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domingo, 30 de março de 2014

Santa Catarina: por que Universidade Federal está ocupada (Caio Teixeira)

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Um relato da operação truculenta e ilegal da PF, que invadiu câmpus da UFSC, agrediu alunos, desrespeitou a reitoria e fez lembrar ditadura. Reitoria segue ocupada em protesto

No Crítica da Espécie

Quando tomei conhecimento da invasão da Universidade Federal de Santa Catarina terça-feira (25/3) por policiais federais não identificados, já imaginei o teor das notícias da mídia no dia seguinte tentando dividir os atores em os que são a favor da maconha e os contra. Afinal, uma das formas mais comuns de manipular informações é desviar o foco do principal para uma falsa polêmica e esta mídia é a mesma que apoiou o golpe militar em 64. Vamos reler os fatos.

Em primeiro lugar os policiais que iniciaram a ação, não se identificaram como tal, tampouco tinham ordem judicial para prender gente. Sem se identificar, não estão efetuando uma prisão, estão realizando sequestro exatamente como os que são lembrados às vésperas do aniversário de 50 anos da ditadura militar. Nem o carro em que estavam era identificado. São práticas típicas da polícia política da ditadura. Como saber se o estudante estava sendo preso ou sequestrado? Quem sabe até por narcotraficantes? Além do mais qualquer operação policial dentro de uma Universidade Federal deve ser comunicada à Reitoria antes e negociada de comum acordo. Ninguém pode invadir uma Universidade e sequestrar estudantes. Isto acontecia, repito, na ditadura quando tínhamos um Estado sem leis e os direitos individuais estavam suspensos.

E também vamos parar com o moralismo de tratar maconha como se fosse pior que drogas legais, tipo cigarro, que mata e ninguém se importa. É que o tabaco enche os cofres de multinacionais que o exploram diretamente e da indústria de medicamentos e equipamentos médicos usados para tratar da epidemia de câncer provocada por esta droga.

Polícia que não se identifica está agindo como bandido, fora da lei, e foi tratada como bandido pelos estudantes até descobrirem do que se tratava. Ouvi o tal delegado no rádio dizendo-se ofendido pela nota da Reitoria que repudia a invasão, chamando a reitora de irresponsável e acusando-a de querer transformar a UFSC numa “república de maconheiros”. Disse quase a mesma coisa no Jornal Nacional (está ficando famoso). Exatamente o mesmo discurso da imprensa comercial. Aqui vale uma observação. O delegado Cassiano é muito jovem, deve ter passado nesses últimos concursos que são disputados por uma nova categoria chamada de concurseiros.

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Nada posso afirmar do delegado pois não o conheço. Mas conheço muitos outros.  Estas pessoas são na maioria jovens que, tão logo recebem o diploma, se ocupam unicamente de estudar e viajar pelo Brasil fazendo concursos, em geral, às expensas da família já que, para tanta atividade, não é possível trabalhar. Um dia são aprovados e passam a ser um juiz, um procurador, um delegado, investidos de autoridade de Estado sem que tenham experimentado a vida real. Muitos desses conhecem o mundo pelas páginas da Veja, assinada pelos pais.  Quanto ao delegado, espera-se que o Ministro da Justiça e o Ministério Público Federal abram inquérito e processem este delegado  por desacato e total despreparo emocional para o exercício da função. A Polícia Federal há muito tempo é um órgão sério empenhado como poucos no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco e não merece ser julgada por atos despropositados e preconceituosos como este. Irresponsável ao extremo é o delegado que mandou lançar gás lacrimogênio e outros artefatos do gênero contra estudantes desarmados na hora da saída das crianças do Colégio Aplicação, que fica a uns cinquenta metros do Centro de Ciências Humanas onde se deu o triste episódio.

Li no jornal que o delegado está substituindo o superintendente – presumivelmente em férias. Dá a impressão de que aproveitou a ausência do titular e da momentânea investidura no Poder para buscar seu minuto de fama armando uma operação espetacular.  Para que? Para capturar os donos do tráfico? Não. Para vasculhar a praia de Jurerê Internacional, onde foram presos magnatas do tráfico há pouco tempo pela própria Polícia Federal? Não. Para pegar os traficantes que abastecem de crack os morros de Florianópolis? Também não. A operação desastrosa tinha por objetivo  pegar “perigosos” estudantes de Ciências Humanas que fumavam um baseado sem colocar em risco a vida de ninguém!Para isso o delegado foi responsável pela invasão de um campus universitário, cheio de jovens estudantes, por soldados armados! Ainda bem que os estudantes também estavam armados com suas câmeras. O vídeo abaixo mostra o poder de fogo de uma lente afiada.


A Polícia Federal não tinha nada mais importante para fazer? A sociedade brasileira espera muito mais dessa instituição. Espera que prenda os óbvios donos da droga apreendida no helicóptero dos Perrela. Espera uma operação para desvendar os casos de corrupção ambiental que saltam aos olhos de qualquer cidadão de Florianópolis. Espera que prenda o presidente da Assembléia Legislativa de SC, envolvido em crimes de colarinho branco. Ocorre que criminosos grandes são sempre protegidos pela mídia e tratados como vítimas quando investigados. Lembram do banqueiro Daniel Dantas que, preso por corrupção, com mandado judicial, tentou subornar o Delegado Federal? Para a mídia, o banqueiro foi vítima e o delegado, bandido. Talvez o estudante sequestrado, por portar alguns cigarros de maconha, seja a chave para desbaratar uma quadrilha internacional de tráfico de drogas! Uau! Não sejam ridículos. Todos sabem que um mero usuário final compra a droga na esquina e jamais vai levar aos magnatas do tráfico, simplesmente porque não tem a menor ideia de quem sejam. Quem tem obrigação de saber é a polícia e para tanto deve fazer como faz com a corrupção, planejando e executando por anos operações de inteligência conjuntamente com o Ministério Público e a Justiça Federal, tudo dentro da lei. A Polícia Federal sabe fazer isto muito bem.

O delegado Cassiano, no entanto não tinha nenhum interesse em combater o tráfico na raiz, como deveria ser sua atribuição. Se tivesse esta intenção, o último lugar provável para encontrar alguma conexão seria a Universidade. Ele atuou com abuso de poder, que é crime, pois não tinha mandado para invadir uma universidade federal. Atuou aparentemente para atender interesse particular e não público (fama momentânea e espaço na mídia, sabe-se lá com que outras intenções) o que pode configurar, se apurado, crime de prevaricação. Efetuou prisão de forma clandestina pois não se identificou como polícia, o que também é crime. Somente quando a confusão foi formada os policiais se apresentaram como tal, de acordo com todos os depoimentos de professores e estudantes que presenciaram o fato.

O delegado, que talvez se sentisse melhor trabalhando no DOI-CODI do regime golpista, realizou uma “operação” pirotécnica ilegal em conluio com a Polícia de Choque, que evidentemente estava a par e a postos para o assalto e operações dessa natureza não se realizam sem preparação logística prévia. O governador, que comanda a Polícia Militar, está devendo explicações embora a autointitulada “imprensa profissional” tenha esquecido de fazer esta ligação, colocando como centro do problema não os atos abusivos do delegado e da polícia, mas reduzindo-a a uma simples questão de ser a favor ou contra a maconha. Uma das formas mais comuns de manipulação da informação pela imprensa comercial é desviar o foco da atenção do principal para um problema secundário de ordem moral sobre o qual as pessoas já tem opinião formada. Dessa forma, o debate fica resumido a uma briga de torcidas de times de futebol na qual ninguém vai abrir mão do seu time. Enquanto isso, o que deveria ser debatido, fica fora da pauta.

Por fim, uma última observação. Não deixa de ser curioso que o delegado tenha escolhido para sua operação ilegal justamente o momento em que os saudosos da ditadura se assanham, incentivadas por Veja, Rede Globo e outros veículos de comunicação que apoiaram o golpe militar. Assistimos há alguns dias até mesmo a tentativa de realização de uma patética marcha, com cartazes pedindo expressamente a volta da ditadura. A ação isolada deste delegado despreparado deve ser veementemente repudiada por toda a sociedade catarinense e principalmente pelos seus próprios colegas que tem prestado, via de regra, excelentes serviços ao país.

Quando você, que está lendo este texto, se posicionar sobre a invasão da UFSC, preocupe-se em dizer se é a favor ou contra uma polícia que age fora da lei e dos limites impostos ao Estado pela Constituição, para proteger os cidadãos. Esta é a questão principal deste debate. Os cinco cigarros de maconha só estão ai para desviar sua atenção. Não fique chapado com as interpretações da “imprensa profissional”. Ela é muito mais poderosa que a maconha para confundir sua percepção da realidade.

Inúmeras manifestações contra a ditadura estão sendo organizadas em todo o país. Elas tem por objetivo repudiar qualquer tentativa de assaltar o poder para atender interesses particulares de pessoas ou grupos minoritários. As que vão ocorrer em Florianópolis são a melhor oportunidade que temos para dizer não ao autoritarismo e repudiarmos qualquer forma de ataque à democracia, como o que ocorreu na UFSC. Muita gente prefere que fiquemos discutindo a maconha em vez de lembrarmos nosso passado para evitar que ele volte. Que nos encontremos todos na rua, dia primeiro de abril às 17 horas.

