessoas com câncer, sem atendimento”. Ao fundo do terreno, mais três carros queimados. Perto do muro, um carro da Funasa com um vidro quebrado e uma inscrição na lateral, feita com o dedo na poeira: “Índio”. O local do crime também não foi isolado para perícia. Na orla, no Terminal Hidroviário de Humaitá, mais um alvo: o barco N/M Kagwahiwa, responsável pelo atendimento às comunidades ribeirinhas. Queimado.
Cena 7. Diante do caos, o comandante do 54º Batalhão de Infantaria da Selva, tenente-coronel Antonio Prado, decide abrigar os 115 indígenas – a maioria Tenharim – que estavam na cidade nesse período de Natal. O comandante recebe uma ligação de um general, que avisa: “Não toque em um fio de cabelo dos índios”. Manifestantes revoltam-se com a proteção dada pelo coronel. Querem capturar sua mulher. Para protegê-la, cem soldados do Exército vigiam a Vila Militar, onde moram as famílias dos militares. Ficam deitados no chão. Os moradores da vila ficam uma semana sem poder sair de casa. No quartel, uma das três Tenharim grávidas dá à luz, em pleno Natal.
Cena 8. Na véspera do Réveillon, o prefeito Dedei Lôbo cancela os festejos na orla do Rio Madeira, que forma, junto com a Avenida Transamazônica, o cinturão básico que delineia a cidade de Humaitá. Por mensagens pelo celular e pelo Facebook, os moradores articulam uma invasão: “Às 17 horas, queimar a prefeitura”. “A cidade todinha tava sabendo”, contam os humaitenses. Note-se que, neste caso, os fatos nada têm a ver com questão indígena. Os policiais rodam freneticamente pela cidade e vigiam as entradas. Em especial a que vem de Porto Velho e a que sai para a Transamazônica, por uma balsa. Na beira do Rio Madeira, no início da noite, a prefeitura não foi queimada, e os policiais ainda estão lá. Bem do lado do rio, uma pequena fogueira. Ao lado, uma placa: “Perigo. Alta tensão”.
Cena 9. Cerca de 500 pessoas, com a maioria absoluta de mulheres e muitas crianças, participam do ato anual pela paz em Humaitá, promovido pela igreja católica, no dia 1º de janeiro. Os locutores apresentam dados sobre violência e pedem justiça e eficiência nas investigações. “Queremos paz, não a guerra”, diz o locutor. “Queremos nossos maridos vivos”, “Queremos igualdade para todos”, ecoam as faixas na caminhada com a presença dos parentes dos desaparecidos. Ao lado da praça Dom Miguel D’Aversa, entre a Câmara Municipal e a Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, de frente para o Rio Madeira, o bispo Francisco Merkel faz o discurso final. “A ocupação da Amazônia teve mortes, estupros e muito sofrimento”, diz o bispo. Passado um tempo, veio “o pedágio, o confronto”. E dá o recado: “Não podemos fazer justiça. A justiça é um monopólio do Estado. O que temos é o direito de cobrar o Estado, a União, os estados, os municípios, o judiciário, a polícia, para que cumpram suas funções. O problema deste país é que não cumprimos as funções que nos competem. Um clima de injustiça não gera paz”.
Pública passou uma semana em Humaitá – uma cidade onde nem os Tenharim, nem os Parintintin, nem os Jihaui podem pisar, sob pena de serem espancados e mortos. Não apenas por comerciantes e pecuaristas, mas por moradores que, como eles, vivem na pobreza. Por trás dessas cenas de insurreição, detonada pela suspeita de que os indígenas seriam os responsáveis pelo desaparecimento dos três brancos, a Pública descobriu uma teia de conflitos e contradições que desembocou, primeiro, na culpabilização dos indígenas, antes de qualquer investigação séria – cobrada por eles e pelos parentes dos desaparecidos. Em segundo lugar, na violência. No rastro dessa desastrosa história em que a versão dos indígenas quase sempre é ignorada, deparou com diversos – e antagônicos – pontos de vista. Em todos eles há uma denúncia em comum: a omissão do Estado.
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Condenados pelo preconceito, indígenas vivem apartheid

Antonio Mendes Leal, o Seu Tonico, 67 anos, era amigo de Ivan Tenharim, o cacique de 45 anos que caiu da moto e morreu, no dia 3 de dezembro. Conhecia-o desde que ele tinha 15 anos. “Era um cara muito bom, nunca vi ninguém falar dele”. No hotel de Seu Tonico, na Rodovia Transamazônica, Ivan pagava R$ 30,00 para ficar com a família, no quarto com duas camas e armador de redes. Quando ia sozinho, o que era mais raro, pagava R$ 15,00.
