domingo, 30 de junho de 2013

Michelangelo

"Querido para mim é meu sono, ainda mais se de pedra, enquanto o erro e a vergonha ficam: não ver, não sentir, grande sorte para mim."

sábado, 29 de junho de 2013

Não caiu a ficha, por Cristovam Buarque

As surpreendentes mobilizações dos últimos dias podem ser explicadas em dez letras: “caiu a ficha”. Não se sabe exatamente o que levou a ficha a cair neste exato momento, mas todos os ingredientes já estavam dados. A maior surpresa foi a surpresa.

Caiu a ficha de que o Brasil ficou rico sem caminhar para a justiça: chegou a sexta potência econômica, mas continua um dos últimos na ordem da educação mundial. Também caiu a ficha de que sem educação não há futuro, e de que por isso, 13 anos depois de criada, a Bolsa Família continua necessária, sem abolir sua necessidade.

Caiu a ficha de que em 20 anos de governos socialdemocratas e dez anos do PT no poder ampliamos o consumo privado, mas mantivemos a mesma tragédia nos serviços sociais, nos hospitais públicos e nas escolas públicas. Caiu a ficha de que o aumento no número de automóveis em nada melhora o transporte, ao contrário, piora o tempo de deslocamento e endividamento das famílias. Caiu a ficha de que o PIB não está crescendo e se crescesse não melhoraria o bem estar e a qualidade de vida. Caiu a ficha de que no lugar de metrópoles que nos orgulhem temos “monstrópoles” que nos assustem.

Caiu a ficha do repetido sentimento de que a corrupção não apenas é endêmica, ela é aceita; e os corruptos, quando identificados, não são julgados; e se julgados não são presos; e se presos não devolvem o roubo. E de que os políticos no poder desprezam as repetidas manifestações de vontade popular.

Caiu a ficha de que o povo paga a construção de estádios, mas não pode assistir aos jogos. E de que a Copa não vai trazer benefícios na infraestrutura urbana das cidades-sede como foi prometido. Aos que viajam ao exterior, caiu a ficha da péssima qualidade de nossas estradas, aeroportos e transporte público.

Caiu a ficha de que somos um país em guerra civil, onde 100 mil morrem por ano por assassinato direto ou indireto no trânsito.

Caiu a ficha também de que as mobilizações não precisam mais de partidos que organizem, de jornais que anunciem, de carros de som que conduzam, porque o povo tem o poder de se autoconvocar por meio das mídias sociais. A praça hoje é do tamanho da rede de internet, e é possível sair das ruas sem parar as manifestações e voltar a marchar a qualquer momento. Na prática, caiu a ficha de que é fácil fazer guerrilha-cibernética: cada pessoa é capaz de mobilizar milhares de outras de um dia para o outro em qualquer cidade do país.

Mas, entre os dirigentes nacionais ainda não caiu a ficha de que mais de dois milhões de pessoas nas ruas não se contentam com menos do que uma revolução. Mais de dois milhões não param por apenas 20 centavos nas passagens de ônibus. Eles já ouvem às ruas, mas ainda não entendem o idioma da indignação. Nem caiu a ficha de que só manifestações não bastam. É preciso fazer uma revolução na estrutura, nos métodos e nas organizações da política no Brasil: definir como eleger os políticos, como eles agirão, como fiscalizá-los e puni-los.



Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF.

A maioridade do povo, por Maurício Dias

Escrito por Maurício Dias. Publicado na Carta Capital, acesso em: http://www.cartacapital.com.br/revista/755/a-maioridade-do-povo-7725.html

Não houve na imprensa brasileira foco mais acertado sobre a reação da presidenta em atenção à voz das ruas. Ele se expressou no diário carioca O Dia, na terça-feira 25. No caminho inverso da motivação que levou à formação de passeatas, o jornal, de viés popular, ilustrou sua primeira página com a manchete: “Dilma vai às ruas”.

Os dias seguintes confirmaram esse caminho inicial, mas no meio do caminho havia pedras. Muitas pedras. Assim, a presidenta Dilma Rousseff se movimentou nos limites do cargo e limitada à tese liberal de que é preciso haver ruptura para a criação de uma Constituinte.

De qualquer forma, essa mudança no comportamento popular criou uma situação inédita no País. O povo não foi mobilizado por líderes ou partidos políticos. Rompeu amarras e decidiu influir. Nesse ponto atingiu a maioridade.

Os governantes, de alto a baixo, temeram. A polícia, fiel à origem de surrar o povo inquieto, baixou o pau. Foi forçada, porém, a recuar e aposentar até mesmo as balas de borracha. Oficialmente, no saldo do conflito, foram presas, em todo o País, quase mil pessoas. Seriam todos arruaceiros?

No calor dos acontecimentos, Dilma, tocada pelas cenas transmitidas para o Brasil e para o mundo, “juntou-se” ao movimento. Anunciou decisões e propôs a formação de uma Constituinte restrita, no entanto, à tarefa de fazer a reforma política.

A presidenta foi freada. Recuou e não avançou. Tinha condições políticas adequadas de propor ao Congresso a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva e escolhida paralelamente à eleição presidencial de 2014. Já então distanciada do calor dos acontecimentos.

“Sem a plenitude da participação do povo, o governo não será nunca um governo constitucional, mas governo de fato, dissimulado em aparências constitucionais ou sem essas aparências”, diz o jurista e historiador Raymundo Faoro, em Assembleia Constituinte – A legitimidade recuperada.


Faoro desfez o mito resgatado agora e, de novo, no tabuleiro das decisões. O mito sustenta que as constituintes devem seguir-se necessariamente a rupturas. É uma mentira histórica para “quem conhece alguma coisa da história contemporânea”. Assim Faoro espicaça os analistas contemporâneos.

“A Constituinte dissolvida em 1823 foi convocada em 3 de junho de 1822, portanto, antes da Independência, exatamente para organizar o berço em que esta deveria nascer (...) A Constituinte eleita em 2 de dezembro de 1945 foi convocada por Getúlio Vargas em 28 de fevereiro do mesmo ano, ainda vigente o Estado Novo...”

No movimento das ruas não se projeta uma revolução. Há uma aspiração por mudanças profundas descoladas do processo político fraudulento e viciado.

Esse sentimento guia o barulho das multidões nas ruas e o silêncio dos que ainda não se manifestam. Por ora, talvez possam sufocar os anseios. Sem mudanças profundas, no entanto, haverá uma próxima vez. Eles voltarão.

Injustiça
Se houvesse no País um prêmio por demérito, o ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça, levaria o troféu. Ele resiste a homologar a anistia de 190 funcionários do Arsenal de Marinha, no Rio de Janeiro. Punidos na ditadura, a Comissão de Anistia reconheceu o direito deles a uma indenização.

Parece que o ministro não se preocupa com os habitantes do Brasil de baixo.

Aonde vais, Joaquim?
O canal fechado GloboNews abriu espaço para a entrevista de 40 minutos do ministro Joaquim Barbosa, após encontro dele com a presidenta Dilma Rousseff.

Barbosa tem sido testado em pesquisas como candidato a presidente e declarou na ocasião que os partidos políticos brasileiros estão falidos.

Na oportunidade, pregou a criação de candidatos avulsos a todos os cargos. Coincidência ou descuido planejado, ministro?

O inimigo mora ao lado
Manifestantes acampados perto da casa do governador Sérgio Cabral, no Leblon, zona sul do Rio, não sabem que, ao lado, habita Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, um dos alvos do movimento.

Ocupa um apartamento de mil metros quadrados, que pertencia ao empresário John Casablancas, da Elite Model.

Hoje, o imóvel é de Ronaldo Fenômeno. Ele entrega por uma bagatela em torno de 40 milhões de reais.

Nau de Cabral I
Sérgio Cabral (PMDB), governador do Rio, quer a cabeça do senador Lindberg Farias (PT) a qualquer preço. Lindberg, eleito senador em 2010, pretende disputar o governo estadual em 2014, rompendo uma aliança de oito anos com Cabral.

Pesquisa Vox Populi mostra que o petista, com 23,5% das intenções de voto, tem grande vantagem sobre o candidato de Cabral, o vice-governador Luiz Fernando Pezão, com 9,1%.

Mas quem puxa a corrida é o ex-governador Anthony Garotinho, com 26,3%. Ele faz o papel de “coelho”, que sai na largada e abandona a corrida.

Nau de Cabral II
A tabela de rejeição mostra que, até agora, são poucas as chances de Pezão, o candidato do governador. Pezão, pouco conhecido na capital e na Baixada Fluminense, onde se concentram 70% dos votos do estado, tem 5,5% de rejeição.

