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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Quando a catástrofe climática vira produto financeiro (Razmig Keucheyan)

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Superfuracão Hayian, 2013, Filipinas: 5 mil mortos, 1,5 milhão de desabrigados e mais lenha na fornalha das finanças globais


“Derivativos climáticos”, “obrigações de catástrofe”, “bolsa de troca de riscos”… Em torno dos novos desastres naturais surge universo de oportunidades e acumulação

Por Razmig Keucheyan*, no Le Monde Diplomatique

Em novembro de 2013, o “supertufão” Haiyan atingiu o arquipélago das Filipinas: mais de 6 mil mortos, 1,5 milhão de lares destruídos ou danificados, US$ 13 bilhões de danos materiais. Três meses depois, duas corretoras privadas de seguros, Munich Re e Willis Re, acompanhadas por representantes da Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), apresentavam aos senadores filipinos um novo produto financeiro desenvolvido para cobrir eventuais déficits do Estado em termos de gestão de desastres climáticos: o Philippines Risk and Insurance Scheme for Municipalities (Prism), um tipo de título com altos rendimentos que os municípios ofereceriam, em caso de catástrofe, a investidores privados [1]. Estes últimos se beneficiariam de taxas de juros vantajosas subsidiadas pelo Estado, mas, caso houvesse sinistro de uma força ou desastre predefinidos, perderiam seus investimentos.

“Derivativos climáticos” (weather derivatives), “obrigações de catástrofe” (catastrophe bonds) e outros produtos de seguro climático fazem muito sucesso. Além dos países asiáticos, o México, a Turquia, o Chile e até mesmo o estado norte-americano do Alabama, duramente afetado pelo furacão Katrina em 2005, recorreram a eles de uma forma ou de outra. Para os promotores desses instrumentos, trata-se de confiar ao mercado financeiro os seguros de riscos naturais, inclusive os prêmios; avaliações de ameaças e ressarcimento das vítimas. Mas por que o mercado financeiro cobre danos causados pela natureza justamente agora, que ela mostra sinais cada vez mais claros de desgaste?

Durante muitos séculos, a Terra forneceu ao sistema econômico matérias-primas e recursos naturais a preços baixos. O ecossistema também conseguia absorver os dejetos da produção industrial. Mas essas duas funções não se realizam mais tão facilmente. Não só o preço das matérias-primas e da gestão de dejetos aumenta, como a multiplicação e o agravamento dos desastres naturais fazem subir o custo global dos seguros. Isso exerce uma pressão para diminuir as taxas de lucro dos atores industriais. Desse modo, a crise ecológica não é apenas o reflexo, mas também a provável causadora de uma crise do capitalismo.

Nesse contexto, a “financeirização” parece oferecer uma escapatória: as companhias de seguros e de resseguros (ver boxe) colocam em jogo novas formas de dissipar o risco, das quais a principal é a titularização de riscos climáticos − uma transposição para a esfera meteorológica dos mecanismos testados com o sucesso que conhecemos no sistema imobiliário americano…

Entre os produtos mais fascinantes desse novo arsenal financeiro está o cat bond, diminutivo de catastrophe bond, ou seja “obrigação de catástrofe”. Uma obrigação é um título de crédito ou uma fração de dívida liquidável em um mercado, e sujeita a uma cotação. A particularidade dos cat bonds é que eles não surgem de uma dívida contraída por um Estado para renovar suas infraestruturas ou por uma empresa para financiar sua inovação, e sim da natureza e seus perigos. Eles abrangem uma eventualidade que pode ocorrer, mas sem certeza; sabe-se apenas que ocasionará desgastes materiais e humanos importantes.

A partir daí, trata-se de dispersar os riscos naturais no espaço e no tempo, tornando-os financeiramente insensíveis. Conforme os mercados se desdobram em escala mundial, esses riscos ficam em evidência máxima.

Esse prodígio da engenharia financeira nasceu em 1994, logo após uma série de desastres com custos fora do normal (o furacão Andrews na Flórida em 1992, o terremoto de Northridge na Califórnia em 1994) obrigar a indústria de seguros a encontrar novos recursos. Desde então, foram emitidos cerca de duzentos cat bonds, 27 apenas em 2007, totalizando US$ 14 bilhões.

Furacão no Caribe vs. tsunami na Ásia

Como todo título financeiro, as obrigações climáticas têm de se submeter ao crivo das agências de classificação de risco – Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s –, que geralmente dão a eles a medíocre nota BB, o que significa que eles possuem risco. O valor de um cat bond flutua no mercado em função da maior ou menor probabilidade de que a ameaça venha a acontecer e em função da oferta e procura do título em questão. Acontece que esses títulos continuam circulando quando uma catástrofe se aproxima e mesmo durante seu desenrolar; por exemplo, durante uma onda de calor na Europa ou de um furacão na Flórida. É o que os traders especialistas chamam de live cat bond trading – comércio ao vivo de títulos [2], o que faz sentido em razão de sua composição característica.

Uma bolsa de valores de títulos chamada Catastrophe Risk Exchange (Catex), localizada em Nova Jersey, surgiu em 1995. Um investidor excessivamente exposto aos tremores de terra californianos poderá diversificar seu portfólio trocando seus cat bonds por outros de furacões no Caribe ou de tsunamis no Oceano Índico. A Catex também serve para fornecer base de dados a seus clientes, permitindo a avaliação de riscos.