Em geral o cacique ia uma vez por mês a Humaitá, para compras e para resolver documentação. Por exemplo, no cartório, para registrar nascimentos. A morte do cacique Ivan Tenharim foi um momento-chave nos conflitos do fim de ano. Parte dos indígenas levantou a hipótese de que não teria sido um acidente, o que foi repercutido pelo então coordenador da Funai na região, Ivã Bocchini, que seria exonerado no início de janeiro. Esse fato acabou sendo visto pela população de Humaitá como motivo – uma suposta vingança – para o desaparecimento dos três brancos. Bocchini e os outros funcionários da Funai tiveram de se refugiar em Porto Velho.
Seu Tonico chamava a mãe de Ivan Tenharim de comadre. “Ela gosta muito de mim”, ele conta. Diante dos acontecimentos do fim de ano, porém, recusa-se a receber novamente indígenas em seu hotel. “Prefiro perda total a tê-los aqui”. Ele atribui o desaparecimento dos três brancos aos indígenas e diz que os Tenharim eram bons “até o pedágio”, cobrado daqueles que atravessam a Terra Indígena. “Aí vieram os moleques para estudar aqui, beber, fumar droga”, diz. Ao lado do ex-vereador Cícero Pedro dos Santos, o Cição, conta histórias sucessivas de “abusos” em relação ao pedágio. Segundo ele, as outras etnias não causariam problema nenhum. “De toda maneira, sendo índio eu não quero aqui. Nunca”.
O pedágio se tornou central na narrativa sobre os Tenharim. Mesmo Dom Francisco Merkel, o bispo de Humaitá, considera a cobrança central para a origem do confronto. Difícil achar um morador favorável à cobrança do que os Tenharim definem como compensação. Um deles fez questão de entregar à reportagem um recibo de um Toyota, com carimbo dos indígenas. “Cem reais”, revolta-se. “Cem reais!” O madeireiro Nelson Vanazzi considera o frete da Transamazônica “o mais caro do Brasil”. “Os madeireiros do 180 estão a cada dia com mais prejuízo”, afirma.
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No momento, Humaitá vive um apartheid. Após ficarem presos no quartel, nos dias que seguiram ao Natal, os Tenharim voltaram antes do Ano Novo para a Terra Indígena. Não podem retornar a Humaitá, mesmo que trabalhem na prefeitura. Não podem comprar alimentos ou remédios. A hostilidade da maioria dos moradores ouvidos ocorre no plural, em relação a todos os indígenas, não apenas aos que acusam de algum crime.
 A dor dos parentes
Do lado dos parentes dos desaparecidos, mais dor. A casa da avó de um deles, o vendedor Luciano, virou uma espécie de QG dos parentes, em Humaitá. Lá estão a mãe e a irmã dele, Luzimar e Luzineide, de Porto Velho. E lá passam o dia outros parentes, como Célia Leal, mulher de Aldeney. O terceiro desaparecido, Stef, é de Apuí, um município vizinho.
Muito chocadas, as mulheres não falam muito. Ficam atentas às notícias e procuram dar força umas às outras. Com os boatos, se acostumaram. (Houve várias notícias falsas sobre o encontro de corpos esquartejados, “esquartejados vivos”, e assim por diante.)
Luzimar e Luzineide contam que só na quinta-feira, dia 2, receberam uma visita do prefeito. A pedido dos parentes. “Só hoje”, repetia Luzineide. Ele levou uma psicóloga e uma assistente social. Luzineide: “Hoje”. No mesmo dia em que a Polícia Federal foi pegar as roupas usadas para o trabalho dos cães. “Hoje”.
Luciano é descrito pelas duas como um homem tranquilo, caseiro. Ele fez 30 anos na véspera de Natal. A mãe mostra-se mais atordoada. E emocionada: “Meu coração diz que o filho está vivo”. Alguém fala dos índios. Ela reage balançando a cabeça e fazendo um barulho com os lábios: “Não posso nem ouvir a palavra índio, brrr”. Embora critique o que considera proteção excessiva aos indígenas, a irmã de Luciano, Luzineide se posiciona contra os protestos violentos – e incendiários – do fim de ano. “Morte não se paga com morte. Para isso tem a justiça. Quero que eles paguem. Só isso. O que queremos é paz”.
