"O que traria a volta da direita?", pergunta Ivo Lesbaupin. "Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização da reforma agrária?" E ele responde: "Tudo isso está sendo feito por este governo".
Segundo o professor da UFRJ, "existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há dúvida".
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ - e doutor em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio de Janeiro, e membro da direção da Abong. É autor e organizador de diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).
Eis o artigo.
A privatização do megacampo petrolífero de Libra (área de pré-sal) é um divisor de águas. Todos os movimentos sociais do Brasil, inclusive alguns muito próximos ao governo, se posicionaram contra. O governo se manteve inflexível e, copiando o governo FHC nas grandes privatizações (Vale, Telebrás), garantiu o leilão com segurança policial e tropas militares, de um lado, e batalhões de advogados da Advocacia Geral da União para derrubar liminares, de outro.
O governo deixou claro de que lado está.
Muitas das análises sobre os governos do PT (Lula-Dilma) partem do pressuposto de que houve antes um governo de direita, neoliberal, o de FHC, e que hoje temos um governo se não de esquerda, ao menos de centro-esquerda, de coalizão.
Seria um governo em disputa, que ora tomaria medidas mais voltadas para os setores populares ora voltadas para os setores dominantes. Isto dependeria da maior ou menor pressão de cada um dos lados.
Este pressuposto leva a crer que este governo mereça todo o nosso apoio para evitar a "volta da direita". Porque esta volta traria políticas que não queremos ver novamente.
Os governos do PT indubitavelmente deram mais atenção ao social que os governos anteriores, como o aumento real do salário-mínimo e o programa Bolsa-Família, e reduziram fortemente o desemprego. A política externa é mais independente e também solidária com os governos progressistas de outros países da América Latina. E poderíamos citar uma lista de avanços ocorridos nos últimos dez anos, avanços que devem ser mantidos e devemos apoiar.
Há setores do governo que têm uma preocupação centrada na sociedade, nos trabalhadores, que se dedicam a uma maior democratização. Mas, infelizmente, estes setores não mandam no governo. E, na hora da cobrança, apoiam as grandes decisões (Belo Monte, Libra...).
Porém, se examinarmos mais de perto, o que nos impressiona não são as diferenças com os governos anteriores, são as semelhanças – cada vez maiores, à medida que o tempo passa. O governo FHC é considerado uma “herança maldita”. Mas a política econômica que privilegia o capital financeiro permanece de pé: os bancos tiveram mais lucros nos governos do PT do que antes. E estes governos introduziram medidas que favoreceram ainda mais os investidores financeiros ao isentá-los, em vários casos, de imposto. Não foi feita nenhuma reforma estrutural nas estruturas geradoras da desigualdade no país. No entanto, foram feitas reformas estruturais para atender aos interesses do capital, como a reforma da previdência do setor público, aprovada no primeiro ano do governo Lula.
Os recursos do país: para quem vão prioritariamente?
Se queremos saber para quem o governo trabalha, temos de examinar o orçamento realizado: para onde estão indo os recursos? Os recursos do país são destinados fundamentalmente ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus juros. A dívida externa chegou em dezembro de 2012 a 441 bilhões de dólares e a dívida interna a 2 trilhões e 823 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida). O orçamento realizado de 2012 mostra que 44% do nosso dinheiro foi usado para os juros, amortização e rolagem da dívida, enquanto que apenas 5% para a saúde e 3% para a educação. Em suma, o destino de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país – que são aqueles que recebem os juros da dívida -, além dos credores externos. Cada décimo de aumento dos juros pelo Banco Central significa maiores ganhos para os que já são muito ricos.
Portanto: o primeiro setor cujos interesses são atendidos é o capital financeiro (bancos e investidores financeiros)
Obras de infraestrutura: para as empreiteiras
Mas, há um segundo setor que é também privilegiado pelo governo: são as grandes empreiteiras – Odebrecht, OAS,Camargo Correia, Andrade Gutierrez... Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas – Belo Monte é o exemplo mais notório – e até na do Maracanã. Em 1993, durante a CPI do Orçamento, o senador José Paulo Bisol havia denunciado a existência de um “governo paralelo” no país: eram as grandes empreiteiras, que distribuíam entre si as licitações das obras públicas. Denunciou, mas nada aconteceu... A maior parte destas obras são financiadas pelo BNDES, com recursos públicos, portanto.