Cartaz Manifestação

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/santa-cataria-por-que-universidade-federal-esta-ocupada/)

sábado, 29 de março de 2014

Legalizar a planta, para combater o crime (Jean Wyllys)

Relatório-sugere-possibilidade-de-legalização-da-maconha-nas-Américas

Deputado que propõe nova lei sobre drogas sustenta: baseada em hipocrisia, política atual favorece quadrilhas, violência, corrupção policial e consumo irresponsável

Por Jean Wyllys, em Carta Capital

Eu sou contra a liberação da maconha. Sempre fui. E o projeto que protocolei também é contra a liberação. Atualmente, a maconha no Brasil está liberada, apesar de formalmente proibida. A escalada do poder do tráfico é prova irrefutável que, sim, ela e outras drogas estão liberadas!

Mesmo em meio a uma caríssima guerra às drogas, o Estado permitiu, se fazendo de cego, que o crime organizado dominasse áreas inteiras, se instalasse e se fortalecesse com toda sorte de armamento e influência política dentro do próprio Estado. A CPI das milícias, empreendida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ) é outra prova inconteste da influencia das facções criminosas dentro do próprio Estado. Mas nada disto parece claro a quem defende o fortalecimento de uma lei antidrogas cara, fascista e homicida.

Vivendo acima da lei, tais facções experimentam a verdadeira reserva de mercado, e seus agentes públicos, responsáveis pela manutenção da tranquilidade de seu funcionamento, são muito bem pagos. Assim o Estado, informalmente, já pratica a liberação e o controle sobre o comércio de drogas. Contraditório, não? Pois é, não parece a muitos.

Este não é um privilégio nosso, do Brasil. Nos EUA, a “lei seca”, da década de 1930, fomentou a criação de um circuito de violência, reforçou o poder do crime organizado, enriqueceu gangsteres como Al Capone (e lhes trouxe grande fama), e submeteu a população ao consumo de bebidas produzidas sem qualquer controle de qualidade e com consequências diretas à saúde pública.

Este sistema continua funcionando no Brasil – importando, distribuindo, vendendo e brigando pelo poder -, e cada pessoa que é presa ou executada sem direito de defesa pela polícia ou por uma facção rival é substituída por outra sem atrapalhar ou impedir a continuidade do circuito. Em geral os mortos são quase sempre pobres, favelados, e na maioria dos casos jovens e negros. Quase sempre são aqueles que têm a menor responsabilidade e os menores lucros. Milhares de pessoas morrem por causa disso, milhares vivem armadas, clandestinas, exercendo a violência, muitas são presas e, na cadeia, submetidas a condições desumanas e a situações de violência idênticas ou piores às que sofriam em “liberdade”, mas o sistema continua funcionando.

Esta parte é confundida pelo próprio Estado com o todo de uma comunidade pobre, como uma favela. Imediatamente, o pobre – e desses, a quase totalidade são negros e pardos em nosso país – é associado com o tráfico. O pobre que já não tem acesso à educação (e nem vamos falar em educação de qualidade! Esta está ainda mais distante dele, localizada nas escolas públicas dos bairros mais abastados!), aos serviços básicos do Estado, à formação profissional, ao ensino superior e aos aparelhos culturais, muitas vezes é convencido pelo traficante que fazer o “aviãozinho” é a única forma de mobilidade social.

Vem à mente o trecho de uma música que talvez resuma, totalmente, o argumento do tráfico: “quer viver pouco como um rei, ou muito como um zé?”. O Estado que libera a venda das drogas é responsável direto por esta decisão, afinal, quem, ali em meio à busca pela sobrevivência e sem qualquer outra expectativa, irá vislumbrar algo diferente do que o traficante lhe tenta convencer?

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Vez por outra (quer dizer, sempre, mas em geral só ficamos sabendo quando uma ínfima parte das ocorrências surge na mídia) um caso decorrente desta confusão entre pobreza e criminalidade por parte do próprio Estado, especialmente de seu braço forte, ou seja, a polícia, nos choca. Onde está Amarildo, pedreiro que desapareceu de dentro de uma Unidade de Polícia Pacificadora sem nunca ter, formalmente, saído de dentro dela, sem ter ficha criminal, sem ser acusado por crime, enfim, inocente à luz da lei? Por que Cláudia Silva Ferreira foi baleada pela polícia – que apresentou diversas versões contraditórias para o fato – jogada em um porta-malas como se uma coisa qualquer fosse, e, após ser arrastada por meio quilômetro, foi novamente atirada no mesmo porta-malas, sem que tivesse sequer o direito de ser socorrida no banco traseiro da viatura, ou melhor, em uma ambulância?

Ora, não é esta mais uma prova inconteste de que, na visão do Estado, o pobre negro, morador da favela e vítima do tráfico sequer tem direito de um socorro digno? Quem mais seria levado ao hospital em um porta-malas?

Resumindo-me: O comércio de drogas, independente de qual for, é sim liberado no Brasil, e isto ninguém pode negar. A criminalização da pobreza e a formação dos guetos marginalizados é também outro fato inconteste. A solução é regulamentar, como fez o Uruguai recentemente. Tirar o usuário recreativo da situação de criminoso, equiparável ao grande traficante, e permitir que ele compre com segurança ou que tenha seu próprio cultivo, não dependendo de ninguém para satisfazer seu consumo. Ora, não é lógico que isto afeta diretamente a relação entre traficantes e consumidores?

Alterar toda esta estrutura de poder e marginalização é o primeiro passo para o combate efetivo e inteligente ao tráfico de drogas e tudo aquilo que ele financia – a violência, a corrupção, e a exploração sexual e do trabalho através do tráfico humano. Alterar esta estrutura implica, também, em não atirar nas cadeias tantas pessoas pobres flagradas com uma quantidade qualquer de maconha. Pessoas que não cometeram qualquer crime contra a vida ou a propriedade, mas que lotam presídios e que acabam sendo formados em uma espécie de “escola do crime”. Afinal, saindo da cadeia a realidade é ainda mais difícil e marginalizada, e a ascensão no mundo do crime se abre como caminho natural para alguns.

Onde quero chegar, afinal?

Segurança pública e combate ao tráfico são duas áreas cercadas por preconceitos e achismos que não sobrevivem à mínima informação. Ainda assim são perpetuados pela repetição. Mexer nesta estrutura exige coragem e responsabilidade. Coragem porque mexer com preconceitos implica em virar alvo de toda sorte de flecha raivosa de gente mal informada, reacionária ou mesmo mal intencionada. Responsabilidade porque todos os fatores envolvidos exigem igual atenção. Soluções simplistas, como aumentar penas, “explodir favelas” e prender menores de idade apenas acentuam problemas e não trazem nenhum resultado – e nem nunca trouxeram!

Cabe à imprensa, que atua como mediadora da informação, a interpretando e repassando ao seu público, a responsabilidade de, no mínimo, não fomentar novos (e velhos) preconceitos, mesmo que por acidente. Responsabilidade com a notícia é, por exemplo, não focar na questão da anistia de presos pelo porte de drogas (e apenas de drogas, não vale para crimes violentos ou associações criminosas!) dando a isto um peso maior que o que realmente importa no projeto, que é a formação de uma política de segurança pública que não penalize os mais pobres como forma de esconder dos mais ricos a baixa eficiência de seu trabalho.

Alguns veículos de imprensa, ao darem atenção primária à anistia de presos por tráfico de maconha, especificamente, criam – de forma acidental ou mesmo intencional – a imagem de que a função do projeto é a de defender bandidos ou de esvaziar cadeias. É assim que o leitor, expectador ou ouvinte vai entender. E é sobre isto que ele formará sua opinião. Não, senhores da imprensa, o foco é outro! As consequências ao sistema prisional são secundárias! Aos que cometeram esta falha por acidente, é hora de redobrar o cuidado. Aos que o fizeram intencionalmente, meu lamento pelo eterno compromisso com a desinformação.

O foco aqui não é perdoar presos. O foco aqui é investir em reintegração à sociedade, políticas públicas, responsabilidade do Estado e na aplicação correta dos recursos da segurança pública.

O foco aqui é tirar o jovem negro e pobre, o mesmo que tem morre quase três vezes mais que o jovem branco pobre do estigma de ser criminoso, mesmo quando ele refuta o tráfico e se esforça quase que de forma sobre humana para reverter aquela situação de pobreza por meio da educação.

O foco aqui é outro. É hora de deixar a inocência de lado, de achar que o mesmo modelo falido de combate ao tráfico, que nunca funcionou em canto algum do mundo, vai milagrosamente trazer um bom resultado! É hora da imprensa mostrar sua responsabilidade nisto, sendo sensível ao que é principal e o que é secundário, e ajudando a população, sobretudo a mais pobre – e consequentemente, a mais prejudicada pela política de segurança pública vigente -, a formar uma opinião balizada dos fatos.

É chegada a hora!