Protagonistas do dispositivo, as agências de modelização se rendem ao catastrophe modeling, ou seja, à modelização das catástrofes. Seu objetivo é calcular a natureza e reduzir quanto for possível a incerteza. Existe um pequeno número de agências de modelização de negócios no mundo, a maioria delas norte-americana: Applied Insurance Research (AIR), Eqecat e Risk Management Solutions (RMS). Em função de variáveis como velocidade dos ventos, tamanho dos ciclones, temperaturas e características físicas da zona em questão (material utilizado na construção, tipo de terreno, população), elas avaliam o custo de uma catástrofe, bem como as indenizações a serem pagas pelas seguradoras. E, consequentemente, determinam o preço do cat bond.

A maioria das obrigações desse tipo emitidas até hoje partiu de seguradoras e resseguradoras. Mas, desde meados dos anos 2000, os próprios países colocam no mercado cat bonds “soberanos” – da mesma forma que se fala em dívida soberana. Essa tendência, lançada pelos teóricos contemporâneos de seguros advindos da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, uma das escolas de comércio mais prestigiadas do mundo, é fortemente encorajada pelo Banco Mundial e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Esse deslocamento ilustra a ligação estreita que se estabelece entre a crise de orçamento dos países (endividamento e queda de suas receitas) e a crise ambiental. Por causa da dificuldade que atravessam, os países se mostram cada vez menos capazes de assumir o custo dos seguros contra desastres climáticos pelos meios convencionais, ou seja, principalmente por impostos. E essa incapacidade fica a cada dia mais evidenciada conforme aumentam o número e o poder dos cataclismos causados pelas mudanças climáticas. Para governos em apuros, a financeirização dos seguros de riscos climáticos representa um sopro de oxigênio: a titularização como substituto ao imposto e à solidariedade nacional. Esse é um ponto de fusão entre a crise ecológica e a financeira, como mostra o exemplo mexicano.

Furacões no Golfo do México, terremotos, deslocamentos de terra ou erupções do Popocateptl: o México parece cercado por ameaças “naturais”. Segurador em última instância em caso de catástrofes, o Estado indeniza as vítimas com o orçamento federal, ou seja, graças aos impostos, segundo o princípio da solidariedade nacional consubstancial ao Estado-nação moderno. Em 1996, o governo lançou o Fondo de Desastres Naturales (Fonden), destinado na época a fornecer ajuda de urgência aos sinistros e permitir a reconstrução das infraestruturas. Esse dispositivo funcionou até uma série de catástrofes com custo exorbitante se abater sobre o país. Em 2005, o governo federal gastou US$ 800 milhões para cobrir esses danos, quando só tinha… US$ 50 milhões para gastar. (3)

Critérios muito rigorosos

A ideia de titularizar o seguro de riscos de tremores de terra se concretizou no ano seguinte, com o incentivo do Banco Mundial. Em 2009, o país decidiu incluir no dispositivo os furacões, o que deu origem a um programa “multicat”, que cobria uma multiplicidade de riscos. Estavam presentes na mesa de negociações somente pessoas de alto gabarito: o ministro das Finanças do México, representantes da Goldman Sachs e da resseguradora Swiss Re Capital Markets, encarregados de vender o programa aos investidores. A Munich Re também estava presente, bem como dois grandes escritórios de advocacia norte-americanos, Cadwalader, Wickersham & Taft e White & Case. A Applied Insurance Research (AIR), agência de modelização encarregada de estabelecer os parâmetros para o lançamento da obrigação – o nível de gravidade no qual os investidores perderiam seu dinheiro –, elaborou dois modelos: um para os terremotos e outro para os furacões. Depois de estar registrado nas Ilhas Cayman pela Goldman Sachs e pela Swiss Re, o cat bond foi vendido aos investidores em turnês de promoção organizadas pelos bancos.

Cada vez que uma catástrofe abate o México, a agência AIR determina se o acontecimento corresponde aos parâmetros estabelecidos pelos contratantes. Se for o caso, os investidores devem colocar o dinheiro à disposição do Estado do México. Caso contrário, não gastam nada e continuam lucrando com o seguro.

Em abril de 2010, um terremoto arrasou o estado da Baja California, mas seu epicentro se encontrava ao norte da zona delimitada pelo cat bond. Resultado: o dinheiro da obrigação não foi liberado, e o México continuou pagando juros. Da mesma forma, quando um furacão atingiu o estado de Tamaulipas dois meses depois, sua força foi inferior ao nível predeterminado, e o México não viu a cor dos dólares. Os critérios são tão rigorosos que apenas três dos duzentos cat bonds emitidos em quinze anos foram acionados (The Economist, 5 out. 2013).