Estas empreiteiras são também, junto com os bancos, as principais financiadoras das campanhas eleitorais. Este dado nos ajuda a entender o empenho do governo na realização de certas políticas – os megaprojetos, por exemplo, as privatizações, outro exemplo – e no impedimento de controles sobre o capital – a não realização da auditoria da dívida, por exemplo.
Portanto, o segundo setor cujos interesses são atendidos é constituído pelas grandes empreiteiras.
O agronegócio: o grande aliado do governo no campo
E há um terceiro setor que tem recebido muito apoio do governo: o agronegócio. O governo ajuda a agricultura familiar, sem dúvida, mas a proporção é de 90% para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar. Esta é a razão pela qual, em dez anos de governos do PT, a reforma agrária não avançou: o principal aliado do governo no campo é o agronegócio, não os movimentos sociais. E certas medidas que favorecem este setor acabam sendo aprovadas no Congresso – o Código Florestal -, porque o governo não quer perder este aliado.
Portanto, o terceiro setor cujos interesses são atendidos é o agronegócio.
Povos indígenas: pedra no caminho do agronegócio, de megaprojetos de infraestrutura, de grandes mineradoras
O governo está ressuscitando a política indigenista da ditadura, para a qual "o índio não pode atrapalhar o progresso do país". O capítulo sobre os povos indígenas foi comemorado, na época, como um dos mais avançados da Constituição Cidadã. Pois exatamente os direitos destes povos originários ás suas terras estão sendo derrubados: pouco a pouco, a cada nova usina hidrelétrica, a cada nova lei ou portaria (ou código...), os direitos estão sendo violados e até as demarcações já feitas correm o risco de serem questionadas. Para atender aos interesses de setores do capital, este governo está desprezando os direitos dos povos indígenas.
O sistema tributário reprodutor da desigualdade social permanece
Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo FHCacentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema concentra renda, é um “Robin Hood” às avessas, tira dos pobres para dar aos ricos. É um sistema pelo qual os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque nele o peso maior está no imposto sobre o consumo. Mesmo aquele que não têm renda para pagar imposto de renda compra bens, compra alimentos. E no preço dos bens está incluído o imposto.
Embora tenha introduzido pequenos avanços, no essencial esta herança de FHC foi mantida pelos governos do PT: a regressividade do sistema permanece. E a combinação de superávit primário (...) com a política monetária de juros altos incidentes sobre a dívida pública resulta “num dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres para os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo. (...) Na verdade, o mais poderoso mecanismo de concentração de renda na economia é essa combinação de política fiscal e monetária perversa, onde o Estado atua como um redistribuidor de renda e de riqueza a favor dos poderosos” (Assis, 2005: 89) (1).
Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma reforma tributária, para tornar o sistema progressivo (os que podem mais, pagam mais). Mas o governo não fez isso: ao contrário, apresentou um projeto de reforma que não mexe no caráter regressivo e que cortará recursos da Seguridade Social, se for aprovada.
Haveria uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos para os ricos: seria a realização de uma auditoria da dívida pública. Ela provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto reduziria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos depois, quando oEquador fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há sérias suposições de que parte desta dívida é indevida. O que só uma auditoria poderia verificar e comprovar (a CPI da dívida evidenciou várias irregularidades que teriam de ser examinadas, mas PT e PSDB se uniram para impedir que esta CPI tivesse resultados).
Esta é uma exigência da constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT puseram em prática. Preferiram favorecer os poucos privilegiados que ganham com a manutenção do status quo. E desfavorecer os muitos que sofrem as consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: pois esta é a razão da falta de recursos suficientes para a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, para os serviços públicos em geral.
Havia ainda uma grande diferença entre o governo neoliberal de FHC e os governos do PT: as privatizações. No entanto, o governo Lula não fez uma auditoria das privatizações, como se esperava; não reestatizou nenhuma das empresas privatizadas, como fez o governo Evo Morales. O governo Lula privatizou algumas rodovias federais e ogoverno Dilma passou a privatizar tudo: portos, aeroportos, rodovias, hospitais universitários e até riquezas estratégicas como o petróleo.