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/legalizar-a-planta-para-combater-o-crime/)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Cocaína e crack: diferença é classe social de quem consome (Cynara Menezes)

“Vício imediato” é mito absurdo. Craqueiros são mais vulneráveis devido a sua condição social. Exatamente por isso, é preciso apoiá-los
Por Cynara Menezes, em seu blog
A iniciativa da prefeitura de São Paulo de experimentar outra abordagem contra o crack, hospedando em hotéis e pagando 15 reais por dia a viciados para que varram ruas me deixou muito otimista. É hora de os governantes brasileiros passarem a combater as drogas de maneira menos hipócrita e higienista – como fazem o PSDB e o DEM, que sempre preferiram simplesmente expulsar os viciados do centro ou interná-los em instituições mentais, para bem longe da vista dos “cidadãos de bem”. Obviamente os obtusos da direita (pleonasmo?) já atacaram a ideia do prefeito Fernando Haddad. Para que tentar dar uma chance a essas pessoas se é possível varrê-las para debaixo do tapete? “Pessoas? E usuário de crack é gente?”, perguntam-se os defensores dos “humanos direitos”.
Os histéricos da droga normalmente preferem nem se informar a fundo sobre o assunto, como se a mera proximidade com estudos científicos os contaminasse. Mas como a guerra às drogas que inventaram resultou apenas em crime, degradação e violência, outro tipo de pensamento começa a se impor no mundo. Não é à toa que países como Uruguai e mesmo os EUA mudaram sua visão em relação à maconha. Os EUA, aliás, estão cada vez mais liberais com a cannabis, como demonstra uma pesquisa divulgada no início do mês: hoje em dia, 55% dos norte-americanos aprovam a legalização da maconha. E só 35% deles acham que fumar baseados é “moralmente condenável” (veja aqui). Exatamente o oposto da direita ignorante (pleonasmo?) brasileira, que se recusa a aceitar a falência de seu modelo arcaico na solução de dilemas contemporâneos.
Um fato pouco divulgado sobre o crack é que ele não é uma droga tão diferente das outras, tão mais viciante que as demais. Sabia? Na verdade, existe bem pouca diferença entre o crack e a cocaína, quimicamente falando. A única diferença é a remoção do cloridrato, o que torna possível fumá-lo. É como se a cocaína fosse açúcar refinado, e o crack, rapadura. O que torna o crack mais potente é a forma de consumi-lo: fumar leva a droga rapidamente aos pulmões, fazendo com que o efeito seja mais rápido e mais intenso do que cheirar pó (veja mais mitos sobre o crack aqui). Para piorar, a pedra de crack é barata – custa 10 reais, enquanto o grama de cocaína é vendido a 50 reais. Ou seja, o crack, ao contrário da cocaína, é acessível aos miseráveis.
Saber disso nos abre os olhos a uma problemática fundamental em relação ao crack, que é a vulnerabilidade social de quem está exposto à droga morando nas ruas. É exatamente este aspecto que a prefeitura de SP pretende combater ao tentar reintegrar o viciado à sociedade, dando-lhe perspectivas. Sem oferecer-lhes perspectiva de futuro, esperança, não adianta desintoxicá-los. Ao sair da clínica, eles voltam para o vício, até porque, vivendo à margem, não têm mais o que fazer. Enquanto isso, os cocainômanos e viciados em crack das classes mais abastadas são enviados ao rehab, às clínica chiques, e a gente nem sequer chega a tomar conhecimento deles. Quem está na rua, não, “incomoda”, integra a “gente diferenciada” para a qual muitos torcem o nariz e têm medo.

(A fórmula da cocaína e a do crack: praticamente idênticos. Fonte: Alternet)
Dois anos atrás, o ator Charlie Sheen, bem conhecido de todos como o “doidão” de Hollywood, causou polêmica nos EUA ao declarar em uma entrevista que alguns amigos seus usam crack “socialmente”, assim como fazem tantos endinheirados com a cocaína. Parece absurdo? Não é. A partir das declarações de Sheen, a jornalista Maia Szalavitz, da revista Time, escreveu um artigo demonstrando que somente 15 a 20% das pessoas que experimentam crack ficam viciados. Mais: que 75,6% dos que provaram crack entre 2004 e 2006 tinham abandonado o cachimbo dois anos depois; outros 15% passaram a usar ocasionalmente; e só 9,2% ficaram viciadas.
Uma realidade bem distante do que pensávamos pouco tempo atrás, quando se costumava dizer que basta uma baforada para a pessoa ficar viciada. É possível, sim, entrar no crack e sair. Assustar os jovens em relação às drogas pode ser eficiente, mas eu acho que é muito mais importante dizer a verdade, conscientizá-los com base na ciência. “O crack não é mais tóxico que a cocaína. O que acontece é: quem toma crack? Os negros mais ferrados dos EUA. Os adolescentes com menos perspectivas profissionais”, defende um dos maiores especialistas do mundo em drogas, o espanhol Antonio Escohotado. No Brasil é a mesma coisa. Embora atinja várias classes sociais, o vício em crack é devastador sobretudo para os jovens e adultos em situação de rua.
Quanto mais leio e me informo, mais fico convencida de que não existem drogas “perigosas”. Todas elas são e não são ao mesmo tempo. O que existe é a pessoa por trás da droga e a circunstância em que vive. Se o ser humano que busca as drogas está em condição de risco – psicológico ou econômico – obviamente estará mais sujeito à adicção. Assim é com tudo que entra pela boca do homem: comida, álcool, remédios ou drogas ilícitas. A droga jamais pode estar relacionada à fuga da realidade, mas às experiências sensoriais. Quem vive na rua, dormindo na calçada ou em buracos, com certeza não está usando a droga “recreativamente”.
Se não fôssemos dominados por um pensamento tacanho e estivéssemos usando, como em muitos países civilizados, a maconha com fins terapêuticos (a exemplo dos EUA, que a direita brasileira adora macaquear, mas não nas iniciativas boas), a próxima etapa do programa da prefeitura de São Paulo deveria ser ministrar baseados como política de redução de danos do vício em crack. Vários estudos científicos comprovam que fumar maconha diminui a “fissura” entre viciados que desejam deixar a pedra, ajuda na hora de enfrentar a síndrome de abstinência. É uma possibilidade no tratamento. Os hipócritas iriam permitir? Imagina. Interessa a eles, de certa forma, que existam viciados em crack perambulando pelas ruas para que seu irracional discurso anti-drogas e anti-crime continue a ter eficiência sobre os incautos.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/cocaina-e-crack-diferenca-e-classe-social-de-quem-consome/)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Prisões: a culpa da sociedade e a da mídia (Eduardo Guimarães)

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Opinião pública ainda crê em presídios cruéis, como remédio contra crime. Tal irracionalidade é repetida, todos os dias, por TVs e jornais

Por Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania

O que mais assusta na tragédia ocorrida na região metropolitana de São Luis (MA) e no Complexo Penitenciário de Pedrinhas é a constatação extemporânea, tardia e hipócrita da mídia, de parte da classe política e dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sobre as condições desumanas dessa prisão e de praticamente todas as outras pelo país afora.

Alguém acredita seriamente que um país rico como este não tem condições de construir prisões minimamente dignas para os cerca de 500 mil presos brasileiros? Até porque, não seria necessário construir prisões para toda essa gente, mas apenas para a parte que constitui o excedente da população carcerária.

Então, se “um país rico como este” poderia ter prisões minimamente humanas, por que não tem? Resposta: porque a sociedade brasileira quer que suas prisões sejam desumanas mesmo. E por que este povo quer isso? Porque acredita não só que prisões desumanas podem dissuadir os que cogitem ingressar no crime como acredita que violência policial produz o mesmo efeito.

Não é preciso nem discutir o mérito dessa ideia maluca. É melhor discutir sua efetividade. Como se sabe, tem muita gente que vive espalhando por aí que nossas prisões são “colônias de férias” e que o castigo que a lei prevê para os criminosos é “brando demais”. Vendo o que aconteceu em Pedrinhas, percebe-se quanto idiota há por aí espalhando essas tolices.

O sistema carcerário brasileiro é o quarto maior do mundo e um dos mais cruéis e desumanos. Cumprir um ano de prisão no Brasil equivale a cumprir dez em uma prisão civilizada. Assim, o aumento de penas que tantos pregam como “solução” para o crime não passa de outra cretinice cavalar.

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Mas por que a sociedade pede prisões desumanas e as autoridades, premidas por interesses políticos, atendem a essa exigência não apenas burra, mas suicida da maioria dos brasileiros? Simples, porque estes são insuflados cotidianamente pela mídia e, também, por políticos demagogos que se entregam a prometer tudo que o povo pede, por mais absurdo que seja.

Mas quem insufla toda essa burrice é a mídia, acima de qualquer outro. Seus programas policialescos, ao estilo Datena ou Marcelo Resende – que se reproduzem como pragas pelas televisões e rádios regionais e até municipais de todo país –, instilam ódio na sociedade.

Esses apresentadores de programas sangrentos sobre crimes vivem dizendo sobre a violência que gostariam de praticar com as próprias mãos contra os bandidos, durante seus arroubos de machões. O espectador/ouvinte é estimulado a pensar na prisão como forma de vingança e nunca como forma de ressocializar o preso.

Até porque, o princípio de ressocialização não é conhecido. E que princípio é esse? O de que aquele que comete crimes seja preso como forma de proteção à sociedade, não como forma de ela se vingar dele. E o de que é preciso ressocializar porque todo criminoso preso volta às ruas um dia e, se não for ressocializado, volta pior.

Quem passa por uma prisão brasileira, no mais das vezes sai dela pior do que entrou não só porque “aprende o que não presta lá dentro”, mas porque sai de lá no mínimo revoltado. Só que, muitas vezes – ênfase em muitas vezes –, sai de lá com graves problemas mentais, tornando-se um risco ainda maior do que o criminoso meramente revoltado.

A solução para a violência e a criminalidade no Brasil, portanto, não é só mais justiça social, menos pobreza e miséria zero. É, também, construir prisões que preparem o presidiário para ser reinserido na sociedade. Enquanto forem o que são, nossas prisões continuarão sendo a linha de montagem do crime, onde o bandido se profissionaliza e se torna monstruoso.