Célia aponta Aldeney, gerente da Eletrobrás, como um romântico, um namorado à moda antiga. “Homens choram de saudade dele, os cunhados choram”, conta Célia. Aldeney mora em Humaitá, mas tem casa no “180”, o distrito de Santo Antônio de Matupi, e todo fim de semana viaja para ficar com ela. Devota de Nossa Senhora Aparecida, Célia diz que conversa com Deus para ganhar força. Por isso, a passeata promovida pela Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, no dia 1º, lhe fez bem. “A gente se viu só”, diz.

“Tem que matar um por um”

Sobre a noite de Natal, parece haver um consenso em Humaitá: teriam matado os indígenas se eles estivessem na rua. “Tem de matar um por um”, afirmava uma motoqueira, no dia 30, em um bar perto da balsa. Também são muitos os que justificam os incêndios contra bens públicos relacionados aos indígenas. “Achei que foi bem empregado terem feito isso aí”, diz Seu Tonico, sobre os incêndios. “Moleques andavam tudo noiados aí, de carro novo”. Boa parte dos moradores de Humaitá se refere ao quebra-quebra com naturalidade, minimizando a violência. Para eles, se tratou de uma forma de “chamar a atenção” das autoridades.
Essa expressão foi uma das mais utilizadas no período em que a Pública esteve no município. Mais comum que ela, só as frases sobre os “privilégios e regalias” que seriam desfrutados pelos indígenas. Do discurso não fazem parte as muitas outras ilegalidades em que a região é pródiga: crimes ambientais, grilagem, matanças e perseguições.
Em um hotel lotado de policiais, a reportagem foi procurada por um indígena que acabara de ser expulso de casa. Não quis dar o nome, por segurança. “Queriam queimar minha casa”, contou. Esse Tenharim nunca morou na aldeia. E mesmo assim sofre retaliações. Na porta do hotel, de moto, um rapaz de camiseta branca nos encarava. Diante de um olhar interrogativo, saiu, deu uma volta. Dali a pouco passava novamente. E nos olhava com ódio.
Mesmo entre os que pensam de outra forma, os preconceitos contra os indígenas se revelam facilmente. “Se não deixarem voltar [para Humaitá] é uma ignorância”, afirma Raimundo Nonato do Nascimento, vizinho da sede da Funai. Em seguida, acrescenta que conhece “índios que trabalham”, reproduzindo o discurso da “preguiça”, que estigmatiza os indígenas.
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Em terra tenharim, o clamor é por investigação policial

Um dos únicos a não fazer nenhum senão em relação aos indígenas foi o taxista que levou a reportagem à Terra Indígena Tenharim Marmelos. “Estão no direito deles”, repetiu várias vezes durante o percurso. Ali, a Públicafoi recebida por um grupo de 20 indígenas, na manhã da quinta-feira, dia 3 de janeiro.
Ao ouvirem do repórter as declarações de Seu Tonico, de que não aceitará mais indígenas em seu hotel, os Tenharim ficaram em silêncio. Com os olhares fixos, chocados. Aquele era o lugar onde eles ficavam em Humaitá. Não disfarçaram a decepção e não souberam o que dizer. Mas falaram sobre os desaparecimentos, negando qualquer responsabilidade.
Mais do que isso: “Por que a Polícia Federal não abre outras linhas de investigação?”, perguntava o cacique Ivanildo Tenharim. Ao contrário dos moradores de Humaitá, que os acusam sem exigir provas, eles querem uma apuração mais ampla dos desaparecimentos. “A PF está focada na aldeia e não mexe com os principais”, dizem. “Com certeza quem fez isso está achando graça”.
Até o momento, nem imprensa nem a polícia aventam a possibilidade de outra linha de investigação. E os Tenharim apresentam outras hipóteses que mereceriam a atenção dos investigadores. Falam de homens suspeitos que utilizam a Rodovia do Estanho, que liga a Transamazônica a Machadinho D’Oeste, em Rondônia, e segue para o Mato Grosso. A rodovia começa logo após a Terra Indígena, no quilômetro 150 – muito perto de onde policiais localizaram um carro queimado que acreditam ser dos desaparecidos. “É uma via de concentração de fugitivos”, afirmam. Eles contam que esses homens teriam uma base em Santo Antônio do Matupi, no distrito de Manicoré, mais conhecido como “180” – já que fica nesse quilômetro da Transamazônica. Eles e muitas pessoas em Humaitá chamam o “180” de “vila dos sem-lei”. É a terra de madeireiros, dos pecuaristas, símbolo da fronteira agropecuária do sul do Amazonas.