O governo FHC havia quebrado o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar de reiterados protestos dos movimentos de trabalhadores, especialmente dos petroleiros. O governo Dilma promoveu o leilão de petróleo docampo de Libra – cujas reservas valem no mínimo 1 trilhão de dólares - e tem ignorado solenemente a oposição dos movimentos sociais. O petróleo é nosso? Não, parte dele será das empresas privadas e estatais estrangeiras que venceram este leilão, assim decidiu o governo brasileiro. É como se só devesse satisfação ao setor privado, às multinacionais: os interesses do país, as reivindicações dos movimentos populares não são prioritárias.
O que traria a volta da direita?
Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização da reforma agrária?
Tudo isso está sendo feito por este governo.
Com exceção dos líderes do PSDB, todos os líderes da direita são hoje aliados do governo: Sarney, RenanCalheiros, Jader Barbalho, Romero Jucá, Collor, Maluf, Sérgio Cabral, Kátia Abreu...
Apesar de sua prática, de suas políticas fundamentais, o governo mantém um discurso de esquerda, de quem defende os direitos dos pobres e oprimidos e que "a direita quer solapar", "olhem o que a grande mídia diz de nós". Os movimentos de trabalhadores e demais movimentos sociais veem suas reivindicações desprezadas (povos indígenas), não atendidas (reforma agrária) ou mal atendidas (recursos para a agricultura familiar).
Movimentos sociais e entidades da sociedade civil precisam constantemente se mobilizar, denunciar, fazer pressão, para evitar perda de direitos, para evitar retrocessos maiores. E a maioria das vezes não o conseguem (Libra é apenas um exemplo).
Apesar da defesa e do apoio de alguns movimentos sociais, o governo nunca se sentiu obrigado a cumprir os compromissos assumidos com relação aos trabalhadores: nem a reforma agrária, nem a auditoria da dívida, nem a defesa das terras dos povos tradicionais...
A grande mídia é denunciada por autoridades públicas como parcial, agressiva, injusta com o governo, adepta de uma postura demolidora. Mas o governo nada faz para democratizar os meios de comunicação no Brasil, nada faz para quebrar o oligopólio existente, através da regulamentação do setor, que permitiria abrir o espectro das comunicações para outros atores. Por que? Porque, na verdade, apesar das críticas a aspectos secundários, a grande mídia apoia todos os projetos importantes do governo: o pagamento da dívida sem auditoria, os aumentos da taxa de juros (supostamente para conter a inflação), as usinas hidrelétricas na Amazônia, a transposição do S. Francisco, o leilão de Libra... As críticas da grande mídia mantêm a aparência de que os interesses da direita não estão sendo atendidos e que o governo é "de esquerda". A manutenção desta aparência interessa aos que querem se manter no poder. Na verdade, o governo receia a entrada em cena de outros meios de comunicação, capazes de trazer outras opiniões, de fazer a crítica a aspectos centrais da atual política. É por isso que, neste campo, tudo fica como está.
Existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há dúvida. Ele tem certamente várias políticas louváveis, faz o enfrentamento da pobreza, reduz a miséria, melhora a capacidade de consumo dos pobres com mais crédito. Mas não muda as estruturas geradoras da desigualdade social e, por isso, continua transferindo a maior parte da renda e da riqueza do país para os mais ricos do país e do mundo. E entregando nossas riquezas naturais para o setor privado e as multinacionais. Isso mostra claramente a quem este governo serve em primeiro lugar.
Nota do autor:
1.- ASSIS, José Carlos de (2005). A Macroeconomia do pleno emprego. In: SICSÚ, João, PAULA, Luiz Fernando de, MICHEL, Renaut (orgs.) (2005). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com eqüidade social. Barueri, Manole; Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer, p. 77-93.