Para que isso ocorra, a mídia teria que parar de insuflar ódio e começar a instilar reflexão na sociedade. Haveria que explicar que violência policial e prisões desumanas nunca conseguiram diminuir violência e criminalidade em parte alguma do mundo. Mas aí é querer demais. Programas que insuflam ódio e burrice dão muito mais audiência.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/barbarie-nas-prisoes-a-culpa-da-sociedade-e-a-da-midia/)

Prisões suecas: aqui se reabilitam seres humanos (Cibelih Hespanhol)

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País fecha cárceres, por falta de detentos, e comprova: presídios bárbaros só alimentam ódios; para combater criminalidade e reincidência, receita é outra

Por Cibelih Hespanhol

Quando Alexander Petrovich, assassino confesso de sua própria mulher, viu-se encarcerado entre as paredes de um presídio na Sibéria, passou a conhecer o dia-a-dia, detalhes e hábitos deste sistema. E escreveu as seguintes linhas em seu diário pessoal: “não resta dúvidas de que o tão gabado regime de penitenciária oferece resultados falsos, meramente aparentes. Esgota a capacidade humana, desfibra a alma, avilta, caleja e só oficiosamente faz do detento ‘remido’ um modelo de sistemas regeneradores”. Se Alexander e sua história pertencem ao romance Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, publicado em 1860, seu drama ainda pode ser considerado absurdamente atual.

As recentes notícias sobre o fechamento de quatro prisões suecas reabriram discussões sobre a forma como lidamos com nossos detentos. Isto porque a falta de presos no país nórdico é atribuída principalmente à forma de organização de seu sistema penitenciário, que conta com investimentos na reabilitação dos prisioneiros; adoção de penas mais leves em delitos relacionados a drogas; e revisões judiciais que optam por penas alternativas em alguns casos, como liberdade vigiada. Em situação semelhante, a Holanda já havia anunciado em 2012 a necessidade de fechar oito prisões e demitir mais de mil funcionários – pelo mesmo motivo: suas celas estavam praticamente vazias. O que tem a nos dizer estes países?

Em sentindo inverso, nos Estados Unidos, país com maior população carcerária do mundo, o número de detentos chega a praticamente 2,3 milhões. E a taxa de reincidência é de 60% – ou seja, a cada dez pessoas que saem da prisão, seis voltarão para o crime. O Brasil, que ocupa o quarto lugar no ranking de população carcerária, possui cerca de 500 mil presos, num índice de 274 detentos por 100 mil habitantes. Além disso, o número de detentos é 66% maior do que a capacidade que o sistema brasileiro possui de abrigá-los nas prisões. Em junho do ano passado, a ONU declarou em relatório oficial a necessidade do país “melhorar as condições de suas prisões e enfrentar o problema da superlotação”. Casos de violação dos direitos humanos, torturas físicas e psicológicas são recorrentes em presídios brasileiros: no Rio de Janeiro, um preso é morto a cada dois dias, principalmente de tuberculose e AIDS.

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A abismal diferença entre prisões suecas e brasileiras (ou norte americanas) está nas teorias que fundamentam seus sistemas penitenciários. O país da pena de morte é o mesmo que viu sua população carcerária praticamente dobrar desde o início dos anos 90. Já o país que optou por uma política de reinserção social, em que uma agência governamental é encarregada de supervisionar os detentos e oferecer programas de tratamento para aqueles com problemas com drogas, vê agora suas prisões serem fechadas por falta de prisioneiros. Em entrevista ao The Guardian, Kenneth Gustafsson, governador da prisão de Kumla, a mais segura da Suécia, declara: “existem pessoas que não querem ou não podem mudar. Mas na minha experiência a maioria dos prisioneiros quer mudar, e nós precisamos fazer o que pudermos para ajuda-los. E não é apenas a prisão que pode reabilitar. Isso é um processo combinado, que envolve a sociedade. Podemos dar educação e treinamento, mas quando essas pessoas deixam as prisões elas precisam de moradia e emprego”.

Em suma, o que a Suécia tem a nos ensinar é a noção contrária do senso comum de que “cadeia boa é cadeia infernal”: optar pela humanização do sistema penitenciário prova-se como a maneira mais eficaz de se verem reduzidos os índices de criminalidade. Ou nas palavras daquele personagem de Dostoievski, de duzentos anos atrás: “E já que [o detento] é de fato um homem, deve ser assim tratado. Um tratamento humano pode até devolver a condição humana mesmo àqueles que se esquivaram…”.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2014/01/08/prisoes-suecas-aqui-se-reabilitam-seres-humanos/)

domingo, 17 de novembro de 2013

Suécia fecha 4 prisões e prova: a questão é social (Lino Bocchini)

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Penas alternativas e investimento na ressocialização de detentos derrubaram a população carcerária e levaram ao fechamento de 4 prisões no país nórdico

por Lino Bocchini

O jornal inglês The Guardian informou em sua edição de ontem que 4 prisões e um centro de detenção foram fechados na Suécia, pela Justiça daquele país, por falta de prisioneiros. O diretor de serviços penitenciários local, Nils Oberg, afirmou que o número de detentos estava caindo 1% ao ano desde 2004 e, de 2011 para 2012, caiu 6%.

Oberg e outras fontes ouvidas pelo jornal inglês acreditam que a queda do número de presos tem os seguintes motivos: 1) investimentos na reabilitação de presos, ajudando-os a ser reinseridos na sociedade; 2) penas mais leves para delitos relacionados às drogas e 3) adoção de penas alternativas (como liberdade vigiada) em alguns casos.

Com uma política semelhante, a superpopulação carcerária no Brasil e em outros países poderia ser bastante atenuada. O exemplo sueco deixa claro, mais uma vez, que a questão da criminalidade é, sim, social. Ninguém nasce malvado, não existe o que popularmente é chamado de sangue ruim.

Na Suécia, 112º país do mundo em população carcerária, são 4.852 presidiários para 9,5 milhões de habitantes –51 para cada 100 mil habitantes. No Brasil, que tem a 4ª maior população carcerária do mundo, são 584.003 detentos, ou 274 por 100 mil habitantes.

E olha que a reportagem nem entra no mérito de que naquele país nórdico toda população têm acesso a serviços públicos de qualidade (educação, saúde, cultura etc) e que lá os direitos humanos são levados a sério pelos governantes.

Acreditar que não há ligação entre a questão social e o número de presos em um país é acreditar que há pessoas mais propensas para o mal. Ou que quem nasce abaixo da linha do Equador é mais malandro ou algo que o valha.

Isso sem falar na questão moral. Insuflada pelos Datenas da vida, boa parte da população acha que mesmo quem cometeu um crime leve tem de amargar longos períodos encarcerados em condições sub-humanas. E grita contra qualquer investimento na ressocialização de detentos –“pra quê gastar dinheiro com bandido?”.

O que o autoproclamado “cidadão de bem” precisa entender é que a melhor opção para a segurança de sua família –e para um mundo melhor— é o modelo sueco, e não a manutenção das prisões brasileiras tais como estão hoje.

(Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/suecia-fecha-4-prisoes-e-prova-mais-uma-vez-a-questao-e-social-334.html)

domingo, 10 de novembro de 2013

Ouvidor da PM apoia desmilitarização (Paulo Motoryn)

Mais uma voz pela desmilitarização: ouvidor Luiz Gonzaga Dantas (Foto: PCO)

Luiz Gonzaga Dantas critica conduta da corporação e sugere: desmilitarização deve ser adotada como solução para a violência

Por Paulo Motoryn, da Revista Vaidapé

Em conversa com a reportagem da Revista Vaidapé, após debate promovido na PUC, o ouvidor da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Luiz Gonzaga Dantas, revelou que o cargo que ocupa – por ter total independência da corporação – abre a possibilidade de possuir uma visão crítica da atuação policial, de seus defeitos e avanços na relação com os cidadãos.

Responsável por aglutinar todas as reclamações e denúncias feitas contra a Polícia paulista pela sociedade civil e repassá-las ao Governador e ao Secretário de Segurança Pública do Estado – atualmente o promotor Fernando Grella –, Gonzaga admitiu que a truculência, a falta de habilidade no trato com os cidadãos e os altos índices de mortes são os principais pontos a serem destacados na atuação da PM.

Questionado sobre as causas que poderiam levar à postura violenta dos Policiais Militares, o ouvidor identificou a baixa carga-horária da disciplina de Direitos Humanos nos cursos de formação como fator relevante – reforçando, portanto, argumento do tenente Adilson Paes de Souza, defendido em tese apresentada na Faculdade de Direito da USP em 2011.

Gonzaga ainda disse acompanhar a opinião de relatório produzido pela ONU no ano passado em que a desmilitarização das Polícias é vista como primordial para que diminuam as ocorrências de violência promovida por agentes estatais. Assim, afirma, é possível ir à raiz do problema.

“A peculiaridade de a Polícia ser militar, e não civil, ressoa no comportamento dos policiais por fazerem parte de uma corporação essencialmente bélica”, explicou. A tese de que a militarização representa a origem da violência policial ganhou ressonância após a recomendação da ONU e começa a ganhar força na sociedade civil.

A intensa repressão nas manifestações de rua, com abordagens violentas e prisões arbitrárias, deu ainda mais fôlego para o debate sobre a desmilitarização. É preciso lembrar, no entanto, que as críticas vão muito além do arsenal de armas menos letais disparadas nos protestos no centro da cidade, mas se motivam principalmente pela grande quantidade de jovens negros e das periferias mortos em abordagens policiais.