Os Tenharim também reivindicam segurança na reserva; segurança para os indígenas que residem em Humaitá; segurança para quem vai temporariamente para a cidade; um Grupo de Trabalho que aja para solucionar o problema. Doze servidores precisam voltar ao trabalho – entre eles o próprio Ivanildo, coordenador de Educação Escolar Indígena de Humaitá. “Estamos preocupados com o trabalho, não com o emprego”, diz ele. “Temos prazos que podemos perder”.
Zelito Tenharim, funcionário da Funai, reivindica a liberação de recursos para que a Coordenação Regional do Madeira – cuja sede foi destruída no Natal – volte a funcionar. Ele exige a segurança dos funcionários públicos e dos indígenas. “Que priorizem esta situação que estamos passando”.
Também há pessoas em tratamento que precisam ir ao médico todo mês. Caso dos hipertensos, como a mãe de Domá Tenharim. “Não tem ninguém para medir a pressão dela”, diz ele. Os indígenas estão usando medicamentos tradicionais, “mas o efeito é muito lento”. Mesmo antes dos atentados aos prédios faltavam medicamentos, principalmente de média e alta complexidade. Por isso, em relação aos casos mais complexos, os Tenharim já resolveram: querem ser atendidos apenas em Porto Velho.
O cacique Aurélio Tenharim faz questão de assinalar que não é por medo que estão deixando de ir a Humaitá. “Estamos dando um tempo. A gente não quer confronto nem tragédia”. Por isso eles pedem que os órgãos que trabalham com a população indígena atendam na aldeia.
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Pedágio ou compensação ambiental?

Ivanildo conta que a Secretaria Especial de Saúde Indígena fez um levantamento, antes da destruição de sua sede, e constatou que há muita desnutrição, entre crianças e idosos. No dia da visita da reportagem à aldeia as crianças comiam milho e mandioca. Dias depois Aurélio disse que já tinha acabado a carne de caça e pesca.
Das 14 escolas, só duas são de alvenaria. Três são de madeira. O resto funciona em casas, cedidas pela comunidade. Estudante de Pedagogia na Universidade Federal do Amazonas, Ivanildo quer a produção de material didático específico. Mas são necessários técnicos. “Hoje os indígenas que têm escolaridade conseguem por esforço individual, não por apoio do governo”.
Diante desse quadro de abandono, os indígenas tomam suas próprias providências como a cobrança do “pedágio”, que consideram um termo inadequado. “Para nós é cobrança de compensação pelo usufruto da TI Tenharim”, define o cacique Aurélio Tenharim. Ele diz que a cobrança, distribuída por todas as famílias, não veio para enriquecê-los, mas para mitigar os problemas trazidos pela Transamazônica: “Ela trouxe matança, doença, prostituição, escravos, invasão; é um imposto ambiental e social”.
Segundo ele, um levantamento do impacto social desde a abertura da rodovia foi feito e entregue pelos Tenharim ao Ministério Público Federal no Amazonas e à Funai. “Está documentado que isso foi analisado e proposto para o governo. Não tivemos resposta”, conta.
Os Tenharim já anunciaram que vão reconstruir os postos e recomeçar as cobranças em fevereiro. Enquanto isso, em Humaitá, o comerciante Fernando Pereira de Maria afirma que se o governo não tirar o pedágio vai ter de manter policiamento. “Senão vai ter enfrentamento”, afirma. Fernando é dono do restaurante Na Brasa, na avenida Transamazônica, um dos únicos da cidade. Como tal, acaba reunindo personagens centrais dos conflitos em Humaitá. Por ali costumavam comer Luciano, Aldeney e Stef, os três desaparecidos. E também o cacique Ivan Tenharim.