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terça-feira, 5 de novembro de 2013
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Uma nova literatura, menos brasileira? (Luisa Frey)
Menos ligados à identidade nacional, novos autores escrevem sobre temas globais. Representarão o Brasil na Feira de Frankfurt, este mês
Por Luisa Frey no DeutscheWelle
“Cresciam as roças de cacau, estendendo-se por todo o sul da Bahia, esperavam as chuvas indispensáveis ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos cacauais”, descrevia Jorge Amado em Gabriela, cravo e canela, de 1958. “O trânsito fica horrível, a cidade, esse caos que está hoje, e além do mais eu acabo sempre perdendo o guarda-chuva”, escreveu Carola Saavedra quase 50 anos depois, em Toda Terça, de 2007.
A realidade brasileira mudou nas últimas décadas, e isso se reflete na literatura. Apesar da variedade de temas em meio a um país mais industrializado e globalizado, é possível apontar algumas tendências na atual geração de escritores. Se antes predominava um ambiente rural ou tropical, hoje as histórias se passam num Brasil urbano ou até mesmo fora de um cenário brasileiro identificável. Os jovens autores são menos preocupados com a identidade nacional.
“Por muitos anos, essa identidade foi definida como um retorno ao campo ou ao Brasil ‘autêntico’”, diz o prefácio da edição O melhor dos jovens romancistas brasileiros da revista literária britânica Granta, de 2012. Já os escritores de hoje, “filhos de uma nação mais próspera e aberta, são cidadãos do mundo tanto quanto são brasileiros”.
A Granta publicou trechos de 20 jovens autores, como Saavedra, Daniel Galera e Michel Laub. Estes e outros novos nomes figuram entre os 70 escritores que representarão o Brasil na Feira de Frankfurt deste ano. O equilíbrio entre autores consagrados e os da nova geração foi um dos critérios de escolha, afirma o crítico literário Manuel da Costa Pinto, um dos três responsáveis pela seleção.
=
Carola Saavedra é um dos jovens nomes que representarão o Brasil na Feira de Frankfurt
Costa Pinto aponta que, a partir da década de 1970, é difícil falar em homogeneidade na literatura brasileira, e o recorte geracional passou a ser simplesmente temporal. Mas ele reconhece a recorrência da temática urbana.
“Existe uma tendência de se falar da experiência do indivíduo urbano, culto, de classe média, envolto com questões subjetivas e pessoais, mas tendo como pano de fundo – mais ou menos – a questão brasileira”, diz.
A professora e crítica literária Beatriz Resende, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também aponta “uma recusa do tema nação”. Assuntos como corrupção, violência e democracia podem aparecer, mas dispersos pelo cotidiano urbano. Como diz Costa Pinto, o foco não está no aspecto social e histórico brasileiro, e a narrativa se volta para questões “intrinsecamente pessoais do escritor”.
Autoficção, rasura do real e política
Esse olhar voltado para si mesmo resulta em mais uma característica nos escritos da nova geração: a chamada autoficcção – ou seja, a ficcionalização da própria vida. É o caso da obra Filho eterno, em que Cristóvão Tezza romanceia a experiência como pai de um portador da síndrome de Down, ou de Diário da queda, em que Michel Laub mistura vida pessoal e a sua origem judaica com elementos de ficção.
Resende identifica ainda a tendência de “rasura do real”, ou seja, “desrealizar a narrativa realista”. Ela aponta como exemplo o drama íntimo e familiar de Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. “Numa narrativa formalmente realista até então, entra o horror, a figura tétrica do avô que deveria estar morto”, aponta a especialista.
Michel Laub é exemplo de autor que mistura ficção e elementos autobiográficos
Menos realista e mais ensimesmada, poderia-se pensar que a literatura contemporânea também é menos politizada. A geração atual está, de fato, menos interessada do que a anterior em questões explicitamente políticas, como desigualdade social e ideologia. Os escritores mais jovens eram muito novos quando a ditadura militar chegou ao fim, nos anos 1980, e a luta pela liberdade tomou conta da sociedade brasileira.
Mas, como destaca o crítico literário Miguel Conde, “a força política de um texto literário não depende do enredo”. Escrever sobre política não é mais falar explicitamente sobre ideologia, mas sim tratar de questões do cotidiano, como o papel da mulher na sociedade ou o cotidiano na cidades, concorda Resende. Um exemplo é o romance Cidade de Deus, de 1997, em que Paulo Lins tematiza o cotidiano violento do bairro carioca homônimo a partir da própria experiência como morador.