Só na cidade de São Paulo, 624 jovens foram vítimas de homicídio em 2011. 57% eram negros. Os números doem, crescem e escancaram uma sociedade que aceita e naturaliza uma cultura de criminalização da pobreza, racismo e repressão.

(Disponível em: http://outraspalavras.net/blog/2013/11/08/ouvidor-da-pm-apoia-desmilitarizacao/)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Nas ‘linhas’ do crack (Jornal da UNICAMP)


Ao longo da pesquisa, muito do sentimento de vergonha demonstrado por mim e pelos usuários, expresso no silêncio rápido, mas constrangedor, no desviar de olhos, num certo embaraço, estava ligado ao fato de eu estar limpa. Não poucas vezes, quando estendia a mão para cumprimentá-los, ouvia de volta o pedido de desculpas, quase de recusa, por estarem sujas, seguido de uma mão que se juntava à minha de forma bastante tímida. Um tanto inconscientemente, comecei a ir a campo com roupas desgastadas e calçando tênis velhos, passei a não lavar os cabelos nos dias de pesquisa, não soltá-los, não utilizar adereços (como brincos ou colares) e não passar perfume. Achei que assim a minha limpeza não os afrontava tanto e não precisava gerar tanto desconforto. Em Campinas, como sempre fazíamos atividades no período da tarde, era comum eu almoçar em casa antes de seguir para o PRD. Uma vez, fiz macarrão com molho de tomate e alguns pingos grandes do molho sujaram minha camiseta. Nem passou pela minha cabeça trocá-la. Senti-me muito à vontade de transitar com ela pela linha férrea, ainda que tenha sido observada com certo estranhamento pelas pessoas que estavam no ônibus que me levou até lá. Nesse mesmo dia ainda, me vendo chegar suja para a atividade de campo, um dos redutores brincou: “é, já tá pegando o espírito da linha, hein?”.

Taniele Rui, autora do texto acima, precisou despojar-se de seus temores e constrangimentos para reunir fôlego e mergulhar de alma e corpo – literalmente – em um universo muito particular dos usuários de crack: aqueles que, em sua maioria, por uma série de circunstâncias sociais e individuais, largaram tudo o que possuíam (família, trabalho, casa, bens) e desenvolveram com a substância uma relação extrema e radical, chamados frequentemente “nóias”.
A profunda imersão diluiu até mesmo a sua identidade acadêmica, em um progressivo fenômeno de mimetização do ambiente em que se inseriu. Ela transmutou-se em agente de saúde, educadora social, redutora de danos e psicóloga, materializando personagens com os quais os usuários estavam acostumados a conviver. Ao voltar à tona, escreveu “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”, tese de seu doutorado em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Orientado por Heloisa André Pontes, docente do IFCH, e coorientado por Simone Miziara Frangella, professora do Instituto das Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o estudo conquistou o Prêmio Capes de Tese 2013 na categoria Antropologia/Arqueologia. Produzido ao longo de quatro anos, com financiamento da Fapesp, o trabalho é um denso e pungente relato autoral de mais de 300 páginas acerca do consumo abusivo do crack a partir de uma perspectiva sociocultural. Lê-se o texto da pesquisa como o inebriante diário de uma longa e dramática viagem a cenários variados de uso e comércio da droga nas cidades de Campinas e São Paulo, nos quais, em diferentes oportunidades, a autora experimentou emoções contraditórias.

“Não poucas vezes durante a pesquisa tive a sensação de que um conflito iminente poderia acontecer; não poucas vezes deixei de temer inclusive pela minha própria vida, voltando para casa com uma estranha sensação de agradecimento por estar bem. Não poucas vezes também me senti tão à vontade em espaços à primeira vista bastante hostis”, confidencia.

A construção da narrativa tem como fonte primária os três cadernos de anotações acumulados por Taniele nos dois anos e meio dedicados ao trabalho de campo, entre agosto de 2008 e dezembro de 2010. Neles registrou metodicamente todos os detalhes de seu cotidiano: descobertas, situações testemunhadas, conversas, angústias, dúvidas. Para compor a etnografia ela valeu-se ainda de extenso material publicado pela imprensa sobre o assunto. Teorias acadêmicas de diferentes autores ajudaram a iluminar seus achados e contribuíram para as reflexões sobre a sua relação com os usuários e suas histórias apresentadas nas páginas da tese, que tem ainda o mérito de, ao tratar do crack, abordar questões bastante caras às Ciências Sociais, como violência e marginalidade urbanas, desigualdade social, políticas sociais e de saúde, entre outras.

Notoriedade inesperada
A temática das drogas permeia a atuação acadêmica de Taniele desde 2005, quando, para a dissertação de mestrado, escolheu abordar discursos sobre o uso de substâncias psicoativas entre pacientes de uma instituição para tratamento de dependentes químicos, entre meninos e meninas de rua e entre estudantes universitários. No doutorado, pretendia dar prosseguimento à pesquisa anterior, porém focando a experiência dos usuários nos locais de consumo em Campinas. Buscou a mediação do Programa de Redução de Danos (PRD) mantido pela Secretaria Municipal de Saúde para realizar o trabalho de campo. Somente quando começou a constatar a importância do crack na problemática do consumo de drogas é que o tema ganhou prioridade em seu estudo.

“O consumo de crack acabou se impondo durante o trabalho não só porque tive mais contato com usuários dessa substância, mas, sobretudo, porque durante a pesquisa o crack acabou ganhando uma notoriedade inesperada. Nos jornais impressos, na televisão, nas políticas urbanas e de saúde, entre os traficantes, onde eu olhasse parecia só ver falar do crack”, justifica a pesquisadora, que a partir de então se viu compelida a olhar também para o universo da região que ficou conhecida como “cracolândia” em São Paulo como de suma relevância para o melhor entendimento do tema.

Nesse processo, a figura do “nóia” tomou uma dimensão não prevista e ganhou centralidade na investigação, concentrando o seu enfoque. Ao mesmo tempo em que está completamente excluído da vida social, é esse usuário, de maneira paradoxal, que justifica – com seu estado corporal considerado de degradação extrema e alvo de rejeição – todo o aparato repressivo, assistencial, religioso, midiático e sanitário mobilizado em sua órbita. O “nóia”, observa Taniele, fez o Ministério da Saúde reestruturar suas políticas para o problema das drogas no país, a exemplo de outras medidas adotadas pelo poder público para lidar diretamente com a questão do crack.

Cenário desolador
A Redução de Danos é um conjunto de políticas e práticas com o propósito de reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas, por meio de orientações, distribuição de seringas descartáveis, preservativos e vacinação contra doenças infectocontagiosas. Com a ajuda desses serviços em Campinas e em São Paulo, Taniele esteve em contato com usuários de crack, com seus modos de obtenção da substância, participou de suas conversas, presenciou a preparação e o consumo da droga nos próprios contextos de uso.

Em Campinas, percorreu muitos mocós, becos, casas abandonadas, linhas de trem (a “linha” mencionada na introdução deste texto) e galpões desocupados que garantem aos usuários de crack alguma privacidade, situados nos bairros Paranapanema e São Fernando, na região sudeste da cidade. Incursões foram também realizadas ao esqueleto de um edifício em obras abandonado na Vila Industrial e utilizado como refúgio de consumidores. Nas muitas das visitas que fez em Campinas, ela e os redutores (os profissionais dos PRDs) levavam cerca de quarenta minutos a uma hora e meia de ônibus ou a pé para chegar aos locais de consumo.

Em São Paulo, concentrou seu roteiro no espaço conhecido como “cracolândia”, por agrupar grande quantidade de pessoas consumindo crack publicamente e que se tornou alvo dileto das políticas de segurança, de saúde, assistenciais e urbanísticas.

Nesses redutos encontrou quase sempre o mesmo cenário de desolação: escombros de imóveis, muitos papéis que embrulham o crack, cartões telefônicos usados para a separação das porções do produto, palitos de fósforo, isqueiros, restos de alimentos e de roupas, cobertores, excreções humanas, chapas de alumínio que servem de apoio para preparar e separar a droga, latas de refrigerante e embalagens de iogurte usadas como cachimbo.

Taniele evitou uma postura meramente contemplativa no trabalho de campo e deixou claro que para os propósitos da pesquisa era fundamental interagir o máximo possível tanto com os profissionais de redução de danos quanto com os atores sociais por eles acessados. Essa opção fez com que precisasse assumir um papel atuante nos grupos de redução para poder se aproximar e ganhar a confiança dos usuários: cumpriu religiosamente rotinas de visita, vestiu seus uniformes de identificação, organizou mochilas de trabalho, auxiliou em vacinações, elaborou relatórios... Em suma, incorporou-se ao “espírito da linha”.

“Essa trajetória explicita o fato de que meu objetivo inicial não foi estudar o programa ou a política de redução de danos em si, tal como fizeram outros autores, nem o uso do crack especificamente. Para mim, estar com os redutores em campo significava a possibilidade de uma situação de pesquisa bastante privilegiada que me permitiria responder questões deixadas pelo meu estudo anterior”, argumenta Taniele, agora às voltas com a transformação de sua tese em livro.

Recém-completando duas décadas de ingresso no Brasil, notadamente no Estado de São Paulo, o crack chega à maioridade desafiando as políticas de saúde, de segurança pública, urbanísticas e assistenciais, ressalta o estudo. A despeito do caráter novidadeiro e atual do crack, que se reflete na escassa bibliografia específica dedicada ao assunto, a autora acredita, com seu original estudo, ter contribuído de alguma maneira, empírica e metodologicamente, para atenuar o que percebeu ser uma lacuna na literatura nacional em Ciências Sociais dedicada ao tema. Ou ao menos – em uma comparação tão modesta quanto a observação de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) sobre o mérito de um estudo em Antropologia na abertura do clássico O Cru e o Cozido – conseguiu deixar um problema difícil numa situação menos ruim do que aquela em que foi encontrado.