Dando nomes aos bois

Os Tenharim dão nomes aos que incitaram a violência em Humaitá. Comerciantes, madeireiros, políticos. Entre eles Adimilson Nogueira (DEM), prefeito de Apuí, o vice-prefeito de Humaitá, Herivânio Freitas (PTN), e três vereadores de Humaitá, Manicoré e Apuí. Entre os empresários, mencionam donos de supermercado e donos de hotéis. No caso do 180, a “vila dos sem-lei”, os Tenharim apontam Eduardo Gervásio, líder dos produtores rurais. “Ele chamou a população do 180 para invadir a aldeia”, denunciam. “O pessoal já vinha anunciando há dois dias que ia queimar”, conta Zelito Tenharim. De imediato a gente ligou para a presidência (da Funai). Mas a proteção demorou muito. Pensamos: será que isso vai acontecer mesmo? E deu no que deu”.
Zelito e Aurélio Tenharim contam detalhes sobre a ligação para o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, e sobre conversa telefônica naquele dia 27 de dezembro, com a participação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati. “Todos eles ouviram o cacique Léo dizer: ‘Se as autoridades não se posicionarem, vai haver derramamento de sangue”.
A primeira a ser contatada, naquele dia, foi a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que funciona durante 24 horas. Os manifestantes, vindos de Santo Antônio do Matupi e de Apuí, chegaram às 10 horas do dia 27. “As casas pegavam fogo e o povo gritava na estrada”, relatam. Os guerreiros receberam a seguinte instrução: “Não atirem enquanto eles não atirarem”. Ninguém atirou.
Os indígenas observam que são chamados de bandidos e sequestradores pelos brancos de Humaitá, “mas em nenhum momento, mesmo eles invadindo patrimônio público utilizado pelos indígenas, a gente revidou”. E destacam: “Apenas ficamos na aldeia. Porque a gente tem controle da comunidade”.
As fotos reunidas pelos Tenharim da destruição da sede da Funai mostram pessoas mascaradas, ou com o rosto coberto por capacetes. Segundo os indígenas, são principalmente jagunços, contratados pelos comerciantes e fazendeiros. Também dizem que os donos de supermercado deram R$ 1.000 para cada um dos homens que lideraram os incêndios em Humaitá. “Eles que fizeram aquele estrago na Funai, no Sesai, no barco e aqui na estrada”, afirmam. “O resto da população ficava assistindo, fazendo número”.
Aurélio Tenharim é incisivo a respeito: “Foram contratados. Não é uma versão, são fatos”. Eles dizem que ficaram sabendo do pagamento aos jagunços por uma pessoa que foi chamada para fazer o serviço e se recusou. “Quase foi linchado por isso”, contam os Tenharim. “E o pessoal que gosta de indígenas contou que viram arrecadar”.
Um nome desponta como um dos mais mencionados entre os que incitaram a violência: o empresário conhecido como Neguinho dos Cachorros, dono de açougue e dono da Agroboi. A reportagem o procurou na Agroboi, em Santo Antônio do Matupi, mas ele não estava.
Na cidade, a versão é a de que não havia ninguém de fora durante os incêndios, que eram pessoas de Humaitá, conhecidas. Os Tenharim também apontam um segurança de banco entre os agressores. Uma foto mostra esse homem sendo imobilizado pela polícia. A Polícia Federal também investiga os líderes da rebelião. Ao contrário da investigação sobre os desaparecimentos, ela está sendo feita em silêncio. Até agora não chegou aos jornais.
Macondo é aqui
Em meio a fatos concretos, como o pedágio, e o desaparecimento de três pessoas, Humaitá virou uma espécie de Macondo, em meio ao milagre da multiplicação de boatos. A cidade imaginária do colombiano Gabriel García Márquez move-se a partir do fatalismo.
Como ninguém aventa a possibilidade de que não tenham sido os indígenas os responsáveis pelos três desaparecimentos, eles são retratados como vilões. E os moradores repetem as mesmas frases, as mesmas histórias sobre eles. Que andam de Hilux. Que são ricos. Que não pegam fila de banco nem de hospital. Que queimam todos os corpos das pessoas que matam.
O boato mais popular era o dos pajés. Que um pajé tinha informado que um carro preto atropelara Ivan Tenharim. E por isso os Tenharim tinham matado as pessoas do primeiro carro preto que viram. O repórter comenta com a advogada Altanira Ulchoa, amiga dos parentes dos desaparecidos, que não há pajés entre eles. Ela retruca: “Têm pajés, sim. O Seu Ramos disse que tem pajé lá e que se chama Sadam”. Ela fala com ênfase, arregalando os olhos. E não está brincando: realmente acredita que haveria um pajé chamado Sadam.