Profissionalização e globalização
Se quanto aos temas ainda é possível identificar tendências na nada homogênea geração atual, em termos formais e estilísticos há menos variáveis comuns. Um aspecto recorrente é a escrita em primeira pessoa, como aponta o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, professor de literatura da PUC-RS. “Os jovens hoje, de uma maneira esmagadora, falam na primeira pessoa.”
Luiz Ruffato deixou o jornalismo para dedicar-se à literatura
Um consenso entre os especialistas é que os escritores brasileiros estão se profissionalizando. “Escritor nunca havia sido profissão no Brasil”, diz Resende. Era preciso exercer outra atividade para ganhar a vida. Hoje, cada vez mais autores buscam viver da literatura. É o caso de Saavedra, que se diz “escritora em 100% do tempo”, e de Luiz Ruffato, que deixou o jornalismo para dedicar-se somente à literatura.
Além disso, Conde aponta que hoje o autor atua como um “vendedor do próprio texto”, percorrendo eventos literários, como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), e participando de redes sociais para divulgar seu trabalho.
Assis Brasil vê também uma busca incessante pela qualidade do texto – algo que se perdeu a partir do Modernismo. “Percebo o quanto os jovens escritores querem ser competentes. Escrevem, reescrevem e reescrevem”, afirma o escritor, que ministra uma das mais famosas oficinas de escrita literária do Brasil.
Com escritores mais preparados e uma literatura madura – capaz de falar de qualquer tema –, o Brasil tem maior chance de projetar sua produção literária no mundo globalizado. A temática urbana também torna os escritos brasileiros mais universais, já que a cidade funciona como “uma rede mundial de problemas comuns”, como define Costa Pinto.
Assis Brasil ressalta que a literatura brasileira atual poderia ser assinada por qualquer escritor de qualquer parte do mundo. “É uma literatura com uma temática sintonizada com todas as literaturas de grande produção”, completa Resende.
Por Luisa Frey no DeutscheWelle
“Cresciam as roças de cacau, estendendo-se por todo o sul da Bahia, esperavam as chuvas indispensáveis ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos cacauais”, descrevia Jorge Amado em Gabriela, cravo e canela, de 1958. “O trânsito fica horrível, a cidade, esse caos que está hoje, e além do mais eu acabo sempre perdendo o guarda-chuva”, escreveu Carola Saavedra quase 50 anos depois, em Toda Terça, de 2007.
A realidade brasileira mudou nas últimas décadas, e isso se reflete na literatura. Apesar da variedade de temas em meio a um país mais industrializado e globalizado, é possível apontar algumas tendências na atual geração de escritores. Se antes predominava um ambiente rural ou tropical, hoje as histórias se passam num Brasil urbano ou até mesmo fora de um cenário brasileiro identificável. Os jovens autores são menos preocupados com a identidade nacional.
“Por muitos anos, essa identidade foi definida como um retorno ao campo ou ao Brasil ‘autêntico’”, diz o prefácio da edição O melhor dos jovens romancistas brasileiros da revista literária britânica Granta, de 2012. Já os escritores de hoje, “filhos de uma nação mais próspera e aberta, são cidadãos do mundo tanto quanto são brasileiros”.
A Granta publicou trechos de 20 jovens autores, como Saavedra, Daniel Galera e Michel Laub. Estes e outros novos nomes figuram entre os 70 escritores que representarão o Brasil na Feira de Frankfurt deste ano. O equilíbrio entre autores consagrados e os da nova geração foi um dos critérios de escolha, afirma o crítico literário Manuel da Costa Pinto, um dos três responsáveis pela seleção.
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Carola Saavedra é um dos jovens nomes que representarão o Brasil na Feira de Frankfurt
Costa Pinto aponta que, a partir da década de 1970, é difícil falar em homogeneidade na literatura brasileira, e o recorte geracional passou a ser simplesmente temporal. Mas ele reconhece a recorrência da temática urbana.