A voz do Usuário
“Eu acordo e já fico louco, arrumo cinco reais e já venho comprar uma pedra e uso uma, duas horas, depende de quantas pessoas estão aqui pra dividir. Aí tenho que sair para a rua pra arrumar mais dinheiro, limpo as calçadas das pessoas que moram aqui perto, tiro a grama que cresce no cimento (nesse momento mostra suas mãos sujas, calejadas e ásperas) e elas me ajudam, dão um, dois reais e eu vou juntando. E quando eu volto pra cá eu não paro mais. Fico aqui até meu corpo não aguentar. Dois, três dias diretos. Sem comer, sem beber, sem dormir. Daí paro, dou um tempo, volto para a minha laje, durmo dois dias seguidos, como e depois venho para cá de novo.” (Fala de um usuário, colhida na linha do Paranapanema. A laje de um supermercado é a sua referência de morada.)

No cachimbo com nome, a vontade de ‘ser gente’
Taniele abre espaço na tese para uma reflexão acerca da relação sentimental estabelecida entre os usuários de crack e os objetos mediadores do consumo da droga: os cachimbos. Nas cenas de uso, esses utensílios perdem sua função meramente instrumental; ganham a esfera da intimidade e nomes próprios: Bóris, Catarina e outros capazes de revelar uma afeição entre usuário e o artefato que lhe permite inalar a entorpecente fumaça.

Com folha de alumínio, isqueiro cortado ao meio, cano de PVC, porcas de parafuso, sacolas plásticas, pedaços de bambus, de antenas de rádio ou de guarda-chuvas, é possível fazer um recipiente que, ao receber uma base, em muitos casos protegida por um papel alumínio picotado com algum material cortante, está pronta para que o pó de crack, ou a pedra inteira, se misture às cinzas de cigarro. O uso de latas de refrigerante ou embalagens de iogurte também é comumente observado, relata a antropóloga.

Ao comparar os locais de consumo pesquisados, ela vê ainda uma estreita relação entre esses espaços e a confecção dos diferentes tipos de cachimbos encontrados, pois a tarefa requer disponibilidade de tempo e condições adequadas, justifica.

“A territorialidade de uso importa aqui porque, quando o cenário não possibilita a feitura desses objetos, o cachimbo se torna mercadoria. Na região mais pública da “cracolândia”, cachimbos são fabricados e vendidos por alguns comerciantes do local, por comerciantes de drogas que fazem a venda casada da pedra com o cachimbo e por outros usuários. Dependendo do material utilizado, o valor pode chegar até dezessete reais”, descreve Taniele em seu estudo.

Assim como os usuários, os cachimbos são alvo de políticas de saúde pública e da repressão policial. Na “cracolândia” frequentemente são recolhidos pela polícia. Na falta do cachimbo e do dinheiro para comprá-lo, consumidores tornam-se propensos a compartilhar entre si o aparato, o que suscita orientações específicas dos programas de redução de danos com o intuito de evitar a transmissão de doenças como hepatites B e C e herpes.

Os redutores oferecem piteiras de silicone para serem anexadas ao cachimbo e manteigas de cacau para a cicatrização e hidratação de feridas bucais. Desestimula-se também o uso de latas para a inalação de crack, porque elas ampliam a superfície de contato ao redor da boca – aumentando as queimaduras labiais e o risco de contaminação por doenças – e podem transmitir infecções quando se desconhece a sua origem.

Para Taniele, as diferentes vivências dos usuários com o instrumento mostram também que o cachimbo marca hierarquias e diferenciações internas entre os próprios consumidores. E mais: levando em conta a precariedade que marca as vidas dessas pessoas, ela identifica no uso de crack no cachimbo a fronteira última de humanidade e dignidade de que podem dar prova esses usuários. Em outras palavras, ter o próprio cachimbo pode revelar a vontade de ser gente.

NE concentra maior parte dos consumidores
Os usuários regulares de crack e/ou de formas similares de cocaína fumada somam 370 mil pessoas nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. O contingente responde por 35% do total de consumidores de drogas ilícitas (com exceção da maconha), estimado nesses municípios em 1 milhão de brasileiros. Os dados integram estudo encomendado pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e divulgado em setembro deste ano.

Contrariando o senso comum, segundo o qual o consumo é maior no Sudeste, o Nordeste concentra a maior parte dos consumidores: aproximadamente 150 mil usuários de crack, cerca de 40% do total de pessoas que fazem uso regular da droga em todas as capitais do país.

O levantamento mostra ainda que, entre os 370 mil usuários, 14% são menores de idade. Isso indica que cerca de 50 mil crianças e adolescentes usam regularmente a substância nas regiões pesquisadas. A maior parte deles (56%) também está concentrada nas capitais do Nordeste, com 28 mil menores nesta situação.
Mistura barata de cocaína com bicarbonato de sódio, água e uma série de outras substâncias, cujo aquecimento resulta em pequenos grãos, o crack não é uma droga nova, mas um novo jeito de administração da cocaína: fumada em vez de cheirada ou injetada – o que o faz ser considerado mais capaz de causar consumo compulsivo devido à facilidade de uso e à rápida absorção.

De acordo com o documento Usuários de Substâncias Psicoativas: abordagem, diagnóstico e tratamento (2003) da Associação Médica Brasileira, Conselho Federal e Conselhos Estaduais de Medicina, a cocaína cheirada leva cerca de 2 a 3 minutos para iniciar a ação e os efeitos duram por volta de 30 a 45 minutos; na injetada a ação se inicia em cerca de 30 a 45 segundos e os efeitos duram de 10 a 20 minutos; na forma fumada a ação tem início depois de 8 a 10 segundos e os efeitos duram de 5 a 10 minutos. Segundo o documento, “quanto mais rápido o início da ação, maior a sua intensidade; quanto menor a sua duração, maior será a chance de o indivíduo evoluir para situações de uso nocivo e dependência”.

Muito popular nos EUA desde meados da década de 1980, a droga teria surgido na cidade de São Paulo entre os anos de 1987 e 1990, segundo o livro Crack – O Caminho Das Pedras, do jornalista Marcos Uchoa (morto em 2005). Em Campinas, a data supostamente inaugural é maio de 1992, de acordo com a reportagem “Campinas registra primeiro caso de crack” publicada pela Folha de S.Paulo em 15 de maio de 1992, conforme pesquisou Taniele.

Ainda segundo seu estudo, o crack, antes vendido sob a forma de pedra, agora é comercializado também em forma de farelo, com a pedra já bastante macerada. Esse segundo modo permite a venda da droga também em pequenas porções. O preço da pedra é 5 ou 10 reais, dependendo o tamanho, e um farelo pode ser comprado por um valor que varia entre 50 centavos e dois reais.


Publicação
Tese: “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”
Autora: Taniele Rui
Orientadora: Heloisa André Pontes
Coorientadora: Simone Miziara Frangella
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Fapesp

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Crack: novos estudos desmentem os mitos

(Disponível em http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/crack-novos-estudos-desmentem-os-mitos/)

Nos EUA, uma pesquisa intrigante revela: ideia da “dependência para sempre” é absurda; deve-se oferecer oportunidades, ao invés de estigmatizar usuários

No New York Times, com tradução do blog Desentorpecendo a Razão

Muito antes de ele trazer pessoas para seu laboratório, na Universidade de Columbia, para fumar crack, Carl Hart viu os efeitos da droga em primeira mão. Crescendo na pobreza, ele assistiu os parentes se tornarem viciados em crack, vivendo na miséria e roubando de suas mães. Amigos de infância acabaram em prisões e necrotérios.

Esses viciados pareciam escravizados pelo crack, como ratos de laboratório que não conseguiam parar de pressionar a alavanca para obter mais cocaína, mesmo quando eles estavam morrendo de fome. O crack fornecia a poderosa dopamina ao centro de recompensa do cérebro, de modo que os viciados não poderiam resistir a uma outra dose.

Pelo menos era assim que Dr. Hart pensava quando ele começou a sua carreira de pesquisador na década de 1990. Como outros cientistas, ele esperava encontrar uma cura para o vício neurológico, algum mecanismo de bloqueio da atividade da dopamina no cérebro, de modo que as pessoas não sucumbissem ao desejo de outra forma irresistível para a cocaína, heroína e outras drogas altamente viciantes.

Mas, depois, quando ele começou a estudar os viciados, ele viu que as drogas não eram tão irresistíveis, afinal.
“Oitenta a 90 por cento das pessoas que usam crack e metanfetamina não ficam viciadas”, diz o Dr. Hart, professor associado de psicologia. “E o pequeno número de pessoas que se tornam viciadas não se parecem com as populares caricaturas de zumbis.”

Dr. Hart recrutou viciados oferecendo-lhes a chance de fazer 950 dólares, enquanto fumavam crack feito a partir de cocaína farmacêutica. A maioria dos entrevistados, assim como os viciados que ele conheceu crescendo em Miami, eram homens negros de bairros de baixa renda. Para participar, eles tinham que viver em uma enfermaria de hospital por várias semanas durante o experimento.

No início de cada dia, com pesquisadores assistindo através de um espelho unidirecional, uma enfermeira colocava uma certa dose de crack em um tubo – a dose variava diariamente. Apesar de fumar, o participante ficava de olhos vendados para que não pudesse ver o tamanho da dose desse dia.