No Sudeste Asiático, região particularmente exposta, a introdução de cat bonds soberanos se opera segundo modalidades particulares [4]. Na Indonésia, maior país muçulmano do mundo, os princípios de seguros islâmicos, o takaful, se aplicam. Sem poder ignorar que o setor apresenta após uma década um crescimento anual de 25% (contra os 10% obtidos pelo mercado tradicional de seguros), a resseguradora Swiss Re se esforça para reforçar sua sharia credibility, segundo sua própria expressão [5]. Os países em desenvolvimento são com frequência os mais duramente afetados por catástrofes climáticas, tanto por razões geográficas como por não possuírem os mesmos meios de enfrentá-las que os países ocidentais. O aumento do nível do mar atinge tanto a Holanda como Bangladesh, mas é preferível enfrentar as ondas em Amsterdã a encará-las em Munshiganj. [6]

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As obrigações de catástrofe – ou, em outro gênero, os créditos de carbono – não são os únicos produtos financeiros ligados a processos naturais. Os derivativos climáticos, por exemplo, propõem aos investidores apostas em relação ao tempo que faz, ou seja, sobre as variações da meteorologia que não representem uma interrupção no curso normal da vida social. Desde eventos esportivos a colheitas, passando pelo granizo, concertos de rock e variações no preço do gás, bem como diversos outros aspectos das sociedades modernas são influenciados pelo tempo. Estima-se que um quarto da riqueza anual produzida pelos países desenvolvidos esteja suscetível a sofrer impactos em relação ao tempo.7 O princípio do derivativo climático é quase infantil: uma quantia financeira é liberada para o lucro de quem o adquiriu caso as temperaturas – ou algum outro parâmetro meteorológico – superem, ou não atinjam, um nível predeterminado; por exemplo, se o frio – e, portanto, os gastos com energia – excede certo nível ou se a chuva restringe a frequentação de um parque de diversões durante o verão.

No ramo agrícola, alguns derivativos têm como subjacente – o ativo real sobre o qual um instrumento financeiro versa – o tempo de germinação das plantas. Um índice como o “grau por dia de crescimento” (growing degree days) mede a diferença entre a temperatura média que uma plantação necessita para amadurecer e a temperatura real, ativando o pagamento de determinada quantia caso seja ultrapassado um nível estabelecido. Em caso de um swap (“troca”), duas empresas afetadas de maneira oposta pelas variações climáticas podem decidir se segurarem mutuamente. Se uma empresa de energia perde dinheiro em caso de inverno pouco rigoroso e o mesmo ocorre com uma empresa de eventos esportivos em caso de inverno muito rigoroso, elas se cobrem com um montante predeterminado conforme o termômetro sobe ou desce.8

Os ancestrais dos derivativos climáticos apareceram na agricultura no século XIX, principalmente nos Estados Unidos, no Chicago Board of Trade. Eles tratavam de matérias-primas como algodão e trigo.9 No momento da liberação e da aglutinação dos mercados financeiros, nos anos 1970, e da proliferação dos derivativos, os subjacentes potenciais se multiplicaram. Pioneiras nesse ramo, as multinacionais de energia, entre elas a Enron, encontraram nos derivativos um meio de “suavizar” seus riscos de perdas.10 Desse modo, após o inverno de 1998-1999, particularmente brando nos Estados Unidos por causa do fenômeno La Niña, algumas termelétricas decidiram utilizar os derivativos para se “cobrir” – para essas empresas, as flutuações de alguns graus implicavam variações financeiras colossais. A partir de 1999, os derivativos climáticos passaram a ser trocados no Chicago Mercantil Exchange, historicamente especializado em produtos agrícolas. O surgimento desses produtos financeiros está atrelado ao movimento de privatização dos serviços meteorológicos, principalmente nos países anglo-saxões: são eles que, em última instância, determinam o nível que precisa ser atingido para que um derivativo seja acionado.

Em um artigo intitulado “Pourquoi l’environnement a besoin de la haute finance” [Por que o meio ambiente precisa da alta finança], três teóricos de seguros sugerem atualmente a implantação do species swap, um tipo de derivativo que trata do desaparecimento de espécies.11 A interpenetração das finanças e da natureza assume aí uma de suas formas mais radicais: tornar a preservação das espécies rentável para as empresas, a fim de incentivá-las a tomar conta da biodiversidade. Na verdade, essa missão custosa cabe hoje ao Estado, cujos cofres estão cada dia mais vazios. Ainda nesse tema, o aumento da crise fiscal justifica a financeirização da natureza.

Imaginemos que o estado da Flórida assine um contrato de species swap com uma empresa, tendo como subjacente uma variedade de tartaruga ameaçada que vive nos arredores da contratante. Se o número de espécimes aumentar por causa da atenção dedicada pela empresa, o estado paga juros a esta; porém, se as tartarugas rarearem ou se aproximarem da extinção, é a empresa que tem de pagar ao estado, para que este possa iniciar uma operação de salvação.

As “hipotecas ambientais” (environmental mortgages) – tipo de subprime cujo subjacente não é um bem imobiliário, e sim uma parte do meio ambiente –, os títulos garantidos por florestas (forest backed securities) e ainda os mecanismos de compensação de zonas úmidas (wetlands), legalizados nos Estados Unidos pela administração do presidente George H. Bush durante os anos 1990, constituem outros exemplos de produtos financeiros desse tipo.

O capitalismo, segundo o teórico do ecossocialismo James O’Connor, implica “condições de produção”.12 À medida que se desenvolve, enfraquece e até destrói suas condições de produção. Se o petróleo barato permitiu durante mais de um século o funcionamento daquilo que Timothy Mitchell chama de “democracia do carbono”,13 sua escassez aumenta consideravelmente os custos da indústria. O capital precisa dessas condições de produção, mas não consegue evitar que, por sua ação, as fontes se esgotem. É o que O’Connor chama de “segunda contradição” do sistema: aquela entre o capital e a natureza, ao passo que a primeira opõe o capital e o trabalho.