“Existe uma tendência de se falar da experiência do indivíduo urbano, culto, de classe média, envolto com questões subjetivas e pessoais, mas tendo como pano de fundo – mais ou menos – a questão brasileira”, diz.
A professora e crítica literária Beatriz Resende, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também aponta “uma recusa do tema nação”. Assuntos como corrupção, violência e democracia podem aparecer, mas dispersos pelo cotidiano urbano. Como diz Costa Pinto, o foco não está no aspecto social e histórico brasileiro, e a narrativa se volta para questões “intrinsecamente pessoais do escritor”.
Autoficção, rasura do real e política
Esse olhar voltado para si mesmo resulta em mais uma característica nos escritos da nova geração: a chamada autoficcção – ou seja, a ficcionalização da própria vida. É o caso da obra Filho eterno, em que Cristóvão Tezza romanceia a experiência como pai de um portador da síndrome de Down, ou de Diário da queda, em que Michel Laub mistura vida pessoal e a sua origem judaica com elementos de ficção.
Resende identifica ainda a tendência de “rasura do real”, ou seja, “desrealizar a narrativa realista”. Ela aponta como exemplo o drama íntimo e familiar de Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. “Numa narrativa formalmente realista até então, entra o horror, a figura tétrica do avô que deveria estar morto”, aponta a especialista.
Michel Laub é exemplo de autor que mistura ficção e elementos autobiográficos
Menos realista e mais ensimesmada, poderia-se pensar que a literatura contemporânea também é menos politizada. A geração atual está, de fato, menos interessada do que a anterior em questões explicitamente políticas, como desigualdade social e ideologia. Os escritores mais jovens eram muito novos quando a ditadura militar chegou ao fim, nos anos 1980, e a luta pela liberdade tomou conta da sociedade brasileira.
Mas, como destaca o crítico literário Miguel Conde, “a força política de um texto literário não depende do enredo”. Escrever sobre política não é mais falar explicitamente sobre ideologia, mas sim tratar de questões do cotidiano, como o papel da mulher na sociedade ou o cotidiano na cidades, concorda Resende. Um exemplo é o romance Cidade de Deus, de 1997, em que Paulo Lins tematiza o cotidiano violento do bairro carioca homônimo a partir da própria experiência como morador.
Profissionalização e globalização
Se quanto aos temas ainda é possível identificar tendências na nada homogênea geração atual, em termos formais e estilísticos há menos variáveis comuns. Um aspecto recorrente é a escrita em primeira pessoa, como aponta o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, professor de literatura da PUC-RS. “Os jovens hoje, de uma maneira esmagadora, falam na primeira pessoa.”
Luiz Ruffato deixou o jornalismo para dedicar-se à literatura
Um consenso entre os especialistas é que os escritores brasileiros estão se profissionalizando. “Escritor nunca havia sido profissão no Brasil”, diz Resende. Era preciso exercer outra atividade para ganhar a vida. Hoje, cada vez mais autores buscam viver da literatura. É o caso de Saavedra, que se diz “escritora em 100% do tempo”, e de Luiz Ruffato, que deixou o jornalismo para dedicar-se somente à literatura.
Além disso, Conde aponta que hoje o autor atua como um “vendedor do próprio texto”, percorrendo eventos literários, como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), e participando de redes sociais para divulgar seu trabalho.
Assis Brasil vê também uma busca incessante pela qualidade do texto – algo que se perdeu a partir do Modernismo. “Percebo o quanto os jovens escritores querem ser competentes. Escrevem, reescrevem e reescrevem”, afirma o escritor, que ministra uma das mais famosas oficinas de escrita literária do Brasil.
Com escritores mais preparados e uma literatura madura – capaz de falar de qualquer tema –, o Brasil tem maior chance de projetar sua produção literária no mundo globalizado. A temática urbana também torna os escritos brasileiros mais universais, já que a cidade funciona como “uma rede mundial de problemas comuns”, como define Costa Pinto.
Assis Brasil ressalta que a literatura brasileira atual poderia ser assinada por qualquer escritor de qualquer parte do mundo. “É uma literatura com uma temática sintonizada com todas as literaturas de grande produção”, completa Resende.
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