Garotinho, ex-governador, lidera a lista dos rejeitados com 21%. Cabral ameaça, da boca para fora, deixar Dilma sem palanque no Rio de Janeiro.

O petista Lindberg é hoje o favorito. Além do bom porcentual de intenção de voto, tem baixo índice de rejeição (3,8%).

Provocar não ofende
O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos mete o dedo na ferida:

“Em momentos de crise e de tensão, propostas de reforma política sempre foram diversionistas. Se os políticos brasileiros estão desmoralizados, de que país seriam importados candidatos íntegros à assembleia reformista?”

Demagogia hedionda
Transformar corrupção em crime hediondo é forçar uma homenagem da virtude à hipocrisia.  Pode ser que a lei pegue bagrinhos. Nunca pegará tubarões. Essa reação é similar àquela que vê a pena de morte e a redução da idade penal como ações eficazes contra a violência.

A demagogia, para iludir o clamor das ruas, devia ser crime hediondo.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

P2P: um projeto também para a Democracia? - Bernardo Gutiérrez

Por Bernardo Gutiérrez | Tradução Inês Castilho
Acesso em Outras Palavras: http://outraspalavras.net/2013/04/16/p2p-um-projeto-tambem-para-a-democracia/

Imagine que qualquer cidadão possa dialogar com qualquer conselheiro, deputado, senador ou embaixador. Imagine que possa, com eles, co-criar leis e participar levando ideias para o bem comum. Os governos já não falam apenas com governos. Os ativistas tampouco dialogam somente com ativistas. Nessa nova democracia, há outros mecanismos de diálogo: todos podem falar com todos. E, como se não bastasse, os documentos e conteúdos são totalmente transparentes. Além disso, o sistema não funciona por hierarquia, mas por meritocracia. Quem demonstra mais méritos goza de mais reputação social. Um deputado ou cidadão especialmente ativo em política tem mais autoridade moral que outros.

Benvindos à P2Política, um novo protótipo político que funciona de forma parecida à de uma rede peer-to-peer, rede entre pares ou P2P, na sigla em inglês. Esse tipo de rede, também conhecida como rede distribuída, é a base da Internet. Não tem centro. Quanto mais descentralizada, mais robusta. Qualquer nó pode conectar-se a qualquer nó. E é muito comum encontrá-la no universo da tecnologia e da informática. De fato, nos últimos tempos o formato de rede peer-to-peer é usado como metáfora política. Não por acaso. No mundo do software livre, essa topologia de rede inaugurou novos processos participativos, colaborativos e abertos para a organização coletiva.

Apesar dos ataques iniciais do mercado, o software livre não apenas não desapareceu, como se converteu na base dos gigantes da informática. O mundo sofreria um colapso se, de um dia para outro, não existissem o sistema operativo Linux e a rede de servidores Apache, ambos baseados no software livre. Mas o mais interessante é que seu funcionamento é tão exemplar, tão pouco vertical, que está inspirando o pensamento político. Destaco apenas quatro pontos, que poderão nos ajudar a entender o que é a P2Política.

Governança peer. A governança peer, ou governança dos pares, no mundo do software livre, está baseada em alguns pontos bem concretos – a abertura, a participação, o trabalho em rede e a transparência. A lógica da rede é radicalmente oposta à do mercado ou à da democracia representativa. Os pares não competem, cooperam. Os pares não se regem por uma lógica antagônica – buscam a síntese, ao invés de deslocar o outro. Os pares – qualquer pessoa – podem participar do processo. E os problemas, normalmente, são resolvidos coletivamente, mostrando o código de programação (prática conhecida como release early, release often – libera logo, libera sempre). Aqui entra um novo paradigma: a meritocracia. Javier de la Cueva, em seu artigo Software libre, ciudadanía virtuosa y democracia (Software livre, cidadania virtuosa e democracia), destaca a meritocracia como um dos novos eixos do novo mundo em rede. Uma meritocracia que, longe de basear-se na hierarquia, apoia-se na “sociabilidade, camaradagem, cooperação e virtude cívica”.

Democracia distribuída. A P2Política seria um novo cenário de participação e de interconexão de pares. Democracia distribuída é o título do livro que a Universidade Nômade publicou para abordar as inovações políticas do 15M espanhol. Em certo sentido, a democracia distribuída seria um passo além da democracia aberta. O aberto, isso sim, seria a base desta democracia distribuída de pares conectados.

“O trabalho em rede aberto – como afirma o sociólogo Antonio LaFuente – é o conceito que reúne uma constelação de traços próprios das estruturas horizontais, distribuídas, cosmopolitas, auditáveis e meritocráticas”. A colaboração dos pares, ademais, está dispersa geograficamente, é assimétrica e se organiza em redes.

O fenômeno das Marés da Espanha – mobilizações sociais apartidárias não convocadas por sindicatos – é um claro fenômeno emergente da P2Política. Um novo comportamento em rede, no qual convergem o físico e o digital, o próximo e o distante. Um novo processo que vai substituindo a mediação centralizada dos sindicatos.

Protótipo: a democracia-processo. Em geral, a cultura digital coloca sobre a mesa da P2Política um outro conceito: a prototipagem. O modelo, um arquétipo para imitar ou reproduzir, regeu o passado. O protótipo, primeiro molde imperfeito com que se fabrica alguma coisa, está modelando o presente. O protótipo é melhorado pelos pares. E passa a ser um processo aberto e compartilhado. O sociólogo Alberto Corsín, em Política: modelos y prototipos, alerta sobre a necessidade de construir “um parlamento em permanente abertura e revisão”. Um protótipo de parlamento, qualifica Corsin, “para uma política exemplar (o primeiro molde; uma política protótipo)”.

Estado parceiro, Estado pró-Comum. Michel Bauwens, fundador da Fundação P2P, longe de pensar que as redes vão acabar com o Estado, defende que caminhamos em direção a outro tipo de Estado. O partner State (Estado parceiro) está orientado ao comum e deve garantir as condições para um intercâmbio igualitário entre os pares. Não existiriam, pois, pares – instituições, indivíduos, empresas etc – com mais privilégios que outros para negociar com o Estado. A missão do Estado parceiro seria corrigir a mão invisível do mercado, ineficaz e mitificada. E garantir as condições, infraestrutura e marcos para a colaboração entre os pares, com vistas ao bem comum.

(Este artigo foi escrito como parte e apoio ao WikiSprint P2P global, em razão da Sharing Commons Spring de Barcelona, celebrados dias 20 e 21 de março.)


Bernardo Gutierrez (@bernardosampa) é jornalista, escritor e consultor digital. Pesquisa o mundo P2P e as novas realidades da cultura open source. Fundador da rede de inovação Futura Media.net.

Das revoltas a uma nova política - Antonio Negri e Michael Hardt

Por Antonio Negri e Michael Hardt | Tradução: Daniela Frabasile

Os acontecimentos políticos no mundo hispânico, tanto na América do Sul quanto na Península Ibérica, estão entre os mais inspiradores e inovadores da última década. Por meio de revoltas, de insurreições, da derrubada dos governos neoliberais, da eleição de governos reformistas progressistas, dos protestos contra a política de governos supostamente progressistas e outras ações, expressou-se um espírito indignado e rebelde através de inúmeras experiências sociais e políticas.

Uma série de datas e lugares serve como imagem de lutas contínuas e prolongadas, desde o 1º de janeiro de 1994, em Chiapas, ao 8 de abril de 2000, em Cochabamba, o 19 e 20 de dezembro de 2001, em Buenos Aires, e, mais recentemente, o 15 de maio de 2011, em Puerta del Sol, Madri. Acompanhamos essas histórias, aprendemos com elas e as utilizamos como guia durante a escritura deste livro e depois de sua publicação.

Um dos argumentos de Commonwealth — El proyecto de una revolución del común, que encontra uma forte ressonância com essas lutas, identifica como fonte central do antagonismo a insuficiência das constituições republicanas modernas, particularmente de seus regimes de trabalho, propriedade e representação.

Em primeiro lugar, nossas constituições enxergam o trabalho como chave para o acesso à renda e aos direitos básicos de cidadania, uma relação que durante muito tempo funcionou mal para quem estava fora do mercado de trabalho formal, incluindo os pobres, os desempregados, as mulheres que trabalham sem salário, os imigrantes e outros. Hoje, porém, o trabalho é cada vez mais precário e inseguro, em todas suas modalidades. Naturalmente, o trabalho continua sendo a fonte da riqueza na sociedade capitalista, mas cada vez mais fora da relação com o capital e, geralmente, fora de uma relação salarial estável. Portanto, nossa constituição social continua requerendo o trabalho assalariado para possibilitar ao cidadão plenos direitos e acesso a uma sociedade na qual esse tipo de trabalho está cada vez menos disponível.