Essas duas contradições se entrelaçam: o trabalho humano gera valor transformando a natureza. A primeira contradição conduz a uma baixa tendenciosa da taxa de lucro, ou seja, ao surgimento de crises profundas do sistema. A segunda induz a um encarecimento crescente da manutenção das condições de produção, que pesa igualmente na queda da taxa de lucro, pois volumes crescentes de capitais empregados nessa manutenção – por exemplo, para pesquisas de reservas de petróleo, cujo acesso está cada vez mais difícil – não são transformados em lucro.

Nessa configuração, o Estado moderno tem um papel de interface entre o capital e a natureza: ele regula o uso das condições de produção para que elas possam ser exploradas. O objetivo do ecossocialismo consiste em desfazer o tríptico formado pelo capitalismo, a natureza e o Estado. Trata-se de impedir este último de trabalhar a favor dos interesses do capital e reorientar sua ação a favor do bem-estar da população e da preservação do equilíbrio natural. A conferência Paris Climat 2015 (COP 21), na qual o governo do presidente François Hollande parece estar depositando grandes esperanças, oferecerá ao movimento global pela justiça climática uma chance de expressar essa reivindicação.

Listas negras

O seguro moderno é indissociável do resseguro – o “seguro das seguradoras” –, que o segue como sua sombra. Ele permite às seguradoras se prevenirem contra riscos que julgam importantes, por isso contratam um seguro para seguros. O mecanismo é o mesmo que no grau inferior: a seguradora paga um montante à resseguradora, que lhe pagará indenizações caso ocorra algum sinistro. Esse montante normalmente é reinvestido pela resseguradora em outros títulos financeiros, cujos lucros servem para reembolsar as seguradoras. Sendo assim, as resseguradoras ocupam desde o século XIX a vanguarda da finança internacional. O setor – hoje em dia dominado pelas companhias Munich Re (fundada em 1880) e Swiss Re (criada em 1863) – surgiu após incêndios que devastaram grandes cidades. Em 1842, Hamburgo ardeu em chamas; as seguradoras alemãs entraram em situação de calamidade, e assim nasceu o resseguro.

Diversos tipos de risco reviraram o setor recentemente: terrorismo, riscos tecnológicos e multiplicação de desastres naturais – principalmente por causa das mudanças climáticas – com custos cada vez mais elevados. A Swiss Re produz dados anuais bem completos, compilados em uma revista chamada Sigma, sobre a amplitude dos desastres humanos e seus danos materiais.1 Os números tratam principalmente dos bens assegurados, ou seja, dos totais que as seguradoras e resseguradoras pagaram a seus clientes. Nela é possível constatar que, nos países em desenvolvimento, apenas 3% dos bens perdidos são segurados, contra mais de 40% nos países desenvolvidos.2

Com US$ 75 bilhões, o furacão Katrina, que atingiu a região de Nova Orleans em 2005, é considerado até hoje o episódio mais custoso da história em danos segurados desde 1970 – época na qual esses dados começaram a ser compilados. A conta sobe para até US$ 150 bilhões se adicionarmos os bens não assegurados. Aparecem em seguida na lista o terremoto seguido de um tsunami no Japão em 2011 (US$ 35 bilhões) – que ocasionou a catástrofe nuclear de Fukushima –, o furacão Andrews de 1992 nos Estados Unidos (US$ 25 bilhões) e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 (US$ 24 bilhões); estes últimos foram os mais custosos na categoria que a Swiss Re chama de “técnicos”, ou seja, sem relação com um fenômeno natural.

Na França, em 2003, ano da onda de calor, o custo agregado dos cataclismos naturais passou de 2 bilhões de euros, um recorde para o país. Nos últimos vinte anos, o principal risco natural eram as inundações, seguidas pelas secas. Dos 25 desastres mais custosos no período entre 1970 e 2010, mais da metade ocorreu após 2001. O número de furacões de categoria 4 ou 5 dobrou em 35 anos (5 é a força máxima dos ventos).

Esse tipo de acontecimento pode ter um custo material elevado e um custo humano baixo, e vice-versa. Os mais mortíferos foram as tempestades e inundações causadas em 1970 pelo ciclone Bhola em Bangladesh (Paquistão Oriental na época) e no estado indiano de Bengala, que fez em torno de 300 mil vítimas. Em terceiro lugar está o tremor de terra no Haiti em 2010, com 222 mil mortos. A onda de calor e a seca europeia em 2003, que provocaram a morte de 35 mil pessoas, ficam em 12o segundo lugar na lista. Aliás, esse é o pior desastre na Europa, que ocupa com os Estados Unidos as mais altas posições do ranking de desastres mais custosos financeiramente. Isso comprova, se necessário, o impacto do desenvolvimento econômico sobre mortalidade nessas situações.

No ano de 2011 – último com números disponíveis –, a Swiss Re contabilizou 325 catástrofes, das quais 175 foram consideradas “naturais” e 150 “técnicas”. A essa segunda categoria, a resseguradora julgou sábio acrescentar… a Primavera Árabe. (R.K.)


*Razmig Keucheyan Conferencista de Sociologia da Universidade Paris-Sorbonne

Ilustração: Patricio Bisso

1 Imelda V. Abano, “Philippines mulls disaster risk insurance for local governments” [Filipinas refletem sobre seguros contra riscos de desastres com governos locais], Thomson Reuters Foundation, Londres, 22 jan. 2014.