Em seguida, depois do uso inicial, eram oferecidas a cada participante mais oportunidades, durante o dia, para fumar a mesma dose. Mas, a cada vez que a oferta era feita, os participantes também podiam optar por uma recompensa diferente, a qual poderiam obter quando finalmente deixassem o hospital. Às vezes, a recompensa era de US $ 5 em dinheiro, e às vezes era um voucher de R $ 5 para mercadoria em uma loja.

Quando a dose de crack era relativamente alta, o participante, normalmente, escolhia continuar a fumar durante o dia. Mas quando a dose era menor, era mais provável a escolha do prêmio alternativo.

“Eles não se encaixavam na caricatura do viciado em drogas que não conseguem resistir à próxima dose”, disse Hart. “Quando eles receberam uma alternativa para parar, eles fizeram decisões econômicas racionais.”

Quando a metanfetamina substituiu o crack como o grande flagelo da droga nos Estados Unidos, Dr. Hart trouxe viciados em metanfetamina em seu laboratório para experimentos semelhantes – e os resultados mostraram decisões igualmente racionais. Ele também verificou que quando aumentou a recompensa alternativa para US $ 20, os viciados em metanfetamina e crack escolheram o dinheiro. Os participantes sabiam que iriam receber o dinheiro somente no fim do experimento, semanas depois, mas eles ainda estavam dispostos a esperar, abrindo mão do prazer imediato da droga.

As descobertas feitas Dr. Hart o fizeram repensar tudo o que ele tinha visto na juventude, como ele relata em seu novo livro, Alto Preço. É uma combinação fascinante de memórias e ciência: cenas dolorosas de privação e violência acompanhadas por análise serena do histórico de dados e resultados de laboratório. Ele conta histórias horripilantes – sua mãe o atacou com um martelo, seu pai encharcado com um pote de calda fervente – mas então ele olha para as tendências que são estatisticamente significativas.

Sim, diz ele, algumas crianças foram abandonadas pelos pais viciados em crack, mas muitas famílias de seu bairro foram dilaceradas antes do crack – incluindo a sua. (Ele foi criado em grande parte por sua avó.) Sim, os primos se tornaram viciados em crack, vivendo em um galpão abandonado, mas tinham abandonado a escola e estavam desempregados, muito antes do crack.

“Parece haver muitos casos em que as drogas ilícitas têm pouco ou nenhum papel para a ocorrência daquelas situações degradantes”, escreve o Dr. Hart, agora com 46 anos. Crack e metanfetamina podem ser especialmente problemáticas em alguns bairros pobres e áreas rurais, mas não porque as próprias drogas são tão potentes.

“Se você está vivendo em um bairro pobre privado de todas as opções, há uma certa racionalidade em continuar a tomar uma droga que vai lhe dar algum prazer temporário”, disse o Dr. Hart em uma entrevista, argumentando que a caricatura de viciados em crack escravizados vem de uma má interpretação das famosas experiências com ratos.

“O principal fator é o ambiente, se você está falando de seres humanos ou ratos”, disse Hart. “Os ratos que continuam pressionando a alavanca para a obtenção de cocaína são os que foram criados em condições solitárias e não têm outras opções. Mas quando você enriquece o seu ambiente, dando-lhes acesso a doces e deixando-os brincar com outros ratos, eles deixam de pressionar a alavanca”.

“Guerreiros contra as drogas” podem ser céticos em relação a seu trabalho, mas alguns outros cientistas estão impressionados. “O argumento geral de Carl é persuasivo e referendado pelos dados”, disse Craig R. Rush , um psicólogo da Universidade de Kentucky que estuda o abuso de estimulantes. “Ele não está dizendo que o abuso de drogas não é prejudicial, mas ele está mostrando que as drogas não transformam as pessoas em lunáticos. Elas podem parar de usar drogas quando são fornecidos reforçadores alternativos”.

Uma avaliação semelhante vem de Dr. David Nutt , especialista britânico sobre abuso de drogas . “Eu tenho uma grande simpatia com a visão de Carl”, disse Nutt, professor de neuropsicofarmacologia do Imperial College London. “O vício sempre tem um elemento social, e este é ampliado em sociedades com poucas opções de trabalho ou de outras formas de encontrar satisfação.”

Então, por que manter o foco tanto em medicamentos específicos? Uma razão é a conveniência: É muito mais simples para os políticos e jornalistas se concentrarem nos males das drogas do que lidar com os grandes problemas sociais. Mas o Dr. Hart também coloca parte da culpa sobre os cientistas.

“Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos”, disse Hart. “Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que temos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O Poder na Sombra (Por Marcelo Degrazia)

(Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/o-poder-na-sombra/)

Já não basta eleger ou derrubar governos: Estados vigiam, mas quem decide são as corporações. Movimentos sociais saberão reagir?

Por Marcelo Degrazia*

A recente intimidação do GCHQ, a inteligência secreta inglesa, ao jornal The Guardian e a invasão da NSA, a inteligência secreta dos EUA, nos arquivos da Petrobras criam uma boa ocasião para refletir sobre terrorismo, livre-mercado, democracia, liberdade de expressão e independência de imprensa.

Não é absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois tipos de terrorismo, o disseminado e o concentrado. O primeiro está a cargo de grupos como Taliban, Al-Qaeda e outros. Empregam a violência extrema em nome de Deus ou da Nação, quando não em nome de ambos, e o resultado é a morte de inocentes, como no Afeganistão, Síria e Iraque, só para ficarmos nos exemplos mais atuais. Prometem democracia e a melhora das condições de vida em seus territórios, mas ao tomar o poder promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são cometidos os maiores crimes contra a humanidade.

O terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o terror oficial, com lei e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo acabado disso, a Inglaterra fica só um pouquinho atrás. Não é apenas gratidão pelo apoio recebido na Segunda Guerra Mundial, é sobretudo alinhamento político, econômico e financeiro com a grande potência para extrair mais e melhores dividendos. Ao invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara do servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros ganhos de mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.

Alguns analistas classificam isso de nova face do imperialismo, outros de neocolonialismo. O nome não importa, é o velho movimento expansionista do capitalismo versão ocidental, cuja índole se assemelha à invasão das Américas. Após a invasão do Iraque, Tony Blair veio a público dizer o que todo o mundo já sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria suficiente para derrubar seu gabinete.

Os EUA, assim como muitos Estados nesta época de nuvem informática, estão desenvolvendo uma rede imperial de acesso às informações privadas, coisa que bancos, lojas de departamento, redes de telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a polícia e a Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de serpentes, Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula infantil, mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia em conceitos como democracia e livre-mercado.

John Gray, em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global, já havia denunciado a contradição de uma liberdade de mercado organizada pela intervenção legal do Estado. A acusação feita pelo ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova material do crime. Mas possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar qualquer argumento a favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos da Petrobras escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da natureza capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.

O dedo acusador da roupa transparente do rei é o fim do conceito de livre-mercado e elimina qualquer reflexão de ética associada ao sistema econômico capitalista, justamente por este não se estruturar a partir de princípios éticos nem conter em seu horizonte de ação qualquer objetivo social. No início dos anos 1970, a revelação de espionagem do diretório do partido Republicano por parte do governo Nixon resultou na queda deste. Mas alguma coisa não permitiu ou não forçou a queda de Blair nem de Bush nem de Obama. Por quê?

“Guerra ao terror”

Muito já se falou que o 11 de Setembro, se não foi obra arquitetada pelos próprios falcões na Casa Branca, foi o motivo esperado pelos EUA para uma nova investida militar, com o objetivo de abrir mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA, através de Bush, se declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por extensão, contra o terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente Médio.

Foi uma declaração unilateral contra uma organização, numa curiosa assimetria, pois a guerra quente é sempre Estado contra Estado, ou uma força dentro dele contra ele mesmo, como a da Secessão, por exemplo. Mas servia aos propósitos de vender armas dos fabricantes apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento maior e mais barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma região com centenas de milhões de consumidores.

Nesse movimento, passaram por cima das determinações da ONU e da recomendação dos países contrários à invasão, mataram milhares de civis inocentes, destruíram parte da riqueza do país (para a reconstrução com dinheiro a juros de banqueiros ocidentais e a instalação de empresas dos aliados de seu governo), torturaram soldados (que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as leis no império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de setembro serviu como o grande ponto de virada na democracia anglófila, com o consequente avanço do terrorismo de Estado e a diminuição das garantias individuais.

Que democracia?

Na democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por um punhado de atenienses livres não levavam em conta a vontade nem as condições da imensa maioria da população, pelo simples motivo de que eram escravos ou mulheres. Ou seja, democracia de alguns para alguns.

Hoje, se quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e ainda fazem a política, a realpolitik, deixando de lado todo traço quixotesco de idealismo, os dois grandes modelos seriam as experiências dos ingleses e dos norte-americanos, ou a democracia anglófila. São séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a América Latina e a Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir melhor experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em bastiões da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que pesem a experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial contemporâneo dos EUA.

Como podem as duas sociedades com a experiência mais larga nesse regime assistir impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis das garantias individuais através de práticas totalitárias? Quando o mundo assiste indiferente a essa escalada do terror concentrado de Estados ocidentais, os partidários da realpolitik já podem estufar o peito e dizer, como os generais da última ditadura brasileira: vivemos numa democracia relativa.