A propriedade privada é um segundo pilar fundamental das constituições republicanas, e hoje poderosos movimentos sociais refutam não apenas os regimes sociais e globais de governança neoliberal, mas também, num plano mais geral, o império da propriedade. A propriedade mantém as divisões e hierarquias sociais e gera alguns dos vínculos mais poderosos (e que frequentemente são conexões perversas) que compartilhamos com os demais em nossas sociedades. No entanto, a produção social e econômica contemporânea tem um caráter cada vez mais comum, que desafia e excede os limites da propriedade. Devido à perda de sua competência empresarial e do poder de administrar disciplina e cooperação social, a capacidade do capital em gerar lucros está diminuindo. O capital acumula cada vez mais riqueza utilizando-se, sobretudo, do rentismo organizado mediante instrumentos financeiros, através dos quais captura o valor que é produzido socialmente, e independente de seu poder. Porém, toda instância de acumulação privada reduz a potência e a produtividade do comum. Dessa forma, a propriedade privada está se convertendo não apenas em parasita, mas também em obstáculo para a produção e o bem-estar sociais.

Por último, o terceiro pilar das constituições republicanas — e objeto de um crescente antagonismo — se apoia sobre os sistemas de representação e sua falsa promessa de instituir uma governança democrática. Colocar um fim ao poder dos representantes políticos profissionais é um dos poucos lemas da tradição socialista que podemos afirmar sem restrições hoje em dia. Os políticos profissionais, junto com os chefes das corporações e a elite dos meios de comunicação, não exercem nada além da modalidade mais débil da função representativa. O problema não é tanto que os políticos sejam corruptos (ainda que, em muitos casos, isso também acontece), mas que a estrutura constitucional republicana afasta os mecanismos de tomada de decisão democrática e os desejos da multidão, isolando-os. Todo processo real de democratização deve atacar a falta de representação e as falsas pretensões de representação que estão no centro da constituição em nossas sociedades.

Contudo, reconhecer a racionalidade e a necessidade da rebeldia contra estes três eixos — e contra muitos outros que estimulam as lutas sociais contemporâneas — não é mais que o primeiro passo, o ponto de partida. O calor da indignação e a espontaneidade da revolta devem organizar-se para perdurar e construir novas formas de vida, formações sociais alternativas. Os segredos desse próximo passo são tão raros quanto elevados.

No terreno econômico, temos que descobrir novas tecnologias sociais para produzir livremente em colaboração e distribuir igualmente a riqueza compartilhada. Como nossas energias e desejos produtivos poderão crescer dentro de uma economia que não esteja baseada na propriedade privada? Como proporcionar bem-estar social e recursos sociais básicos a todos e todas numa estrutura social que não é regulada nem dominada pela propriedade estatal? Temos que construir relações de produção e intercâmbio, assim como estruturas de bem-estar social que sejam compostas pelo (e se adequem ao) comum.

Os desafios no terreno político são igualmente espinhosos. Alguns dos acontecimentos e revoltas mais inspiradores e inovadores da última década radicalizaram o pensamento e a prática democrática, organizando um espaço — como uma praça pública ocupada ou uma zona urbana — a partir de estruturas ou assembleias abertas e participativas, mantendo essas novas formas democráticas durante semanas ou meses.

De fato, a organização interna dos próprios movimentos tem sido constantemente submetida a processos de democratização, que se esforçam em criar estruturas de rede horizontais e participativas. Dessa forma, as revoltas contra o sistema político dominante, os políticos profissionais e suas estruturas ilegítimas de representação não aspiram resultar num suposto sistema representativo legítimo do passado, mas em experimentar novas formas de expressão democrática: democracia real já. Como podemos transformar a indignação e a rebelião em um processo constituinte duradouro? Como os experimentos de democracia podem se converter em poder constituinte, não apenas democratizando uma praça pública ou um bairro, mas inventando uma sociedade alternativa que seja democrática?

Essas são algumas das perguntas que investigamos e tentamos responder no livro Commonwealth — El proyecto de una revolución del común. E nos sentimos encorajados, sabendo que não somos os únicos que nos colocamos essas perguntas. De fato, esperamos que esse livro caia nas mãos daqueles que estão descontentes com a vida que nos é oferecida pela sociedade capitalista contemporânea, indignados frente às diversas injustiças, rebeldes contra os poderes de mandar e explorar, e ansiosos por uma forma de vida democrática alternativa, baseada na riqueza comum que compartilhamos.

Não temos a ilusão de sermos capazes de proporcionar as respostas. Pelo contrário: confiamos que os leitores de língua espanhola, colocando-se essas perguntas e lutando por seus desejos, inventarão novas soluções que nem somos capazes de imaginar.

Resposta ao descontentamento, por Nabil Bonduk

A proposta da presidenta Dilma Rousseff de realização de um plebiscito para decidir sobre a promoção da reforma política é uma resposta acertada à insatisfação manifestada nas ruas com a classe política. Abre-se, com a proposta, a possibilidade de um amplo debate com participação efetiva da sociedade.

A população se mostra descontente com os seus representantes eleitos pelo voto porque o atual sistema político-eleitoral distorce as condições necessárias para que a escolha do eleitor esteja realmente identificada com aquilo que ele pensa e espera quando vai às urnas.

A presidenta, com a decisão, assume assim a liderança para colocar na agenda do País uma pauta que já estava nas ruas e vinha sendo defendida por diversos segmentos da sociedade civil organizada. O plebiscito deve corresponder aos anseios da juventude, que exige canais de participação para exercer o direito de influenciar o exercício do poder de seus representantes. Essa será a oportunidade de permitir ao povo que busque uma alternativa para realizar o que o Congresso Nacional vem adiando há décadas.

Como o Congresso Nacional tem se recusado a votar esse tema, o Partido dos Trabalhadores lançou uma campanha pela Reforma Política no último mês de abril, com o objetivo de recolher 1,5 milhão de assinaturas para a apresentação de um projeto de Lei de Iniciativa Popular.

Entre os pontos fundamentais da proposta está o financiamento público exclusivo de campanhas políticas. Esse é o principal instrumento para inibir a corrupção, pois tira de cena o poder econômico como patrocinador dos mandatos eletivos. Também é uma forma de tornar as campanhas eleitorais mais baratas, democratizando o acesso às candidaturas.

Além disso, é fundamental repensar o processo eleitoral e criar novas formas de participação da sociedade nas decisões públicas. Aperfeiçoando o sistema eleitoral, o país aumenta a chance de os cidadãos se sentirem representados pelos eleitos.

A sociedade brasileira tem demonstrado, ainda, que almeja uma democracia participativa, na qual ela possa influir na definição das políticas públicas prioritárias, em um processo dinâmico, de acordo com a conjuntura econômica, social e política dos municípios, dos estados e do país.

Assim, é preciso garantir maior centralidade aos Conselhos e Conferências nas decisões sobre os rumos das políticas públicas, para que eles deixem de ser apenas consultivos para se tornarem deliberativos.

Esse desejo está sendo manifestado principalmente pelos jovens que ganharam as ruas nos últimos dias. A juventude quer mais do que entregar mandatos aos seus representantes; quer decidir como e com o que os recursos públicos serão gastos. Daí a necessidade de efetivar o orçamento participativo e de ampliar outros mecanismos de democracia direta, como projetos de lei de iniciativa popular, plebiscitos e referendos, utilizando as ferramentas virtuais como instrumentos de democratização do poder.

As decisões sobre grandes investimentos, como, por exemplo, a de realizar megaeventos como a Copa do Mundo, deveriam passar por esses mecanismos de democracia direta, limitando o poder de decisão dos governantes.

A onda de protestos que se seguiu à luta pela redução das tarifas do transporte público surgiu em um momento em que várias cidades brasileiras enfrentam o esfacelamento da qualidade de vida, com a crise na mobilidade urbana, com caos no trânsito e transporte coletivo precário, a especulação imobiliária que dificulta o acesso à moradia digna e a escalada da violência urbana, com arrastões e até pessoas sendo queimadas vivas.

Embora o Brasil tenha avançado muito em termos de política social no governo Lula, para a atual juventude estas conquistas já são coisas do passado. Os programas sociais que o governo implantou nos últimos anos – como o Bolsa Família e o Prouni - ocorreram quando os atuais jovens eram crianças. Essas conquistas da população brasileira não são novidade para quem tinha oito ou nove anos de idade quando o ex-presidente Lula assumiu o governo. Eles cresceram ao mesmo tempo em que os resultados das políticas sociais se confirmavam.