2 Cenas burlescas foram descritas por Michael Lewis, “In nature’s casino” [No cassino da natureza], New York Times Magazine,26 ago. 2007.

3 Erwann Michel-Kerjan (org.), “Catastrophe financing for governments: learning from the 2009-2012 Multicat Program in Mexico” [Financiamento de catástrofes pelos governos: aprendendo com o Programa Multicat do México de 2009-2012], OECD Working Papers on Finance, Insurance and Private Pensions, n.9, Paris, 2011. Esse relatório serve de fonte para os dois próximos parágrafos.

4 “Advancing disaster risk financing and insurance in ASEAN countries. Framework and options for implementation” [Avançando sobre financiamento e seguros contra riscos de desastres nos países da Asean. Quadro e opções de aplicação], Banco Mundial, Washington, abr. 2012. Disponível em: .

5 Cf. “Insurance in the emerging markets: overview and prospects for Islamic insurance” [Seguros nos mercados emergentes: visão geral e prospecção para seguros islâmicos], Sigma, n.5, Zurique, 2008.

6 Ler Donatien Garnier, “Au Bangladesh, les premiers réfugiés climatiques” [Em Bangladesh, os primeiros refugiados climáticos], Le Monde Diplomatique, abr. 2007.

7 Frédéric Morlaye, Risk management et assurance [Gerenciamento de riscos e seguro],Economica,Paris, 2006.

8 Melinda Cooper, “Turbulent worlds: financial markets and environmental crisis” [Mundos turbulentos: mercado financeiro e crise ambiental], Theory, Culture & Society, n.27, Londres, 2010.

9 Para uma história desses produtos financeiros, cf. William Cronon, Nature’s metropolis. Chicago and the Great West [Metrópoles da natureza. Chicago e o Grande Oeste], WW Norton, Nova York, 1992, capítulo 3.

10 John E. Thornes, “An introduction to weather and climate derivatives” [Uma introdução para derivativos climáticos e de tempo], Weather, v.58, Reading (Reino Unido), maio 2003; Samuel Randalls, “Weather profits. Weather derivatives and the commercialization of meteorology” [Lucros sobre o clima. Derivativos climáticos e a comercialização da meteorologia], Social Studies of Science, n.40, Kingston, 2010.

11 Cf. James T. Mandel, C. Josh Donlan e Jonathan Armstrong, “A derivative approach to endangered species conservation” [Uma abordagem derivativa para a conservação de espécies ameaçadas], Frontiers in Ecology and the Environment, n.8, Washington, 2010.

12 James O’Connor, Natural causes. Essays in ecological marxism [Causas naturais. Ensaios sobre ecologia marxista], Guilford Press, Nova York, 1997.

13 Timothy Mitchell, Carbon democracy. Le pouvoir politique à l’ère du pétrole [Democracia do carbono. O poder político na era do petróleo], La Découverte, Paris, 2013.

14 Cf. e especialmente “Catastrophes naturelles et techniques en 2011” [Catástrofes naturais e técnicas em 2011], Sigma, n.2, Zurique, 2012. Os dados apresentados provêm desse exemplar.

15 Koko Warner et al., “Adaptation to climate change. Linking disaster risk reduction and insurance” [Adaptação às mudanças climáticas. Ligações entre redução de riscos de desastres e seguros], Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), 2009.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/quando-a-catastrofe-climatica-vira-produto-financeiro/)

Independências, o novo fantasma europeu (Conn Hallinan)

Barcelona, 2013: 1,5 milhão de pessoas nas ruas, pela independência da Catalunha. Esquerda cresce entre movimento, e reivindica fim das políticas de "austeridade"


Espanha, Grã-Bretanha, Itália e Bélgica podem se dividir. Quem reivindica autonomia. Por que movimento é respostas às políticas de “austeridade”

Por Conn Hallinan, do The Nation | Tradução: Antonio Martins

As famílias felizes são todas parecidas;
cada família infeliz o é à sua maneira”
Leon Tolstoi, Anna Karenina

A abertura do grande romance de amor e tragédia de Tolstoi poderia ser uma metáfora da Europa de hoje, onde “famílias infelizes” de catalães, escoceses, belgas, ucranianos e italianos consideram divorciar-se dos países de que são parte. E, em mais um caso em que a realidade imita a ficção, cada uma delas é infeliz à sua própria maneira.

Enquanto os Estados Unidos e seus aliados exasperam-se com o recente referendo na Crimeia, que separou a província da Ucrânia, os escoceses viverão uma consulta muito similar em 18 de setembro e os catalães gostariam muito de fazer o mesmo. Assim como os habitantes do Tirol do Sul e a população de língua flamenga do norte da Bélgica.

Na aparência, muitos destes movimentos de secessão sugerem que regiões ricas estão tentando “libertar-se” de outras mais pobres. Mas ainda que haja alguma verdade nisso, a fórmula é muito simplista. No norte da Bélgica, os flamengófonos, mais ricos, querem separar-se dos francófonos despreocupados do Sul, assim como os tiroleses gostariam de se separar da Itália meridional, castigada pela pobreza. Mas na Escócia, muito da luta tem a ver com a preservação do contrato social que os governos do “novo” Partido Trabalhista – agora conservador – e do Partido Conservador – de direita – desmantelaram sistematicamente. O caso da Catalunha, bem, é complicado.