Aos boatos se soma a desinformação. E um sentimento de inveja em relação ao que seriam “privilégios” e “regalias” dos indígenas. As duas palavras são muito citadas. Na saída de um cartório, um ex-advogado da prefeitura fez questão de falar das tais regalias: “usam brinquinhos, caminhonetes”. “Se misturaram muito”. Outro morador criticou o uso de piercing.Uma crítica muito recorrente é ao fato de eles dizerem, segundo os brancos, que “são federais”. Ou seja, que só a Polícia Federal poderia prendê-los.
Os Tenharim respondem com um misto de indignação e sarcasmo a algumas das acusações. “Onde é que tem um Hilux?”, perguntava Aurélio Tenharim na sexta-feira, 3 de janeiro. Ele teve uma Saveiro queimada. “Os índios que possuem carro têm porque trabalham com eles. Um dos Tenharim mostrou a casa sem cobertura. “Não tenho dinheiro para comprar um Eternit, imagina Hilux”, disse Moisés Tenharim.
Em setembro, o procurador Julio José Araujo Junior, do Ministério Público Federal, informava sobre as “péssimas condições de conservação” da Casa de Saúde Indígena, “oferecendo riscos de contaminação e desconforto aos pacientes em tratamento”, sendo urgente nova estrutura de acomodação “para garantir condições dignas de internação e eficiência nos tratamentos”. O mesmo Ministério Público proibiu, após o Natal, a veiculação de conteúdo racista nos sites e blogs da região. Eles se tornaram uma central de boatos – e de propagação do ódio contra indígenas. No limite da incitação à violência.
Na sede da rádio comunitária, a FM 104, comandada pelo madeireiro Nelson Vanazzi, a Polícia Federal entrou e inquiriu o locutor. Para a indignação de Vanazzi, que acusou os policiais de truculência.
A SEGUNDA PARTE DESTA REPORTAGEM SERÁ PUBLICADA AMANHÃ

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/natal-em-humaita-matem-os-indios/)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A arrogância dos ignorantes virtuais (Marília Mosckovich)

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Redes sociais são vítimas de uma praga: o palpitiero preguiçoso, que diz tolices sem pesquisa alguma – e é aplaudido por seus pares
Por Marília Mosckovich, na coluna Mulher Alternativa
Imaginem a seguinte cena: uma pessoa que se formou, digamos, em administração de empresas, mas já foi ao médico muitas vezes na vida. Numa mesa de debate, à sua frente, médicos e agentes de saúde pública discutem a forma como certo vírus é transmitido para populações distintas. O administrador se levanta e, gentilmente, faz uma colocação:
- Os senhores me perdoem, não sou médico, claro, mas também não concordo com isso que estão dizendo.
Os médicos e agentes se entreolham e pergunta ao administrador com o que ele não concorda.
- Ora, está claro pra mim que o vírus é transmitido mais frequentemente para populações brancas. Eu sou branco e conheço muitas pessoas brancas, e várias delas tiveram esse vírus.
Os números apresentados pelos agentes de saúde pública nos cinco minutos anteriores à colocação do administrador mostram o oposto: devido a certas condições de moradia em comunidades negras, o tal vírus era mesmo mais frequente entre pessoas negras. Os agentes pacientemente explicam os números novamente ao administrador, que se levanta e, saindo da sala, grita:
- Ditadores! Vocês não sabem dialogar! Vocês só querem ouvir quem concorda com vocês!
* * *
A cena que descrevi acima é frequente em praticamente qualquer debate político, especialmente na internet, em que as pessoas parecem mais confortáveis com a própria ignorância, sobretudo quando ela rende reações positivas de leitores. Quer dizer, na internet é muito fácil encontrarmos quem pensa exatamente como pensamos, e isso dá uma sensação (falsa) de que o que pensamos realmente deve ser verdade. A experiência pessoal, individual, sem qualquer reflexão ou informação crítica sobre ela, é reivindicada por grande parte das pessoas como um dado. Como se devesse, de fato, ser tratada da mesma maneira que um dado ou informação construídos por meio de anos ou décadas de trabalho de pesquisa, investigação, etc.
No caso dos debates que estão ligado a áreas técnicas – meio ambiente, saúde, saúde pública, etc. – essas atitudes parecem ser menos comuns, embora ocorram. Quando se trata de debates sobre política, cultura, sociedade, porém, a coisa é ainda mais feia. Troquem a cena descrita acima por um debate sobre a questão indígena, com antropólogos e lideranças indígenas discutindo e um mergulhador que não tem qualquer formação ou experiência na área fazendo a colocação. Parece familiar?