Os jovens olham para as condições atuais de vida e para o futuro, desejando, como é natural, mudanças mais profundas. Embora, hoje, encontrar emprego não seja difícil como era nos anos 1980 e 1990, as condições oferecidas não atendem às expectativas da juventude, em termos de remuneração e condições. Muitos dos que se formaram em universidades privadas, inclusive com o benefício do Prouni, não encontram empregos melhores do que tinham antes. Os jovens de hoje, em São Paulo, sempre usaram o bilhete único; não sabem que antes cada vez que se subia em um ônibus se pagava uma nova passagem. Por isso, querem mais, transportes melhores e a custo mais reduzido.

A Reforma Política, a democracia direta, o compromisso com a ética, o combate à corrupção e a luta por direitos sociais para todos, inclusive o transporte público, são pontos essenciais para a juventude e, efetivamente, para todos nós que acreditamos no aprofundamento da democracia.

A novidade para os jovens, mais do que novos programas públicos pontuais como o governo lançou nos últimos dez anos, será alterar as regras para que todos possam participar do jogo político, em busca de avanços que lhes permitam não apenas um futuro melhor, mas a possibilidade de interferir efetivamente nas decisões que afetam a vida do país.



Nabil Bonduki, professor titular do Departamento de Planejamento da FAU-USP, é vereador em São Paulo pelo PT e colunista da CartaCapital.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Mais do que médicos, SUS necessita de investimentos, diz especialista - Rede Brasil Atual

Reportagem feita por Cida de Oliveira pela Rede Brasil Atual, acesso em: http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2013/06/vinda-de-medicos-estrangeiros-8528.html

São Paulo – Para o conselheiro consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Heleno Rodrigues Correa Filho, professor associado da pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os médicos estrangeiros são bem-vindos. Mas desde que a chamada ‘importação’ seja feita dentro da lei e que, acima de tudo, o sistema público de saúde receba os investimentos de que tanto necessita e que os médicos, brasileiros ou estrangeiros, tenham condições adequadas para trabalhar e possam atender dignamente a população.

No começo desta semana, a Associação Paulista de Medicina divulgou manifesto assinado por 63 outras entidades de âmbito regional e nacional, entre elas sociedades médicas de diversas especialidades, da área de Odontologia, de Educação Física e Terapia Ocupacional, faculdades de Medicina, organizações sociais, a Ordem dos Advogados do Brasil, Força Sindical, Proteste Associação do Consumidor e até o sindicato dos professores da rede municipal de São Paulo. As entidades são contrárias a mudanças em estudo no Ministério da Educação para o exame de revalidação do diploma de médicos formados no exterior, o Revalida.

Pressionado por prefeitos de várias cidades do país, com dificuldade para contratar médicos, o Ministério da Saúde estuda atrair profissionais oriundos de países de menor demanda, como Portugal, Espanha e Cuba, para atuar na periferia das grandes cidades ou no interior do país. Está em estudo uma proposta em que o próprio ministério possa avaliar a formação e a qualidade do trabalho do profissional no seu país e o traga com autorização específica, exclusiva, para atuar nessas localidades em que há déficit de atendimento.

Segundo o texto do manifesto contrário à importação de profissionais de medicina, "o governo pretende ignorar esta etapa de avaliação e autorizar o ingresso de 6 mil médicos no país, a maioria deles sem condições de exercer a medicina no Brasil". Os manifestantes ainda conclamam a sociedade a "rechaçar quaisquer subterfúgios para facilitar a entrada de médicos estrangeiros, sem o cumprimento de rigorosa avaliação de capacitação de conhecimento e habilidades" e as autoridades "a apresentar, com urgência, um esboço de política consequente e sustentável de interiorização dos profissionais de medicina."

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Correa Filho à Rede Brasil Atual, em que o especialista discorre sobre as muitas necessidades do SUS para que seja o modelo de atendimento à saúde pública que a sociedade exige:

Como o senhor avalia a proposta de trazer médicos do exterior ao Brasil?

É como rearranjar os móveis na sala sem cogitar se a mobília é adequada. Acho até justo o ministro Alexandre Padilha querer colocar no mercado essa força de trabalho, mas não acredito que seja essa a solução. Vai funcionar se forem tomadas medidas adicionais pelo Ministério da Saúde, pelos estados e municípios. Importar médicos apenas não vai desencadear uma série de reformas que nunca foram feitas.

Nos últimos 20 anos, por meio de uma sequência de políticas, o sistema público de saúde enfrenta a diminuição do financiamento estatal, especialmente da União. Não se pode colocar a culpa nos ombros do Lula e da Dilma, mas em seus governos nada foi feito para melhorar o custeio da saúde. Criou-se o SUS, um sistema unificado público e, na sequência, o Legislativo, inclusive os partidos de esquerda, e o Executivo, foram retirando o financiamento destinado a construi-lo.

Exemplo recente foi a votação da Emenda 29, que estabelece os percentuais a serem investidos no setor pela União, estados e prefeituras. O Legislativo deu com uma mão a votação de uma emenda esperada havia mais de 10 anos e retirou com a outra os recursos para financiar o sistema. (Com a aprovação da emenda, não ficou estabelecido percentual para a União, apenas a obrigação de aplicar o mesmo valor investido no ano anterior).

O que deve mudar com a chegada dos médicos estrangeiros?

Quando se tem uma medida cosmética como essa, é possível mudar a força do trabalho médico, mas não a natureza do serviço prestado pelo sistema. Pode-se criar um mercado de trabalho paralelo para médicos do exterior, que poderão ser colocados sem supervisão e sem política no interior do país, o que é muito ruim.  Há outros aspectos negativos que podem ser colocados, entre eles a falta da perspectiva do que é ou do que deveria ser o SUS na formação do médico.

Chegando aqui, vão atuar em políticas de saúde que desconhecem. Eles podem ser clinicamente competentes, cirurgicamente capacitados, mas vão continuar sendo inadequados ao sistema por desconhecer como ele funciona. É preciso mais do que uma capacitação linguística. Senão vão acabar tumultuando e até ajudando a direcionar a saúde ainda mais para a privatização como já está acontecendo: terceirização, privatização, Organizações Sociais,  ONGs.

Ou vão começar a fazer passeata nas ruas para pedir financiamento para o SUS; e eu vou estar com eles. A situação estará posta de uma maneira que não é aquela que esperamos. E a direita médica está morrendo de medo destes médicos "vermelhos", cubanos, em sua maioria negros e mulheres, colocando em xeque a discriminação que não vai tolerar esses médicos.

O senhor é a favor dessa 'importação'?

Não tenho nada contra. Aliás, escrevi muito sobre isso em meus textos no blog do Cebes, onde critico a resistência das corporações médicas contra os estrangeiros. Eles não resistem apenas à chegada dos estrangeiros ao país: resistem à revalidação de diplomas de filhos de brasileiros, de brasileiros natos que estudam no Exterior.

São vários os motivos. O mais claro deles é a reserva de mercado. Impõem provas que mesmo os que as elaboram são incapazes de passar. Fazem provas altamente especializadas, exigem conhecimento sobre coisas que não são da rotina médica diária. E perguntam sobre o que nem eles sabem responder. São exames para reprovar 90% dos candidatos. E reprovam mesmo.

O exame de revalidação de diplomas estrangeiros do Ministério da Educação (Revalida) é elaborado por professores de universidades renomadas que estão politicamente decididos a não deixar entrar ninguém. O objetivo não é filtrar profissionais para o mercado, e sim impedir que entrem pessoas. Não há avaliação externa ao Revalida.

Quando são reprovados 90% dos candidatos, ninguém vem a público reclamar de tamanho absurdo, dizer que no Reino Unido ou na América do Norte uma prova assim seria reestruturada. Por que brasileiros passam em exames nos Estados Unidos e americanos não passam no Revalida brasileiro? É porque tem alguma coisa errada.

O decreto que o criou é muito bom: devem ser feitas provas teóricas abrangentes e práticas conduzidas com pacientes simulados. Mas eles dão um jeito de que os candidatos sejam reprovados logo na entrada, na prova de múltipla escolha; nem chegam a avançar para a prova prática. Além disso, não se renova o plantel dos elaboradores, não é avaliado o conflito de interesses dos elaboradores.

Ou seja: uma série de artimanhas revelam que a prova é politicamente delineada para barrar o ingresso de médicos com o diploma do exterior no mercado brasileiro.