As fronteiras europeias podem parecer imutáveis, mas certamente não o são. Foram deslocadas várias vezes – pela guerra, necessidades econômicas ou porque os poderosos desenharam linhas caprichosas que ignoram a história e a etnicidade. A Crimeia, conquistada por Catarina, a Grande, em 1783, foi arbitrariamente cedida à Ucrânia, em 1954. A Bélgica resultou de um congresso das potências europeias, em 1830. A Escócia, empobrecida, ligou-se à ria Inglaterra, em 1707. A Catalunha caiu diante dos exércitos espanhol e francês em 1714. E o Tirol do Sul foi um espólio da Primeira Guerra Mundial.

Em todos os casos, ruídos históricos, desenvolvimento injusto e tensões étnicas foram exacerbados por um crise econômica de longa duração. Nada como o desemprego e as políticas de “austeridade” para acender as fogueiras da secessão. Os dois movimentos separatistas mais fortes estão na Escócia e Catalunha – e são os que podem ter impacto mais profundo no resto da Europa.

As regiões são infelizes de diferentes maneiras.

Escócia

A Escócia sempre teve um partido nacionalista expressivo, embora marginal – mas foi dominada tradicionalmente pelo Partido Trabalhista britânico. Os Conservadores quase não existiam a norte do rio Tweed. Mas o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro Tony Blair adotou cortes de investimentos públicos e privatizações que marginalizaram muitos escoceses, obrigados a gastar mais com Saúde e Educação que o resto dos britânicos.

Quando o Partido Conservador ganhou as eleições, em 2010, seu orçamento de “austeridade” devastou a Educação, Saúde, os subsídios para Habitação e o Transporte. Os escoceses, irados, votaram no Partido Nacional Escocês (SNP), nas eleições de 2011 para o parlamento local. O SNP imediatamente propôs um plebiscito que indagará aos eleitores se querem revogar o Ato de União de 1707 e voltar a ser um país independente. Se a resposta for sim, o SNP propõe renacionalizar o correio e expulsar da Escócia os submarinos britânicos Trident, dotados de mísseis nucleares.

Levando em conta o petróleo do Mar do Norte, quase não há dúvidas de que uma Escócia independente seria viável. O país tem um PIB per capita mais alto que o da França e, além de petróleo, exporta bens industriais e uísque. A Escócia seria um dos 35 países com maiores receitas de exportação.

O governo britânico do Partido Conservador diz que, se a Escócia votar pela independência, não poderá mais utilizar a libra como moeda. Os escoceses dizem que se a ameaça for mantida, não assumirão mais responsabilidade por sua parcela na dívida pública britânica. Neste ponto, há um impasse.

Segundo os britânicos, e alguns tecnocratas em posições de poder na União Europeia (UE), uma Escócia independente não poderá permanecer integrada ao bloco europeu, mas isso pode ser um blefe. Primeiro, porque contrariaria precedentes históricos. Quando a Alemanha reunificou-se, em 1990, cerca de 20 milhões de habitantes do país oriental (a República Democrática Alemã) foram automaticamente reconhecidos como cidadãos da UE. Se 5,3 milhões de escoceses foram excluídos, será por ressentimento, não por política. De qualquer forma, como o Partido Conservador britânico planeja, em 2017, um referendo que poderia separar a Grã-Bretanha da União Europeia, Londres não está apostando todas as fichas numa postura de intransigência…

Se as eleições fossem hoje, os escoceses provavelmente optariam por permanecer no Reino Unido, mas as tendências estão mudando. A pesquisa mais recente indica que 40% votarão pela independência – um avanço de 3 pontos percentuais, em relação à sondagem anterior. A parcela dos eleitores contrária à independência caiu 2 pontos percentuais, e agora representa 45% do total. Há 15% de indecisos. Todos os residentes na Escócia com mais de 16 anos podem votar. Dada a formidável habilidade eleitoral de Alex Salmod, o primeiro-ministro da Escócia e líder do SNP, as perspectivas não são tranquilizadoras para o governo de Londres.

Catalunha

A Catalunha, situada no Nordeste da Espanha bem junto à fronteira com a França, foi sempre um motor da economia espanhola e uma região marcada por sensação de injustiça histórica. Conquistada pelos exércitos unidos da França e Espanha, na guerra de secessão espanhola (1701-1714), foi também derrotada na Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 39. Em 1940, os fascistas, triunfantes, suprimiram o uso do idioma catalão, reprimiram sua cultura e executaram o presidente da região, Lluis Companys – um ato pelo qual nenhum governo de Madri desculpou-se até hoje.

Após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, a Espanha buscou reconstruir sua democracia, sepultando as animosidades profundas engendradas pela Guerra Civil. Mas os mortos podem não permanecer enterrados para sempre, e cresce um movimento pela independência catalã.

Em 2006, a região conquistou autonomia considerável, mas ela foi revogada pelo Supremo Tribunal espanhol em 2010, para alegria do Partido Popular (PP, conservador), no poder. A decisão serviu de combustível para o movimento pela independência da Catalunha e em 2012 partidos separatistas chegaram ao poder.

O PP, do primeiro-ministro Mariano Rajoy, é uma preocupação permanente na Catalunha, cujo parlamento é dominado por diversos partidos independentistas. O maior deles é a Convergencia i Unio (CiU), do presidente provincial, Artur Mas. Porém, a Esquerra Republicana de Catalunya (ERC) dobrou, há pouco, sua representação legislativa.