Enquanto socióloga, encontro embates desse tipo todo o tempo, seja na discussão política de esquerda, seja no feminismo. Ser feminista ou ser de esquerda realmente não é difícil. Basta propósito e ações comuns. Nos identificamos com elas, acompanhamos debates, nos envolvemos de várias maneiras – todas válidas. No entanto, se desejamos crescer como movimento ou como ativistas, é preciso mais do que meia dúzia de textos de internet (ainda que textos de internet sejam, sim, um excelente começo).
Tanto o pensamento feminista quanto o pensamento de esquerda são recheados de conflitos e contradições internas, claro. A diferença é que, ao ler autores que dedicaram décadas e formular explicações, investigar questões empíricas, filosóficas ou teóricas sobre o assunto que nos interessa, não estamos lendo uma discussão de comentários em Facebook. Estamos lendo um debate construído sobre dados e pensamentos consolidados, que não se baseiam em experiência pessoal, individual ou em “opinião”. Esses textos, ainda por cima, costumam nos situar em relação aos posicionamentos que tomamos: de onde vêm certas percepções e posições que temos, enquanto militantes e ativistas, sobre a causa, as estratégias, o mundo? Já dizia Marx: somos seres tributários de nossa história. Enquanto militantes não é diferente.
Ao mesmo tempo é importante avisar aos navegantes dessa onda que ninguém, mas ninguém mesmo, tem a obrigação de ser professor particular voluntário e te explicar o pensamento de autores, as teorias, os conceitos e os textos que talvez se esteja com preguiça de ler. A informação hoje está disponível com muita facilidade; com poucos segundos de Google Acadêmico é possível encontrar textos, boas análises sobre eles, apresentações de autores, entre outros. É só se dar o trabalho de procurar, ler e conversar com outras pessoas sobre aquilo. Assim crescemos.
Para facilitar esse caminho das pedras – de encontrar leituras, compreender a relação entre elas, conhecer autores e discutir com quem também está lendo ou leu aquele material – há alguns sites e cursos, online e presenciais, que se propõem a fazer esse tipo de introdução (sem falar em coleçõezinhas que várias editoras têm, apresentando autores, temas ou perspectivas teóricas de diversas áreas das ciências humanas e sociais). A Universidade Livre Feminista, ou o Arquivo Marxista da Internet.
Foi justamente com esse propósito também que criei, no finzinho de 2013, alguns cursos introdutórios sobre feminismo – e gostaria de convidar brevemente as leitoras e leitores a conhecê-los. Neste mês de janeiro, em São Paulo, haverá quatro encontros temáticos para quem quer saber um pouquinho mais sobre feminismo antes de entrar em leituras e estudos. Um beabá geral, para o qual vocês podem se inscrever aqui. Em fevereiro, na modalidade à distância, ofereço um curso de teoria de gênero (saiba mais e se inscreva, aqui). Além de tudo isso, pra quem já conhece um pouco de feminismo e deseja aprofundar seus estudos de maneira constante, lendo de debatendo com outr@s interessad@s, comecei um grupo de estudos permanente, online (veja aqui).
Essa é minha maneira de responder a uma necessidade que aparece em quase todo debate. Há sempre muita gente que não está interessada, claro, e sempre haverá. Mas também há muita gente que se perde em meio a tanta informação disponível (afinal, buscar no Google não é sempre algo fácil de óbvio como eu mesma fiz supor ainda há pouco) – e que realmente deseja estudar e entender a coisa de forma mais estruturada.
Aproveitemos o ânimo de ano-novo para pensarmos, em 2014, um ciberativismo feminista novo: com um debate menos baseado em desafetos pessoais, experiências individuais e achismos, e mais baseado no que existe de conhecimento feminista acumulado sobre o mundo (e não é pouco!). No ano que passou conseguimos atenção e ampliação da participação online sobre uma série de questões caras a nossas lutas. Agora temos a opotunidade única de promover um crescimento qualitativo do nosso movimento!
Seja mais que bem-vindo, 2014. Meu otimismo me diz que será um ano bom para o feminismo na internet (e, espero, fora dela também).
Um feliz ano, feministas de todo o mundo!

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/a-arrogancia-dos-ignorantes-virtuais/)
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