Há outras razões?

Há o componente ideológico. Quando se soube que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estava mandando filiados para estudar Medicina em Cuba para que, no regresso, fossem atender nos rincões onde atua o MST, a direita médica se levantou. E naquela época não para impedir a revalidação de diplomas estrangeiros, e sim para impedir que médicos cubanos contaminassem a Medicina brasileira.

O fenômeno é antigo, anterior ao Enem e à política de cotas nas universidades. Então, uma década depois de formação de muitos médicos em Cuba – a  maioria pobre, preta, parda, indígena –, ainda não conseguem revalidar o diploma e trabalham como office-boy, motorista de táxi ou continuam militando no movimento. Essa direita que não quer modificações no Revalida é a mesma que não quer as cotas nas universidades e os médicos oriundos dessa escola cubana.

Como começou a ideia de trazer médicos estrangeiros?

A ideia foi lançada como balão de ensaio após uma fala de um ministro do Itamaraty (Relações Exteriores), que depois foi mencionada pela presidenta Dilma para depois então o ministro Padilha sair correndo atrás, dizendo que queria fazer. E a cada vez que ele se pronunciava sobre o assunto, adicionava uma informação nova porque nada tinha sido combinado antes com alguém.

Não foi feito nenhum acordo com os movimentos sociais, com os sanitaristas organizados no Cebes e na Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), com os sindicatos, as centrais sindicais, com os partidos. Nada. Um erro básico, na minha opinião, não ter ouvido os movimentos que defendem a saúde  pública e poderiam colaborar com um projeto que poderia ser bom, combinar primeiro em qual contexto esses médicos viriam trabalhar, como ingressariam, fazer o Revalida ou não.

Como não combina, acaba dando um pano enorme pra manga de quem já era contra o ingresso de médicos no mercado brasileiro. Digo isso porque tudo está sendo feito ao arrepio da lei. Há sistema para formar pessoas para trabalhar no país, há decreto que diz como se faz. E se desrespeita tudo isso, o jogo jogado não vale e começa tudo da estaca zero. É uma ausência de costura política.

Se for para reforçar o sistema de saúde, muito bem, mas vamos colocar as regras no jogo, as que estão vigentes. Mas é preciso também coragem política para entrar no MEC e remodelar a situação do Revalida, o que ninguém quer fazer para não ferir os poderes da corporação médica. Prefere-se brigar com a mídia, fazer jogo de cena do que enfrentar o posicionamento reacionário, retrógrado, xenofóbico e elitista do Conselho Federal de Medicina, da Federação Nacional dos Médicos. Ninguém enfrenta porque é preciso vontade política e articulação entre governo, congresso e partidos.

Acho que devíamos parar tudo e combinar as regras do jogo. O embate será grande e a chance de o governo perder é grande. Haverá uma enxurrada de processos na Justiça contra a medida, que vão pingar na ribalta pública daquilo que se transformou o Supremo Tribunal Federal, com julgamentos por prevaricação, improbidade administrativa, um show de processos e condenações. Meu prognóstico é ruim. Com o nível de resistência política e de desarticulação, a proposta resultará em fracasso.

Afinal, falta médico?

Acho que essa conta do Ministério da Saúde que mostra que foram abertos mais postos de trabalho do que a quantidade de médicos formados deve ser refeita. Não foi revelado quantos postos de trabalho foram abertos. Pelo que sei, o Ministério da Saúde não fez nenhuma conta de quantos médicos precisa. Quando saiu essa queixa, ninguém falava em números.

Eu acredito nos dados do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, que concluem que os médicos estão mal distribuídos, concentrados nas grandes cidades e que não vão trabalhar nas periferias onde não conseguem trabalhar com qualidade, de maneira decente, e nem recebem o salário prometido. Embora venham do meu adversário do ponto de vista político, acredito nesses dados, que não foram desmentidos.

Saí do mercado clínico há dois anos e não estou clinicando porque não existe nada que me atraia para voltar a clinicar. Pelo contrário. O Estado de São Paulo fechou a carreira de médico sanitarista há duas semanas. Quando a política é de fechar, de subfinanciar, trazer profissionais de outro contexto, pode até influenciar positivamente, mas é uma loteria.

Não há nenhuma garantia de que pessoas que venham do exterior venham suportar esse sistema subfinanciado, que vão trabalhar adequadamente e ainda sobreviver à falta de recursos e às condições indignas oferecidas no interior do país. A gente sabe que tem aldeia indígena que não tem médico, apenas enfermeiros trabalhando sozinhos, fazendo além de suas funções porque não tem quem faça o diagnóstico e mande aplicar medicação.

Médico não chega lá. Quem vai aceitar trabalhar em más condições? Um cubano, um espanhol, um português? Tem de ver qual é o limite da atuação. Me deixa indignado essa ideia de conceder alvará para meio médico. Não pode trabalhar nas grandes cidades. Por que? Porque quando chegar nessas cidades pequenas e encontrar condições inadequadas para viver e trabalhar decentemente, o que fará é migrar para uma cidade onde possa trabalhar de maneira adequada.

Vai-se dar uma carta de trabalho pros grotões. E se não se adaptar, o médico vai se rebelar e ser deportado. É condição análoga à escravidão. Não vejo liberdade de trabalho, de migração. Acredito ainda que os médicos de alta formação política e de alta solidariedade internacional vão aderir por se tratar de um chamado vindo de um país irmão e chegar de coração aberto porque, historicamente, o brasileiro sempre apoiou o cubano.

Mas sairão daqui decepcionados, sem ter conseguido fazer o que planejavam. Em 2005, o governo do Tocantins importou mais de 100 médicos para trabalhar no estado por um ano e meio. As entidades médicas entraram com medida na Justiça e eles foram deportados. A população ficou sem médico de um dia para o outro.

É verdade que o médico cada vez menos quer atender pessoas?

Até certo ponto é verdade, mas isso  precisa ser desmistificado. Para quem está de fora da escola médica, há na carreira um desejo de ascensão de classe. As últimas turmas de Medicina da Unicamp, de 2000 a 2011, quando me aposentei, são de alunos em que uma minoria, cerca de 10%, deseja trabalhar numa medicina que proporcione riqueza.

A maioria é composta de pessoas generosas, interessadas na ciência, que querem aprender o melhor que a técnica médica e os equipamentos podem oferecer. E se sentem muito frustradas em trabalhar onde só existe caneta e estetoscópio quando se sabe que fora existem equipamentos de alta resolução para avaliação eletrônica de diversas partes do organismo e para cirurgias de boa qualidade. Eles se formam com a expectativa de fazer diferença para as pessoas num momento difícil. Esses médicos chegam ao mercado com generosidade e expectativas que não são correspondidas. Não são "mauricinhos" como a mídia coloca, em busca de ascensão social.

Acontece que o sistema público de saúde que evolui para a privatização seduz os corações e mentes desses jovens médicos, dizendo a eles que só poderão fazer a medicina com que sonham se forem trabalhar em hospitais do porte de um Albert Einstein, um Sírio-Libanês. E que no SUS estão destinados a atender pés descalços. Quem sai de uma faculdade pública de bom nível, como a USP e a Unicamp, sai com a frustração de ser jogado em um sistema sem recursos, sem equipamentos, com condições indignas de trabalho.

Aí entram em choque com o sistema, com a clientela e com o próprio coração, que não é o de alpinista social. Há um ranço contra os médicos. É fácil xingá-los, mas ninguém xinga o Congresso quando se tira o financiamento para o SUS. Essa imagem do médico é piorada pelo posicionamento político de direita das associações médicas e de especialistas. Seus líderes, sim, são influenciados pelo espírito de ascensão e alpinismo social, impondo seu ponto de vista e discurso corporativista.

terça-feira, 25 de junho de 2013

What if straight was gay and gay was straight?


A saúde não pode ser importada.

Esta é a edição do meu artigo que foi publicada hoje 25/06/13 no Diário Catarinense, já com uma correção importante sobre o dado apresentado acerca do orçamento federal, que estava desatualizado na edição do jornal.