O relativismo da democracia atual estaria caracterizado não apenas por essa prática invasiva no âmbito privado e no público, mas também por outra característica bem especial. Na época dos impérios, dos reis absolutistas, das ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do mandatário do poder se deu pela força ou por acordos de camarilha, com o aval dos sacerdotes, das igrejas e mesquitas, dos suseranos, líderes provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a participação do povo, a não ser como massa de manobra, como exemplificam as revoluções burguesas e o voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o seu requinte: o sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de império, cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.

No ambiente político atual, em que os compradores de votos para reeleição e os mensalistas da governabilidade também agem livremente para assegurar os seus privilégios e os de seus apoiadores na sombra, podemos afirmar que a democracia age de baixo para cima apenas para legitimar o exercício do poder. Mas, pelo que temos assistido nos últimos anos, por aqui e sobretudo naquelas duas democracias seculares, nem as eleições nem as leis são suficientes para obrigar a conduta dos governantes.

À exceção de um Collor, que caiu muito mais por vontade do Congresso do que pela voz das ruas (o povo outra vez feito massa de manobra), os governantes nessas democracias relativas parecem garantir com os votos a impunidade; nada de muito grave lhes ocorrerá até o fim de seus mandatos. Democracia de baixo para cima é isso; de cima para baixo: autocracias, oligarquias… O interesse do povo só é levado em conta quando se traduz em consumo, quando pode garantir lucro financeiro para as corporações e ganho político para os governos.

Mídia sem independência

Basta acompanhar o noticiário da grande imprensa. A qualquer ameaça de restrição da liberdade de informar, com todo acerto, chovem protestos. Mas esse não é o ponto nevrálgico. Ao contrário, diríamos até que para os grandes órgãos de comunicação a defesa da liberdade de expressão tem servido para uma estratégia cabotina de encobrimento de outro dado real. É verdade que algumas decisões judiciais, contra o bom senso e os dispositivos constitucionais, têm cerceado o direito público à informação, em especial nos assuntos que envolvem o Estado, seja na pessoa de seus servidores e governantes, seja nas políticas imperiais de guerra ou de favorecimento econômico, como foram os assaltos às economias atingidas pela crise de 2008. Crise aliás provocada pelos agentes econômicos com a conivência dos governantes, em especial do bastião liberalista Alan Greenspan, para quem muitos queriam dar o Nobel de Economia…

O bom argumento, o da liberdade de expressão, tem no entanto se prestado para a chamada grande mídia escamotear um valor que nos parece tão ou mais importante: a independência da imprensa. Quando ela se alinha de maneira acrítica com um candidato; quando sempre amplifica as más notícias do governo de um determinado partido; quando evita aprofundar assuntos polêmicos como os crimes ecológicos, a falta de abertura para bancos asiáticos, a descriminalização da maconha, a reforma agrária etc; quando evita qualquer apoio a políticas, valores e esforços dos “pequenos” contra os valores hegemônicos do capitalismo; quando retira de seu horizonte a “cultura” em favor de produtos culturais meramente de consumo; quando evita escancarar condutas socialmente nocivas de seus patrocinadores; quando suprime a crítica aos políticos que apoiaram nas eleições passadas ou aos que ainda podem de alguma forma lhes ser úteis no futuro; quando não defende maior abertura de concessões para novos veículos de comunicação; quando se alinha e dissemina a política agressiva de um governo que lhe favorece; quando embarca em campanhas nacionalistas que servem para interesses de grandes corporações ou do governo com o qual tem trocas vantajosas; quando evita abordar os podres do grande concorrente ou até mesmo problemas internos como demissões em massa de seus quadros; quando se alinha ou silencia diante de um esforço de guerra injusta do Estado.

Quando a velha mídia, ao abandonar sua função primordial de fiscalização e crítica aos governos e às sociedades, se alinha com o poder em nome de lucros financeiros e de seu próprio empoderamento, ocorre o que podemos chamar de falta de independência. Então cabe a pergunta, sobretudo em sociedades de democracia relativa como são as nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma mídia sem independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta assim a liberdade de informar?

Menos mal que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma mídia dissidente, através de publicações impressas, mas sobretudo revistas e jornais online e blogs. São espaços sem grandes recursos financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado a reflexão dos temas espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de maneira superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria imprensa, a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa acolhida nessas “pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos, defendam seus interesses, notamos nesses novos espaços maior liberdade de expressão com mais independência. Não é por outro motivo que, volta e meia, ouvimos algum arauto do poder advogar a regulamentação da internet, o nosso pequeno grande reino da liberdade.

Poder na sombra

A conclusão inquietante de tudo isso é que já não importa mais derrubar o governo. Quando Nixon caiu em virtude de sua espionagem no Watergate, as corporações, em especial as financeiras (que recém começariam, no início dos anos 1970, a criar o que hoje conhecemos por mercado financeiro internacional), ainda não tinham atingido o grau de maturidade e força que só foi possível pela desregulamentação dos mercados e pela globalização.

Até aí, com a chave do cofre num bolso e as restrições legais ao capital no outro bolso, o presidente de uma grande potência como os EUA ainda não era apenas um mero agente de relações públicas. O mundo vivia à véspera da criação dos eurodólares via City de Londres, antes de Reagan e sua Guerra nas Estrelas e antes das privatizações de Thatcher e do consenso de Washington com o Bush pai, mas já iniciara o recuo das conquistas do Estado de bem-estar social. A acumulação de capital transbordou do bolso, as regras rígidas foram flexibilizadas, as corporações ganharam um gigantismo e um poder de corromper, impor e rasgar códigos como nunca tinha sido imaginado e muito menos admitido pelos políticos mais conservadores.

Hoje as corporações compram presidentes e ministros em todos os continentes, compram governos inteiros na África, transformam populações de países pobres em cobaias de suas experiências com remédios e demais produtos farmacêuticos e alimentares, ainda ou sobretudo quando esses produtos, com componentes cancerígenos, são proibidos em seus países de origem.

Hoje essas corporações compram decisões judiciais, eliminam advogados, jornalistas, funcionários do ministério público, juízes, investigadores. Hoje elas indicam e demitem secretários de Estado, elegem deputados, apontam governadores e senadores. Hoje elas decidem a ocasião e a intensidade das crises, e ainda escolhem os bodes expiatórios (as vítimas que devem ser chutadas para fora do mercado, como o Lehman Brothers). Hoje esses agentes maquiam os balanços, driblam os impostos ou forçam sua redução, elegem paraísos fiscais e, com a conivência de seus congêneres financeiros, escolhem o melhor caminho para escapar da malha fina. E ainda compram o silêncio e até mesmo a conivência da grande imprensa corporativa, associada ao projeto comum de garantir o lucro máximo.

Hoje o poder está na mão dessas corporações, já não vale mais a pena forçar a queda de um governo, ainda mais se esse governo, além de corrupto e corruptor, está ali justamente para fazer o jogo que lhes interessa. Máfia? Teoria da Conspiração? Cada um escolha o nome que menos perturbe o seu sono, mas a verdade parece uma só: tenham o nome que tiver, são essas feras que, na sombra, governam muitos de nossos caminhos e decidem afinal a música que deve tocar.

Até quando será assim, se os movimentos sociais serão capazes de trocar o disco ao invés de dançar sempre conforme a música, não sabemos. Mas que não vivemos num mundo plenamente democrático, disso já não resta a menor dúvida. E com o requinte das eleições (pois dessa válvula de escape, reguladora e legitimadora do sistema econômico, nem os donos do poder querem abrir mão) não precisam mais de césares, imperadores, reis, czares. Nem mesmo de gente como Stálin, Hitler, Mussolini, Roosevelt, Getúlio, Perón & Cia., porque o enfraquecimento dos Estados nacionais (entenda-se: os Estados periféricos) e a representação política de fancaria realizam o trabalho sujo de aplainar o caminho para o avanço das corporações.

Não nos iludamos, esse tipo de gente nunca gostou de democracia, e por uma razão muito simples: não gostam de povo, a não ser como massa consumidora e/ou de manobra. Será uma ditadura, um totalitarismo, essa democracia consentida e relativa? Em todo caso, não cheirará melhor do que hoje. Outro requinte: terá a sua imprensa livre…

Será que voltarão fantasmas como socialismo, comunismo, revolução, ideologia, Estado forte, intelectuais orgânicos, luddismo…? Ou será que as sociedades, organizadas em torno de valores como cooperativismo, solidariedade, compartilhamento e uma distribuição melhor da riqueza humana, tudo interligado a uma ética ecológica, conseguirão encontrar melhores alternativas a esse estado de coisas?

Quanto à intimidação no The Guardian, foi para inglês ver… Quer dizer, foi para americano ver. O episódio na verdade é uma piada no tom do velho humour britânico, e ilustra o juízo que os ingleses fazem dos norte-americanos. Quem, em pleno século XXI, acreditaria numa pantomima dessas. O GCHQ sabe que os seus compatriotas desconfiam que os dados procurados pela inteligência secreta não terminam ali, no disco rígido nem no pendrive, mas já correm feito vírus por outros sistemas da cibercultura.

A piada é que eles acham que os americanos não sabem disso…

* Marcelo Degrazia é escritor, autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blogue Concerto de Letras.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Maioridade Penal

"Se eu acreditasse por um segundo que aumentar os anos de internação ou reduzir a maioridade penal diminuiria a violência, estaria fazendo campanha neste momento." Eliane Brum

http://revistaepoca.globo.com//Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/04/pela-ampliacao-da-maioridade-moral.html
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