Estes partidos divergem entre si. Muitos tendem a ser centristas ou conservadores, enquanto o ERC é de esquerda e se opõe às políticas de “austeridade” do PP – algumas das quais foram adotadas também pelo CiU. O centrismo deste partido é uma das razões pelas quais sua bancada caiu de 62 deputados para 50, nas eleições de 2012, enquanto a do ERC saltou de dez para 21.

A taxa oficial de desemprego na Espanha é de 25%, mas o índice é bem mais alto entre os jovens e nas regiões do Sul – e a esquerda parece disposta a ir à luta. Mais de 100 mil pessoas marcharam em Madri, no mês passado, exigindo o fim da “austeridade”.

Dizendo apoiar-se na Constituição de 1976, Rajoy recusa-se a permitir um referendo de independência, uma intransigência que alimentou a chama do movimento separatista. Em janeiro, o parlamento catalão votou, por 87 a 43, por realizar o referendo, e as pesquisas mostram uma maioria em favor da separação. Há seis meses, um milhão e meio de catalães marcharam em Barcelona pela independência.

De olho no eleitorado de direita, o PP também radicalizou e parece disposto a provocar os catalães. Quando a Catalunha proibiu as touradas, Madri aprovou uma lei que as considera herança cultural da nação. Os bascos podem arrecadar seus próprios impostos; os catalães, não.

Como a União Europeia reagiria a uma Catalunha independente? E o governo central de Madri faria algo para impedir o passo? É difícil imaginar o envolvimento do exército espanhol, embora o partido de Rajoy tenha entre seus fundadores um ex-ministro do governo franquista e a reivalidade entre Madri e Barcelona seja evidente.

Outras linhas de ruptura

Há outras linhas de ruptura na Europa.

A Bélgica poderá se dividir? A fissura entre os flamengófonos (no norte) e os francófonos (no sul) é tão profunda que foram necessários dezoito meses para formar um governo, após a última eleição. E se a pequena Bélgica rachar, ela dará origem a dois países, ou será engolida pela França e Holanda?

Na Itália, o Partido da Liberdade do Tirol do Sul reivindica um referendo de independência e uma fusão com a Áustria, embora a minúscula província, – chamada na Itália e Alto Adige – quase não tenha do quê se queixar. Ela retém 90% dos impostos que arrecada, e sua economia conseguiu evitar o pior da crise de 2008. Mas parte da população germano-austríaca ressente-se de cada centavo transferido a Roma e há um profundo preconceito contra os italianos – que constituem 25% dos habitantes – particularmente, os do Sul. Nesse sentido, o Partido da Liberdade não é muito diferente da Lega Norte, racista e elitista, que tem como base o Vale do Po.

É instrutivo assistir a um vídeo, no YouTube, sobre como as fronteiras da Europa mudaram, de 1519 a 2006 – um período de menos de 500 anos. O que julgamos eterno é efêmero. O continente europeu está novamente à deriva, tensionado por linhas de ruptura antigas e contemporâneas. A atitude de países como Espanha e a Grã-Bretanha, e de organizações como a União Europeia diante deste processo determinará seu caráter – se civilizado ou doloroso. Mas tentar interrompê-lo causará, muito provavelmente, apenas mais dor.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/capa/independencias-o-novo-fantasma-europeu/)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Os legados geopolíticos de 2013 (Roberto Savio)

Barack Obama, Vladimir Putin


Aprofunda-se declínio dos EUA e União Europeia. Primavera Árabe reflui. China amplia suas ambições. Persiste ameaça climática. Francisco reintroduz debate da desigualdade

Por Roberto Savio

No momento de esperança que o ano novo pode oferecer, seria útil examinar o legado que recebemos dos doze meses que terminam. Foi um ano cheio de acontecimentos: guerras, aumento da desigualdade social, sistemas financeiros sem controle social, decadência das instituições políticas e erosão da governança global.

Talvez nada haja de novo nisso, já que tais tendências nos acompanham há bastante tempo. No entanto, alguns acontecimentos têm impacto mais profundo e duradouro. Vamos apresentá-las brevemente, em forma de lista para recordar e conferir (mas não em ordem de magnitude)

1. O colapso da Primavera Árabe: O Egito e a Síria são suficientemente paradigmáticos para dissuadir outros países árabes a segui-los. Passará muito tempo antes que as lutas internas no amplo e diverso mundo do Islã possam ser resolvidas. O verdadeiro desafio, na região, é utilizar a modernidade como elemento de viabilidade. O golpe de Estado no Egito deu nova força aos radicais que não creem na democracia e nunca se saberá se a Irmandade Muçulmana poeria ter dirigido o país com eficácia, ou teria fracassado (o que é mais provável). Os estrangeiros não podem resolver este conflito, como mostra com clareza o exemplo da Síria – que se converteu em guerra de poder financiada por atores externos

2. Autossuficiência energética nos EUA: Em cinco anos, a exploração das areias betuminosas reduzirá as importações petrolíferas dos Estados Unidos à metade e, se esta tendência se estender, o país poderá chegar a ser autossuficiente em abastecimento de energia. O impacto no preço do petróleo é claro. Isso afetará a importância estratégica do mundo árabe e de países com petrodólares, como a Rússia. A indústria norte-americana receberá um forte impulso, enquanto diminuirá o incentivo para desenvolver energias renováveis em todo o planeta.