A saúde não pode ser importada.
Lucas Cardoso da Silva*

Divulgou-se recentemente a notícia de que o governo brasileiro importará médicos para trabalhar no interior do Brasil. Há algo ignorado nas discussões sobre isso, muito além de politicagem eleitoreira, corporativismo ou desinformação: o subfinanciamento do SUS (aproximadamente 4% do orçamento do governo federal são dedicados à saúde).
Por que não investir o dinheiro de aplicações questionáveis – entre muitas outras, a importação de médicos - na formação de médicos brasileiros? Não só abrir mais escolas médicas, mas oferecer cursos de qualidade realmente voltados para a formação de médicos generalistas para a atenção básica no SUS, preparados e motivados para trabalhar no interior – o que o CREMESP não avalia em seu exame, aliás. A educação médica deficitária e a pouca experiência profissional são ignoradas também no PROVAB, que estimula médicos recém-formados a trabalhar no interior, pois ao governo só interessa atingir os “níveis de cobertura”, valiosos em períodos eleitorais.
Para a população em geral: mais médicos, melhor a saúde. No entanto, consoante a Constituição Cidadã, saúde envolve condicionantes muito além do papel do médico: saneamento básico, educação, moradia, meio ambiente, entre outras. E de que vale um médico sem condições de trabalho? Além de salário digno, sobretudo ambiência: infraestrutura adequada, materiais para procedimentos, exames complementares, equipe multiprofissional.
Não é, portanto, coerente e desvinculada de mitos e interesses eleitoreiros esta política que desconsidera a saúde pública como uma construção interna e consolidada do País - pautada na valorização do profissional, da ambiência e da educação médica – e ignora seu subfinanciamento. Diferente do que tratam nossos governantes: a saúde não pode ser importada.


*Lucas Cardoso da Silva é estudante de Medicina na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Vice Coordenador Discente da Regional Sul 2 da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e articulador da Rede Sustentabilidade em Santa Catarina.

domingo, 23 de junho de 2013

Os Órfãos e a Nova Política

Há muita gente bem intencionada, embora ingênua (novata nos fazeres da política), a qual não pode ficar órfã nessas multidões das ruas.

Estou vendo muitos movimentos sociais de esquerda simplesmente lavando as mãos e, em seus repúdios aos lobos em pele de cordeiro, esquecendo ou ignorando essas pessoas, as quais precisam ser cuidadosamente introduzidas à política, para que não desvirtuem sua energia criadora perante a velha forma de fazer política.

Aliás, tenho ouvido muito se falar em "massa de manobra" e alcunhas semelhantes para designar essas pessoas. Ignoram que as verdadeiras massas de manobra são quem fala esse tipo de coisa, pois estão à serviço de instituições cujo poder hoje é concentrado e cujas ações muito pouco são em real benefício da população (em especial daquela que mais necessita). São essas instituições que hoje dominam a política que têm medo da concorrência do grito autônomo das ruas.

Não que eu defenda o fim dos partidos. Creio que muito precisamos amadurecer nossa democracia para fazer algo assim, pois se o fizéssemos agora certamente cairíamos nas rédeas do fascismo (de esquerda ou de direita, se é que isso ainda existe mesmo). À frente, devemos defender e propor soluções para os partidos atuais pararem de ser instituições de concentração do poder, finalmente assumindo a configuração do que uma real democracia pressupõe: poder ao povo.

Essas estruturas precisam ser adequadas não só aos novos tempos - os quais carregam consigo as novas tecnologias - mas também aos velhos preceitos da Política,  que parecem ter sido esquecidos. Viver, viver bem e relacionar-se bem para viver melhor, já tratava Aristóteles da Política, ensinando que ela está à serviço da felicidade da comunidade. Por que as instituições perderam esse sentido? Em meu conhecimento limitado, não sei: mas o que importa é que devemos retomá-los.

E essa "massa de manobra", na verdade uma massa transformadora, renovadora, idealista exercerá papel fundamental na construção dessa nova forma de fazer política no Brasil. Não a deixemos órfã.

sábado, 22 de junho de 2013

Com Computador Pra Quê, Senador?, por Pedro Serrano

O movimento reivindicatório que se iniciou em São Paulo e se espalhou por todo o país surpreende analistas e lideranças políticas. Apartidário, embora ideológico, não tem lideranças claras nem forma hierárquica de organização, modelo político próprio da sociedade industrial. Organiza-se em rede e a partir da rede.

Manifesta reivindicações concretas da juventude de todas as classes dispensando a intermediação de lideranças politicas tradicionais ou mesmo de estruturas de representação, o que dificulta a adoção das formas dialógicas construtoras de consenso próprias do mundo democrático pós-queda do muro de Berlim.

A mídia que estimulou a repressão fascista e facínora da PM no inicio do movimento é obrigada a mudar de lado e passa a tentar partidarizar a mensagem do movimento. Procura, assim, manter a aparência apartidária em bordões próprios da oposição ao PT e ao governo Dilma usando mais uma vez do “efeito lupa” propiciado pelo registro de imagens parciais do fenômeno social para distorcer seu sentido geral.

Não tem logrado esse intento: se há algo aparentemente geral no movimento é seu sentido “anti-Rede Globo”, o que já oferece intuição de seu sentido de crítica às formas tradicionais de comunicação controlada - algo maior que a própria Rede Globo.

A direita mais empedernida tenta transformar o movimento em um ato golpista, propondo impeachment da presidenta majoritariamente eleita e fazendo até campanha de boicote para a Copa do Mundo no Brasil. A falta de adesão a qualquer sentido maior do conceito pátria, bem como a falta de participação aberta na disputa democrática - preferindo sempre táticas golpistas - é algo que sempre diferenciou nossa direita das de outros países democráticos.

Não sou adivinho para saber se o grupo direitista que habita o movimento conseguirá assumir sua direção. Creio que não: nas ruas, sem o filtro midiático, o movimento tem mais ares libertários do que golpistas.

A critica mais geral do movimento ao governo federal parece focada na retração que houve no governo Dilma na forma aberta ao diálogo com os movimentos sociais que havia no governo Lula. É uma critica ao conservadorismo do governo Dilma e não à sua dimensão de manutenção dos avanços sociais de Lula. É uma critica à esquerda portanto.

O PT, um tanto quanto atrasado, convoca seus militantes a aderirem ao movimento. Não creio também que o PT consiga a direção ou hegemonia do movimento. Poderia fazê-lo se houvesse no País alguma regressão nas conquistas sociais do governo Lula. O movimento, ao contrario, trata mais da radicalização dessas conquistas

Há algo no movimento que sinto como geral, presente em quase todas suas críticas e que tem passado ao largo do debate, talvez por não interessar nem à mídia nem ao governo nem à oposição: um verdadeiro sentimento público de descrença e enfado com a representação democrática.

Leciono em uma prestigiada universidade paulista e, como tal, tenho contato cotidiano coma juventude de classe média e com a que chega da periferia à universidade via Prouni. Ao contrário do que se pensa, os garotos de 20 anos do centro e da periferia não são despolitizados; apenas não confiam nas relações de representação.

Criados em meio à comunicação direta e iterativa da web, não sentem necessidade de alguém para falar por eles. E veem no Parlamento mais um centro de malfeitos do que de real representação de seus interesses.

Não acreditam mais na forma partidária e nos instrumentos clássicos da democracia; exigem participação direta e decidirem por si o seu futuro.

Como sabem que democracia direta ainda não é exequível, votam e participam das eleições, mas nelas não confiam. Vislumbram cotidianamente os representantes populares traindo seus mandatos e a perda dos mecanismos de diálogo com a sociedade conquistada sob Lula.

O movimento reivindicatório se põe, assim, como um evento coletivo de reivindicação de algo concreto da vida cotidiana e não de uma ideologia universal que resolva abstratamente os problemas da humanidade - e não se opondo frontalmente às instâncias democráticas.

É o sentido talvez que Negri deu ao termo multidão: seres singulares e diferentes entre si que se reúnem por uma causa comum nos limites dessa causa, sem formas hierárquicas de representação, em rede e pela rede.

Algo novo vai rondando a vida política de nossos tempos. Quem sou eu para tentar decifrá-lo? Como todos de minha geração, serei por ele devorado.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Estado Laico e a Democracia, de Victor Mauricio Fiorito Pereira

A Constituição brasileira de 1824 estabelecia em seu artigo 5º:. “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”.

A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu artigo 19, I o seguinte: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

Com base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado como laico, palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo de leigo e antônimo de clérigo (sacerdote católico), pessoa que faz parte da própria estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado leigo se difere de Estado religioso, no qual a religião faz parte da própria constituição do Estado. São exemplos de Estados religiosos o Vaticano, os Estados islâmicos e as vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas constituições dispõem, respectivamente: “Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico Apostólico Romano” – “Art. 3. Religion Oficial – El Estado reconoce y sostiene la religion Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de todo otro culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante concordados y acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”

Atualmente, o termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como fundamento para a insurgência contra a instituição de feriados nacionais para comemorações de datas religiosas, a instituição de monumentos com conotação religiosa em logradouros públicos e contra o uso de símbolos religiosos em repartições públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição da República vem sendo alvo de questionamentos.