3. A impossibilidade de chegar a um acordo importante sobre mudança climática: O fracasso da última conferência sobre mudança climática na Polônia demonstrou que há pouca vontade política para chegar a um consenso global sobre a forma de abordar esta questão. No entanto, segundo a maioria dos cientistas que se dedicam ao estudo do clima, estamos nos aproximando rapidamente a um ponto de não-retorno, com a perspectiva de um dano irreversível no ecossistema global. Enquanto isso, investidores franceses estão comprando terras no sul da Inglaterra para plantar vinhedos. A Islândia é assediada por cada vez mais investidores (inclusive chineses), que querem explorar grandes extensões de terra, onde o cultivo está se tornando possível. Todas as nações estão se preparando para a exploração das reservas de minerais sob o gelo ártico, que, ao se derreter, abre novas vias para o transporte marítimo. Tudo isso demonstra que o mundo dos negócios, além de avaliar o cenário mais claramente que os governos, perde rapidamente qualquer noção de responsabilidade social.

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4. Declínio dos Estados Unidos: O presidente Barack Obama teve de cancelar sua participação na recente reunião de cúpula asiática, devido à crise orçamentária dos EUA. Mas o presidente russo, Vladimir Putin, participou e foi capaz de manobrar com êxito os acontecimentos na Síria. A concretização da reforma da saúde de Obama está ameaçada. Edward Snowden mostrou ao mundo que os EUA não respeitam seus próprios aliados. Enquanto isso, o Tea Party foi capaz de paralisar o governo norte-americano e levar o Partido Republicano a abraçar uma política de devastação do setor público. Gente em todo o mundo considera hoje os EUA um parceiro pouco confiável, em crise irreversível, com um presidente que pronuncia belas palavras, mas não é capaz de colocá-las em prática. Ninguém foi capaz de colocar o setor financeiro sob controle e os escândalos e multas gigantescas são uma realidade constante. Não há solução à vista na Palestina e os EUA enfrentam grandes dificuldades para se retirar do Afeganistão, enquanto o Iraque volta a mergulhar no caos. As negociações com o Irã dão forte impulso ao setor xiita radical no mundo islâmico. Os EUA foram, tradicionalmente, um país com grande capacidade de recuperação, mas seu futuro hoje não parece nada promissor.

5. Declínio europeu: O ano de 2013 marcou a falta de unidade na Europa e o ascenso definitivo da Alemanha nos assuntos europeus. Hoje, só a macroeconomia conta no continente. A Irlanda é elogiada como bom exemplo, depois de ter conseguido controlar seu déficit público. Mas o dano em seu tecido social pode ser dramático. O mesmo está ocorrendo com Portugal. A Grécia é um exemplo extremo. Os gregos perderam 20% de suas receitas e o desemprego subiu a 21% – no entanto, mais cortes estão sendo exigidos. Este texto não pretende analisar como a Alemanha foi favorecida por políticas que destroem outros países, sem nenhum laivo de solidariedade. Nas eleições europeias de 2014, é provável que uma grande parte dos cidadãos vote nos partidos anti-europeus que surgiram em quase todos os países, com a exceção da Espanha, já que o governo de Mariano Rajoy é suficientemente de direita para ocupar este espaço – como demonstram as leis sobre aborto e ordem pública. O debilitamento do Parlamento Europeu irá se estender por muito tempo, até que a Europa recupere algo de atrativo, que perdeu aos poucos diante de seus cidadãos.

6. Nacionalismo chinês: Em poucos meses, o novo presidente, Xi Jinping, assumiu uma autoridade sem precedentes desde as épocas de Mao e Deng. Está fomentando a ideia de um sonho chinês, para galvanizar a população sob sua liderança. Este movimento apoia-se na afirmação da China como uma potência que se impõe perante o mundo. Foram dados passos audazes para consolidar as reivindicações territoriais do país, o que abriu conflitos com a Coreia, Filipinas, Vietnã e Japão. Com o governo japonês controlado agora por políticos nacionalistas, muitos analistas consideram a possibilidade de uma terceira guerra mundial iniciada na Ásia. No século 16, a China reunia 50% do PIB mundial e há forte desejo, entre os chineses, de recuperar seu papel no mundo. O tratado de defesa entre o Japão e os Estados Unidos converte este conflito em algo potencialmente global.

7. As mudanças no Vaticano. A eleição do papa Francisco supôs uma mudança de rumos muito necessária na igreja católica. O Papa colocou novamente ênfase nos seres humanos, em oposição ao mercado. Empregou termos como “solidariedade”, “justiça social” e “marginalização”, que já haviam desaparecido do discurso político. O presidente Barack Obama o seguiu, em certo momento, com um discurso claro contra as crescentes desigualdades sociais nos EUA. Entretanto, segundo a London School of Economics, em vinte anos a Grã-Bretanha voltará ao nível de desigualdade dos tempos da rainha Vitória. O papa Francisco é o único que denunciou o desmantelamento de estado de bem-estar social surgido no pós-II Guerra. Confiemos em que sua exortação dialogue com a possível redação de um novo Das Kapital, em que os protagonistas não serão os trabalhadores, mas os jovens.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/os-legados-geopoliticos-de-2013/)
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