É importante ressaltar que o conceito de Estado laico não deve se confundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e seus assemelhados também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o direito de não ter uma religião conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença” (Comentários à Constituição de 1967).

Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta crença (ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a Carta Magna.

A Constituição da República apesar do disposto em seu artigo 19, inciso I protege a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e o faz da seguinte forma:

Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;

Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Art. 213 - Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas

Art. 226 § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

Além das formas de colaboração estatal especificadas no texto constitucional, o próprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica, que no caso de interesse público, havendo lei, os entes estatais podem colaborar com os cultos religiosos ou igrejas, bem como não pode embaraçar-lhes o funcionamento.

Por estas razões, muito mais adequado do que chamar a República Federativa do Brasil de Estado laico, seria chamá-la de Estado plurireligioso, que aceita todas as crenças religiosas, sem qualquer discriminação, inclusive a não crença.

No entanto, conforme já aduzido, questão interessante surge na concepção de Estado plurireligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em certas ocasiões, de optar pelo culto de determinada crença religiosa, quando isso implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa uma estátua do Cristo, e não a do Buda? Por inaugurar um logradouro público com o nome de Praça da Bíblia e não Praça do Alcorão? E porque não deixar de construir um monumento com conotação religiosa, com o fim de não ofender a consciência dos não crentes e a dos crentes de outras seitas?

Somos de opinião que este impasse deve ser resolvido através da interpretação sistemática do texto constitucional.

Assim dispõe a Constituição da República em seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito(...)Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Afirma a doutrina que o princípio da maioria, juntamente com os princípios da igualdade e da liberdade, é princípio fundamental da democracia. Aristóteles já dizia que a democracia é o governo onde domina o número.

Destas considerações, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar tratamento igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem livremente, com base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for, por determinada crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de construir um monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus seja louvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homoafetiva.

É importante frisar que tal posicionamento não visa beneficiar a Igreja Católica, cuja predominância no Brasil se deve às razões culturais e históricas decorrentes do processo de colonização que deu origem ao povo brasileiro maciçamente composto por descendentes de europeus católicos, além do fato de já ter sido religião oficial do país por mais de trezentos anos. Em vista disto, é perfeitamente natural que, sendo a maioria da população brasileira católica, como afirmam, que o culto católico tenha maior atenção estatal que os demais. Vale ressaltar que o que determina a preferência estatal por determinado credo é a vontade majoritária popular, que não obstante às razões históricas, pode se modificar, mormente como se vê nos tempos atuais em que as seitas evangélicas vêm ganhando força política, importando até mesmo na eleição de representantes. Ressalte-se ainda que a preferência da ação estatal por determinada religião não se situa apenas em âmbito nacional, mas também regional, sendo um exemplo a Constituição do Estado da Bahia, na qual o artigo 275 e incisos privilegiam a religião afro-brasileira, presumindo ser esta a preferência do povo baiano.

Embora o Estado deva respeitar e proteger os não crentes e os crentes de outros cultos, não nos parece adequado que o Estado deva suprimir de seu ofício qualquer alusão a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este por causa de uma minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade, constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crença ou não crença, com o fim de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que defendam seus interesses perante o Estado.

                             
Por fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso I da Constituição, é vedado ao Estado embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos. Tal informação tem grande relevância, principalmente em face de situações concretas em que se postula ao Poder Judiciário pretensões no sentido fazer com que determinada religião haja em desconformidade com a sua doutrina, na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é pretender que a Igreja Católica realize casamento de pessoas divorciadas, o que vai de encontro com a sua doutrina que não reconhece o divórcio e veda a duplicidade de casamentos. Da mesma forma seria incabível a imputação do delito previsto no artigo 235 do Código Penal, no caso de religiões que permitam a prática da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao âmbito da religião, sendo que estes casamentos não deverão produzir efeitos para o direito civil pátrio, por afrontar os princípios constitucionais que tratam da família. Nos demais casos, a intervenção estatal nos cultos religiosos deve se reger, como já foi aduzido, através de uma interpretação sistemática e harmônica do texto constitucional.

Conclusões

1 – O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituição, deve dispensar tratamento igualitário a todas as crenças religiosas, incluindo a não crença, sem adotar nenhuma delas como sua religião oficial;

2 – A inexistência de religião oficial no Estado não significa que o Estado seja partidário da não crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no princípio da liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais religiões, não podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial;

3 – Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados que adotam religião oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população prefira outra;

4 – Não há qualquer inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado, construir um monumento em logradouro público, fazer referências a Deus, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expressão da livre vontade popular, que pode se modificar em favor de outra crença religiosa, sem que isto implique em modificação constitucional.

5 – Com base no artigo 19, inciso I da Constituição da República, o Estado não pode intervir nas religiões de forma a compelir que ajam em desconformidade com a sua doutrina, sendo que, qualquer cerceamento à liberdade de culto, deve ser feita com base na interpretação sistemática da Constituição da República, de forma a harmonizar as suas disposições.

Victor Mauricio Fiorito Pereira
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sonhos de Uma Sociedade Melhor

Em reflexão sobre as recentes mobilizações sociais e populares no Brasil, deixo algumas citações sobre o "sonhar".

Bom final de semana!! Com muito sonho e ação!

"Ai daqueles que pararem com sua capacidade de sonhar, de invejar sua coragem de anunciar e denunciar. Ai daqueles que, em lugar de visitar de vez em quando o amanha pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e o agora, se atrelarem a um passado de exploração e de rotina." Paulo Freire

"Se podemos sonhar, também podemos tornar nossos sonhos realidade." Walt Disney

"Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos é sonhar mais." Marcel Proust

"Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão" Chico Buarque

Liderança de Excelência

Há duas questões sobre liderança que eu vejo como fundamentais:

1. Bons líderes são aqueles que suscitam novos líderes, e não aqueles que prezam simplesmente por mais seguidores;

2. A liderança por excelência fornece às pessoas não aquilo que elas desejam, mas sim aquilo que elas realmente necessitam.

E vale lembrar: sempre é bom questionar-se sobre o papel e a influência de sua liderança onde quer que seja. Muitas vezes, mais vale retrair-se e amadurecer mais do que tentar fazer algo que simplesmente não é capaz naquele momento, sujeitando outras pessoas às consequências negativas de sua liderança imatura.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O Colapso das Ideologias, de Paulo Rosenbaum

O que é ser de esquerda? De acordo com o American Heritage, “grupo ou pessoas que pregam objetivos ou metas políticas igualitárias através da reforma ou por meios revolucionários”. Que beleza e que alívio se as definições enciclopédicas ainda tivessem algum paralelo na vida prática! Sem perder tempo com a estagnação da direita, agora a pergunta poderia se deslocar para “o que consiste a esquerda, hoje?”

No glossário impertinente significaria que “as metas ou objetivos igualitários” seria a primeira avaria terminológica. Já seria uma importante ruptura entre o conceito e o mundo político prático.

Venho de uma época onde, para além das definições acima aludidas, ser de esquerda também significava aspiração por liberdade, renovação e especialmente, paz e luta contra a opressão. O que muitos de minha geração esperavam era que o pensamento conservador e o estado estável que ele sempre representou pudesse ceder para enfim vivermos dias novos. Apesar de todas as promessas eles nunca chegaram.

Os regimes políticos que usaram Marx como base teórica de seu pensamento e ideologia, rapidamente deram sinais de que seriam sistemas tão opressivos, incoerentes e espiritualmente fracos quanto os governos conservadores que, em tese, vieram para substituir.

 O uso do manto das lutas sociais se tornou um slogan fútil. Quase a antítese absoluta do que o romantismo original preconizava. O oposto ao movimento libertário que deu origem à caminhada dos revolucionários. A esquerda se reergueu na luta pelas liberdades civis e, mesmo com uma renovação fugaz, foi, ao seu modo, eficiente, especialmente sob a contracultura. E ainda teve uma extensão grátis com os desdobramentos da cultura hippie, a luta contra a opressão das minorias e até o reconhecimento dos direitos humanos e das mulheres.

Mas isso já faz 40 anos. Desde lá temos observado, passivos, a corrosão das liberdades individuais. A queda do Muro, a formação da União Europeia e a revolução promovida pela comunicação e informática, todos eventos que, teoricamente, teriam sido passos importantes para a promoção do bem-estar coletivo. Mas as ilusões se desmancham. Muitos avanços sucumbiram às agressões terroristas (alguém se lembra o que era pegar um avião antes do 11 de Setembro?) e setenta anos depois do fim da II Guerra Mundial temos conflitos — potenciais e reais — espalhados em quase todas as latitudes.

No continente africano, tribalismos e fundamentalismos, os mesmos das guerras regionais do Oriente Médio, a insanidade imperial da Coreia do Norte, teocracias autor-referentes e arrivistas que ganharam poder na América Latina. Nosso mundo assiste impotente (ou positivo operante?) à formação de conflitos graves no clima de acirramento e chamamento ao conflito. Não mais de classes sociais, mas de culturas. Não é difícil enxergar o perfil sombrio que geralmente emulam as guerras civis. O resultado palpável é que virou missão impossível fazer distinções claras e precisas dentro de tantas saladas ideológicas. A incoerência é a tônica e indica que há um colapso das ideologias.

A parte cheia do copo poderia vir dos avanços sociais. Da diminuição das desigualdades e do respeito pelas minorias. Mas infelizmente até essa metade tem evaporado. O esforço feito por quem governa tem sido para manter e concentrar mais poder. Com raras exceções predomina o desrespeito pelas minorias, e a xenofobia ganha ares dramáticos na Europa. Sobretudo, vivenciamos uma brutal e pouco crível incapacidade administrativa mundial.

Claro que ela é diretamente proporcional ao abandono de critérios técnicos e de competência pelo apadrinhamento político e benesses da burocracia da máquina para convidados vip. Tecnicamente falando, não vivemos nem em pleno estado de direito. Então, onde foram parar as forças da renovação? Ouve-se por aí que a esquerda cresceu e tornou-se pragmática. Quem acompanha de perto sabe que o nome da metamorfose é bem outro, enquanto uma emergente sociedade de castas e privilégios desponta.

A atual crise econômica com pinta de recessão mundial revela que o capitalismo acionário deu suas mãos ao capitalismo de Estado, causando boa parte dos problemas. O papel dos Estados seria o de encontrar saídas para as crises, mas uma vez que os governos têm interesses endógenos, o caminho até a solução deverá ser postergado até que as pessoas percebam que o poder não tem mais respostas para dar.

Talvez nem tenhamos mais perguntas para fazer.

A política no jargão popular, de Josias Luiz Guimarães

Políticos no jargão popular, para a maioria da sociedade eleitora, são aqueles flagrados, com a boca na botija, roubando a Nação, portanto, um conceito aberrante, distorcido do verdadeiro sentido do termo política como foi concebido, há mais de dois milênios na Grécia. Com efeito, o primeiro tratado sobre o assunto foi escrito, naquele tempo, por um dos maiores sábios da antiguidade, de nome Aristóteles. Era natural de Abdera, antiga colônia grega, cursou a academia de Platão, tornando, assim, seu discípulo e, salvo melhor juízo, tão famoso, quanto ele. Em ética a Nicômaco, Aristóteles gravou para a história, num colóquio entre aluno e professor, o verdadeiro, insofismável conceito de política; dessa forma, à Pergunta do aluno, se era possível aprender a viver feliz, responde ele mestre. A política cuida disso, na medida em que ela concretiza, realiza, na vida em sociedade o bem supremo. Poucas pessoas questionadas, em minha peregrinação do cotidiano, mesmo de nível superior, sabe interpretar, de chofre, a primeira vista, o que vem a ser bem supremo, ao que eu, sempre, procuro tornar inteligível, em diálogo cordial, o seu sentido real, ou seja, a mesma felicidade objeto da pergunta do aluno. O conhecimento distorcido do termo, a sua prática desvirtuada, hábito sovado, abusivo, usado para designar os ladrões do colarinho branco, desacreditou, no seio de nossa gente, a palavra, tornando-a tão aviltada, no jargão popular, que ficou difícil você convencer as pessoas, mesmo conhecidas, de que seu significado milenar era o oposto do atual, jocoso, portanto, choca com o que os corruptos e corruptores, ladrões do colarinho branco, praticam na administração pública. A política busca, na realidade, a felicidade da comunidade. Aristóteles usava três expressões para demonstrar isso, ou seja, dzem, eu dzem e Sy dzem, significando respectivamente: viver, viver bem e relacionar-se bem, para viver bem, o que viria ser a mesma coisa: a busca da felicidade, ou bem estar da vila, município, estado. O sy dzem, com o correr do tempo, ampliou, alargou seu significado no atual sistema republicano, abarcando o de espectador engajado, o que vem a ser, a participação ativa do cidadão (ã) na vida política do lugar onde mora; o que, aliás, constituí imperativo para o bom funcionamento do processo democrático, porquanto, a participação altiva dos grupos, clubes, associações, entidades classistas nos assuntos públicos do bairro, vila, cidade, tem condições de reverter, paulatinamente, esses costumes arraigados, desvirtuados que vem emperrando o amadurecimento democrático, mascarando nossa imagem, na atual conjuntura. A mudança de paradigma mais eficaz, para melhorar nosso visual, quadro depreciativo, interno e externo, de país lento, burocratizado, lerdo no ranking da competição, terá que ser feita, necessariamente, por meio de investimentos reais em conhecimentos, não basta quantidade, é preciso qualidade, tanto no interior das escolas capacitando esmeradamente o imenso contingente de professores, reciclando, revigorando periodicamente seus conhecimentos, mesclando-os de entusiasmo, ardor cívico, força de vontade no cumprimento da nobre missão de formar as gerações vindouras, quebrando, peremptoriamente, a cadeia de vícios, costumes que conduziram a degradação do processo político, rebaixando-o ao mais desprezível conceito no jargão popular, de sorte que, em vez de valer-se da política para racionalizar a administração pública, minimizando custos de obras e serviços, sem ferir qualidade, maximizando destarte, benefícios, na forma de bem estar, ou seja, felicidade da comunidade, fazem o contrário; maximizam os custos dessas obras e serviços, mascarando a qualidade e, com esse ato maquiavélico, minimizam os benefícios, bem estar, a sociedade contribuinte, invertendo o seu significado milenar, justamente o que lhe granjeou fama universal. Esse trabalho, a longo prazo deve ser complementado por outro, a curto e médio prazo, investindo fora das salas de aulas, como dito, motivando e mobilizando clubes, grupos, como associações, sindicatos, federações, confederações, a ação cívica,  pois constituem elas, quando conscientizadas, atuantes, o sustentáculo, mola propulsora da democracia. Essas organizações para não fossilizarem transformando-se em obstáculos, barreiras, peso morto, ao crescimento, desenvolvimento econômico, carecem de aprimoramento constante em conhecimentos e, aliado a eles, o revigoramento da força de vontade, devotamento à causa da generosa natureza, nossa mãe comum, base para o crescimento sustentável, a falta desse processo perseverante de sublimação de conhecimentos, a mente humana acaba embotando. O individuo que leva a maior parte de seu tempo ocioso, esquece da necessidade de exercitar a mente, compreensão e, deste modo, exercer seu espírito inventivo, encontrar meios para eliminar as dificuldades, do dia a dia. Elas, dificuldades, existirão sempre, no cidadão engajado, partícipe da vida política do país, a sua omissão, sem querer querendo, o fez burra de carga dos maus gestores. Quando engajado, nem bem soluciona um problema, surgem outros, eles são imanentes às pessoas laboriosas, pessoas que estão habituadas a vencer desafios; entretanto, o alimento mais adequado, tônico reconstituinte, para não esmorecer, cair com as cargas na água, será, todavia, a reciclagem de conhecimentos, pois ela, além de desenferrujar a mente, tirar as dúvidas, mostrar a luz; tendo como exemplo, “a caverna milenar de Platão, de sua legendária obra, A República”; com o debate, invariavelmente caloroso, renova as energias, aumenta o fôlego necessário à luta, a serviço do progresso e bem estar do lugar onde mora ou trabalha, ação empreendedora de que está a carecer o país para sair da estagnação, acelerar o seu crescimento. A nação clama, portanto leitor, pela sua participação ousada de todos, capaz de exorcizar a burocracia das instituições, romper a letargia, engajando todos patrícios na luta sem trégua, contra a subcultura corruptiva, levada a cabo pelos ladrões do colarinho branco, carcomendo o erário público, mutilando o orçamento, solapando nosso crescimento, causando a deturpação do sentido verdadeiro da política, no jargão popular, gerando descrença no sistema democrático, como melhor forma de governo, ofuscando nossa imagem perante o mundo.

(Josias Luiz Guimarães, veterinário pela UFMG, pós-graduado em filosofia política pela PUC-GO. Produtor Rural)
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